Cinco poemas de Georg Trakl traduzidos

De profundis

 

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á um campo de restolho sobre o qual uma chuva negra cai.
Há uma árvore castanha, que aí está de pé, sozinha.

Há um vento sibilante à volta das cabanas vazias.
Como é triste esta noite.

Ao longo da aldeia,

A doce órfã colhe ainda escassas espigas.
Os seus olhos, redondos e dourados, pastam ao entardecer,

E o seu peito anseia pelo noivo celestial.

No regresso,

Os pastores encontram o seu doce corpo

A apodrecer nos arbustos de espinhos.

Uma sombra eu sou, longe das lúgubres vilas.

De Deus o silêncio

Eu bebi na fonte do bosque.

Na minha fronte, aparece metal frio.

Aranhas procuram o meu coração.
Há uma luz que a minha boca extingue.

À noite, dei por mim numa charneca,

petrificado pela sujidade e pó de estrelas.

No bosque das avelaneiras,

Ressoam, de novo, anjos de cristal.

 

De profundis[1]

Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt.

Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht.

Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist.

Wie traurig dieser Abend.

Am Weiler vorbei
Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein.

Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung
Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams.

Bei ihrer Heimkehr
Fanden die Hirten den süßen Leib
Verwest im Dornenbusch.

Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern.
Gottes Schweigen
Trank ich aus dem Brunnen des Hains.

Auf meine Stirne tritt kaltes Metall.
Spinnen suchen mein Herz.

Es ist ein Licht, das meinen Mund erlöscht.

Nachts fand ich mich auf einer Heide,
Starrend von Unrat und Staub der Sterne.
Im Haselgebüsch
Klangen wieder kristallne Engel.

 

Humanidade

Humanidade posta perante gargantas de fogo,

Rufar de tambores, semblantes escuros dos guerreiros,

Passos através de um nevoeiro de sangue. Ressoa o ferro negro.

Desespero. Noite em cérebros tristes:

Aqui as sombras de Eva, a caça e o dinheiro encarnado.

Nuvens que a luz trespassa, a ceia.

Um silêncio suave habita o pão e o vinho

E aqueles ali reuniram-se. Doze em número.

À noite, gritam a dormir debaixo dos ramos da oliveira.

São Tomé mergulha a mão nas feridas.

 

Menschheit

Menschheit vor Feuerschlünden aufgestellt,

Ein Trommelwirbel, dunkler Krieger Stirnen,

Schritte durch Blutnebel; schwarzes Eisen schellt,

Verzweiflung, Nacht in traurigen Gehirnen:

Hier Evas Schatten, Jagd und rotes Geld.

Gewölk, das Licht durchbricht, das Abendmahl.

Es wohnt in Brot und Wein ein sanftes Schweigen

Und jene sind versammelt zwölf an Zahl.

Nachts schreien im Schlaf sie unter Ölbaumzweigen;

Sankt Thomas taucht die Hand ins Wundenmal.

 

Alma da vida

 

Decadência, que suave ensombra a folhagem.

O seu amplo silêncio mora na floresta.

Em breve, uma aldeia parece inclinar-se, como um fantasma.

A boca da irmã sussurra nos ramos negros.

O homem solitário vai desaparecer em breve,

Talvez seja um pastor, sobre caminhos sombrios.

Sai em silêncio um animal da arcada de árvores,

Enquanto as pálpebras se abrem bem perante a divindade.

O rio azul escoa, belo.

Nuvens mostram-se de noite.

A alma está num silêncio angelical.

Figuras passageiras decaem.

 

Seele des Lebens[1]

Verfall, der weich das Laub umdüstert,

Es wohnt im Wald sein weites Schweigen.

Bald scheint ein Dorf sich geisterhaft zu neigen.

Der Schwester Mund in schwarzen Zweigen flüstert.

 

Der Einsame wird bald entgleiten,

Vielleicht ein Hirt auf dunklen Pfaden.

Ein Tier tritt leise aus den Baumarkaden,

Indes die Lider sich vor Gottheit weiten.

 

Der blaue Fluß rinnt schön hinunter,

Gewölke sich am Abend zeigen;

Die Seele auch in engelhaftem Schweigen.

Vergängliche Gebilde gehen unter.

 

Crepúsculo

No pátio, enfeitiçado pela luz láctea do crepúsculo,

Ternos doentes deslizam através do outono acastanhado.

Os seus olhos redondos em cera pensam nos seus tempos dourados,

Cheios de sonhos e paz e vinho.

 

A enfermidade fecha-os fantasmagoricamente nela.

As estrelas espalham uma tristeza alva

No cinzento, cheios de ilusão e repiques,

Vê como, horríveis, se dissipam confusamente.

 

As figuras sem forma do escárnio esgueiram-se, de cócoras

E esvoaçam sobre sendas negras negros de cruzamentos.

Oh! Tão tristes as sombras nos muros.

 

As outras fogem pelas arcadas sombrias.

E à noite precipitam-se com as rajadas rubras

Do vento estrelar, quais Ménades em fúria.

 

Dämmerung

Im Hof, verhext von milchigem Dämmerschein,

Durch Herbstgebräuntes weiche Kranke gleiten.

Ihr wächsern-runder Blick sinnt goldner Zeiten,

Erfüllt von Träumerei und Ruh und Wein.

 

Ihr Siechentum schließt geisterhaft sich ein.

Die Sterne weiße Traurigkeit verbreiten.

Im Grau, erfüllt von Täuschung und Geläuten,

Sieh, wie die Schrecklichen sich wirr zerstreun.

 

Formlose Spottgestalten huschen, kauern

Und flattern sie auf schwarz-gekreuzten Pfaden.

O! trauervolle Schatten an den Mauern.

Die andern fliehn durch dunkelnde Arkaden;

Und nächtens stürzen sie aus roten Schauern

Des Sternenwinds, gleich rasenden Mänaden.

 

Melancolia – 3ª Versão

 

Sombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros,

Que longamente me fixam, ao passar.

Acordes suaves de guitarra acompanham o outono,

No jardim, dissolvido em lixívia castanha.

As mãos das ninfas preparam a lugubridade séria

Da morte. Lábios podres sugam leite de

Peitos encarnados e na lixívia negra

Deslizam os caracóis húmidos do filho do sol.

 

Melancholie

Bläuliche Schatten. O ihr dunklen Augen,
Die lang mich anschaun im Vorübergleiten.
Guitarrenklänge sanft den Herbst begleiten
Im Garten, aufgelöst in braunen Laugen.
Des Todes ernste Düsternis bereiten
Nymphische Hände, an roten Brüsten saugen
Verfallne Lippen und in schwarzen Laugen
Des Sonnenjünglings feuchte Locken gleiten.

 

[1] Trakl, Georg. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 27.

14 Jun 2018

Lisboa: Os espermatozóides trapezistas

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]venida de Roma: Acasala o ar com o néon, aquele rapaz de cabelo verde que esplende contra a luz da montra.

Jardim do Torel. Morremos porque somos alérgicos ao ar? É um dos emaranhamentos mais misteriosos. Entretanto, não desdenhava conhecer o primeiro que criar um teste para as alergias poéticas!

Uma vez, neste jardim, vi um ovni. Eu estava sóbrio, o ar à minha volta é que não.

Nunca ter sido este jardim aproveitado cinematograficamente é a prova de que os cineastas portugueses não sabem olhar a cidade. Alérgicos ao ar.

Café Orion: Há amores que têm borra e outros que se dissolvem sem ruído como asa de mosca na clara do ovo.

Nicola. Vejo-a sentada na mesa ao lado da minha – isto é, na mesa errada – e descortino uma função para a poesia: a da ortopedia. Corrigir os ossos ao ambiente. Ouço-a e percebo: o timbre de James Mason funciona no feminino, excita o punhado de anjos que falte cair. O estonteante arraso da voz dela – na sua tonalidade, ritmo, colocação e recorte das frases floresce uma civilização -, ao que se junta um rosto moreno de beleza lapidar, não se coaduna com os calções, o relaxe, o dedo a esgaravatar a cera no ouvido, a vulgaridade do viking que a acompanha, um calhordas ao qual só diviso uma qualidade, a de calar-se quando ela fala. E ela fala todo o tempo, adivinho, para afastar a agonia do desajuste que lhe coube. Na mesa ao lado – na errada -, aguardo pelo meu encontro e, para me alhear, penso na bela macaense que há dois anos alegrava o painel dos empregados de mesa deste Nicola, que sempre revisito em Lisboa. O que será feito da Águia de Prata?

Café Orion. Eis no que se tornou: o homem-vírgula. Esvaziado de conteúdo, mas gramaticalmente insuperável. Sossego, que seja amigo de outrem que não meu, porque também não teria conseguido ajudá-lo a evitar a esterilidade.

Aquário Vasco da Gama. Ilusão minha, ou abaixo do funil da lula gigante do Aquário Vasco da Gama, umas estranhas estrias entre os olhos desenham a carta astral de Fernando Pessoa? Não pude partilhar este meu provável engano com o meu neto que tem oito anos e a quem já basta ter passado, num ano, de rapaz eléctrico ao perfil dos meditativos. E capaz de rigores. Esclareceu-me ele diante do meu espanto de ter estado com ele numa semana sem mazelas e de o ir encontrar na semana seguinte de braço engessado: Está descansado avô, foi só o rádio.

Confeitaria Cister. Fico boquiaberto: as rosas que nós conhecemos e amamos têm uma data de “fabrico”, 1867. É um produto de muitos cruzamentos e do pendor dos homens. Existem as silvestres, mais antigas, mas as que nos prendem a atenção começaram a ser cultivados pelos chineses há dois mil e quinhentos anos, foram depois trazidos pelos persas, e acabadas de aperfeiçoar só no século XIX. Igual estupor só o ter aprendido, há décadas atrás, que os oásis são uma bolha inventada pelo homem e não um implante produzido pela natureza ou por Deus para consolar a rudeza dos desertos. Dois magníficos exemplos de natureza alterada e melhorada pelo homem. Nem tudo é mau.

Café Dragão Vermelho. Há dois anos escrevi: “A nomeação de Bob Dylan como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra. Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores, identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões.”

E, agora, no deguste duma tosta mista, leio, em Da Miséria Simbólica, de Bernard Stiegler: «Hoje, nas sociedades de modulação que são as sociedades de controle, as armas estéticas tornaram-se essenciais: trata-se de controlar essas tecnologias da aisthesis que são, por exemplo, o audiovisual e o digital, e graças a este domínio das tecnologias, trata-se de controlar os tempos de inconsciente dos corpos e das almas que os habitam, ao modular através do controlo dos fluxos esses tempos de consciência e de vida». Tinha-o intuído.

Café Coimbra, com a mão atrás da orelha: ” Uma árvore que dura mais do que eu? Um castanheiro durar mais que eu? Era o que faltava. Uma árvore é para um gajo mijar. Vai logo à serra. É assim a natureza, os superiores governam os destinos dos inferiores. No outro dia comprei um kit com várias bactérias, um amigo meu tem uns conhecimentos na Secreta e vendeu-me… Para mim é assim, vai de fungos, vírus, cancros, tudo… não devia haver mais árvores do que homens. Um gajo não pode correr à vontade. Corre e bate. Vocês já viram árvores num campo de futebol? E é um exemplo de natureza, a relva, de socialização, o jogo, e de cultura, o árbitro. Para mim é um must. Percebo que tem de haver árvores por causa do papel, mas se formos a ver publica-se muita merda neste país. Há uma árvore de que gosto. Quando é grande. O abrunheiro. E dá um bagaço de arromba. Agora um gajo ler que a castanha está na moda e que daqui a vinte anos é um negócio tão rendoso como o vinho do Porto, não dá – é um embuste. Vinte anos é o tempo que um castanheiro leva a produzir castanha capaz. Um homem responde por si, aos treze, aos catorze… eu por acaso aos doze já enchia um balde. Nem sei se tenho gente do circo na família mas os meus espermatozóides são trapezistas…”

Cacilheiro & Brown: “Adoro malta de cor com um bom pau. Telefona 919357430”: foi assim que soube, apopléctico, a mijar ao meu lado, das inclinações do filho.

14 Jun 2018

Eu (não) estou aqui

Horta Seca, Lisboa 20 Maio

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or estes dias, andei meio perdido na adolescência. Um dos meus liceus, agora vítima de curiosa vingança que o atirou para abandono semelhante ao do Cabo Ruivo de então, capitaneava margens esquecidas. De tempo e lugar. Os anos na Afonso Domingues, que de feminino pouco mais tinha além do nome (Escola Industrial), deram-me acesso a sítios que insuflavam de oxigénios a palavra aventura. Os territórios começavam logo ali, junto à linha do comboio, e desciam por azinhagas, de bruxas ou nem por isso, até à grande avenida dos velhos e britânicos autocarros de dois andares, com passe para patifarias e doidas corridas. Logo antes do rio onde brilhavam sombras até do império e o hidroavião, encostado ao labirinto de metais e cores, atracado a livros de cordel onde atlântico rimava com viagens e batalhas e as máquinas voadoras eram o passaporte para uma vida a sério. Estava na Afonso, em nome da força aérea, para que conste. Mais tarde, não muito, iria calcorrear os mesmo caminhos com atenções outras, de câmara na mão, a aprender a ver, sob a batuta do Luís Pavão, que animou na Afonso um clube de fotografia. Tenho que regressar a esses negativos, quase todos na cor precisa da memória, o preto e branco. Que olhos seriam os meus, no salto, óbvio para a idade, entre fantasia e real, entre astronáutica e consciência social?

Cá em casa, as ideias mastigam-se muito, mas estava longe de imaginar que o projecto do Bruno [Portela] de celebrar os 20 anos da Expo 98 com mergulho no oceano do seu arquivo acabaria comigo, depois de conversadas e excluídas várias outras hipóteses mais naturais, a legendar as suas fotos, que estão em exposição de grande impacto no próprio local. «Você (Não) Está Aqui» atirará, até Setembro, os incautos transeuntes para viagem no tempo. Bem distinta da minha. Este trabalho do Bruno (exemplo algures na página) resultou de uma encomenda, estava sujeita a constrangimentos, aspirava à totalidade do registo, mas originou olhar que resistiu ao tempo e nos permite acesso à metamorfose. A cidade desfazia-se aqui, entre desvario e tangível. A melancolia habitava o sítio e ficou na fotografia.

Para abrir, sugeri estas linhas, e falhei nas outras legendas abordar a minha púbere aviação. «Os lugares possuem um espírito. Mas o tempo não lhes permite que se mantenha para sempre o mesmo. Neste pedaço de Lisboa, qualquer coisa em hectares (340) como a extensão que vai do Terreiro do Paço a Entrecampos, morreram maneiras de fazer, de construir, modos de ir deixando andar, parte de um século. Paz à sua lama. A meio do século passado, uma certa vontade de desenvolvimento colocou às portas da cidade a refinaria de «ouro negro» que a alimentava, e à sua volta foram-se acumulando restos, matérias brutas, abandonos e abandonados, outras memórias. O século XX estava a acabar e a capital ignorava o seu oriente, quando a pretexto do encontro com outros orientes, resolveu fazer uma das maiores transformações urbanas do país. A regeneração do território foi, aliás, uma das principais razões para que Portugal ganhasse, há 20 anos, a organização da Expo 98 projecto, de par com a celebração da viagem de Vasco da Gama e ter escolhido os oceanos para tema. E assim aconteceu de modo único: uma das maneiras de aferir o sucesso da mudança está no apagamento da memória do que aqui foi. O trabalho bom do fotógrafo é captar espíritos. Ora Bruno Portela (Lisboa, 1966) estava, nos idos de 1994, no lugar exacto à hora certa para registar o fim de um ciclo. O seu percurso fez-se mais do documental. Por um lado, não ignora o humano nas estruturas, nas formas, nos restos e na poeira de que parece feita a paisagem. E por outro, coloca-nos no coração da vaga e sólida tristeza que se solta do tempo a passar. Uma cidade pode esconder outra: cuidado a atravessar.»

Mymosa, Lisboa, 25 Maio

Temos atrasos e temos atrasos dolorosos. A edição da Manuela Sousa Lobo tardou, mas vai resolver-se, a pretexto dos 130 anos de Pessoa. Há tantos anos lhe conheço os poemas, prodígio de criatividade, na língua, nas imagens que cria, no cruzamento de planos, perturbações, identidades. Sinto com a dor da injustiça este apagamento, mas isso pouco resolve. Almoçamos para acertar detalhes, para conversa solta, para isto e aquilo. De surpresa, aparece-nos o Patrak.

Há muitas luas, em programa na Rádio Universidade Tejo, juntei os dois, a Manuela e o Luís Carlos Patraquim, outro poeta enorme, sem que um soubesse do outro, para encontro de amigos ao vivo do microfone. A coincidência de os ter agora aqui, descombinadamente, anima-me, sem outra razão que a alegria. «Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.»

Já na abalada, vejo a Manuela a baixar-se com esforço para apanhar qualquer coisa que me havia escapado, missanga de máscara zulu, dobrão de ouro, a chave da arca do Pessoa, tecla de máquina de escrever. Não, era um parafuso, torto, que trazia em si a própria inutilidade. Diz a poeta em resposta à minha surpresa: «anda tanta gente a perdê-los que alguém tem de os apanhar». Nem perdi tempo a imaginar o museu, corri a apanhar uma caneta-íman que outra poeta me tinha oferecido, desconfio que para me chamar velho ou apenas apagar o meu fascínio pelo objecto. Doravante, não precisará dobrar-se, basta abrir a extensão telescópica e apanhar os parafusos perdidos.

Casa da Cultura, Setúbal, 1 Junho

Alimento para os olhos, que não a pintura de naturezas mortas, a Festa da Ilustração obriga-me invariavelmente a esforço de orientação na selva das imagens. As boas exposições, qualquer que seja o volume, fazem-se paragem de comboio, lugar onde saborear o tempo. Não encontro melhor exemplo que esta «Bricolage», do João [Fazenda], portentoso construtor de cidades e metáforas, o melhor dos transportes públicos. Encontramos «trabalhos de vários momentos, mas sobretudo dos anos mais próximos. Estão representados os suportes essenciais (livros, periódicos, cartazes, cadernos íntimos).

Melhor: estão os olhares e os gestos primordiais que fazem dele autor seminal, pois nele se vão mergulhando raízes para as mais vorazes experiências. Em cena no Palco estão actores, objectos e cenários dispostos como se obedecessem a encenador, urbanista, jogador de xadrez, que melhores peles pode o ilustrador vestir? Puro prazer se desprende do mecanismo, umas vezes literal, outras metafórico, sempre a atirar-nos para a viagem. Segue-se visita guiada ao Bairro, com trabalhos mais pessoais e narrativos sobre a cidade e as suas transformações.

Ternura no olhar que toca cada figura, entalada entre o banal e o excepcional, eis o que nos espera. Avancemos em direcção à Arena, onde se recolhem os rostos e os corpos do inferno político, social, mediático, nosso. Pode explodir o humor, mas sem que aconteça cartoon. Tudo nos encaminha para a Pista de Dança, onde Fazenda chama a si a figura do coreógrafo-bailarino: cada desenho faz-se movimento que rodopia em movimento e transformação contínua, abrindo-se espaço de liberdade e imaginação. Cada desenho logo se faz outro desenho, sendo todos momento dessa transformação. Ninguém lhos pediu, mas todo ele, desenhador compulsivo, os exigiu. Este movimento não está, em momento algum, ausente das milhentas imagens que criou. A que deu vida. Mal voltem costas, tudo continuará a mexer-se, acreditem.”

13 Jun 2018

A humanidade como conspiração: Matriz e Budismo

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma época em que abundam teorias da conspiração, vamos acercar-nos de um filme que tem como base o encaminhamento de buda, isto é, um modo de pensar espiritual cujo objectivo é alcançar a consciência plena. E este modo de pensar pode também ser visto como a revelação de um segredo: a humanidade conspira contra ela mesma.

Por conseguinte, este modo de ver o humano, não trata de uma teoria da conspiração acerca da terra ser ou não redonda ou dos ricos reunirem-se em volta de uma mesa para governarem os destinos do mundo, mantendo-o tal e qual ele é e sempre foi ou como querem que ele seja. Trata-se de algo mais profundo. O budismo pode ser visto como a revelação de que a humanidade conspira e sempre conspirou contra ela mesma. E fique desde logo claro, que não se trata de um texto acerca do budismo, mas de pensar um filme com elementos básicos do pensamento espiritual de Buda.

Lembremos o filme que lemos aqui na semana passada. A génese da criação, antes mostrada através de um caso pessoal, é agora levada a cabo aqui através de um modo de pensar e de entender o mundo que é universal, no sentido em que é partilhado por muitos através do espaço e do tempo. As irmãs Wachowski, pegam nesse modo de entender o mundo, que é o budismo, e fazem uma criação onde mostram uma grande conspiração.

Para aqueles que estão familiarizados com o caminho de Buda, e bem mais do que eu, o filme que aqui hoje vamos ler, Matrix, surge-lhes de imediato como uma visão desse modo de viver e entender o mundo aplicado a uma estrutura narrativa de ficção científica. O mundo onde usualmente habitamos, todos nós, que é resultado de uma consciência não desperta, o budismo chama Samsara (consciência comum ou consciência adormecida). A samsara é mundo da consciência que a maioria de nós habita. O mundo da consciência antes da libertação.

E podemos aqui também lembrar a famosa alegoria da caverna, de Platão. Mas recorde-se a primeira conversa entre Neo e Morpheus, em que este último diz que o outro tem o olhar de quem espera que o que está acontecer seja um sonho e que a qualquer momento vá acordar, e acrescenta que isso não deixa de ser verdade. Não deixa de ser verdade, porque uma consciência adormecida é uma vida adormecida. Estar adormecido é viver na samsara (ou nas sombras da caverna de Platão). E, no filme, Matrix é metáfora de samsara.

No início, Neo vive como que num sonho, na consciência comum, imerso na Samsara, na Matrix. Mas está ali, em frente de Morpheus, porque sente que há algo errado com o mundo, o conhecimento que ele tem, e que ainda não sabe, sempre esteve e está lá, dentro dele, à espera de se tornar consciente. Evidentemente, isto também nos lembra Platão. Mas aqui, com o budismo, a similaridade torna-se mais evidente. Como diz o budismo, todos nós somos Buda, mas a grande maioria não o sabe e nunca irá saber. Assim, Neo assume no filme a personificação daquele que quer descobrir o Buda que o habita, o Buda que é, apesar de haver também no filme alguma similaridade com a narrativa de Cristo, principalmente no uso da linguagem, “o escolhido”, “aquele que foi escolhido e que veio ao mundo para nos salvar.”

Nessa primeira conversa, Morpheus diz “Matrix está em todo o lado, à nossa volta, aqui mesmo nesta sala. Você pode vê-la ao olhar pela janela, ao ligar a televisão ou ao ir para o trabalho. Quando vai à igreja, quando paga os impostos. É o mundo que puseram diante dos seus olhos para que não pudesse ver a verdade.” E a verdade, continua Morpheus, é que nós somos escravos. Nós nascemos numa prisão que não conseguimos nem ver, nem tocar. Uma prisão para a nossa mente. E esta é a própria definição de samsara. O mundo impede a consciência de se ver a si mesma.

E o Matrix não pode ser explicado completamente ou mostrado, a não ser que se saia dele, que se alcance o despertar da consciência. É preciso alcançar o estado de buda – que em muitas tradições se chama Nirvana – para ver o Matrix. A mentira só pode ser vista quando já não estamos nela, quando estamos na verdade e a vimos de fora. É preciso alcançar o desabrochar (sanqyé) à imagem da flor de lótus, de modo a afastar a representação e ficarmos livres dos conceitos e das sensações. Aquilo que Morpheus está a dizer a Neo é que o Matrix só pode ser visto na sua totalidade através de uma experiência de cognição directa, quando a separação do sujeito-objecto desaparece. Porque a ignorância (avidya), em que todos estamos na samsara (matrix), consiste em confundir a realidade com a sua representação.

Assim, quando Morpheus lhe dá a escolher entre as duas cápsulas, a vermelha, que o levará na viagem em direcção à verdade, ou a azul, que o deixará como está, a acordar na sua cama como se tudo não passasse de um sonho, Neo escolhe o caminho da verdade, o caminho do despertar da consciência, o caminho de Buda. E aquilo que primeiro choca Neo é precisamente o primeiro dos ensinamentos budistas: tudo é espaço (aliás, à imagem das novas teorias da física contemporânea, principalmente a Mecânica Quântica, que mostra que num átomo há muito mais vazio do que cheio). A própria palavra Bu (vacuidade) – da (compaixão), quer dizer abraçar o espaço com a consciência e com o coração. Há muito menos forma, aquilo que confere individualidade a nós e às coisas, do que espaço contínuo (sem forma). Mas nós somos parte desse espaço contínuo, nós somos vacuidade. Nada nos separa de nada.

“Porque é que me doem os olhos?”, pergunta Neo, “porque nunca os usaste”, responde Morpheus. Na primeira vez que Neo luta, num treino com Morpheus, este diz-lhe: “Não penses que és rápido. Sê rápido.” E esta é a diferença fundamental para quem segue o caminho de Buda. Há que ultrapassar o pensar para ser. Há que ultrapassar os conceitos. E pouco depois diz: “Estou a tentar libertar a tua mente, Neo. Mas só posso mostrar-te a porta. És tu que a tens de atravessar.” É também isto, e apenas isto, que um mestre budista pode fazer por um discípulo, mostrar-lhe a porta, mostrar-lhe o caminho que ele tem de percorrer, mas é ele que tem de o fazer por si, sozinho.

Apesar de se ter a mente liberta, diz Morpheus, quando estamos na Matrix (quando estamos na consciência comum, adormecida, diria um budista) as pessoas que nos rodeiam, que queremos libertar, são nossas inimigas, pois elas não estão preparadas para acordar. Porque é difícil largar a sensualidade do mundo. Há uma passagem central no filme, acerca disto. Cypher, que trai os companheiros, e a quem o agente Smith trata por senhor Reagan, quando no restaurante a jantar com o agente come um pedaço de bife diz: “Sei que este bife não existe. Sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso.

Depois de nove anos [com a consciência plena da realidade] sabe o que descobri? Que a ignorância é uma bênção.” Esta é uma passagem central do filme. Cypher / Regan [que nos remete para o Ronald Reagan, actor e presidente dos Estados unidos da América], está a trair os companheiros e a verdade em troca de um lugar ao sol na Matrix [ele pede para ser rico e importante, actor importante]. Isto é, ele renuncia à verdade para viver bem. Viver bem segundo os padrões Matrix ou, se preferirmos, os da sociedade onde vivemos. Viver bem segundo a sensualidade do mundo. E esta é também uma das dificuldades que os budistas apontam para a libertação. O mundo criou a ilusão de bem estar para tapar a verdade.

E todos nós preferimos o bem estar, uma “vida boa”, regalada, ao sol, do que a verdade. E Cypher representa precisamente esta dificuldade, representa, no fundo, quase toda a humanidade. É como se a própria humanidade, ao criar o bem estar, a riqueza de uns sobre os outros, estivesse a conspirar contra si mesma, contra a libertação da própria humanidade. Neste caso, para o budismo, não são as máquinas que estão a criar uma realidade imaginária (como no filme), de modo a que os humanos não vejam a verdade, mas os humanos eles mesmos. A riqueza e o ideia de progresso são a armas que a humanidade usa contra a libertação de si mesma.

Veja-se o que a respeito disto escreve o professor e pensador Paulo Borges, no seu livro O Coração da Vida (Edições Mahatma, 2ª Edição, pp. 26-7): “Surgiu assim com o Iluminismo, a ideia do ‘progresso’, entendido como a emancipação da humanidade, pelo trabalho, das necessidades do mundo natural e da subordinação da natureza, por via da ciência e da tecnologia, aos fins hedonistas, utilitários e materialistas da civilização. O resultado da crença fanática neste tipo de progresso, que se converteu num novo mito e na nova religião laica e globalizada, foram as sucessivas revoluções industriais, a superstição e o novo obscurantismo do crescimento económico infinito num planeta com recursos finitos, a devastação dos recursos naturais, a destruição massiva da biodiversidade e da diversidade cultural, a destruição, a industrialização e sofrimento da vida animal, a poluição e o lixo industrial, o aquecimento global e as mudanças climáticas, a sociedade obsessivamente mobilizada para o trabalho, produção, consumo e desperdício, com níveis de stress, ansiedade e depressão cada vez maiores.” E como não ver aqui nestas palavras o filme Matrix! Não apenas na sua base budista, mas também na sua base futurista e de ficção científica, de um mundo arruinado, destruído. De facto, os maiores adversários a qualquer tese budista são a ideia de progresso e o bem estar, que quase sempre andam de mão dada. E ao vermos para onde caminha esta ideia de progresso, bem se pode dizer que se trata de uma teoria da conspiração contra a humanidade.

Quando Neo vai à Matrix pela primeira vez desde que viu a verdade, faz uma pergunta fundamental para o budismo: [depois de passar por um restaurante onde antes costumava jantar] “Tenho memórias da minha vida… E nunca aconteceram. O que é que isso significa?” E é a Trinity [Carrie-Anne Moss] que lhe responde: “Que a Matrix não pode dizer-te que tu és.” Ou seja, o mundo onde usualmente vivemos não pode dizer quem eu sou. Eu mesmo não posso dizer quem sou. Eu mesmo não existo, porque o “Eu” não existe. E é este o ponto de partida do budismo, a não existência do eu. Pois, como vimos anteriormente, há uma continuidade entre espaço e forma, entre vacuidade e todas as coisas. A nossa memória individual, singular, que nos confere a identidade, que nos permite dizer “eu, Paulo José”, que liga a criança que fui à pessoa de cinquenta e três anos que sou hoje, não passa de uma memória da samsara, uma memória de quem não vê a totalidade, the big picture, como se diz em inglês. Estamos convencidos de que somos quem somos, porque a memória que temos é uma memória que não corresponde à verdade, mas ao mundo, à “samsara”.

Há também uma passagem, quase no início do filme, que foca em outro dos aspectos fundamentais do budismo, o Karma. É quando Neo, ainda no escritório onde trabalhava, recebe um telefone de Morpheus, que lhe dá instruções para fugir dos agentes que o foram buscar. E, de repente, ele diz: “Porque é que isto está acontecer comigo? O que é que eu fiz? Não sou ninguém. Não fiz nada.” Para o budismo, esta é a forma usual de lidarmos com as coisas, estamos depostos naquilo a que se chama “consciência comum”, a pessoa acha sempre que não tem culpa de nada, que nada do que lhe está a acontecer tem a ver com algo que ele tenha feito anteriormente. A isto, o budismo chama Karma, que é o facto de todos nós estarmos em rede, que cada gesto influencia os outros gestos, como um pedra atirada ao lago, que irá produzir ondas, mas também afectar as ondas que os outros produziram com as suas próprias pedras. Tudo se interliga a tudo e tudo influencia tudo. Cada acção nossa influencia o nosso futuro e o dos outros, ainda que não nos seja de imediato perceptível ou não seja perceptível de todo.

Matrix é um filme que parte do budismo para nos mostrar que o humano conspira contra o humano, ainda que no filme sejam as máquinas que protagonizam essa conspiração.

12 Jun 2018

Epístolas

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o tempo em que escrevíamos cartas o próprio tempo não tinha a mesma velocidade nem urgência do dizer, dado que muitas funções do aparelho social se mantinham estanques e o espaço onírico de cada emissor se propagava pelo grafismo, que era a renda de um instante ali plasmado e que funcionava também como contemplação para o seu receptor.

Era maravilhosa a correspondência! Desde Abelardo e Heloísa, a Mariana Alcoforado, a Rilke e Salomé, o exercício epistolar formou em si um estilo único e literário. Hoje sabemos que a palavra escrita nestes espaços era produtora de capacidade amorosa através do respeito que este tema inspirava. Nem sempre já sabemos o quão bom é receber, tal como desconhecemos a magnitude do efeito de uma palavra que desliza… o outro é tudo. É nele, e por ele, que corre a seiva da nossa inspiração, não sendo dado ao escrevente outro ponto de equilíbrio que mais que amplexo, deve estar atento ao fluxo dessa fonte próxima do êxito: o bem-dizer.

Mas também a correspondência entre amigos é um factor a considerar pela proximidade cultural e ideológica e, com muito gosto, acabo de reler a de Maria Lamas a Eugénio Ferreira sempre com uma saudade qualquer: as pessoas estimavam-se e declaravam-no de forma civilizada, quase ritual, eram cúmplices, eram fraternas, claras no diálogo e extraordinariamente bem educadas. Ficamos repletos de admiração. Repensamos a relação entre as pessoas e não descobrimos nada de semelhante a esta retórica e onde ficou, afinal de contas, a tão designada comunicação que todos os dias queremos mais tecnicamente comunicante. Os pares estão paralíticos, os amigos dizem coisas… nós, balbuciamos, outros ouvem-se e querem ser escutados, e já outros fazem de conta que não se passa nada. Teclamos a desoras e não estamos presos, ou estamos, e nem disso nos damos conta… fazemos silêncios estranhos, quando falamos somos avaros nas benfazejas descrições. É tudo um desnorte que tendemos a solucionar este imbróglio pondo fim ao comunicado.

Por outro lado, os temas abundam nas vidas estranhamente estranguladas por uma instabilidade social de arrasar – eles são isto e mais aquilo e o que vier. Todos sabem de tudo e todos nos querem fazer prova da sua sapiência inesperada pois que a esperada está algures, e sempre, adormecida nos seus silêncios face aos nossos: em suma, cada um procura tentar ver se consegue produzir mais saberes num curto espaço de tempo, pois que vão já como foguetes tresmalhados conseguir mais coisas para dizer o que ninguém sabe e assim dominar um espectro, que também, diga-se, ninguém está vivamente interessado em escutar, contemplar. E, caso a nossa persistência seja inabalável na busca da boa relação entre outros falantes, cruzamo-nos também com a sua obstinação em nada repararem, de modo que temos de converter os discursos em ataques inconsequentes, que aí alguém nos vai tomar por “bons”. — Bom, que isto da relação falante vai da fonética à gestual e não raro apanhamos grandes e descontrolados safanões.

Depois ainda temos a risível correspondência Pessoana de se dirigir ao amor seu como uma brincadeira querida, o que me parece profundamente poético também, pois que está prenhe de ternura, coisas que nem todos sabem como transmitir, e as Cartas de Manuel Laranjeiro a Unamuno, trágicas, belas… Tudo o que faziam na fonte dava resultados assombrosos. E ali se debruçavam na sua valentia de espíritos livres tentando contornar a desdita de serem poucos, e não raro, até perseguidos por aqueles que nada sabiam de leitura e liam tudo ao contrário. Ou, pior, liam uma palavra e acrescentavam na sua inverosimilhança aquela que julgavam nas suas cabeças poder estar lá. A chamada finta dos tolos.

A epistolografia foi prática reinante entre gentes admiráveis, também muito usada como prólogo, e temos as célebres «Epístolas», as cartas que os Apóstolos escreveram para nós e se reescreveram de tal ordem que podemos continuar profetizando. É nesta versão sempre alterada, melhorada, desconstruída/construída, que o corpo de uma ideia se pode fazer então a carne do que busca. “Sou um pássaro em fuga, vejo Deus e não sei quem é, e penso que é um número que empurra”. Mas quem em diálogo nos escreve tanto, não necessita de interlocutor como no caso da «Carta ao Pai». Kafka arrasa o patriarcado de uma só vez, de modo que elas podem ser a bomba atómica de um modelo deslaçado, incomunicado até então… destinam-se a deitar fora uma vinculação para um inferno qualquer que só a realidade da construção verbalizada pode fazer acontecer. Só mandando a missiva para fora de si esse postulado cessará. Não sei se assim aconteceu, mas era esta a intenção. E a carta a Lord Douglas, «De Profundis», que fez um homem desnudar-se diante do Universo de forma bela e trágica, uma conversão como não há! Estas coisas com ponto fixo são de facto deslumbrantes. Só os que falam para o todo, aquele tudo que é nada, se amarfanham em descrições de tal ordem malfazejas que preferimos o desditoso incómodo da mudez. Que Moisés era gago, e nem por isso deixou de ouvir bem aquelas coisas todas.

Por isso acho que vou escrever uma carta, talvez a vós que aqui e agora se encontram, um por um, até cada um ser um ponto fixo desta memória, e caso não nos lembremos de mais nada ainda há as Epístolas de São Paulo aos Coríntios. «Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine». Mas Maria Lamas deixou uma tão bela frase que em nada desmerece aquela e que está curiosamente na sua correspondência: “Muitos temporais têm passado por mim. Alguns tremendos. E deixaram ruínas. Mas tenho conseguido – posso dizê-lo sem receio de exagerar – renascer da minha própria angústia mais desejosa ainda de dar, dar tudo quanto em mim caiba, para a renovação do mundo.”

Vou ver a caixa do correio, pode ser que tenham escrito também uma carta para mim. Eu acredito que haja ainda emissores desta altitude, e que ainda haverá em latitude quem os recepcione. Nem tudo se resume ao caixote do lixo do desaire das notícias: não há notícias, há apenas coisas que acontecem.

12 Jun 2018

Não dá mais

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta vez foi o Bourdain. Sem que nada o previsse, decidiu fazer check out. Para nós, que assistimos à morte alheia do conforto do sofá, é incompreensível. Quase todos trocaríamos os nossos empregos das nove às seis para fazer o que ele fazia: viajar pelo mundo, conhecer pessoas e comidas diferentes e falar sobre essas experiências. Aparentemente, ele tinha concretizado – pelo menos profissionalmente – o sonho que move a maior parte de nós e ao qual muito raramente logramos chegar.

Não sei da história clínica do Bourdain. Não interessa. Um tipo para pôr fim à vida não precisa de história clínica. Esta só serve para prover uma explicação mais convincente – havendo antecedentes – para algo que em si já comporta a sua própria explicação: não dá mais. A morte voluntária é a derradeira das saídas. O caminho que se toma quando nenhum outro parece fazer sentido.

E quanto a isto, o mundo divide-se em dois. Há aqueles que percebem ou tentam perceber este acto tão radical e esses, de algum modo, já sentiram o peso dessa sombra, mesmo que de muito longe. E há os outros, que munidos de uma camada extra de resistência ou de certa forma imunes ao canto desta sereia, não encontram justificação para a escolha de Bourdain. A diferença entre uns e outros é que os primeiros não podem regressar ao estado de perplexidade dos segundos, enquanto que estes, a qualquer momento, podem vir a compreender os primeiros.

A nossa peculiar constituição assenta num pilar inequívoco: desde que nos conhecemos que estamos destinados a tomar conta de nós. Como se cada um se levasse a si próprio ao colo em direcção ao futuro. Este tomar conta de si próprio não implica que se façam sempre as melhores escolhas, implica apenas que a vida tem uma estrutura temporal e que o sujeito navega dentro dessa estrutura por via das decisões que toma. Das mais simples – como refugiar-se do sol em dias de calor – até às mais sofisticadas – escolher uma profissão e traçar planos para que essa escolha se cumpra. A desistência é, ela própria, uma escolha.

Por muitas escolhas que façamos e por muito acertadas que estas pareçam ser, podemos ficar sempre aquém do sentido mínimo exigível para continuarmos por cá. Por muito que façamos e por muito escudados que nos encontremos pelos nossos sucessos e pelas nossas conquistas, podemos encontrar-nos expostos a uma dor de tal magnitude que nenhuma carapaça lhe é impermeável. Essa dor, tenhamo-la perfilhado ou descoberto, faz ninho no coração e fala-nos ao ouvido. Exige de nós uma atenção que não estamos em condições de lhe recusar. Como o cavalheiro de que Eça fala algures, interpela-nos travando-nos pelo braço.

É essa dor que podemos carregar vida fora como um segredo ou como uma medalha. Podemos fazer tudo para minorar os seus efeitos ou podemos entregar-nos a ela. Ou, como humanos que somos, uns dias uma coisa, uns dias outra. Mas um dia, depois de muito lutar, depois de muito fingir que nada se passa, encontramo-nos frente a frente com ela e, nesse dia, decidimos que não lhe daremos um segundo mais de vitória. Levamo-la pela mão, sorrimos o sorriso dos resolutos e atiramo-nos ribanceira abaixo. Para os que ficam, para os que nos amam e não compreendem esta decisão, percebam que mais não era possível, que fizemos o que estava ao nosso alcance, que a nossa maior tristeza é abandonar a festa muito mais cedo do que gostaríamos. Mas não dava mais.

11 Jun 2018

Decisão I

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] partir de determinada altura, deixamos de ter aniversários. Fazemos anos todos os dias. Ficámos, de algum modo, à espera. O que era para nós um projecto vital pode ficar hipotecado. Não tanto relativamente à promessa que temos com a vida, seja nós a fazê-la, seja a vida a fazê-la a nós. Mais relativamente ao meio que escolhemos para ser quem somos. Há muita gente que não terá tido essa possibilidade. Mas eu conheço muita gente que teve. Há alturas em que parece que ficamos desavindos com amigos. Sem sabermos bem por quê. Acontece. A resposta imediata de parte a parte resolve a situação. Não ficam ressentimentos. Voltamos a estar como se não houvessem mal entendidos. Os entusiasmos passados lentamente se tornam cruzes que temos de carregar. Todas as nossas decisões tomadas de ânimo leve ou difíceis abrem horizontes temporais que podem ser de longo prazo. Mesmo que achemos que foram acertadas no momento da escolha, a partir de determinada altura na vida, pensamos o que teria sido se não as tivéssemos tomado. Podemos pensar que não havia alternativa, mas o resultado que é esta vida, a única que temos, parece, se não, negativo, pelo menos difícil. O modo de vermos as coisas pode ter sido o do ultimato. A decisão podia ter parecido inevitável. Mas pensamos sempre se não poderíamos ter esperado mais um dia, se não poderíamos ter visto “melhor” as consequências das nossas acções: do sim e do não. De algum modo, parece que podemos ter cedido a tentações: a do prazer a que dissemos sim e à da fuga ao sofrimento a que dissemos não. Sabermos, ainda assim, se não foi uma decisão motivada por princípios “patológicos” como Kant lhes chamava: por um lado, a cedência à promessa do prazer, por que nos decidimos como se não houvesse amanhã. Por outro, a fuga à ameaça de sofrimento como se só houvesse um amanhã sem alternativa, difícil de suportar. Em ambos os casos vemos a promessa como o que vai ficar para sempre. Tudo será como é agora no presente. Todo o prazer será bom e cada vez mais frequente e intenso. Por outro lado, todo o sofrimento é visto no presente como a ameaça não anulável de um futuro onde só haverá condenação sem redenção. A racionalidade promete a possibilidade de um escrúpulo da não cedência à primeira dificuldade ou facilidade. Mas como podemos percorrer as nossas vidas na fantasia da imaginação para ver o que efectivamente vai acontecer se ficarmos ou se formos, se partirmos ou insistirmos, se mudarmos ou ficarmos na mesma? É a racionalidade que transcende o prazer e o sofrimento, a promessa e a ameaça, a abertura possível a uma escolha que vai contra todo o prazer e tolera todo o sofrimento, que anula o vigor de promessas e ameaças como futuros aparentes e falsos? E esta elucubração sobre a possibilidade da racionalidade aparece por quê? Pode ela modificar o passado ou antecipar boas resoluções para o futuro? Posso eu ficar sossegado ao ver em retrospectiva as decisões passadas como boas decisões e que tudo estaria pior se tivesse optado pela outra alternativa? E no futuro, poderei eu decidir fora do âmbito do prazer ou do sofrimento e perceber que as coisas já acabaram e eu não sabia ou ainda não acabaram e eu também não sei? Nenhum sossego vem, contudo. Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação. Em qualquer dos casos, há alturas em que achamos que todas as nossas decisões tomaram o curso errado. Mas a aparência de resolução desta possibilidade cai por terra, quando se multiplicam as decisões no âmbito de todas as frentes da vida.

Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação.

Só podemos ter uma vida e com ela há uma possibilidade infinita de vida que corre paralela a esta vida. Mas é só na nossa imaginação. Viver todas as vidas de todos os amores possíveis, viver em todos os países que vivemos, ter todos os trabalhos que gostaríamos ter tido, viver todas as aventuras possíveis. E, contudo, só há isto que podemos viver. Mesmo que nos multipliquemos não seremos artistas, sacerdotes, amantes ou lá o que pudemos ter sido e ser. Amamos muitas coisas na realidade e na imaginação, mas haverá um único verdadeiro amor? Porque achamos que é um único o verdadeiro amor e que é o amor a motivação intrínseca para sermos quem somos. Há amores infelizes e amores felizes, amores que dão prazer e outros que são duríssimos. Há assim as pessoas das nossas vidas e as relações que com elas temos e as actividade a que nos dedicamos e que nos definem. Mas que seremos sem essas pessoas todas? O que seremos sem as atividades que são as nossas vidas? O que seremos sem conteúdos? Posso ser sem biografia? Posso ser sem o conteúdo dos dias como se fosse uma tábua rasa de tudo sem nada? E poderíamos viver na indecisão? A não decisão tem consequências também. A angústia invalida até o horizonte em que as possibilidades de decisão ocorrem.

8 Jun 2018

Avenida Vasco da Gama

[dropcap style=’circle’] I [/dropcap] naugurada às 5 e meia da tarde de 20 de Maio de 1898, quatrocentos anos depois do dia da chegada a Calicute da primeira armada portuguesa à Índia, a Avenida Vasco da Gama fora planeada pelo então Director das Obras Públicas, Eng. Augusto Abreu Nunes. Encontra-se no sopé do Monte da Guia e tem 32.500 m², tornando-se o segundo jardim público de Macau e a primeira ampla avenida da cidade. Em alameda, com um comprimento na sua maior extensão de 500 metros e largura média de 65 metros, situa-se entre a Estrada da Flora e a da Vitória e desde a Calçada do Gaio até ao Quartel da Flora. Abreu Nunes quando a descreve no início do seu texto prolonga-a, “… a NE. da cidade, na encosta dos outeiros da Guia e da Flora, entre a estrada da Flora e a da Victoria, estendendo-se desde a Calçada do Gaio até à Rampa da Inveja, que passa junta ao jardim do Palácio de Verão do Governador da Província. (…) É dividida no sentido longitudinal por muitos renques de árvores vulgarmente denominadas de S. José (Ficus chlorocarpas) que, apesar de recentemente plantadas, produzem já um efeito muito agradável e que quando se tornarem frondosas formarão extensas abóbadas de folhagem transformando aquele local num retiro fresco e aprazível.

Do lado do Norte termina a Avenida por um pitoresco jardim com a forma circular cujo diâmetro é de 58 m sendo torneado pela rua central da Avenida. Ao centro do jardim eleva-se um elegante monumento de mármore, levantado pelo Leal Senado em 1864 para comemorar a vitória que em 1622 os portugueses alcançaram contra os holandeses que pretendiam tomar a cidade.” Como dá para perceber por estas palavras do Eng. Abreu Nunes, a avenida termina na Praça de Vitória, mas agora é a data do Monumento que não está em sintonia com a referida pela História.

 

Quartel da Flora

 

Partindo do Palácio da Flora, residência de Verão do Governador, após atravessada a Rampa da Inveja apresenta-se, no extremo Norte do Campo dos Arrependidos, o edifício do Quartel da Flora. Ainda não representado no mapa de 1838, aparece referenciado em 30 de Março de 1882 quando para aí se mudou a 3ª Companhia da Guarda Policial e em 1896, no Quartel da Flora estava instalado o Corpo da Polícia de Macau.

Entrando pela Praça da Vitória, inaugurada a 26 de Março de 1871, tal como o monumento ao centro colocado, “no mesmo jardim, entre o monumento e a rua que o torneia, com o centro na continuação do eixo da Avenida, acha-se implantado um vistoso lago de granito, tendo ao centro uma peça monumental de ferro formada de diferentes bacias de onde se desprende a água que nelas é lançada por meio de um tudo central. Quatro peixes, que ficam num plano inferior, lançam pela boca outros tantos jactos de água. Sobre a bacia superior, três garças simulam gozar aquela agradável frescura rematando assim este gracioso conjunto [o Padre Manuel Teixeira adita, <esta peça encontra-se agora no Jardim da Flora e as garças desapareceram>]. O lago é cercado por uma cadeia de ferro presa a doze pequenas colunatas colocadas nos ângulos de um polígono que o circunscreve sendo ela, a seu turno, cercada por canteiros de flores dispostos segundo uma coroa circular.

Simétricos com o lago e em disposição análoga possui o jardim ainda um fontenário e dois elegantes caramanchões; é muito arborizado e, quando as árvores se desenvolverem, deve tornar-se aquele recinto de uma frescura agradabilíssima”, descrição do Eng. Abreu Nunes.

<Este campo [dos Arrependidos, local onde os holandeses se encontravam e se mostraram indecisos e vacilantes (arrependidos) quando os dois tiros de canhão, calculados pelo Padre Rho e disparados da inacabada Fortaleza do Monte, fizeram estourar o seu barco da pólvora em frente da Praia de Cacilhas], ora transformado numa deliciosa Avenida e plantada de tenras árvores, já esteve regado de sangue…>, assim refere um jovem em 1898 n’ O Provir. Após descrever o lago, “no lado oposto está um fontanário também de ferro colocado simetricamente com o lago e em cada lado dele há um copo de metal preso por uma corrente”.

 

Descrição da Alameda

 

À Praça da Vitória chega a Avenida Vasco da Gama, cujos limites, a Leste tem a Estrada da Vitória e no outro lado, a Estrada da Flora, mais tarde chamada Rua Sidónio Pais. Colocados longitudinalmente na alameda uma fila de bancos de madeira e alguns renques de árvores de S. José.

A cruzar a então longa Avenida Vasco da Gama duas ruas perpendiculares a ligar as estradas laterais, sendo uma próxima da Praça da Vitória, que deve ser a então Rampa da Vitória e a outra, aproximadamente a meio, a fazer a ligação da Estrada do Cemitério com a Estrada da Guia. Nesse pequeno troço, para o lado Leste, entre a Avenida Vasco da Gama e a Estrada da Vitória, aparece já um largo, onde se pretende colocar o busto do navegador. “Contíguo a este largo e do lado da estrada da Victoria procede-se actualmente à construção de um coreto para música, ao centro de um pequeno jardim, sendo este jardim fechado por duas rampas circulares d’ acesso da avenida para a estrada da Victoria que devem produzir um lindo efeito. Do lado da estrada da Flora, é a avenida cercada por sólidos muros de alvenaria e possui diversas escadas e rampas de acesso”, segundo Abreu Nunes.

 

Inauguração da Avenida

 

A cerimónia da inauguração da Avenida, realizada a 20 de Maio de 1898, ocorre no largo, ao lado do coreto que ficará ainda pronto em 1898, onde se projecta erigir o monumento com o busto do navegador português. O Independente de 22 de Maio de 1898 relata, “A acta do lançamento da primeira pedra, depois de assinada, foi encerrada num cofre de bronze, juntamente com uma colecção de estampilhas e bilhetes-postais do centenário, umas provas do Jornal Único (jornal feito para a comemoração), um exemplar do Echo Macaense e outro de O Independente. O cofre foi depois metido num bloco de pedra, onde assentaria o monumento a construir”.

O busto de Vasco da Gama encontra-se ainda em forma de projecto, apresentado com um desenho no Jornal Único, diferente do que virá a ser realizado pelo escultor Tomás da Costa e só inaugurado a 31 de Janeiro de 1911. Abreu Nunes descreve-o em 1898: “Ao centro proximamente da avenida, no ponto onde esta cruza com uma rua transversal que parte da estrada da Flora, existe um largo com a forma poligonal onde se projecta elevar um elegante monumento a Vasco da Gama. Este monumento, representado na 1.ª vista [do Jornal Único], é construído por dois corpos de mármore sobrepostos encimados pelo busto fundido em bronze do grande Navegador; o todo eleva-se sobre uma escadaria de granito de forma hexagonal. Na superfície do corpo inferior de mármore serão colocadas passagens moldadas em bronze alusivas à saída de Lisboa da frota Vasco da Gama que em 1498 descobriu o caminho marítimo da Índia e à sua chegada a Calicut. No corpo superior serão aplicadas, em bronze também, de um lado as armas reais portuguesas e do outro, uma inscrição lembrando a época em que foi levantado o monumento.”

8 Jun 2018

Franguinho no churrasco

03/05/18

Há gente que sabe aproveitar todas as oportunidades para se mostrar inconveniente. Como aquele padre que em todos os enterros improvisava em torno de um tema que só ele considerava fascinante: a história do ataúde, desde os sumérios até hoje. Como o presidente do Sporting, que se julga o criador do Jurássico Parque; como Hércules, que desflorou numa noite as 50 filhas de Téspio, sem que nenhuma delas tenha gozado; como o chato que apareceu na Feira do Livro e que me exigia a oferta de um livro em memória de uma bebedeira acontecida há trinta anos, o mesmo tempo há que não o via.

Escrevo esta crónica depois de o ter tido de aturar meia hora até que o mandei às favas.

E aproveito o incómodo para contar como esta feira do livro de Lisboa me entristeceu pelo excessivo número de stands e de promoções onde se “liquidam” livros – de um euro a cinco.

Excelente para o leitor que sou, pois com 50 euros compro uma dúzia de livros de arromba, mas deprimente como sintoma do que se passa na área dos livros.

Dia 31 fiz a apresentação de um livro de Carlos Alberto Machado, Puta de Filosofia.

Um senhor policial com feroz incidência política e onde, sobretudo, se cria uma personagem, coisa mais rara do que se crê.

Foi porém descoroçoador constatar – sabendo que o Carlos, como responsável pela Companhia das Ilhas, já editou mais de cem autores, e soma como autor inúmeros livros, entre os quais uma colectânea de poesia na Assírio e Alvim com excelente fortunata crítica – que ele veio da ilha do Pico, onde vive, para a Guilherme Cossoul para lançar o seu livro face a 7 pessoas presentes na sala, sendo que duas lá aterraram porque me queriam ver.

Há algo que está realmente doentio na esfera da literatura e da sua recepção.

Depois, a explosão de pequenas editoras com tiragens diminutas é simultaneamente salutar e um sinal de tribalização preocupante. A cidade está dividida, o meio literário está pulverizado, as leituras andam dispersas. Cada um fica com os seus e uma perspectiva geral afunda-se.

Contaram-me que ia para guilhotina a biografia de Alexandre O’Neill da Maria Antónia Oliveira, editada pela Don Quixote.

Espero que seja falso.

Seria outro péssimo sintoma. Se nem já o O`Neill atrai leitores apetece deitar a toalha ao chão.

O que é facto é que os média ajudam este estado das coisas: uma má comédia, um mau filme, uma má exposição de pintura, despertam sempre a atenção da imprensa. Um livro quase nunca.

Quem deu conta da nova edição de poemas de Carl Sandburg, com versões de Vasco Gato a juntarem-se às de O’Neill  da livraria-editora Flâneur? Como é que ainda não esgotou?

Quem topou a edição do belíssimo texto de Paul Auster, Espaços em Branco, com uma boa tradução de Maria da Conceição Sendas, da (não) edições?

Foram devidamente celebrados os últimos livros de Alberto Pimenta, na Pianola, uma figura absolutamente central em quarenta anos de experimentalismo literário e um pensador sobre literatura com poucos émulos à altura em Portugal?

Já se falou sobre a tão “extravagante” como bela aventura editorial da Livros de Bordo, da Maria João Belchior, uma editora devotada à divulgação da cultura do Oriente? Vá lá, saiu uma referência no Diário de Notícias. Já nem se pede que se leia Wenceslau de Moraes e O Bon-Odori em Tokushima, que há meio século estava esgotado, experimente-se a História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros, de Carpini.

A cultura definitivamente só é encarada como divertimento. É o franguinho no churrasco no reino do comissariado político.

 

04/05/18

A propósito, o O’Neill, este esteve sempre mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, e fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora.

Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas:

 

O GRILO

O grilo

não só de ouvido

eu cri-qu´ria sabê-lo

não só de gaiola cati

vá-lo mas dáctilo

grafá-lo copiar

seu abc de pobre

 

o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o a imaginação do leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria-a.

Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se amam com a linguagem das coisas que se ama.

E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia.

Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação: é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação e o diferimento, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.

7 Jun 2018

«As recordações ajudam a esquecer»

Cervantes, Lisboa, 14 Maio

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]squeço com demasiada facilidade. Se a poeira pouco importa, algumas migalhas dos dias mereciam repousar na conserva da memória. Para digerir mais tarde. Foi um dia forrado a urgências e agitação, que não lembro, embora me tenham até impedido este exercício diarístico.

Podia ter nevado que o esqueceria de igual modo. No fim da tarde dou comigo sentado em mesa posta perante plateia, como em segunda tremenda adolescência, tremendo. Que desejei eu para merecer estar ali na companhia de Luis García Montero, do seu tradutor, Nuno Júdice, do pintor Juan Vida, e de Chus Visor, desmesurado editor? As capas negras da colecção Visor (50 anos, mais de 2000 títulos de poesia) escondiam a potência do desejo, claro.

Júdice despertou apetites adolescentes com prosa inesperada, sim. García Montero iluminou longas tardes na Andaluzia onde aprendi sinuosidades do coração, pois. E creio que chegámos a ele por Lorca e Alberti, seus companheiros, talvez meus, se me atrevo. Mas o encontro devo-o por completo ao versado em desejo, Javier [Rioyo], que orienta a conversa exemplarmente, despida de formalidades, aberta às ondas dos que se fazem presentes e podem afirmar, contar, lembrar. Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.

Em voo, que parte de 1982 e percorre nove livros até 2017, com «À Porta Fechada», a antologia apresenta bem este labor que faz do quotidiano superfície, uma pele, na aparência transparente, que esconde/revela as convulsões que são a sua matéria, a sua carne. «Em lembrança/ do seu assombroso odor a sobrevivência,/ quero atravessar a casa/ e despir-me às escuras,/ sem incomodar,/ sem acender sequer as luzes do espelho,/ para não me perguntar/ de que serve um oásis,/ se o coração conhece os desertos/ e sabe que o esperam/ como pegadas antigas que já vão à frente.» (de «Nocturno»).

As escolhas de Nuno desenham um percurso de maturidade que nos põe a andar, com o autor, no fio da navalha e de costas para o futuro, como mandam os clássicos. Uma antologia assim, que propõe distintos caminhos torna-se lanterna. Os versos com os quais o poeta foi experimentando o tempo, o natural, a cidade, a memória e a palavra ajudaram-me de imediato a andar sobre estes dias movediços. Não que seja a função, mas sucedeu. Apanhemos os ossos do cadáver do tempo nas ondas desfeitas. Senti-me um pouco menos estrangeiro da minha intimidade.

Terei aprendido a lição? «Estrangeiro na própria intimidade,/ não conhecem o meu nome/ nem as margens da plenitude,/ nem o cadáver do tempo escondido nas ondas./ Mas entendem a forma dos meus passos/ na areia que cai,/ se confundo o relógio com o deserto/ ou vigio a casa tal como ao horizonte,/ e na minha taça de dúvidas cabe o mundo,/ e no valor encontro cobardia,/ nos olhos a noite com a sua luz/ e o coração da criança/ numa alma de antigas corrupções.» Também acontece mundo e até política, essa arte de saber construir casas que nos abriguem, dúvidas onde caibam o mundo, e desejos que poderão sempre afundar-se.

De «Meia estação»: «Contra o meu corpo,/ o seu passado e as suas razões,/ a história devolve-me/ o repto de viver/ como numa segunda adolescência.// Volto a temer aquilo que desejo,/ outro luxo encantado nesta parte/ de minhas horas tardias. Não preciso do mundo/ que discute e ama e transborda/ com as suas regras alheias/ no andar de baixo.// Quero a minha residência, embora a casa/ seja uma árvore doente. Aqui estão a memória/ de ter sido, os anos de anseios,/ a chuva do caminho em cada livro/ que ainda guardo e a janela/ para aquela cidade que só existe/ dobrada com a minha roupa.» Falo mais do que devia, como no verso que dá título à crónica, roubado ao poema que rompe todas as regras e sobre quase até ao corte, rompendo as regras, para sussurrar «nos unen mis recuerdos y sus ojos cerrados.»

Na sessão, García Montero teve gesto de comovente generosidade, ao ler belíssimo ensaio sobre as afinidades que encontrava na poesia do seu tradutor. Outra lição que te fico a dever, Javier. Somos vizinhos da cidade que existe nas dobras.

Mymosa, Lisboa, 15 Maio

Recebo a mesa (quase) completa da noite anterior em visita de cortesia e amizade. Encontro-os cansados de tanta cultura e património e passeio, levo-os à sala de estar para assistir em directo à barbárie: em Alcochete anunciavam o desmando com fragmentos de imagens. Tentávamos a todo o custo trazer a conversa para poetas, leituras, antologias possíveis e impossíveis, comentários soltos, mas era impossível. Foi chegando gente, como se o plenário voltasse a ter assim, de Moçambique, de Macau, aqui do lado, mas era impossível. Estávamos em plena peça de absurdo, Ubu era imperador e desinteressante, usava barba e gritava às riscas.

Museu Bordalo Pinheiro, Mercado Santa Clara, Lisboa, 18 Maio

Corrida entre lado e outro para apresentações falhadas. O Museu sentiu-se incomodado com a opinião da apaixonada, Isabel [Castanheira], no seu «Una Piccola Storia d’Amore». Sou capaz de perceber, quando se troca carne por papéis, tendemos a perder noção do sangue. Mas não me caiu bem a deselegância de convidar e depois pedir desculpa por isso, em público. Aprendi a estimar mais quem coleciona sabendo do que quem pensa sem arriscar.

Logo a seguir, o que parecia mal-entendido modernaço – convocar lançamento para a hora de jantar – reveliu-se arrogância de senhores para quem a criatividade se faz meio de fortuna. Era mesmo ali, no meio do nada, fosse hora ou sítio, que «O Sono Desliza Perfumado», em torno da publicidade ilustrada, do Jorge [Silva] devia ser apresentado. Como se não bastasse, ainda tivemos que ouvir o histérico dono do microfone a tentar correr com quem estava em lugar nenhum. Saudade dos pianistas de bordel.

  1. José, Lisboa, 21 Maio

Deveria escrever hospytal de tantas vezes te visito? De qualquer modo, preparo-me com Garcia Montero, e atente-se no fulgurante título, «A Ausência é uma Forma do Inverno»: «assim dói uma noite,/ com esse mesmo inverno de quando tu me faltas,/ com essa mesma neve que me deixou em branco,/ pois de tudo me esqueço/ se tenho de aprender a recordar-te.»

Horta Seca, Lisboa, 22 Maio

Na minha parede pobre brilham traços de negro, morse de expansiva alegria, uma mulher de braços levantados. Júlio Pomar (1926-2018) entrou em mim pelos livros, como tantas outros, oriundos do Círculo de Leitores, iluminando textos de José Cardoso Pires, que, não fora a minha inépcia, poderia ter sido abysmado. Temos para um século de carnes e superfícies por desvendar. Não consegui ir, também por insanável melancolia, ao novo mausoléu oficial dos sem-basílica, o Teatro Thalia. (Quem o baptizou de mausoléu foi o saudoso Diogo Lopes, que, após assinar a recuperação, logo o inaugurou nessa triste função de forma do inverno, tendo sido depois seguido pelo vanguardista, Manel Reis.)

Horta Seca, Lisboa, 23 Maio

Desmonto em ápice inglório os originais irregulares (exemplo algures na página) da Cláudia R. Sampaio, a que demos, trocando mensagens e por causa de maiúsculas espontâneas, o título de «NÃO ESTAVA A GRITAR». Para mim, a pintura da Cláudia levanta sempre a voz, mas a das plantas e das flores, um jardim bonsai de ervas daninhas e iluminuras e anjos. E seres, dos que se soltam das palavras. E de nós. A jardineira faz selfies, ora ruivas, ora com palavras, mas que precisa sempre do enquadramento vegetal. Diz-nos que muito crescer tendo nós como epicentro da horta: asas, olhos, pétalas, fuste, cabelos, seios, coração, mesmo que seja «coração prefácio à espera de ser escrito».

6 Jun 2018

Animais Nocturnos, de Tom Ford – A Génese da Criação

[dropcap style≠‘circle’]J[/dropcap]á escrevi aqui acerca de um filme de Tom Ford, “A Single Man”, e hoje vou escrever acerca do segundo e mais recente filme dele “Animais Nocturnos” (Nocturnal Animals, 2016). Aquilo que me importa salientar nesta leitura é o aspecto formal do filme e de que modo essa formalidade toca um aspecto essencial da criação literária.

Em “Animais Nocturnos” há duas narrativas distintas: a narrativa do filme, ele mesmo, e a narrativa do livro que a protagonista do filme (Amy Adams) vai lendo, que se chama precisamente “Animais Nocturnos” e é dedicado à protagonista, Susan Morrow, que no filme vai lendo e nos permite acompanhar a sua leitura por imagens. Inicialmente, depois da primeira vez que as cenas do livro passam, não se entende a ligação entre as duas narrativas do filme.

Mas voltemos um pouco atrás. O livro é um manuscrito que foi enviado pelo ex-marido da protagonista e que será editado em breve. Susan é uma bem sucedida galerista de arte, casada com o homem que conheceu quando se separou do escritor que agora lhe envia o livro. O marido da protagonista, esse, viajou para Nova Iorque a trabalho, disse, e ela interrompe a leitura, algo perturbada pela violência da acção que está a ler e telefona ao marido para saber se chegou bem. Dá-se conta de que ele está acompanhado por uma mulher. Desliga o telefone e retorna à leitura do manuscrito. Lê até que, na narrativa, o protagonista juntamente com a polícia encontra a mulher e a filha mortas. O manuscrito chega às mãos de Susan no momento em que o seu casamento parece estar no fim e conta-nos a história da família Hastings – pai, mãe e filha adolescente – a viajar de carro à noite pelo Texas em direcção ao local onde vão passar as suas férias. A meio do caminho são interrompidos na viagem por um grupo de marginais, que os tiram da estrada. Põe a mulher e a filha no carro deles e, no outro, no carro da família, um dos marginais obriga o pai a conduzir. Não é de todo por acaso que a mulher deste homem tem algumas semelhanças físicas com a protagonista do filme. De facto, de algum modo Amy Adams faz lembrar Isla Fisher (Laura Hastings, a mulher do pai de família). De algum modo.

O filme passa para a protagonista, que interrompe a leitura e começa a lembrar o tempo passado com o autor do livro. E em flashback passamos a ver a história de Edward Sheffield e de Susan Morrow. O actor que faz de Sheffield é o mesmo que faz de protagonista do livro: Jake Gyllenhaal. Mas aqui ainda não se vê a ligação entre as duas narrativas, pois sentimos como natural que o protagonista do livro se identifique o seu autor. O filme passa agora a dividir-se entre o flashback – a história de amor entre Sheffield e Morrow, e a tensão familiar de Morrow com a mãe – e a narrativa do livro.

Só a meio do filme se começa a perceber a ligação entre as duas narrativas, embora ainda não claramente. Susan confessa à sua secretária pessoal que era apaixonada pelo seu ex-marido, mas não acreditava nele como escritor e o trocou pelo actual marido de modo brutal. O momento decisivo, de modo a entendermos a ligação entre as duas narrativas, acontece a dois terços do filme, em flashback, quando Susan acaba de ler um manuscrito de Edward (Sheffield), seu marido na altura, e este lhe pergunta o que é que ela pensa do texto, ao que ela responde: “Vais entender isto de modo errado, mas acho que deves escrever mais acerca de outras coisas do que de ti mesmo.” Ao que ele riposta que todo e qualquer escritor escreve acerca de si mesmo. E, de repente, percebemos que o livro que Susan está a ler já não é um livro sem nada a ver com a história do filme. Intuímos – pois ainda não podemos fazer nada mais do que intuir, ainda não há “prova” para afirmar – que a história do livro e a história do filme estão atadas uma à outra como um recém-nascido à mãe.

Um pouco adiante ficamos a saber que Susan fez um aborto do filho de Edward, com o apoio do então amante e futuro marido. E vemos uma imagem de Edward à chuva em frente ao carro onde estão Susan e o seu amante, depois dela ter feito o aborto. E é aqui que se faz luz. Toda a narrativa é acerca do que aconteceu a esse homem. Melhor: do que esse homem sentiu com o que lhe aconteceu. Como ele mesmo dizia, todo o escritor escreve acerca de si mesmo, mas agora ele escreve acerca do que sentiu no que lhe aconteceu, transfigurando os acontecimentos. Edward escreve acerca do que lhe aconteceu, mas através do que sentiu e não através dos factos. “Eu devia ter impedido. Eu devia ter previsto que isso ia acontecer.” Diz o herói do livro, como se fosse Edward a dizer acerca do aborto de Susan e do fim dos eu casamento. No livro, a morte da mulher e da filha, pelos marginais, corresponde ao casamento desfeito e ao aborto da história do filme. Mas ao invés de contá-lo através da sua “insignificante” vida, da sua vida de todos os dias e de todas as pessoas, o escritor usa isso e amplifica para uma história e uma intensidade narrativa que mostra muito mais aquilo que sentiu do que se contasse a sua própria história. Pois o que está em causa aqui é que o humano habitua-se de tal modo ao que lhe acontece, por pior que seja, que mesmo que seja contado literalmente passa a não exercer efeito sobre o ouvinte (ou leitor). A morte de um filho, por muito trágico e absurdo que seja, se contado literalmente não exerce um abalo sísmico por parte do ouvinte, porque a morte do outro – a não ser que nos seja próxima – não causa tanta perturbação. Para que isso aconteça, para que o ouvinte ou o leitor sinta essa tragédia e esse absurdo, o escritor tem de inventar uma coisa nova: a morte a dois; o leitor tem de sentir que morre junto com a morte de outro. Morrer a dois, que é algo que não existe na vida – pois mesmo que duas pessoas morram lado a lado morrem sozinhas, cada uma delas, como bem se sabe -, passa a existir na narrativa do escritor. E este filme de Tom Ford mostra-nos isto claramente.

5 Jun 2018

O ar do tempo

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onhecemo-lo por Feiticeiro no célebre filme americano de 1939; no entanto, a sua autoria é de L. Frank Baum e data de 1900 em romance, mas o certo é que ninguém mais ficou de fora no seu encantamento.

O primeiro Oz foi surpreendente ( até pela técnica de filmagem da altura), havia a cor estranha dessas novas “poções” que iriam a partir dessa época transformar para sempre o nosso próprio imaginário. Diz a lenda que Oz é a terra das fadas situada num continente fictício, uma visão da «Utopia» de Moore: havia o cariz igualitário de harmonia ambiental como se caminhássemos ainda para uma Terra Prometida. Diz estar dividida em quatro e no centro existir a «Cidade de Esmeralda» uma espécie de Jerusalém Celeste.

Curiosamente, toda esta geográfica descrição se encontra no meio de um deserto, um fértil reino rodeado de areias, até uma estranha rainha o transformar num chão mágico por causa de uma herança que o culto misógino a Oz usurpou: a herança da cidade era de uma princesa, Oz ma.

Não fora toda a correspondente esfera onírica dos sonhos humanos, tão próximos, tão arquetipicamente iguais e nem sobrepúnhamos a esta descrição uma outra, que de forma cultural está em nós: a Cidade de Esmeralda, ou seja, a Jerusalém Celeste, Oz – Amos Oz – que por aqui vive às portas do deserto, que nela nasceu, que num “kibbutz” se fez neófito e extingue Klausner (nome da família de judeus ucranianos). O sonho socialista existe no primeiro romance de 1900 e marca uma parte emblemática da obra, só que a «Cidade de Esmeralda» há muito que existia e Oz apenas conquistou o reino de Pastoria, o que nos remete para o rei David no seu exercício de pastor, alinha a Aliança pelo varão e nunca mais se livrou do seu próprio encantamento.

Amos Oz tem o peso de um mito que hoje ainda vive no deserto e mítico porque participou na «Guerra dos Seis Dias», coisas improváveis de terem sido bem sucedidas… vendo talvez um dedo mágico… mas a magia é inimiga do divino. Quem foi, quem é, e a que magia ascende? Onde começa cada princípio? Quem está dentro da Cidade diz que existe uma grande diferença que só os leigos não distinguem e quem não sabe é como quem não vê. Oz funda ainda o Movimento Pacifista para a solução dos dois Estados (talvez quatro) a divisão é quaternária, tudo acaba em períodos de quarentenas, tudo se define por quarenta coisas. Anos, meses, dias, situações. E de facto eram quatro os reinos iniciais.

Hoje é sem dúvida o mais virtuoso e controverso escritor judeu, um cidadão activo e com a beleza varonil de um feiticeiro, inspira instabilidade e é acusado de traição ao Estado, ele não desgosta do epíteto: diz que um traidor tem um lado feliz, não gosta do seu pai nem da sua mãe. Havia um outro “mágico” na «Cidade de Esmeralda» que o inspirou, muito certamente, mas aqui já a conversão misógina estava no seu auge não havendo antídoto que resgatasse o género deposto “mulher, o que existe de semelhante entre nós dois?”. São tarefas extraordinárias e toda a retroactividade nos encaminha para uma qualquer coisa no centro do mundo do nosso sistema solar interno que não cessa de construir um Templo onde cada um em alma e pensamento possa morar. A cidade é de Esmeralda, cintila, é um umbigo, um oásis, um dorso de sonhos, de lutas, para decantar o anátema do velho feiticeiro.

Mas a parábola da casa voadora é quase uma pintura de Chagall… um roteiro de grandes promessas de aterragem, Judy Garland era a princesa Oz ma transfigurada. Aqueles caminhos, o Homem de Lata, O Leão cobarde, o Palhaço, e por fim a recepção no centro da consciência: esta parte acho-a detestável, assim, como dizer às crianças que não há Pai Natal, ou mesmo ter dito a Moisés que tinha alucinações. A Sarça Ardente existe, e só assim é possível um reino futuro que não seja combusto. Creio que as pedras não ardam e muito menos os diamantes, pois que a fornalha que é apanágio dos infernos se escoa na dimensão mineral da Cidade, e um Deus, por fim, esteja à nossa espera, para continuarmos a viagem.

Oz levar-te-ei no longo caminho das coisas transfiguradas. Não acabamos bem os diálogos pois que eles não são para findar, depois de se chegar à conclusão acerca da Cidade, e tendo a magia findado, a máscara não existe, nós, não sabemos colocar o ferro, a lata, o cobre, numa «Cidade de Esmeralda». Nem andaremos puxados a energia fóssil, e mais uma vez creio no carro de ouro do Profeta Elias e no arrebatamento das fontes para a libertação total. E em cada instante olho para Chagall. Ele também é de Oz.

Talvez por analogia me venha aquele verso de Pessoa.

 

mas já sonhada se desvirtua, só de pensá-la cansou pensar:

sob os palmares à luz da lua

sente-se o frio de haver luar.

Ah, nesta terra também, também, o mal não cessa não dura o bem.

……………………………

MAS

é ali, ali, que a vida é jovem e o amor sorri.

4 Jun 2018

Ainda o Jornal Único

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara sair a 20 de Maio de 1898, o Jornal Único, quando chega o dia de comemorar o Quarto Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, apresenta apenas as duas primeiras páginas do jornal. A sua publicação vai sendo adiada e os primeiros exemplares saem da tipografia provavelmente a 23 de Maio, sendo distribuídos à medida que as fotografias ficam prontas e coladas. Os primeiros a receber são as entidades da cidade, depois os órgãos de comunicação, que a 5 de Junho já o têm e só mais tarde, a 15 de Junho é que terá sido posto à venda, custando ele cinco patacas.

De capa dura, a apresentação da publicação bilingue, em português e mandarim, é óptima e Dr. José Gomes da Silva tem um papel de vulto na elaboração desse jornal com 55 páginas. “A qualidade da impressão, feita na tipografia de N. T. Fernandes e Filhos e Noronha e Ca., graças à competência de Secundino de Noronha e Jorge Fernandes, era notória. A capa, um desenho aguarelado feito por António Rodrigues Belo, foi litografada e impressa, bem como a ante-capa da autoria dos senhores Fernandes e Noronha.

Além de uma interessante colaboração na parte escrita, apresenta onze fotografias de Macau realizadas por Carlos Cabral e coladas no papel do jornal. Consta haver alguns exemplares desse Jornal Único com fotografias diferentes às estabelecidas.

O Director das Obras Públicas, Eng. Augusto César d’ Abreu Nunes, a quem se devia a ideia e construção da Avenida Vasco da Gama, escreve no Jornal Único sobre essa avenida referindo, “veio preencher uma grande lacuna, que havia na cidade formada de ruas estreitas e de muitos becos sem saída, dando um desafogo aos habitantes de Macau.” Na publicação colaboraram também com artigos entre outros Wenceslau de Moraes e Camilo Pessanha, que apresenta o poema “San Gabriel”, o nome da nau que transportara Vasco da Gama à Índia.

Publicação em Lisboa

O Porvir de 25 de Junho de 1898 refere ter recebido a magnífica revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro, Occidente cujo número 697 trata sobre as comemorações do centenário. Vem com 16 páginas e impresso a cores, tendo na parte ilustrada as seguintes gravuras: Paço real d’ Évora, onde El-Rei D. Manuel contratou com Vasco da Gama a sua primeira viagem à Índia; Sines, local onde segundo a tradição, existiu a casa em que nasceu Vasco da Gama; Fortaleza de Sines; Igreja de Nossa Senhora das Sallas, vista exterior e interior; Vidigueira, jazigo dos Gamas: Túmulo onde estão os restos mortais de Vasco da Gama, no Mosteiro dos Jerónimos; e um esplêndido retrato de Vasco da Gama, baseado sobre documentos de família e que representa o grande Almirante das Índias na idade em que ele empreendeu a sua primeira viagem à Índia, este retrato é uma verdadeira novidade.

A parte literária compõe-se dos seguintes artigos: Chronica Occidental, por D. João da Câmara. O retrato de Vasco da Gama, por Brito Rebello; Ilha dos Mortos, por J.C.; Vasco da Gama e a Vidigueira, por A.C. Teixeira de Aragão; Exposição da Imprensa por Silva Pereira; etc.

Um mês antes tinha O Porvir (jornal português de Hong Kong) recebido o Jornal Único e feito a sua apreciação dizendo, “Declara a redacção ter-se deleitado imensamente com a sua leitura e mais se deleitaria se “os srs. Pedro Nolasco e Horácio Poiares não destoassem do concerto colaboratório do jornal inserindo neste umas puerilidades impróprias dele, e as quais, apesar do brilhantismo das produções literárias dos outros colaboradores, e principalmente dos belos artigos do Sr. conselheiro Galhardo e do Revmo. Bispo D. José Xavier de Carvalho, muitos descoram o jornal, com o qual parece que os srs. Nolasco e Poiares quiseram brincar. Estimaríamos sumamente que o tivessem tomado mais a sério e que com algo mais sério tivessem contribuído para ele. (…) Podiam e deveriam ter empregado o seu tempo e a sua ilustração em assuntos de mais interesse e utilidade do que aqueles que preferiram, talvez irreflectidamente”. Ao Echo Macaense não agradou a apreciação feita pel’ O Porvir do artigo do Sr. Pedro Nolasco sobre patois macaense e do conto ‘pueril’ do Sr. Dr. Poiares.

Fotógrafo profissional

O Porvir acha as imagens publicadas no Jornal Único, pouco limpinhas vistas fotográficas. Tal se deve à comparação com as oferecidas ao jornal pelo talentoso e habilíssimo artista Joaquim António, distinto fotógrafo português estabelecido em Bangkok que, na sua passagem por Macau tirou uma série de esplêndidas fotografias instantâneas de alguns dos mais belos edifícios de Macau e dos pontos mais pitorescos da cidade. <Devemos, porém, declarar que se grande é o nosso prazer por tão apreciável mimo, grandessíssimo é o nosso dissabor por não vermos figurar esse trabalho do nosso distinto compatriota, no Jornal Único. Joaquim António, que, após muitos anos de ausência em Bangkok, veio passar alguns meses em Hong Kong e Macau, sua terra natal.

Durante a sua permanência em Macau executou vários trabalhos fotográficos, que foram muito apreciados pelo então Governador de Macau Eduardo Galhardo, que lhe passou um atestado onde certifica que o Sr. Joaquim António, proprietário do The Charoen Krung Photographic Studio em Bangkok, português, natural de Macau, de passagem por esta cidade me prestou e à minha família os seus serviços como fotógrafo, ficando nós muito satisfeitos com a perfeição e nitidez dos seus trabalhos assim como com a modicidade da remuneração por ele exigida; obtendo também dele bastantes provas fotográficas de diversos monumentos, lugares e costumes de Siam e de Macau, que revelam o seu gosto e mérito artístico, pelo que o recomendo a todos os estrangeiros que visitarem o seu estabelecimento em Bangkok, e, especialmente aos meus compatriotas residentes ou em trânsito pela capital de Siam. Macau, 1 de Junho de 1898, assinado Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo.

“Apraz-me ainda registar que este nosso compatrício que tão desprotegido era quando residia em Macau, está hoje vivendo muito bem em Bangkok, onde encontra meios de vida e é muito apreciado, porque o Sr. António não é só fotógrafo, mas um bom desenhador, e como tal esteve há muitos anos para cá empregado nas Obras Públicas de Macau, tendo também acompanhado o Sr. Adolpho Loureiro nos estudos a que S. Exa. procedia sobre o assoreamento do porto de Macau”, n’ O Porvir de 18 de Junho.

Dez dias antes de Joaquim António regressar para Bangkok, o que ocorreu no dia 22 de Junho, O Independente refere serem “raríssimos os casos de peste que se dão em Macau”. Na data da sua partida está já a cidade livre da epidemia, provavelmente pelas muitas preces dos chineses e dos católicos na Igreja de S. António a S. Sebastião, advogado contra a peste. “Podemos considerar, felizmente, de todo extinto este terrível flagelo, que trouxe por alguns meses sobressaltada esta cidade”.

Termina o anual ciclo da peste, a poder estender-se a Julho, Agosto e iniciado em Fevereiro com o despertar da Natureza, quando se recomeça a ouvir à noite os insectos.

1 Jun 2018

Linguagem II

Noite de inverno
Georg Trakl

 

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a neve dá na janela

Longamente tocam os sinos.

A mesa está pronta para muitos,

E a casa está bem arrumada

 

Alguns chegam à porta,

Pelos caminhos sombrios da peregrinação.

Dourada floresce a árvore das bênçãos,

O suco fresco que vem da terra.

 

Caminhantes entram em silêncio.

O limiar petrifica a dor.

Aí, reluzem num clarão puro

Pão e vinho sobre a mesa[1]

 

“A linguagem designa o tempo de uma noite de inverno. O que é este denominar […] Denominar não distribui títulos. Não emprega palavras. Chama à palavra. Chamar traz o que é chamado por si a uma proximidade. De igual modo, esta aproximação não torna o que é chamado disponível numa região mais próxima do presente, para aí o acolher. O Chamamento chama, de facto.Ele traz à proximidade o que é chamado. […] Ele traz o presente do que não tinha sido chamado até então a uma proximidade. Mas enquanto o chamamento convoca, dirige-se para o que foi chamado para o trazer. Para onde? Até ao longe, onde o que é chamado permanece ainda mas na sua ausência.“ (18)

As formulações de Heidegger, em “A linguagem (Die Sprache)”, não são as mais fácil e directamente inteligíveis. Não são óbvias. A linguagem não é expressão, mas é chamamento. A linguagem não é a actividade que sincroniza eventos, espectadores, relatores e ouvintes, como no exemplo de Quine a respeito do arunta, uma língua desconhecida, com a palavra “gavagai”. Quando um coelho é avisado a passar, um nativo pronuncia a palavra. O antropólogo que não conhece a língua, reage ao coelho que passa: pode ser: “comida”, “caça”, e para além de outras hipóteses: “parte de coelho”, “coelho” ou “coelhidade”. A linguagem transforma o que é visto como facto ocorrido num acontecimento de sentido. Há significado. Não, factos. A referência é o que é em vista do sentido interpretativo. O horizonte da linguagem é a atmosfera universal do humano. Cada um de nós não é apenas uma biografia num tempo de esperança de vida. Somos cada um de nós à escala mundial. Melhor, existimos à escala universal implicados em todas as gerações passadas e futuras, que constituem cada humano. Este é o nosso “espaço lógico”. Por outro lado, a linguagem não se limita a expressar o que efectivamente acontece na realidade, no modo indicativo, seja passado, presente ou futuro. O que é, ontologicamente, não é apenas o que está disponível, se apresenta e é visto. O que não é, ontologicamente, não é o que não aparece não está visto, nunca aparece. O que aparentemente não aparece pode surtir um efeito anónimo. Pode ser uma reacção traumática a um acontecimento passado que é apagado da memória cognitiva mas que nos trabalha a partir do seu interior, nos faz ser quem fomos. Pode ser todos os sonhos destruídos que nunca desaparecem mas nos fazem viver uma vida com a possiblidade perdida da primeira vez de todas as primeiras vezes ou como dizem os românticos um amor infeliz.

A linguagem fala a partir do horizonte do universal humano a constituir a sua abertura na tentativa de obter inteligibilidade e dar sentido ao que acontece. O modo da língua falar não é o de fazer a reportagem do indicativo, do que é representável, do que efectivamente acontece. Não é a expressão representativa da realidade interior daquilo para o que nos dá, das ideias que temos, dos sentimentos que vemos nascer em nós. Nem apenas da realidade exterior, quando a referimos meteorologicamente ou para saber a que dia da semana estamos. A linguagem fala para além dos factos, refere sentidos. O seu elemento é a vida. O seu modo é o condicional, o irreal do que poderia ter sido e não foi e do que não poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O nosso elemento transcende o indicativo e projecta-se para o futuro em que pode ser, quando acontecer o que gostaríamos que acontecesse, quando a vida será como gostaríamos que fosse. Ou então momento quando estivermos aliviados da existência. É também uma possibilidade projectada no futuro.

Obs.: Denominar, dar nomes, designer, chamar. Trazer à presença, afastar da presença, não falar ou falar sobre alguém ou alguma coisa pode corresponder ao querer ou não querer lembrar-se de alguém. A revogação, o chamar o passado, a provocação, a chamada no presente, lembrar para o futuro, o que se chama do passado e se apresenta como o que virá a ser. A lógica da expressão é completamente diferente porque está alicerçada numa lógica de causalidade e portanto de presença ou então na relação entre interior daqui para aí ou exterior de lá para cá, quando o que se passa é no próprio comportamento da acção: faz favor? O que pretende? O pedido, a súplica, a interrogação, o comando. Nem sequer se dá quando há relações pragmáticas quando temos de ir a sítios tratar de assuntos particulares com alguém. A linguagem também não é reflexiva nem se reduz à palavra, embora a palavra seja a sua condição inalienável. Nem o que diz é o indicativo mas pode ser o possível, a ficção, a biografia e o futuro a haver mas no interior das veleidades. A linguagem pode dizer o impossível, o que não se aguenta, ressuscita mortos com quem nos faz conviver mais intensa e dramaticamente do que com qualquer pessoa viva: amores abortados, vidas interrompidas.

No chamamento, há um convite. O convite convida as coisas a aproximarem-se dos seres humanos e a serem compreendidas no seu sentido como coisas. Não como factos. A queda da neve, o anoitecer, o inverno não são factos. Esses acontecimentos estão impreganados pela própria linguagem. São dizíveis no que são meteorologicamente, na hora do dia e na estação do ano. Mas existem num acontecimento conjuntamente com o ser humano no horizonte universal onde acontecem como sentidos.

“A linguagem do poema traz as pessoas sob o céu que escurece ao anoitecer. O som do sino à noite traz os mortais enquanto mortais diante do divino. Casa e mesa ligam os mortais à terra. […] Este fazer e deixar permanecer da reunião faz das coisas as coisas. […] Na nomeação, estas coisas são chamadas na sua essência.” (20)

Nós existimos num horizonte estrutural que Heidegger identifica como o espaço intermédio, o meio intermédio. Não nos encontramos como sujeitos à janela do mundo a espreitar ou a assistir ao que acontece. Não somos polarizados pelo mundo como objecto. Antes, sujeito e objecto existem na relação intrínseca entre um e outro. O sentido da relação entre um sujeito e um objecto é cognitivo ou teórico. Mas este não é o único. Também a teoria nos implica a nós como sujeitos e ao mundo e às outras pessoas num espaço interior.

“O meio de duas coisas é designado pela língua: o espaço intermédio o espaço “entre” (“das Zwischen”). A língua latina diz: “inter”. Corresponde-lhe o alemão “unter”. A interioridade de mundo e coisa não é uma fusão. A interioridade reina apenas, onde o interior, mundo e coisa, puramente se separam e permanecem separados. No meio de dois, no entre do mundo e coisa, no seu “inter”, neste “entre” reina a fissura.“ (25).

Mas é a dor

“que se metamorfoseia em pedra não se endureceu no limiar para se fixar nela. A dor como dor manifesta-se e apresenta-se duradoura no limiar. […] A dor é a inserção da fissura. A inserção é o limiar. Ela suporta o entre, o meio entre os dois que se separaram. A dor insere a fissura da diferença. A dor é a própria diferença.” (24)

A dor não é um fenómeno subjectivo. Pode acontecer no corpo ou na alma. A dor é uma realidade não anulável. Sente-se numa das suas dimensões de tal sorte que faz implodir e filtra toda a vida, sem apelo nem agravo. Custa. Dói, isto é, faz doer. Nos caminhos da peregrinação, encontramo-nos todos. Ou na via sacra da teologia da cruz ou nos caminhos contemporâneos que tornaram o planeta terra à quase ausência de distância. Nenhum animal peregrina. Só o ser humano se pode deslocar na forma de uma peregrinação, de uma viagem, até sem se deslocar. O limiar da porta é o portal de entrada para uma outra dimensão. Chega-se a casa onde se é acolhido. Mas só se chega desta maneira a casa com a percepção da dificuldade da dor que é fazer o caminho. Ou antes, o caminho do tempo usa o humano para o seu próprio acontecer. Mesmo sem nunca sairmos do mesmo local, sem sairmos do próprio corpo, o tempo faz o seu percurso em nós mesmos. Há silêncio, porque o que acontece não tem referente. O pão e o vinho sobre a mesa não são comida e bebida, não são meros alimentos. Estão sobre a mesa de uma casa bem arrumada. O encontro entre o peregrino e a mesa permitem um chamamento. Não apenas do passado, da infância, das refeições em família, nem da importância da refeição na vida de uma família, no quotidiano e nos dias de festa. O que é invocado é convocado da ausência: é o próprio clarão puro. É o brilho do que aí acontece que alegoricamente metamorfoseia simplesmente tudo para fora do âmbito estrito da realidade factual e para a dimensão do significado.

[1] Winterabend

 

Wenn der Schnee ans Fenster fällt,

Lang die Abendglocke läutet,

Vielen ist der Tisch bereitet

Und das Haus ist wohlbestellt.

 

Mancher auf der Wanderschaft

Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden.

Golden blüht der Baum der Gnaden

Aus der Erde kühlem Saft.

 

Wanderer tritt still herein;

Schmerz versteinerte die Schwelle.

Da erglänzt in reiner Helle

Auf dem Tische Brot und Wein.

 

TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 58.

1 Jun 2018

Dos glúteos: recomendações

[dropcapstyle=’circle’] S [/dropcap] ou de uma geração que ainda não tinha descoberto os glúteos. E que ainda não lia nos dicionários: Os glúteos formam a parte mais apreciada pelos homens.

Não me lembro de Ginsberg a gabar os glúteos, embora tenha belos poemas de elogio ao caralho, ao qual também podemos classificar como artefacto, se o entendermos como  um objecto desenvolvido a partir de uma produção mecânica e para uma finalidade específica. Posto o repetitivo e maquinal adestramento das mãos convocado pelo membro masculino podemos encostá-lo à ordem dos objectos de mais uso, ainda que uma vez por outra seja o plinto para um modo relacional.

Cada palavra nova tem o seu Bartolomeu Dias, aquele que a descobriu e potenciou e socializou, ao proferir: Que belos glúteos!

Em Moçambique há um herói para o primeiro tiro, aquele que inaugurou os actos de guerrilha da Frelimo.    

Quem será o cowboy que enrolou primeiro a língua nos dentes, para soltar a sentença: Àqueles glúteos, mordia-os todos! Se soubesse quem era oferecia-lhe um cd dos Penicos de Prata.

O que é certo é que foi, com certeza, contraindo os glúteos (ou relaxando-os?) que António Costa confidenciou aos militantes: «Estamos onde sempre estivemos e estaremos exactamente onde estamos!». Melhor e mais substancial era difícil porque ao vazio da ideia acrescentou-se o glúteo.

Tomada pelo glúteo foi igualmente Ana Catarina Mendes, que alçada sobre os seus três empinados músculos, arrancou aplausos da plateia com o inaudito:

«vamos ganhar as próximas eleições legislativas porque António Costa merece continuar a ser primeiro-ministro e porque os portugueses merecem António Costa!».

Bem, o vácuo a pedal nos glúteos talvez dê uma câmara-de-ar! Está garantida uma bicicleta para cada português na campanha! Sempre adorei gente com imaginação. Faz-me lembrar quando me contratam por causa das minhas supostas qualidades e depois afinal só querem o pior de mim, só me restando observar: está bem visto!

Está bem visto que com tanta imaginação o Costa terá a merecida maioria absoluta, porque o povo mais não pede que um pedestal para pousar o glúteo!

Há glúteos do catatau. Infelizmente não conheço todos.

Só há uma condição em que os glúteos são inservis: em estátua.

Contava-me o meu amigo João de Deus (onde foi ele buscar aquela ideia que depositou no livro A Paixão Segundo João de Deus, de que «o ouro é o minete da alma!»?) que uma filha do Imperador Augusto se entregava toda a noite ao desfrute das vergas em pedra das estátuas do templo de Minerva. Membros inapelavelmente erectos – que pensam vocês! – onde os seres carenciados podem ter a sua jangada.

Já os glúteos de uma estátua não favorecem manobras similares. É uma pena, visto que politicamente têm outro potencial.

Eu já decidi, depois de me finar terei um gesto politicamente correcto e doarei os meus glúteos à ciência.

Esperem, passou agora por mim um glúteo que me fez sonhar. Tenho de ir aos lavabos.

A sarapitola, vocês conhecem?

29/05/18

Dia cinco, na próxima terça, no Bar Irreal, em Lisboa terá lugar o lançamento do primeiro volume da minha obra poética, Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia 1, que reúne dois glúteos, perdão, dois livros empinados: Harpo Marx na Jaula dos Leões, de 2013, e Os Testamentos Apátridas e Outros Cordéis sem Alma, de 2017. Este último livro foi um livro feliz que escrito de um jacto, como só é autorizado fazermos depois de trinta anos de rodagem, e poucas alterações conheceu, para além da habitual dança dos adjectivos.

É dele o poema que aqui deixo, Talvez um gonzo:

Na específica área da gandulagem/ progredi pouco além do que seja próprio a um zingarelho./ Não consegui ser firme a aceitar que o mal/ é o látego do ar./ O desnorte deste pífio desempenho não é só meu./ Na Idade Média, os monges compuseram os Cantos/ Gregorianos acreditando ser a música cantada por anjos/ e santos, no Céu./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo.//

Desconfio que à consciência de que herdamos o mundo/ como o oco de um lugar mudo/ que a palavra escava ou preenche com pão d’água/ se segue que confundimos esta acção com o silêncio, /erro tão grotesco/ como julgarmos que é a espuma/ da escuna o que faz mover a quilha.//

Estamos desde que nascemos a sós/ com as nossas inconfessáveis inabilidades/ e a tal ponto assustados que amiúde dizemos amo-te/ quando se abriu no dique a fissura./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo. 

    

        

31 Mai 2018

Tempo nenhum

Mymosa, Lisboa, 3 Maio

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]esito e já mudei umas vezes este princípio. Deve ou não convidar-se a morte para a mesa, para as nossas mesas? O flamenco parece-me resolvê-lo melhor que o fado, mas vou em busca de confirmação. Encontro com manos – sim, insisto nessa forma irritante de nos assinalarmos próximos –, distendido no terreno que vamos amanhando vale a rega, a paciência, e espera do fruto. Pessanha janta connosco e afinámo-nos na vibração que desconjunta o mundo. Mãe pode baralhar o cima e o baixo fazendo-se pano de fundo, que o colo se faz mundo. Pai pode rasgar degraus que dificilmente subirás, sem antes os descer. Carlos [Morais José] vem das pirâmides a falar do céu e da canoa que comunica. António [de Castro Caeiro] domesticou o tempo e trá-lo a fazer as necessidades na Bica. Ele apanha os dejectos (luminosos), não se aflijam. Mas discutimos pela razão, para mim simples, de que a tradição mística interrompe. Reconheço, mais ainda debatendo em supremo desequilíbrio na Calçada da Bica Grande, a enorme intuição de que devemos caminhar de costas para o futuro. A cada instante, mudando a resposta ao que formos sendo, índio, mas cobói, cavalo, mas comboio, bala, mas seta. E eis que acontece o acontecer, sempre nem nunca: kairos. Deus na sua forma incandescente de ser todos os tempos ou nenhum, diz ao ouvido, inscreve na carne, de um e não outro, poema que atira a narrativa para um nó (desfaz aí a História…). Princípio e fim, cima e baixo, longe e perto são coordenadas que na experiência do místico desfazem o sentido. Por instantes, a experiência mística ilumina o mundo ao realizar-nos. Logo nos apagamos: mártires. Provocação: ser, no tempo?

Mymosa, Lisboa, 10 Maio

Cada encontro com o José Alberto Marques, ainda que seja marcado pelo ritmo estúpido dos afazeres, transfigura-se em brincadeira de putos. Jardim infantil!, atiram os (bons) tolos. Não percas tempo. Uma mesa não pode ser apenas lugar de pousar papéis. Entornámos agora memórias de beijos, quentes nos lábios mais quentes do surrealismo; uma repetição para afirmar traços entre a palavra e um texto; um recorte que tiras da cartola; o disparate enquanto o garfo amanha o peixe; a convicção de que o livrinho está feito, excepto o acrescento doido do momento; uma chamada para pedir o whiskey; aquele pacato regresso de comboio a casa depois da revolução, quando tudo ardia.

Hoje Macau, 11 Maio

Subidas e descidas na cidade, noite e dia, assim se fazem. Páginas de jornal dobram-se barcos, origamam-se aviões e isto. «A diferença é no modo de olhar. Uma diferença que está sempre a constituir-se, porque a passagem do tempo cria uma alteração convulsiva em cada instante: antecipa-o para o ver cair para o presente, e do presente, empurra-o para o passado. Cada instante é uma projecção do tempo na sua totalidade. O tempo é sempre o mesmo na sua duração, no trânsito e na sua passagem. E de um instante para o outro pode perceber-se a estranheza da passagem do tempo, inexorável, mas como se nada se passasse na realidade. É como se tudo fosse exactamente o mesmo e não conseguíssemos apurar a diferença. E na identidade absoluta da realidade a própria realidade desagrega-se na passagem, na alteração dentro da identidade, na estranheza de perceber que as coisas se alteram e é estranho perceber-se a alteração, quando tudo aparentemente se mantém na mesma.» E se for o tempo a mirar-nos, estamos capazes de o olhar, olhos nos olhos, ainda os não tenha? Fechar o tempo na sua totalidade é escolher a poesia. Portanto, a dedicatória é desafio: não és homem não és nada!

Casa da Cultura, Setúbal, 11 Maio

Luiz Fagundes Duarte enche uma sala cheia. Conta do Antero conhecido e desconhecido, lê Antero, interpreta Antero. O romântico quis combater. O progressista emendava para poupar trabalho ao tipógrafo. O poeta usava a poesia para provocar e para seduzir. O poeta foi o seu tempo com tal intensidade que é agora o nosso.

Café Vitória, Porto, 12 Maio

Uma sala de vidro para ouvir Júlio Machado Vaz, Rui Reininho e João Paulo Meneses tecer loas aos aforismos da Inês [Menezes]. Estes «Amores…» davam filmes. Agora que estão escritos, são convites a entrar na brincadeira. Muito calor e flores que se prolongaram noite dentro.

Serralves, Porto, 13 Maio

Experimento ir e logo me apetece ficar «No Tempo Todo». Até por acontecerem mesas, deuses antigos, heróis. Afinal como nas outras linguagens, apesar das vigilâncias académicas, a pintura possui ainda alguns casos-limite, inclassificáveis, que resistem aos alinhamentos onde as historiografias os tentam arrumar, aquietar. Álvaro Lapa, portanto. Grande leitor, as suas aproximações ao texto são do território da chama, do fascínio, no modo como o integra, na jogo cómico e lúdico com o pensamento até ao ponto em que as letras se desfazem em formas, passam a ser corpos apenas, seres que esvoaçam de quadro em quatro. No gesto, nas cores, no olhar, algo de primordial acontece. E convida-nos a mudar maneiras. Veja-se este (aqui na página, por gentileza da Fundação Serralves): « – Em que pensas? / – No tempo todo.» O texto surge singelamente como mais uma forma do negro, na sucessão das manchas. Equilíbrios e desequilíbrios que umas lâminas de cor ajudam a compor. O tempo fez aqui das suas, afectou a matéria, deu ar acabado ao que parecia inacabado. Rasga-se aqui uma janela na qual podemos ver que subidas e descidas, cabeças e montanha. A noite e uma conversa. Grande, grande exposição, que brilhará na noite mais obscura, graças ao saber de Miguel von Haffe Pérez.

(Detalhe divertido, que o divertiria a ele, amante dos “materiais pobres”: um agrafo, no jargão museológico, passou a ser “elemento metálico”).

Adega Sports Bar, Porto, 13 Maio

Em boa companhia, vejo o Sporting soçobrar, desistir, sem chama. Aquele “frango” de Rui Patrício fica como o retrato da época na minha caderneta.

Pinguim Café, Porto, 13 Maio

«Quero risco, aventura, novidade.» Noite fria, meia dúzia de gatos-pingados sentiram na pele a voz marítima do João [Rios]. Sem solenidade falou do país, que é ele. «Conquistar é péssimo!» Neste dia tão particular, naquele sítio mítico, era dado início às comemorações oficial dos 25 anos da poesia de João Rios, que ainda não tinha feito as contas. Comissários oficiais: Mário Cesariny e Manuel António Pina (gatos).

30 Mai 2018

A vida vai ao cinema e o António Cabrita também

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos viajar por um livro muito especial. Um livro que parte de um personagem de cinema para levantar voo numas reflexão e diversão acerca do nosso contemporâneo, com os pólos no cinema em geral e João César Monteiro em particular, e arte e literatura em geral e Fernando Pessoa em particular.

É assim como que um livro que vai ao cinema, com toda a confluência de artes que o cinema tem. E antes de entrarmos neste texto de António Cabrita, talvez até em todos os outros que ele escreveu, convém não trazer consigo a realidade. Deixemo-la à porta. Mas se a realidade não é para aqui chamada, também não é menos verdade que ela pode ver-se reflectida aqui. Não que o texto seja ou não um reflexo da realidade, mas que esta pode ver-se reflectida nele, se tentar espreitar.

Assim, e para ser conforme a António Cabrita, que é prolixo de intertextualidades, diria mesmo que é um mestre nas intertextualidades, pois não usa outros textos para se mostrar, mas para mostrar o que está a fazer, também eu vou tentar aproximar-me de outros textos para melhor mostrar aquele que estou aqui a fazer. No seu célebre livro, Ou-Ou. Um Fragmento de Vida, a um dado momento Kierkegaard debate-se com uma tentativa de nos mostrar que o Don Juan de Mozart é a obra das obras, o clássico dos clássicos. Depois de várias páginas, reconhece que não pode apresentar prova e escreve: “Contudo, desisto de toda esta investigação.

Está escrita apenas para apaixonados. E tal como uma criança com pouco se alegra, também assim acontece, como é sabido, que uma coisa amiúde muitíssimo estranha pode alegrar os apaixonados. É como uma calorosa disputa de amor sobre coisa nenhuma, e não deixa, contudo, de ter o seu valor – para os amantes.” (p. 94) Sem dúvida, também nós ao falarmos acerca deste texto de Cabrita, deparamo-nos com o mesmo paradoxo dos amantes: o mínimo gesto tem um valor absoluto, mas ninguém repara nele sem estar apaixonado. Um pouco mais adiante, Kierkegaard escreve aquilo que dará, agora sim, entrada à nossa leitura deste livro de António Cabrita: “Qualquer leitor que ache que brincar é uma maçada, não é obviamente cá dos meus, não lhe atribui qualquer significado e, contudo, aplica-se aqui como em toda a parte: as crianças parecidas brincam melhor.” (p. 95)

Ora para Cabrita, brincar é tudo menos uma maçada. Podemos até ir mais longe e dizer que, para o autor, brincar é a verdadeira dimensão do humano. O humano aprende para poder brincar melhor. Mais: tudo no humano tem como finalidade um brincar melhor. Todo o esforço humano vai nesse sentido, mesmo que ele não se dê conta disso. Porque a brincar, o humano não só se descobre a si mesmo, como também se melhora a si mesmo.

E não foi Fernando Pessoa quem melhor nos ensinou isto? Não é o jogo da heteronímia pessoana um enorme jogo que ele construiu para poder brincar melhor, para poder ser melhor, inventando outras crianças com quem brincar, porque as “crianças parecidas brincam melhor”? Pois e a verdade é que a raiz literária de Cabrita é Pessoa, ou pelo menos uma das raízes. E isto podemo-lo ver bem neste livro. Reparemos nisto: João César Monteiro faz de João de Deus um heterónimo seu – embora lhe chamem alter-ego – e Cabrita faz dos dois e dele mesmo heterónimos de si mesmo. Sim, porque em Cabrita – se não em todos nós – a memória é sempre heteronímica. Em Cabrita, tudo vale a pena se a brincadeira não for pequena.

“Eu, João de Deus, um dos homens mais espertos da minha pessoa, estava entregue à paródia (…)” (p. 63) O jogo de Cabrita com Pessoa – crianças parecidas brincam melhor – começa logo no início e percorre o livro todo. Aliás, A Paixão de João de Deus começa com alguém a tocar realejo e a recitar o poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa. Mas leia-se, literalmente, como se inicia o livro: “Numa amolecida manhã de domingo de 2004, de malas já aviadas para o Báltico, flanava pela Baixa. Despedia-me dos lugares e murmúrios de meia vida; esquecido de ser lince, diluído no branco imponderável do Verão; sonâmbulo, sem pressa ou rumo.

Desperta-me, algures, a repetida ladainha de um realejo. O Anacronismo levou-me até à esquina da Rua da Prata com a dos Retroseiros. Aí, um homem magro, meio encurvado, narigudo, de óculos escuros e rosto bexigoso, dava à manivela num realejo velho poisado sobre uma caixa de electricidade, ao mesmo tempo que, quase em surdina, recitava algo. Apurei o ouvido: era a Tabacaria, de Pessoa.” Daqui até cairmos num anúncio de jornal para tentar encontrar a rapariga suja que comia chocolates na “Tabacaria” de Pessoa, é uma estação de metro.

O livro convida-nos a aceitar tratar-se de uma entrevista, ou do que resultou dela, a um personagem chamado João de Deus. E a primeira frase que este personagem diz, ainda antes do livro começar, ainda quando entrevistador e entrevistado estão em negociações, é uma citação de Fernando Pessoa: “Morrer é não ser visto.” Por conseguinte, a partir daqui, se aceitarmos brincar, vamos entrar num escorrega quase infinito pela contemporaneidade e as suas incongruências. O narrador a partir daqui é João de Deus / João César Monteiro / António Cabrita / Memórias de António Cabrita / Sombra Fantasmática de Fernando Pessoa.

E a técnica preferencialmente utilizada é a da aglutinação frásica de mundos completamente distintos, que exige do leitor conhecimentos prévios vários, do mesmo modo que quando se vai brincar às Escondidas ou ao Amocha (Cá vai alho!) ou à Cabra Cega tem de se saber as regras do jogo. Aqui a regra é ter estado exposto à intempérie cultural do século XX, como por exemplo na cena entre o narrador e uma loura, ao balcão de uma tasca, em que ele, de modo a impressioná-la, vai antecipando as cenas do filme que passa na televisão, The Maltese Falcon (Relíquia Macabra, em Portugal, e O Falcão de Malta, no Brasil, que é como aparece no livro do Cabrita).

Como é sabido, é um filme icónico de John Huston, com o Humphrey Bogart e a Laureen Bacall, que ainda não eram um casal, mas passaram a ser, durante anos e anos, até à morte de Bogart. E a célebre frase do filme, dita por Bacall, aparece escrita no livro: “Já sabes, se precisares de alguma coisa é só assobiares… sabes como se assobia? Põe-se assim os lábios e sopra-se…” O leitor não precisa de ter visto o filme, mas ganha em tê-lo visto, evidentemente. Assim como em relação ao compositor Robert Gerhard, bem menos conhecido do que o filme atrás mencionado. Ou em relação aos inúmeros livros, autores, quadros (estou a lembrar-me, por exemplo, da Ofélia, de John Everett Millais).

Poder-se-á objectar com a célebre tautologia de que não é um livro para todos? É evidente que não! Mas quem é que quer escrever um livro para todos? Somente um deste dois: ou Deus ou um imbecil. Por outro lado, e de um modo mais modesto, poder-se-ia ainda perguntar se todas estas intertextualidades são necessárias. Mas então, para sermos honestos connosco e com a escrita, devemos também perguntar se o que um homem vive é necessário à escrita da sua biografia. Ora, o personagem de Cabrita viveu o século XX até ao tutano do que lhe foi possível – e é sabido que o tutano do século XX tem muitos outros séculos –, espremeu os limões do cinema, da literatura, da pintura e da música como pôde. E a vida dele não é possível de ser contada apartada disso. Um homem não é apenas aquilo que come e que bebe, é também aquilo que lê e que ouve. E cá temos outra vez o fantasma de Pessoa.

Não percamos mais tempo com tautologias e adiantemos um exemplo daquele que é o recurso maior e mais característico da escrita de Cabrita: “Falta à miniatura japonesa a gordura que faz da picanha um menu e que entreabre o barroco ao infinito.” Ainda que esta frase nos chegue aqui fora de contexto, e independentemente de estar certa ou errada – como se houvesse certo ou errado numa brincadeira, a não ser tentar prolongá-la até ao infinito, até que nunca se volte a cair na hora da sesta –, veja-se os três mundos que nos abre: Haiku (a miniatura japonesa a que o autor se refere é essa forma poética); a gordura da picanha; barroco e infinito.

Ou seja, passamos da arte à sensualidade da mesa e desta à estética (enquanto reflexão sobre a arte) e à filosofia. Uma só frase dá de comer a muita gente. É um festim. Fosse eu outro, e diria que é uma frase extremamente sinestésica. Uma frase cheia de sinestesia, que nos desperta todos os cinco sentido que temos, e mais alguns. Mas reparemos melhor nesta técnica, que não é “apenas” a junção de quatro realidades distintas (haiku, picanha, barroco e infinito). Para além da metáfora, que veste esta frase, cada um dos elementos deste quarteto aparecem ainda com os ornamentos da metonímia e da sinédoque.

Por exemplo, o haiku, que nos mostra não apenas a si mesmo, mas também o bonsai e por arrasto todo o Japão; ou a gordura da picanha que nos leva para a América do Sul e para um churrasco, o calor das brasas e o barulho da gordura sobre o fogo; ou o Barroco, que nos leva para o passado e para a exuberância do detalhe, viagem que nos é imediatamente contrariada com a ideia de infinito, que aparece como que em forma de antítese. Assim, e numa mesma frase, pequena, vamos do Japão ao infinito, passando pela picanha, com uma pequena paragem na América do Sul e no barroco.

E julgo que estamos aqui diante do que podemos chamar de tipicamente cabritiano: uma sinestesia metafísica. Ou, de um outro modo, muito mais cabritiano: o mundo de calções a cavalo numa trotineta, a descer para a praia com o Louvre, Hollywood e um quarteto de cordas no bolso, e a mascar pastilha elástica Gorila. Diz o narrador para a loiraça, sentado ao balcão da tasca: “O cinema é a vida e a vida sabe-se de cor.” Se antes nos aproximámos daquilo que é a arte de Cabrita, agora aproximamo-nos do que é o Leitmotiv deste livro.

Do mesmo modo que podemos dizer que ler não é apenas ler, ler é viver, pois cada um de nós lê com o que põe na sua leitura, quer seja leituras anteriores, quer seja amores perdidos, braços partidos ou um filho morto, também o cinema não é apenas o que se vê, naquele momento em que se abrem as imagens diante dos olhos. No fundo, aquilo que perpassa por todo este livro de Cabrita é que o nosso ponto de vista existencial é hermenêutico, isto é, tudo chega até nós pela interpretação que fazemos. E tanto faz que seja através de um filme, como através de um livro, ou de um quadro, de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. Nós estamos sempre a ler, a interpretar, a calcorrear o mundo e nós mesmos com pés de Hermes.

O livro é absolutamente estonteante, repleto de episódios, a um mesmo momento divertidos e reflexivos, como o do hotel com o chinês Min Lau e a evocação de Genet, ou os sucessivos episódios de Porto-Sudão, onde se lê esta pequena passagem tão distante da pacata Lisboa: “Nesta vertigem, senti: a vida humana vale menos do que a de um cachorro e senti-me a perder a linguagem.” (p. 77) E, por falar em linguagem, aproveito a deixa para terminar com esta frase enigmática: “Se contar se fundisse com o que aconteceu seria proibitivo pois as retinas dos leitores seriam respigadas de cal viva.”

29 Mai 2018

O ar do tempo

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão sei o que aconteceu à minha geração e às gerações que lhe sucederam. Provavelmente fizemos más escolhas; não devíamos ter cursado filosofia, literatura ou belas-artes. Deveríamos ter optado por percursos convencionais e seguros. Direito, porventura; gestão, economia, ciências exactas.

Merecemos decerto este pântano desconfortável do desemprego e da precariedade que nos obriga a cobiçar as migalhas alheias. Merecemos ter escolhido morar no centro de Lisboa ou do Porto – quando estes eram inseguros e insalubres – para agora sermos acossados pelos senhorios que nos receberam com as mesmas mãos untadas de ganância com que agora acenam à nossa saída forçada. Merecemos conduzir um tuk tuk para pagar parte da renda, servir copos à noite para pagar parte da comida, vender galos de Barcelo em cortiça para pagar parte do arranjo do carro.

É a crise, diz-se. É a nossa inaptidão para sermos assertivos e empreendedores. O mundo é dos audazes. O mundo não tem carinho pelos que abrigam debaixo do cocuruto algum tipo de consciência moral. O mundo precisa de predadores. E se calhar também precisa de nós, os incautos, os mal-jeitosos, os sensíveis; pelo menos do nosso sangue para olear as engrenagens desta máquina insaciável.

Para onde quer que olhe, vejo a derrota. As espinhas quebradas, os “joelhos vergados à condição de cera”, como diz o Vasco Gato. A tristeza perene que vestimos como um uniforme pela manhã para a remover apenas na companhia daqueles que amamos. Daqueles a quem nos podemos apresentar na nossa magnífica fragilidade. E assim andam quase todos aqueles que mais admiro.

Sabemos que a arte, quase toda ela, não dá dinheiro. Que é muito difícil viver de direitos de autor ou da música, tirando fenómenos de popularidade – o que na poesia, convenhamos, é quase um oximoro. Sabemos que andamos cá a fazer o que gostamos, como nos dizem, e que quem corre por gosto não cansa. Mas deixem-me dizer-vos que já não temos forças para correr. Estamos subnutridos, cansados, desapontados. Estamos sem paciência para o vosso paternalismo de quem nos trata como dispositivos de distracção descartáveis. Estamos sem cu para a forma como encaram o nosso trabalho e o nosso talento, pelo modo desavergonhado como nos pedem uma borla para entreter aqueles a quem ordenham a carteira. Estamos pejados de cicatrizes. Não temos lombo para tanta vergastada.

O que vocês não compreendem, por mais que jurem praticar o desporto de sofá da moda que é apoiar a cultura, é que há um preço a pagar pelo verso, pelo quadro, pela canção. E que pagamos esse preço desde que nos lembramos. E que esse preço passa muitas vezes por uma instabilidade vital de tal ordem que muito do conforto que vocês dão por garantido nas vossas vidas é apenas uma miragem a que nunca logramos chegar nas nossas. Porque não sabemos o que é isso da velocidade de cruzeiro, da moderação, da paciência do andar seguro. Somos instáveis, incertos, desesperados. Perdemos trabalhos, namoradas e namorados, dinheiro, oportunidades, anos de vida. Pagamos esse preço desde sempre, e pagamo-lo porque é o que o verso, o quadro ou a canção no-los exige. Mas dispensamos a dupla tributação que nos querem impor, essa míngua descarada com que avaliam o nosso suor, essa troça que fazem da nossa incapacidade de nos fazermos valer.

Quero que se fodam os audazes, os empreendedores, os tubarões. A malta que dá emprego e “faz isto mexer”. Queremos ser os travões da vossa carruagem, os contrapesos da vossa ganância, aqueles que um dia vos farão descarrilar. Porque já há muito tempo que a velocidade disto tudo devia ser outra.

28 Mai 2018

O comemorativo Jornal Único

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] ideia de editar um número único de um jornal, para comemorar o IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, surgira referida na reunião da comissão do dia 2 de Fevereiro de 1898. Estabeleceram-se diferentes subcomissões, sendo uma encarregada da direcção e publicação de um jornal comemorativo composta pelos senhores, António Joaquim Bastos, Conselheiro Artur Tamagnini da Mota Barbosa, Dr. José Gomes da Silva, Dr. Horácio Poiares, Capitão Eduardo Cirilo Lourenço, Pedro Nolasco da Silva, João Pereira Vasco e contando ainda com dois vultos da literatura portuguesa: Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes. Este último já não é professor do Liceu, apesar de ainda manter o cargo de imediato da Capitania de Macau, do qual será exonerado dezoito dias depois, em Junho, aspirando por incertezas de ir exercer funções de Cônsul em Kobe, no Japão.

Pretende-se que esse Jornal Único seja publicado a 20 de Maio de 1898. A faltar vinte dias, o Echo Macaense de 1 de Maio refere que essa subcomissão “propôs que se eliminasse esse projectado jornal, por não terem aparecido até hoje artigos, a não ser um do Sr. Wenceslau Moraes e também porque as fotografias que o Sr. Carlos Cabral tirou de diversas localidades, para o mesmo jornal, custarão muito caro para serem zincografadas. Quinze dias depois, o mesmo jornal dá a notícia, “ao contrário do que resolvera anteriormente, a subcomissão encarregada desse jornal está trabalhando activamente para o dar à luz, ilustrado com fotografias, por serem estas menos custosas. Segundo nos consta, sairão apenas 50 exemplares no dia 20 do corrente e nos dias seguintes os restantes, à proporção que se for fazendo a tiragem das fotografias; consta-nos mais que cada exemplar virá a custar $2,5”. O Echo de 21 de Maio anuncia, “Espera-se que será posto à venda hoje, ou amanhã. Contará artigos, poesias, a viagem [de dez meses e onze dias] de Vasco da Gama [escrita por João Pereira Vasco para ser traduzida] em chinês, umas 10 fotografias das principais vistas de Macau, com as respectivas descrições, e, segundo se diz, um artigo em patois Macaense. Já O Independente do dia seguinte comenta, “O número único do jornal comemorativo, por deploráveis circunstâncias de força maior, não pôde sair nestes dias. Só estará pronto talvez amanhã”.

Razão para o atraso

Continuando n’ O Independente de 22 de Maio, “Colaboram neste jornal (Único) os srs. conselheiro Galhardo, Bispo de Macau, D. Ana Caldas, conselheiro Tamaguini Barbosa, A. C. Abreu Nunes, comendador António J. Basto, Dr. Camilo Pessanha [com o poema ‘San Gabriel’ escrito a 7 de Maio], António Talone da Costa e Silva, Dr. Horácio Poiares, Wenceslau de Moraes, Dr. José Gomes da Silva, Tenente do estado maior Eduardo Marques, Eduardo C. Lourenço, Mário B. de Lima, Pedro Nolasco da Silva, Abeillard Gomes da Silva, Domingos do Amaral, alferes J. L. Marques e João Pereira Vasco. As fotografias que ornamentam este jornal são: vistas da Praia Grande, do Leal Senado, do Farol da Guia, do Porto Interior, Pagode da Barra, Portas do Cerco, Sé, Gruta de Camões, Avenida Vasco da Gama e uma fotografia do projecto da sua estátua. Todas estas fotografias, que são as melhores que aqui temos visto, foram tiradas pelo distinto amador, Sr. Carlos Cabral.

A capa, que é um primor, foi desenhada pelo Sr. Rodrigues Belo, imediato da canhoneira Liberal e a impressão do jornal feita sobre aguarelas. A composição e impressão são feitas nas tipografias dos srs. Secundino de Noronha e Ca. e N. F. Fernandes e Filhos. Dissemos, no nosso suplemento de terça-feira, que os prelos de Macau nunca produziram uma obra tão perfeita como deverá ser este número único, e de facto assim é, o que muito honra os srs. Noronha e Fernandes. Este número único deve ter umas cinquenta e quatro páginas”.

A 4 de Junho de 1898, o jornal O Porvir, de Hong Kong, afirma que correm boatos de que o Jornal Único foi publicado depois da data prevista por vários artigos terem sido excluídos. Entre estes, um de Camilo Pessanha “em que este distintíssimo advogado estigmatiza o facto, ocorrido, não se sabe onde, de ter um advogado, depois de conseguir uma separação, recebido como honorário a honra da sua patrocinada”. Artigos de Horácio Poiares, Tamagnini Barbosa e João Vasco também teriam sido cortados, ainda segundo aquele periódico, como refere Daniel Pires.

O Independente de 5 de Junho diz ser o Jornal Único um volume de 54 páginas com 11 fotografias de Carlos Cabral impresso nas tipografias dos srs. Fernandes e Noronha. “A qualidade da impressão feita na tipografia de N. T. Fernandes e Filhos e Noronha e C.a, graças à competência de Secundino de Noronha e Jorge Fernandes, é notória”. As folhas apresentam aguarelas com o característico chinês. A capa, um desenho devidamente aguarelado feito pelo Sr. 1.º Tenente da armada António Rodrigues Belo, é litografada e impressa, bem como a ante-capa, digna de especial menção, pelos srs. Fernandes e Noronha.

O preço do jornal será de $5, que é o seu preço de custo, mas só a 15 de Junho é que poderá ser posto à venda.

Três dias antes dessa data, O Independente a 12 de Junho aponta a demora na distribuição unicamente devido à negligência do fotógrafo, pois não tem dado prontas as vistas fotográficas. [De referir que cada exemplar era ilustrado com 11 fotografias, por serem estas menos custosas que se fossem zincografadas, tendo saído jornais com diferentes fotografias]. Diz ainda que os pedidos devem ser dirigidos ao Sr. João Albino Ribeiro Cabral, tesoureiro geral e a distribuição pelos colaboradores e membros da grande comissão foi já feita ontem. Aparece o Jornal Único completo a 11 de Junho de 1898.

Da Guerra Hispano Americana ao fim da Peste

Tal como O Independente, também o hebdomadário O Provir refere a guerra presentemente travada entre a Espanha e a América, “duelo tremendo, provocado por esta última, e que maiores simpatias atrai para a Hespanha, intrigada, provocada e afrontada por uma nação que se diz liberal, e que, à sombra da árvore da liberdade, procura espoliar a outra do que é seu, sem cuidar que com isso pode perturbar a paz universal, tão necessária para as conquistas do progresso e da civilização”.

A Guerra Hispano-Americana ocorre de 25 de Abril a 12 de Agosto de 1898 e é devida à intervenção norte-americana nas guerras de independência, que sobretudo Cuba e as Filipinas travam com Espanha. Nas Filipinas, os espanhóis viriam a ser derrotados a 12 de Junho de 1898, tornando-se estas ilhas do Pacífico independentes, mas logo de seguida anexadas pelos americanos, que vieram para ajudar os nativos e assim estes continuaram na sua luta pela independência.

Perdida a guerra em todas as frentes, a 12 de Agosto de 1898 teve a Espanha que ceder aos EUA as Filipinas, Porto Rico e Guam, tornando-se Cuba independente, mas sobre supervisão americana. Esta guerra custou à Hespanha para acima de dois mil milhões de pesetas, 39 barcos de guerra e um grande prejuízo no comércio colonial.

27 Mai 2018

Um tremendo fotógrafo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ncontra-se ainda no Camões, em Maputo, uma excelente exposição antológica de José Cabral, o primeiro fotógrafo moçambicano a assumir uma postura de “autor”, fugindo do foto-jornalismo e da “epicidade colectiva” que foi apanágio da geração anterior – cujas figuras de proa foram Ricardo Rangel e Kok Nam – para dar o salto “da fotografia testemunhal e de intervenção” e adoptar, no dizer de Alexandre Pomar “uma outra forma expressão de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e íntima ou intimista”.

Por isso se tornou José Cabral numa ponte entre a velha geração e a nova geração – Luís Basto, Mauro Pinto, Mauro Macilau e Filipe Branquinho.

À entrada da exposição lêem-se duas declarações do fotógrafo. Diz uma delas: “O acto fotográfico? Há dois tipos de potencialidades, as que estão dentro de mim e as que estão fora, e quando estas duas se encontram há a fotografia”.

Ora, isto é análogo ao que defendia Cartier-Bresson: “Fotografar, é pôr a cabeça, o olho e o coração no mesmo ponto de mira”.  

Ambas as frases apontam para uma indivisibilidade entre o corpo e o acto de fotografar, que tornam o observador e o observado um. Quando isto acontece a fotografia capta a essência do momento, isto é, acontece nela uma espécie de dobra pela qual o reconhecimento documental do assunto ou tema fotografado se duplica na organização rigorosa das formas, percebidas visualmente na composição que reitera e ilumina esse facto.

Dou três exemplos. A foto do cartaz do Museu Al Capone, onde por “um acaso objectivo da luz” (como diriam os surrealistas) a silhueta da cidade se reflecte na parte de baixo do vidro que protege a foto do gângster, como se a cidade estivesse contida no seu ventre – e assim se transformou a imagem na metáfora do poder que o gângster teve sobre Chicago. Só um olhar muito treinado percebia o valor expressivo dos reflexos no vidro para sustentar o que a figura simbolizava.

Na fotografia escolhida para a capa do álbum que a exposição complementa – Moçambique, organizado por Alexandre Pomar -, a força do “dito” é um efeito da composição da foto: um casal, ela de trouxa na cabeça, passa ao lado de uma montra com uma cortina que lhes esconde o que esteja à venda, como se o direito ao que lhes está lá lhes fosse vedado. As pregas da cortina prolongam a infinito o eixo horizontal. Mas a dignidade com que eles caminham, quase hieráticos, confere-lhes uma verticalidade que os coloca acima das circunstâncias (leia-se sociais) de que padecem. Leitura que só podia dar-se naquele momento de centralidade em que eles se encontram em relação à montra, dois passos antes ou dois passos depois e essa “dimensão oculta” e estrutural da composição da fotografia diluía-se.

O terceiro exemplo é um caso de pundonor. A foto pertence ao ciclo “Os Americanos” e foi captada em Santa Fé, no Novo México. Um cowboy orgulhoso é fotografado contra uma montra onde, à exacta altura da sua cabeça, se encontram outros chapéus de vaqueiro. O seu olhar, colaborando com a foto, é de orgulho, ou seja, naquele momento ele representa um tipo humano, de bem consigo; naquele momento deixa de ser um cowboy singular para se tornar um ícone.

Nos três casos as figuras representadas têm uma enorme “qualidade de presença”, um rasgo imprescindível para detectar uma obra de arte, segundo Walter Benjamin. Contudo, faça-se a ressalva, pois para o ensaísta alemão, uma fotografia, por ser um objecto reproduzido mecanicamente não podia ter uma presença genuína.

Entre outras características, esta exposição demonstra-nos que Benjamin nem sempre estava certo. E a qualidade desta exposição torna ainda mais trágico que não haja uma verdadeira circulação de bens culturais entre os rincões do mundo onde se fala o português.

24 Mai 2018

A doer, “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray

[dropcap style=’circle’] C [/dropcap] omeço este texto acerca de “Johnny Guitar”, de Nicholas Ray, pela cena que irá influenciar todo o cinema posterior, principalmente a Nouvelle Vague. Trata-se da cena da luta entre Johnny “Guitar” Logan (Sterling Hayden) e Bart Lonergan (Ernest Borgnine), membro do bando de Dancin’ Kid. Ao bar do saloon, Lonergan começa a provocar Logan, obrigando-o a beber, até que este finalmente recusa e não resta outra alternativa que não a do confronto físico entre ambos, que Vienna (Joan Crawford), a dona do bar ordena que seja feita lá fora. Todos se dirigem para fora do bar à excepção de Dancin’ Kid e Vienna, que começam uma conversa de amor (por parte dele, ao que ela tenta furtar-se). O que seria normal nesta cena do filme é que a câmara seguisse a luta, que o espectador ficasse preso aos socos e pontapés trocados entre eles, mas vemos apenas o primeiro soco e a cena passa para dentro do bar, e passamos a seguir a conversa entre Vienna e Kid, escutando apenas o barulho da luta lá fora, por entre as palavras ácidas trocadas entre este casal de amantes. Para além da questão técnica inédita, da troca da atenção do espectador, o que fica claro é que a luta lá fora é para “meninos” – como se usava dizer em português. Lá fora, a luta é para meninos e a brincar, contrariamente a luta cá dentro é para adultos e a sério. A luta cá dentro é a luta do amor, a doer. E se ainda não tinha ficado claro até aqui, agora fica completamente claro que este western é um western de amor. E o amor de que aqui se fala é o amor em forma de paixão.
Já o escrevi aqui, a propósito de “In A Lonely Place”, que nos filmes de Nicholas Ray há sempre dois filmes em simultâneo, e neste caso não é diferente: o filme da contenda por causa da passagem dos caminhos de ferro, que vai trazer muita prosperidade e fortuna à dona do saloon, se não for obrigada a sair; e o amor. E digo assim, amor, com indeterminação, porque ele diz-se de inúmeras maneiras. O amor que cria o ódio, com a vontade de Emma (Mercedes McCambridge) – dona de um rancho e cujo irmão acaba de ser morto num assalto a uma diligência – de matar Vienna e Kid, que ela ama e não se permite admitir (e Kid ama Vienna). O amor que cria o rancor, de Kid por Vienna, por ela já não o ver como o via antes, antes de Johnny chegar. O amor que cria o querer de novo ser amor, isto é, a história de amor de Vienna e Johnny (tinham sido amantes até há cinco anos). E podemos passar a dizer amor com os nomes próprios: Emma ama Dancin’ Kid, que ama Vienna, que ama Johnny Logan, que não ama ninguém, ou assim parece ser. Há ainda o jovem Turkey Ralston (Ben Cooper), que também ama Vienna, como se fosse um prolongamento do amor maternal – ele diz-lhe que vai ficar ali com ela para a proteger, ao que ela lhe responde: “E quem vai cuidar de ti?”.
O filme é assim uma espécie de catálogo de amores. No presente, no passado e no futuro. Na realidade e no imaginário. Um dos filmes vai desenrolando-se através da ganância e do poder e o outro através do amor. Na verdade podíamos dizer com propriedade que o amor já tinha morrido. Quando o filme começa, o amor já tinha morrido, como Vienna diz a Johnny, quando ele lhe pergunta o que ela faria se o homem que ela um dia amou voltasse: “Quando um incêndio se apaga, tudo o que resta são cinzas.”
E é este amor, e só este, que importa a esta leitura. O amor que foi, entre Vienna e Johnny – cinco anos antes, em outra cidade – não pode voltar a ser, a despeito de Ray pôr no final os amantes nos braços um do outro. Não que não haja desejo, mas aquilo que os afastou estará sempre entre eles como uma burka que não se consegue despir. Pode haver uma noite, sim, mas no outro dia é o cheiro das cinzas que se começa a sentir. O amor foi. E o que foi não volta. A despeito de Ray pôr na boca de Johnny “Um homem tem de criar raízes em algum lugar, um dia.” Querendo com isso dizer que tinha mudado, que o homem que Vienna tem ali diante de si, já não é o homem que a deixou partir, há cinco anos. Pode ser.
Mas também a despeito de tudo isto, neste filme, o amor é algo que aconteceu um dia. O amor entre Vienna e Johnny – mais do que a luta entre Johnny e Bart fora do saloon, pois desta ainda temos um vislumbre – é algo a que nunca assistimos. Aquilo a que assistimos é ao ressentimento de parte a parte. Esse é filmado magistralmente, nos diálogos entre ambos, tanto na primeira noite em que falam, no saloon, quanto na fuga, depois de Johnny salvar Vienna do enforcamento.
Vienna, que não perdoa a Johnny tê-la deixado, pois não queria formar uma família, como se ela não fosse importante o suficiente para que ele deixasse de querer outras; e Johnny, que não perdoa agora a Vienna ter tido outros homens depois dele. Aliás, o saloon dela é a prova material de ter tido outros homens. E mesmo que o saloon arda, como acontece quase no final, as cinzas continuarão a habitar a memória. Johnny quer ter a certeza de que Vienna ainda o ama, e que o ama só a ele. Ao que ela responde: “Se ainda não tens a certeza, falar não vai adiantar de nada.” De facto, perante um amor partido anos atrás, quando há um regresso, por mais palavras que se queira, por mais que se necessite de palavras, como se elas exercessem alguma espécie de feitiço e fizessem desaparecer o passado – pois é disso que se trata, de querer que o passado não tenha existido, o passado da separação e o tempo que tiveram separados –, as palavras não adiantam de nada, se não houver uma predisposição para acreditar no que a amante nos diz. “Só te amo a ti.” “Os outros foram apenas a sombra da tua ausência”. O que está aqui em causa é que o amor em forma de paixão não admite outros. Que importa ao amor que os homens que Vienna teve – como Kid, por exemplo – foi porque o amor não estava ali? Para o amor, ele esteve sempre ali e ela é que não via. E não via, porque não sentia. É assim que o amor vê, e é muito difícil para quem ama não escutar esse modo de falar do amor. O perdão tem a ver com muitas formas de amor, mas não tem a ver com o amor em forma de paixão. A paixão não sabe perdoar, porque o perdão implica o reconhecimento de que ele foi traído. E para a paixão a traição é o maior dos crimes, pois é a prova de que ele não é único, como deveria ser.
Termino com a descrição de uma cena fantástica, com Old Tom (John Carradine), um dos empregados, que estava sempre na sombra, nos bastidores do saloon. Old Tom é atingido por uma bala, tentando proteger Vienna, e antes de morrer, nos braços dela, com todos os homens de McIvers à volta, diz: “Estão todos a olhar para mim. É a primeira vez que me sinto importante.” E morre. Old Tom representa, ao morrer debaixo dos olhares de todos, o que foi o amor de Vienna e Johnny, que é quando morre que se torna importante, debaixo dos olhares dos espectadores. O amor, em forma de paixão, morre como vive, a doer.

23 Mai 2018

Uma crónica (quase) sobre bola

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] ão costumo escrever sobre futebol. Nem com os meus amigos falo muito de bola. Gosto de ver um bom jogo, gosto quando o Benfica ganha, gosto sobretudo de ver a alegria que invade as ruas quando os adeptos de um clube que ganha campeonato ou taça saem para festejar. Não gosto do que gravita em redor do campo e que de certo modo serve de lume brando entre o apito final de um jogo e o inicial do próximo. Os programas sobre futebol são demasiados e demasiado longos. Os formatos são previsíveis e desinteressantes: um painel de “peritos” – vulgo caceteiros profissionais e caras-de-pau encartados – insultam-se hora ou hora e meia perante a anuência complacente de um “moderador” – pago para evitar que cada programa desemboque numa batalha campal. É mais edificante e muito mais interessante assistir a um documentário sobre sexo entre insectos exóticos.
Esta semana, no entanto, acabou por ser de uma invulgar violência, mesmo para os níveis a que nos habituámos. Meia centena de encapuzados invadiram o centro de treinos do Sporting para “exprimirem o seu descontentamento”, como me foi dado a ler em entrevistas com a rapaziada que lida mal com o insucesso. Como com tudo quanto é bola, foi dada uma ampla cobertura noticiaria à coisa. Todo e qualquer bicho-careta que tivesse relevância mediática foi ouvido exaustivamente. Até o presidente da Assembleia da República disse umas banalidades sobre o assunto. O país ficou reduzido a uma tasca a céu aberto onde todos se acotovelam para vociferam as suas opiniões. Portugal, quando toca a bola e doenças, é um país de especialistas.
As televisões, reféns das audiências, ofereceram-se para apresentar em directo o mais pobre espectáculo de pirotécnica possível; vídeos de telemóvel em loop horas a fio, comentadores de todas as especialidades imagináveis, rodapés pejados de erros ortográfico-estagiários e a denunciarem o caos instalado no país. Um chorrilho pastoso de trivialidades desfiadas como se estivéssemos a assistir a um 9/11 em solo luso. Cada país tem o terrorismo possível.
O rapaz Bruno de Carvalho, dotado de uma demasiado óbvia instabilidade mental para o cargo que ocupa, falou, falou, falou. Surpreendeu apenas aqueles que esperavam dele alguma contenção verbal e um módico savoir-faire na altura de apaziguar os ânimos. Como qualquer narcisista profissional, a gravidade do assunto não o melindrou um instante que fosse; a doçura do holofote apazigua qualquer tragédia. Tudo é forma, imagem, prestação, eu. Nada é conteúdo. Dir-se-ia do rapaz Bruno de Carvalho que seria possível vê-lo feliz da vida num velório desde que estivesse a ser filmado. Os psicopatas narcisistas pululam um pouco por todo o lado, mas são particularmente felizes em posições de topo nas quais podem exercer poder e crueldade sem perder um minuto de sono à noite. Uma grande empresa não dispensa um punhado de psicopatas para posições de chefia. Dão-se particularmente bem como CEOs e gestores de recursos humanos.
Entretanto, o mundo lá fora continua a girar. Na sexta-feira passada, mais um tiroteio numa escola dos Estados Unidos, país onde há tantas armas como pessoas. Os republicanos sacaram previsivelmente da cartada “thoughts and prayers”, resposta pronta para qualquer tragédia evitável. Um utilizador do twiter meteu uma foto com dois gatos: “I named my cats ‘thoughs’ and ‘prayers’, because they are useseless”. Felizmente há pelo menos duas Americas: a dos que querem mais armas e a dos que querem menos violência. Cada país devia ser muitos.
Por aqui, não é que esta e outras notícias não tenham sido vistas ou comentadas. Mas não logram sobreviver à asfixia que se abate sobre o rectângulo quando o assunto é bola. A cura do cancro não teria força para competir com uma final da taça de Portugal. A descoberta de vida alienígena não é nada comparada com a lesão de Jonas. O apocalipse zombie, perto de um confronto entre claques, parece coisa de meninos.

21 Mai 2018

Melancolia do fim

[dropcap style≠‘circle’]H[/dropcap]á horas que olho para conteúdos cinematográficos. Não me mexo a não ser para me virar. Quando viajamos, há uma mesma apresentação encenada do que está fora. Há um guião. Deslocamo-nos, contudo. Quando, ao ver conteúdos cinematográficos, não. A viagem no tempo é numa dimensão diferente. O tempo excede os conteúdos reais. É a verdadeira viagem. O passar das hora do almoço para a hora da tarde. O passar o serão logo a seguir ao jantar com os sons da vida: de quem chega a casa, liga a TV, as crianças que gritam e correm. Pisam com convicção o corredor. A mesma dimensão está presente, quando nos leva ao passado, ao princípio dos princípios. Há muitos princípios e muitas primeiras vezes. Não são sempre auspiciosas. São más. Podem ser muito más. Podem ser boas. Mas há um princípio de entusiasmo. Não é por nenhum conteúdo que objectivamente possa ser descrito enquanto tal. É um conteúdo fascinante pelo tempo que o traz. Há um encantamento com o fascinante. É uma configuração temporal na época das nossas vidas. A juventude transfigura tudo na primavera ou no verão da existência. É tudo de véspera. Mesmo sem possibilidades enormes ou oportunidades objectivas, filtra todo e qualquer conteúdo, sem excepção, com a compreensão da véspera auspiciosa do que aí vem. O que aí vem vibra com a excitação do tempo para vir. O tempo para vir é como na véspera de natal, na véspera da ir de férias, na véspera do primeiro dia de aulas, na véspera da inauguração de um tempo que traz consigo ascensão e um deslize velos em direcção a um fim. Este fim não é lá no fundo. É uma descida para de novo ganhar balanço. É o entusiasmo de quem cavalga o cavalo do tempo, de quem desce e sobe vagas, de quem encosta abaixo esquia ou nas dunas se atira para sentir cair, o que justifica toda areia mordida. O fascinante é o modo como o futuro acontece para quem tem futuro. Não há fascínio, embora possa haver espanto, na sobrevivência, muito menos numa sobrevivência a si próprio. Quando todo o futuro está atrás das costas, não há fascinante, nem encanto, nem expectativa, nem esperança. Há o que é e o que é tem sido como sempre e repetir-se-á assim. Não é o pior. O pior é não ser enganado, o que pressupõe que o fascinante do feitiço deixa de actuar. Perde vigor. Às vezes voltamos atrás como se arrancássemos os olhos da cara de alguém para os inserir nos nossos. É como se assim víssemos uma rua pouco glamorosa, mas onde há antecipação, onde há ainda véspera, onde há esperança e a expectativa da mudança não é a rotina inultrapassável de tudo sempre cada vez mais na mesma. Onde está essa renovação do olhar que antigamente era tão poderosa que era mesmo o modo de olhar para as coisas. Agora, tudo estafado na rotina da repetição não vem sequer uma leve brisa que se levanta e nos faça olhar para outro sítio. O pior de tudo não vem com o tempo. Não se trata de quantidade de tempo. Pelo menos não no sentido em que se tratasse de um aumento homogéneo da quantidade do tempo. A nossa vida é marcada por épocas. O nosso tempo tem momentos de viragem. Datamos assim autobiograficamente sem sabermos bem como a nossa história como a história das nossas decepções, das nossas desilusões, das nossas perdas, das nossas mortes. Em cada um desses momentos perdemos a possibilidade de sermos objecto do fascinante, do feitiço que nos atrai para fora do sítio imóvel do presente. Para haver grandes decepções houve grandes esperanças. Quanto maior é a esperança maior é a decepção. Os espíritos jovens são formalmente obrigados a viverem montados no haver que lhes dá futuro. A sobrevivência é resistir a essa decepção. Tudo muda para pior. Nada fica como é. É possível, contudo, conviver com a derrota. Mas é à espera, à espera de que tudo acabe. Todo o fim é sempre redentor.

18 Mai 2018

Quarto e último dia das comemorações

[dropcap style≠‘circle’]P[/dropcap]ara o relato do dia 20 de Maio de 1898 juntamos o publicado nos jornais de 22 de Maio, O Independente (que reaparecera a 12 de Setembro de 1897, é redigido pelos professores do Liceu de Macau, João Pereira Vasco, Horácio Poiares, João Albino Ribeiro Cabral e o poeta Camilo Pessanha, tendo a redacção e a administração sediadas no n.º 2 da Calçada do Gamboa) e no Echo Macaense (com o editor Francisco Hermenegildo Fernandes, que retomara essas funções em 11 de Abril de 1897), assinado por Luiz Gonzaga Nolasco da Silva. O Provir, jornal publicado em Hong Kong não traz registo deste dia 20, quando teve lugar a colocação da pedra fundamental para a estátua de Vasco da Gama.

Pela linda e grande alameda passeia muita gente juntando-se para a cerimónia de inauguração ao longo de um largo entre a Avenida Vasco da Gama e a Estrada da Vitória. Às 5 da tarde procede-se ao lançamento da pedra fundamental para o monumento dedicado a Vasco da Gama na Avenida do mesmo nome, outrora Campo da Vitória, escolhido quase a meio da nova Alameda e de frente ao monumento da Vitória alcançada pelos portugueses de Macau sobre 800 holandeses em 1622.

A pedra fundamental está suspensa no ar por uma corda, a um metro de altura do nível do chão, e por debaixo dessa pedra está aberto um fosso. Presentes encontram-se S. Exa. o Sr. conselheiro Governador Galhardo, S. Exa. Reverendíssimo o Sr. Bispo diocesano, D. José Manuel de Carvalho e reverendo clero, o juiz de Direito Ovídio d’ Alpoim, o Presidente do Leal Senado António Joaquim Basto, o inspector Barbosa, o Director das Obras Públicas Abreu Nunes, o Conde de Senna Fernandes, o 1.º intérprete sinólogo Carlos d’ Assumpção, e muitos outros funcionários públicos civis e militares, alguns estrangeiros e muita gente do povo.

Depois de se proceder à leitura da acta e de ser assinada por muitos dos presentes, é esta encerrada numa caixa de cobre (outro jornal diz, num cofre de bronze, de pouco mais ou menos três decímetros de comprido e quinze centímetros de largo), juntamente com uma colecção de estampilhas e bilhetes-postais do Centenário, uma capa e duas primeiras páginas do comemorativo Jornal Único, um número do Boletim Oficial, um exemplar do Echo Macaense e outro d’ O Independente. A caixa, depois de soldada a chumbo, é enterrada no fosso, e em cima dela colocam a pedra fundamental, onde assentará o monumento, sendo a primeira colher de cimento posto por S. Excelência o Governador. São tiradas fotografias no momento em que se procede à colocação da pedra fundamental para o monumento de Vasco da Gama. A estátua, só uma dezena de anos depois.

 

Discursos

 

Durante esta cerimónia, a que assiste o Bispo de Macau, os seminaristas entoam o hino do centenário, o que dá maior solenidade ao acto e imprime uma suave comoção em todos que o ouvem. Queimam-se muitos panchões e os seminaristas de S. José entoam uns cantos patrióticos.

Depois, o Governador, num breve mas sentido discurso, manifesta bem <os sentimentos que lhe vão na alma, de leal e antigo português de lei, que sente o mais íntimo orgulho de pertencer a essa nação de heróis, de que Vasco da Gama é uma das suas maiores glórias e ver, pela terceira vez em quatro dias, reunida a cidade de Macau para o glorificar>. Este discurso, que impressiona o auditório pela convicção com que são ditas as palavras, faz como que nascer em nós a esperança do rejuvenescimento da Pátria portuguesa que, naquele momento, se nos afigura representada, em todo o seu antigo esplendor, no Sr. Conselheiro Galhardo.

Em discurso primoroso na forma e no estilo, o Sr. Dr. Ovídio d’ Alpoim descreve alguns dos episódios mais dramáticos da viagem da Índia. Narra os trabalhos por que passaram um punhado de marinheiros portugueses que pisaram primeiro o solo indiano, e faz notar a energia e tenacidade com que Vasco da Gama venceu todas as dificuldades. A sua palavra nervosa e incisiva mostra-nos, como se fossem desenhadas na tela, essas cenas horrorosas de tormenta, em que <o mar e o vento eram tantos que os navios metiam as postigas debaixo d’ água, e as tripulações empalideciam de susto quando o mar lançava, com estrepito, sobre o tendal, os painéis que as naus levavam no alto dos castelos, à popa, pintados com a imagem dos santos do seu nome>. Lembra também <o terramoto que agitou o mar da Índia quando Vasco da Gama o trilhava pela segunda vez e este almirante, imagem da bravura épica do povo português, acreditou e disse que até as próprias ondas tremiam com medo nosso!> Fala da lealdade deste povo de Macau à coroa portuguesa, única colónia que nunca arreou o pendão das quinas durante os sessenta anos do nosso cativeiro sob o jugo castelhano e pode dizer-se que Macau é filha dilecta da sua mãe pátria, por ser o monumento imorredoiro do antigo predomínio de Portugal no extremo oriente. Faz lembrar aos circunstantes que, naquele momento, mil esquadras de todas as nações se balouçam no formoso Tejo, não para metralharem <a cidade de mármore e de granito>, mas para compartilharem connosco dos festejos da comemoração deste quarto centenário; porque todas essas nações, mais do que nós, têm colhido o fruto das nossas descobertas marítimas. Levanta por fim um Viva a Portugal, desejando que esse brado, que lhe saia da alma, pudesse ressoar no coração da Pátria, que tanto estremecia.

Não podemos dar uma pálida ideia deste esplêndido discurso, que foi um grito patriótico que calou no ´animo` de todos. O Sr. Dr. Alpoim foi muito aplaudido e cumprimentado pelo selecto auditório, que o ouviu encantado”, descrição d’ O Independente. Complementa o Echo Macaense, “Foi o discurso acolhido com entusiasmo; foi o orador cumprimentado pelo Sr. Governador Galhardo e por muitos cavalheiros e o Bispo deu-lhe um abraço.”

Como mais ninguém tomasse a palavra, o Governador dá o acto por findo.

À noite saem os alunos do liceu com uma orquestra, indo tocar e dar vivas em frente de diferentes casas, sendo uma delas a do Sr. Presidente do Leal Senado.

Assim terminam em Macau as festas do centenário da Índia, não tão esplêndidas e faustosas como os seus habitantes desejavam e as circunstâncias sanitárias do país não permitiram, mas cheias de entusiasmo e de ardor patriótico, como se devia esperar dos habitantes desta cidade, dos seus ilustres funcionários e do valente chefe da colónia, o herói de África, o Exmo. Sr. Coronel Galhardo. Nascido em Lisboa em 1845, estudara no Colégio Militar e Escola do Exército e em 1895, é coronel comandante das forças expedicionárias em Lourenço Marques quando termina com a revolta de Gungunhana, chefe dos Vátuas.

Vasco da Gama, como representante real da aventura marítima portuguesa do século XV, encerra o ciclo do desbravar o desconhecido Oceano Atlântico, e realiza a inaugural viagem para o novo mundo, possível pelos conhecimentos técnicos e marítimos dos chineses, que os levara no século I ao Golfo Pérsico.

Para encerrar esse IV centenário só falta o Jornal Único sair neste dia.

18 Mai 2018