António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasCenas do mundo flutuante, de Kenneth White [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara o Paulo José Miranda 1 Fiapos de bruma, brancos e pegajosos, retocam a baía e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho – dava tudo para não perturbar esta mansidão… mas já o dia alça consigo as gruas giratórias, as pessoas apressam-se e tossem, os motores e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones – Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas. 2 Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso que pescadores exaustos até ao osso acendem para agradecer a bondade da Rainha dos Céus e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes 3 Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon), o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito por entre juncos, chalupas e wallas-wallas: jornais impressos em vermelho e negro e expostos às lufadas do mar da China 4 Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo (i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley, amante de um próspero médico local, e que sonha vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta, no ferry-boat da manhã 5 O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus deixando atrás de si um rastro de vazio, uma larga onda de riso e de vazio que reflui até à Montanha Fria 6 No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos e uma tonelada de coelhos chineses é expedida noutra – enquanto nas ruelas reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong por entre um estrelejar de frituras, o fedor dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos 7 No seu encavalitado gabinete em Mody Street “Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês) atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» – e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos 8 Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club – passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura 9 Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%), Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…») 10 Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia, sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui, uma garrafa de uísque ao alcance da mão e um caderno novo aberto sobre a mesa – na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este» e abaixo desta: «um romance impossível». 11 Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon, Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa, numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo para marinheiros ianques empanturrados de cerveja; enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong 12 Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas, castanhas que fumegam ao ritmo do abanador; um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango – na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra e as heroínas gemem no écran gigante 13 No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes – esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se um pi-pa chinês – Christopher Cheung («não sou um artista, eu sou um ser humano») serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto 14 No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho: Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças, depois regressa ao seu quarto, inconsolável com o seu magazine ilustrado 15 Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais os últimos jogadores bocejam e cospem, num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes, enquanto dois juncos maciços, a popa alta, lavram as águas sombrias da noite farejando a rota dos antigos lugares de pesca. am a baía e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho – dava tudo para não perturbar esta mansidão… mas já o dia alça consigo as gruas giratórias, as pessoas apressam-se e tossem, os motores e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones – Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas 2 Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso que pescadores exaustos até ao osso acendem para agradecer a bondade da Rainha dos Céus e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes 3 Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon), o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito por entre juncos, chalupas e wallas-wallas: jornais impressos em vermelho e negro e expostos às lufadas do mar da China 4 Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo (i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK) de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley, amante de um próspero médico local, e que sonha vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa das horas de ponta, no ferry-boat da manhã 5 O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus deixando atrás de si um rastro de vazio, uma larga onda de riso e de vazio que reflui até à Montanha Fria 6 No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos e uma tonelada de coelhos chineses é expedida noutra – enquanto nas ruelas reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong por entre um estrelejar de frituras, o fedor dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos 7 No seu encavalitado gabinete em Mody Street “Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês) atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» – e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos 8 Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe, em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club – passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura 9 Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton» e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%), Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga, nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…») 10 Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia, sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui, uma garrafa de uísque ao alcance da mão e um caderno novo aberto sobre a mesa – na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este» e abaixo desta: «um romance impossível». 11 Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon, Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa, numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo para marinheiros ianques empanturrados de cerveja; enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong 12 Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas, castanhas que fumegam ao ritmo do abanador; um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango – na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra e as heroínas gemem no écran gigante 13 No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes – esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se um pi-pa chinês – Christopher Cheung («não sou um artista, eu sou um ser humano») serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto 14 No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho: Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças, depois regressa ao seu quarto, inconsolável com o seu magazine ilustrado. 15 Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais, os últimos jogadores bocejam e cospem, num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes, enquanto dois juncos maciços, a popa alta, lavram as águas sombrias da noite farejando a rota dos antigos lugares de pesca.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA vida não tem futuro ou “Para além do paraíso” de Jim Jarmusch [dropcap style=’circle’] E [/dropcap] m Stranger Than Paradise (Para Além do Paraíso), Jim Jarmusch toca-nos uma das mais contemporâneas melodias acerca do não sentido da vida humana. Não há rumo, não há o que fazer, não há senão tempo para nada. Lembremos que o filme é filmado em plena ressaca do punk rock e que Jim Jarmusch, embora não esteja ligado a este estilo de música, esteve desde sempre ligado à música mais alternativa, a começar pelo actor fetiche dos seus primeiros dois filmes, John Lurie, músico de jazz. E neste filme há um blues que serve de leitmotiv ao filme: “I Put A Spell On You” [Lancei-te Um Feitiço], interpretado pelo seu compositor Screamin Jay Hawkins. Mas antes que esta canção comece a iluminar-nos o filme, é o grande lema do punk, o grito dos Sex Pistols, “No Future”, vindo do outro lado do oceano, de Londres, que parece percorrer todo o filme como um fantasma. “There’s no future. No future. No future for you”, cantavam os Sex Pistols na sua canção “God Save The Queen”, em 1977, no disco Never Mind The Bollocks Here’s The Sex Pistols. E agora, aqui no filme, estamos em 1984. Há sete longos anos que já não há futuro. Há sete anos que o tédio parece ter abafado as cidades e os campos e as existências humanas, pelo menos aquelas que têm menos de trinta anos. O enredo é simples e talvez seja o que menos importa. Há uma prima, jovem, Eva (Eszter Balint), que chega de Budapeste a Nova Iorque, a casa de Willie (John Lurie), de passagem para Cleveland, para a casa de uma tia mais velha. Este primo, um pouco mais velho do que ela vive dos ganhos que consegue em jogos de poker e em apostas nos cavalos, juntamente com o seu amigo Eddie (Richard Edson, primeiro baterista dos Sonic Youth). Depois de poucos dias em Nova Iorque, em que espera que a tia saia do hospital, Eva ruma a Cleveland. Passado um tempo, e depois de um bom ganho no poker – 600 dólares, que os faz pensar que são ricos – Willie convence Eddie a irem até Cleveland visitar Eva, num carro emprestado. Assim fazem. A película, a preto e branco, bastante granulada – Luís Miguel Oliveira, na folha de sala da apresentação do filme na Cinemateca de Lisboa, escreve “um preto e branco muito composto, muito granuloso e muito áspero, que passou à história como o ‘preto e branco Jarmusch’ – que se tornou uma imagem de Jim Jarmusch e do seu fotógrafo, Tom DiCillo, junto com o enquadramento de lugares exíguos e pobres mostram-nos claramente que estamos num universo de subúrbio da existência. As pessoas são o que vão sendo e não o que podem vir a ser. Tudo é um estado remediado da existência. Sobrevive-se e tenta-se a todo o custo afastar o tédio. A existência humana é a preto e branco, sem grande definição, e sem nenhum sentido, que não seja sentir o menos possível a passagem do tempo. Viaja-se para Cleveland, porque sim, sem nada para fazer, que não seja esperar que o dinheiro não se acabe depressa e que a morte e o sofrimento tardem. Quando chegam a Cleveland, numa paisagem cheia de neve, Eddie diz a Willie: “Sabes, é engraçado. Conheces um lugar novo, mas tudo parece igual.” Tudo parece igual, porque tanto de onde se veio como onde se está continuamos sem sentido. Tanto antes como agora não há sentido. A vida é como uma paisagem tolhida por uma tempestade de nevoeiro. Não se vê nada e mesmo que se visse nada haveria para ver, como na magnífica cena junto ao lago Erie, em que os personagens vão ver o lago e não se vê nada a não ser branco por todo o lado, neve e nevoeiro. O que está por vir não se vê e o que se vê entedia. Tudo entedia. O mundo é uma máquina de criar tédio. Willie responde “Não digas! Sério?” E atira pedras à neve. A frase “No future” corre pelo interior do corpo. Ninguém se apaixona. Não há amor nem paixão no filme. Não há nem bem nem mal. Ninguém é bom, ninguém é mau. O tema do filme não é ético, é ontológico. Tudo é tédio. Ninguém tem planos, ninguém tem talento. Aposta-se nas corridas para continuar. Não há sequer paixão nas apostas. Nunca se vê os personagens a apostar e vê-se uma única vez a jogar poker. Jogam para continuar e não por paixão ou vício. Jogam como quem vai para a fábrica trabalhar (como aquele que espera pelo autocarro quando eles estão a sair de Nova Iorque). A vida é continuar e não se sabe nem porquê, nem para quê e nem sequer se pergunta. Arrasta-se a existência e atira-se pedras à neve e conduz-se um carro pelas estradas, de uma cidade até outra e até outra. “I Put A Sell On You”, é posto a tocar num pequeno gravador de cassetes por Eva, de vez em quando, como se fosse a própria vida que lhes tivesse lançado um feitiço. “I Put A Spell On You”, com os gritos e os exageros vocais de Screamin Jay Hawkins transforma-se em nós no grito “No Future” dos Sex Pistols. A vida não tem futuro. Essa, a vida que nos foi lançada como um feitiço, cheia de tédio até à medula. “I Put A Spell On You”, diz-nos ela, a vida, o tédio. E os desencontros no final do filme sublinham a impossibilidade de nós mesmos fazermos sentido da vida que levamos. É a vida que nos atira para onde quer, quando quer… Lança-nos um feitiço.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDa noite para o dia [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] história de Rip van Winkle descreve um dia na vida do protagonista em que se dá a passagem para uma outra dimensão da vida. Rip vai à caça. Sobe às montanhas de Kaatskill com o seu cão Lobo, escapa ao quotidiano do casamento. À medida que o tempo vai passando, sente-se o carácter líquido das montanhas. A atmosfera é diferente. Lá em cima é longe. É de lá que se vê “lá em baixo”. O sítio onde se encontra: ermo e desgrenhado, o fim do dia, são literais, mas também figurados. O tempo começa a alterar-se com os seus conteúdos: fora da azáfama do dia a dia, longe da cidade e de casa, num outro sítio, mas também numa outra dimensão. Fica absorto naquele cenário durante algum tempo e ouve uma voz chamar pelo seu nome. Pode ser irreal, mas ele vai atrás desta personagem que o leva para junto de homens não menos estranhos. Joga às cartas e bebe uma poção destilada. Tudo é como habitualmente, depois da hora de expediente na taberna ou como nos dias feriados. À medida que vai bebendo, o tempo altera-se. Altera-se também a relação com o tempo. A consciência de tempo metamorfoseia-se. Perde a consciência de tempo. Perde o contacto com o tempo. Cai num sono profundo. Quando Rip acorda, procura assegurar-se de que não ficou ali a noite inteira, como se o problema do tempo que entretanto passara fosse de curta duração, ainda que de uma noite. Não sabia bem o que se tinha passado. Não tinha acompanhado o tempo a passar. O tempo da noite que decorreu entre ontem e hoje está fora da relação com a consciência. A tentativa de recuperação do último instante antes de ter perdido a consciência revela o esforço complexo em que nos encontramos sempre com preocupação de não inconsciência. A espingarda que era novinha em folha enferrujou. São os primeiros conteúdos concretos com que Rip se debate. Apontam para a passagem do tempo. Uma passagem do tempo que não se percebe enquanto tal mas que se projecta sobre conteúdos. O corpo não é o mesmo: não depois da convalescença de uma gripe, não, no dia de ressaca em comparação com a véspera, não durante as décadas em convívio com ele. Mas a diferença de conteúdos é também genérica. Não conheçe ninguém, quando achava conhecer toda a gente. A estranheza dos rostos é comparada sem dificuldade com a familiaridade dos rostos outrora. A roupa, por exemplo, é diferente. A moda muda. Mas a forma como os outros nos olham reflecte também o próprio reconhecimento que o outro tem de nós ou a ausência de reconhecimento. Sabemos quando alguém conhecido está a olhar para nós e não nos reconhece. Sabemos como se dá o olhar de ex-amantes, sabemos como é o olhar dos amigos desavindos. Provavelmente é o mesmo que os outros reconhecem em nós, quando passou tempo desde a infância sem nos vermos, quando acabou uma relação romântica, quando tudo se alterou. Toda a aldeia estava modificada: O aumento dos pequenos pormenores está reflectivo nas pequenas percepções ou percepções do desequilíbrio: há o reconhecimento do sítio como geograficamente o mesmo, com características complexas mas abstractas. Já não é o que era. Só se encontram objectos em macro estruturas temporais: montanhas, o rio, colinas e pequenos vales. Definitivamente o álcool como o tempo têm o condão de tudo alterar, a partir do seu humor. A casa está em ruínas. A estalagem da aldeia sumira-se. Tudo se encontrava singularmente metamorfoseado. E procura saber o que se passou com as personagens da sua vida: Nicholas Vedder, Brom Dutcher, Van Buymmel, a mulher, a filha, o filho, mas também o próprio. As personagens da nossa vida envelhecem ao mesmo tempo, desaparecem afectivamente, fisicamente, mas não deixam de ser figurantes ou personagens das nossas próprias vidas. O mais interessante é o desconhecimento de si próprio, o desconhecimento do outro, a possibilidade de sermos confundidos com outros em quem estamos plasmados. A estrutura do próprio é o mesmo e outro. Mas a confusão da alteração complexa entre mim e mim de uma hora para a outra é absolutamente problemática. Uma só noite dura 20 anos. Um qualquer instante pode durar muitos anos. Um instante tem uma distensão temporal. 20 anos podem também ter exactamente os mesmos conteúdos e nós não damos por eles.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasFerreira do Amaral e o Passaleão [dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ara a comemoração do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia fora proposto erigir estátuas a homenagear o ex-governador Ferreira do Amaral, assassinado em 1849, e o Coronel Mesquita, cuja memória precisava ainda de ser reabilitada, pois caíra em desgraça em 1880, após em estado de loucura ter assassinado a família, suicidando-se de seguida. Camilo Pessanha ofereceu-se no início do ano de 1898 “para conduzir o processo de reabilitação do Coronel Mesquita”, segundo Daniel Pires, que refere, nos finais de Abril “realizou-se uma audiência no Paço Episcopal, para serem ouvidas as testemunhas do processo canónico de reabilitação do Coronel Mesquita. Camilo Pessanha era o advogado que representava a comissão organizadora daquela iniciativa”. Para compreender o que se passara, convém referir estar Macau em território da China (cuja terra era inalienável) e para os portugueses aí se estabelecerem foi encontrada a solução criada já na dinastia Tang, quando os estrangeiros dentro das cidades tinham o seu quarteirão para viver e governarem-se com as suas leis, desde que não atentassem contra os princípios de soberania chinesa. Ao contrário de Macau, que desde 1573 era um fanfang cristão português, Hong Kong foi ocupada a partir de 1841 pelos ingleses, após a sua vitória sobre os chineses na I Guerra do Ópio (1839-41). A China, destroçada, foi obrigada a abrir os seus portos ao comércio com os estrangeiros, levando a uma época de humilhação, em que se promoviam guerras para demonstrar a superior tecnologia ocidental e assim conseguir chorudas indemnizações, esvaindo os cofres chineses. Mudança de sistema O porto de Hong Kong levantou receio aos portugueses de perderem Macau para uma potência ocidental e assim tiveram que tomar soberania da península e desligar-se do governo chinês, quebrando o antigo Trato. “Julgou-se necessário alterar o sistema de administração daquele estabelecimento e ao mesmo tempo se aproveitou a ocasião de reivindicarmos, na parte em que havia sido lesada, a plenitude dos direitos de soberania no território de Macau. Coube ao distinto Capitão-de-mar-e-guerra João Maria Ferreira do Amaral, levar a efeito esta espinhosa tarefa, pondo em execução o Decreto de 20 de Novembro de 1845, que tornou franco o porto de Macau; estabelecendo um novo sistema de impostos, como tornava necessário a supressão da alfândega, única fonte até ali de receita pública; reformando em vários pontos outros ramos da administração, e reduzindo as despesas dela a dois terços do que antes consumia”, segundo Carlos José Caldeira, que continua: “Aumentou porém extraordinariamente esta indisposição das autoridades chinesas quando o mesmo governador, desempenhando a segunda parte da sua missão, deu começo à reivindicação da independência política de Macau. A posse do porto da Taipa, como ponto dependente do território de Macau; construção ali de um forte, onde foi arvorada a bandeira portuguesa; a recuperação do território ocupado pelos chineses, entre a Porta do Campo e a Porta do Cerco, que marca os limites da possessão portuguesa; a supressão dos direitos de tonelagem, chamados medição, que abusivamente se cobrava para o imperador, sobre os navios portugueses que entravam no porto português de Macau; a expulsão desta cidade dos hopus ou alfândegas chinesas, que parece também abusivamente ali tinham sido introduzidos, e que depois da declaração de porto franco se julgaram intoleráveis…” Pelas actividades chinesas em Macau, percebe-se considerar a China como seu este território e tal é confirmado pelo foro anual pago pelos portugueses desde 1573. O Governador Ferreira do Amaral assumindo o controlo da terra, dava por findo o fanfang de Macau e deixava de pagar em 1849 o arrendamento, quebrando assim o antigo trato com os chineses. Manifestando uma posição de poder, tomou posse das terras para além das muralhas a envolver a cidade cristã portuguesa, o que logo se fez sentir com a vida do Governador. Ainda em 1847, o Senado queixou-se e reclamou para Lisboa contra a obra governativa de Ferreira do Amaral. Assassinato do Governador “Na tarde de 22 de Agosto de 1849, o Governador Amaral saíra a cavalo a passear no campo, como de costume, e neste dia só ia acompanhado pelo ajudante de ordens Leite; a menos de duzentos passos antes de chegar à Porta do Cerco, um chinês se aproximou apresentando um papel como de requerimento, e outros saíram de repente detrás de uns pequenos combros de areia que os escondiam, e ao todo sete o atacaram com taifós (espadas curtas e rectas que os chineses usam aos pares, manejando uma em cada mão), e foi-lhes fácil fazer sucumbir um homem, ainda que bastante valente e corajoso, que estava desarmado e só tinha o braço esquerdo. Derrubaram-no do cavalo, e bem assim ao ajudante Leite. Cortaram-lhe a cabeça e a mão, e sem medo ou precipitação as levaram, passando pela porta do Cerco, onde então havia um posto de guarda chinesa, que a duzentos passos observou pacificamente tudo isto, e deixou passar em sossego os assassinos! Existe ainda hoje uma tosca e delgada coluna de pedra no sítio do assassinato…”, escreve Carlos José Caldeira, que chegara a Macau um ano depois deste episódio e aqui esteve de Setembro de 1850 a Janeiro de 1852. “Este inaudito acontecimento lançou o terror e a consternação na cidade; organizou-se logo o conselho de guerra do governo, e para corresponder à atitude hostil dos chineses (que de antemão haviam guarnecido o Passaleão e vários pontos vizinhos com numerosas forças, ameaçando uma invasão a Macau), [creio, um pressuposto dos portugueses], foi postar-se na Porta do Cerco na manhã de 25 (de Agosto de 1849) uma força portuguesa, [de 24 homens sob o comando do Capitão Fidelis da Costas] sobre a qual os chineses [do fortim] romperam primeiro o fogo, que foi sustentado com calor desde as 10 da manhã às 4 da tarde. O desejo e a indicação geral era ir atacar os chineses; porém os escrúpulos e observações dos diplomatas estrangeiros residentes em Macao, sobre as consequências do que eles chamavam uma violação do território chinês, e alguns ânimos timoratos conservaram o conselho do Governo em indecisão, a qual foi quebrada pela heróica resolução do tenente Mesquita, que sem ordem superior convidou os soldados que o quisessem seguir a irem acometer o Passaleão”, segundo C. Caldeira. O Fortim do Passaleão, nome dado pelos portugueses a Pac-Sa-Leong, que após ser ocupado foi logo abandonado, mas desde então, e por 30 anos, o terreno entre o pequeno forte e as Portas do Cerco, numa meia milha de distância, passou a zona neutra. Vicente Nicolau de Mesquita, nascido em Macau a 9 de Julho de 1818, era filho de Frederico Alves de Mesquita, advogado dos auditórios desta comarca. Assentara praça a 9 de Julho de 1835, frequentou com aprovação a aula de Matemática e prosseguiu pelos postos inferiores até 1.º sargento e por decreto de 15 de Julho de 1847 foi despachado 2.º tenente de artilharia.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasCinco poemas de Georg Trakl traduzidos De profundis [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á um campo de restolho sobre o qual uma chuva negra cai. Há uma árvore castanha, que aí está de pé, sozinha. Há um vento sibilante à volta das cabanas vazias. Como é triste esta noite. Ao longo da aldeia, A doce órfã colhe ainda escassas espigas. Os seus olhos, redondos e dourados, pastam ao entardecer, E o seu peito anseia pelo noivo celestial. No regresso, Os pastores encontram o seu doce corpo A apodrecer nos arbustos de espinhos. Uma sombra eu sou, longe das lúgubres vilas. De Deus o silêncio Eu bebi na fonte do bosque. Na minha fronte, aparece metal frio. Aranhas procuram o meu coração. Há uma luz que a minha boca extingue. À noite, dei por mim numa charneca, petrificado pela sujidade e pó de estrelas. No bosque das avelaneiras, Ressoam, de novo, anjos de cristal. De profundis[1] Es ist ein Stoppelfeld, in das ein schwarzer Regen fällt. Es ist ein brauner Baum, der einsam dasteht. Es ist ein Zischelwind, der leere Hütten umkreist. Wie traurig dieser Abend. Am Weiler vorbei Sammelt die sanfte Waise noch spärliche Ähren ein. Ihre Augen weiden rund und goldig in der Dämmerung Und ihr Schoß harrt des himmlischen Bräutigams. Bei ihrer Heimkehr Fanden die Hirten den süßen Leib Verwest im Dornenbusch. Ein Schatten bin ich ferne finsteren Dörfern. Gottes Schweigen Trank ich aus dem Brunnen des Hains. Auf meine Stirne tritt kaltes Metall. Spinnen suchen mein Herz. Es ist ein Licht, das meinen Mund erlöscht. Nachts fand ich mich auf einer Heide, Starrend von Unrat und Staub der Sterne. Im Haselgebüsch Klangen wieder kristallne Engel. Humanidade Humanidade posta perante gargantas de fogo, Rufar de tambores, semblantes escuros dos guerreiros, Passos através de um nevoeiro de sangue. Ressoa o ferro negro. Desespero. Noite em cérebros tristes: Aqui as sombras de Eva, a caça e o dinheiro encarnado. Nuvens que a luz trespassa, a ceia. Um silêncio suave habita o pão e o vinho E aqueles ali reuniram-se. Doze em número. À noite, gritam a dormir debaixo dos ramos da oliveira. São Tomé mergulha a mão nas feridas. Menschheit Menschheit vor Feuerschlünden aufgestellt, Ein Trommelwirbel, dunkler Krieger Stirnen, Schritte durch Blutnebel; schwarzes Eisen schellt, Verzweiflung, Nacht in traurigen Gehirnen: Hier Evas Schatten, Jagd und rotes Geld. Gewölk, das Licht durchbricht, das Abendmahl. Es wohnt in Brot und Wein ein sanftes Schweigen Und jene sind versammelt zwölf an Zahl. Nachts schreien im Schlaf sie unter Ölbaumzweigen; Sankt Thomas taucht die Hand ins Wundenmal. Alma da vida Decadência, que suave ensombra a folhagem. O seu amplo silêncio mora na floresta. Em breve, uma aldeia parece inclinar-se, como um fantasma. A boca da irmã sussurra nos ramos negros. O homem solitário vai desaparecer em breve, Talvez seja um pastor, sobre caminhos sombrios. Sai em silêncio um animal da arcada de árvores, Enquanto as pálpebras se abrem bem perante a divindade. O rio azul escoa, belo. Nuvens mostram-se de noite. A alma está num silêncio angelical. Figuras passageiras decaem. Seele des Lebens[1] Verfall, der weich das Laub umdüstert, Es wohnt im Wald sein weites Schweigen. Bald scheint ein Dorf sich geisterhaft zu neigen. Der Schwester Mund in schwarzen Zweigen flüstert. Der Einsame wird bald entgleiten, Vielleicht ein Hirt auf dunklen Pfaden. Ein Tier tritt leise aus den Baumarkaden, Indes die Lider sich vor Gottheit weiten. Der blaue Fluß rinnt schön hinunter, Gewölke sich am Abend zeigen; Die Seele auch in engelhaftem Schweigen. Vergängliche Gebilde gehen unter. Crepúsculo No pátio, enfeitiçado pela luz láctea do crepúsculo, Ternos doentes deslizam através do outono acastanhado. Os seus olhos redondos em cera pensam nos seus tempos dourados, Cheios de sonhos e paz e vinho. A enfermidade fecha-os fantasmagoricamente nela. As estrelas espalham uma tristeza alva No cinzento, cheios de ilusão e repiques, Vê como, horríveis, se dissipam confusamente. As figuras sem forma do escárnio esgueiram-se, de cócoras E esvoaçam sobre sendas negras negros de cruzamentos. Oh! Tão tristes as sombras nos muros. As outras fogem pelas arcadas sombrias. E à noite precipitam-se com as rajadas rubras Do vento estrelar, quais Ménades em fúria. Dämmerung Im Hof, verhext von milchigem Dämmerschein, Durch Herbstgebräuntes weiche Kranke gleiten. Ihr wächsern-runder Blick sinnt goldner Zeiten, Erfüllt von Träumerei und Ruh und Wein. Ihr Siechentum schließt geisterhaft sich ein. Die Sterne weiße Traurigkeit verbreiten. Im Grau, erfüllt von Täuschung und Geläuten, Sieh, wie die Schrecklichen sich wirr zerstreun. Formlose Spottgestalten huschen, kauern Und flattern sie auf schwarz-gekreuzten Pfaden. O! trauervolle Schatten an den Mauern. Die andern fliehn durch dunkelnde Arkaden; Und nächtens stürzen sie aus roten Schauern Des Sternenwinds, gleich rasenden Mänaden. Melancolia – 3ª Versão Sombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros, Que longamente me fixam, ao passar. Acordes suaves de guitarra acompanham o outono, No jardim, dissolvido em lixívia castanha. As mãos das ninfas preparam a lugubridade séria Da morte. Lábios podres sugam leite de Peitos encarnados e na lixívia negra Deslizam os caracóis húmidos do filho do sol. Melancholie Bläuliche Schatten. O ihr dunklen Augen, Die lang mich anschaun im Vorübergleiten. Guitarrenklänge sanft den Herbst begleiten Im Garten, aufgelöst in braunen Laugen. Des Todes ernste Düsternis bereiten Nymphische Hände, an roten Brüsten saugen Verfallne Lippen und in schwarzen Laugen Des Sonnenjünglings feuchte Locken gleiten. [1] Trakl, Georg. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 27.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasLisboa: Os espermatozóides trapezistas [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]venida de Roma: Acasala o ar com o néon, aquele rapaz de cabelo verde que esplende contra a luz da montra. Jardim do Torel. Morremos porque somos alérgicos ao ar? É um dos emaranhamentos mais misteriosos. Entretanto, não desdenhava conhecer o primeiro que criar um teste para as alergias poéticas! Uma vez, neste jardim, vi um ovni. Eu estava sóbrio, o ar à minha volta é que não. Nunca ter sido este jardim aproveitado cinematograficamente é a prova de que os cineastas portugueses não sabem olhar a cidade. Alérgicos ao ar. Café Orion: Há amores que têm borra e outros que se dissolvem sem ruído como asa de mosca na clara do ovo. Nicola. Vejo-a sentada na mesa ao lado da minha – isto é, na mesa errada – e descortino uma função para a poesia: a da ortopedia. Corrigir os ossos ao ambiente. Ouço-a e percebo: o timbre de James Mason funciona no feminino, excita o punhado de anjos que falte cair. O estonteante arraso da voz dela – na sua tonalidade, ritmo, colocação e recorte das frases floresce uma civilização -, ao que se junta um rosto moreno de beleza lapidar, não se coaduna com os calções, o relaxe, o dedo a esgaravatar a cera no ouvido, a vulgaridade do viking que a acompanha, um calhordas ao qual só diviso uma qualidade, a de calar-se quando ela fala. E ela fala todo o tempo, adivinho, para afastar a agonia do desajuste que lhe coube. Na mesa ao lado – na errada -, aguardo pelo meu encontro e, para me alhear, penso na bela macaense que há dois anos alegrava o painel dos empregados de mesa deste Nicola, que sempre revisito em Lisboa. O que será feito da Águia de Prata? Café Orion. Eis no que se tornou: o homem-vírgula. Esvaziado de conteúdo, mas gramaticalmente insuperável. Sossego, que seja amigo de outrem que não meu, porque também não teria conseguido ajudá-lo a evitar a esterilidade. Aquário Vasco da Gama. Ilusão minha, ou abaixo do funil da lula gigante do Aquário Vasco da Gama, umas estranhas estrias entre os olhos desenham a carta astral de Fernando Pessoa? Não pude partilhar este meu provável engano com o meu neto que tem oito anos e a quem já basta ter passado, num ano, de rapaz eléctrico ao perfil dos meditativos. E capaz de rigores. Esclareceu-me ele diante do meu espanto de ter estado com ele numa semana sem mazelas e de o ir encontrar na semana seguinte de braço engessado: Está descansado avô, foi só o rádio. Confeitaria Cister. Fico boquiaberto: as rosas que nós conhecemos e amamos têm uma data de “fabrico”, 1867. É um produto de muitos cruzamentos e do pendor dos homens. Existem as silvestres, mais antigas, mas as que nos prendem a atenção começaram a ser cultivados pelos chineses há dois mil e quinhentos anos, foram depois trazidos pelos persas, e acabadas de aperfeiçoar só no século XIX. Igual estupor só o ter aprendido, há décadas atrás, que os oásis são uma bolha inventada pelo homem e não um implante produzido pela natureza ou por Deus para consolar a rudeza dos desertos. Dois magníficos exemplos de natureza alterada e melhorada pelo homem. Nem tudo é mau. Café Dragão Vermelho. Há dois anos escrevi: “A nomeação de Bob Dylan como Nobel não me provoca alergia mas não me alegra. Explico-me: como professor preocupa-me muito o baixo quociente de atenção de que se mostram capazes os alunos. Entre outros factores, identifico a «síndrome pop», o facto do grosso dos jovens crescer condicionado pelo formato da canção pop, que dura três minutos. São fisgados por um tipo de atenção breve e, como na comunicação oral, sustentada em refrões.” E, agora, no deguste duma tosta mista, leio, em Da Miséria Simbólica, de Bernard Stiegler: «Hoje, nas sociedades de modulação que são as sociedades de controle, as armas estéticas tornaram-se essenciais: trata-se de controlar essas tecnologias da aisthesis que são, por exemplo, o audiovisual e o digital, e graças a este domínio das tecnologias, trata-se de controlar os tempos de inconsciente dos corpos e das almas que os habitam, ao modular através do controlo dos fluxos esses tempos de consciência e de vida». Tinha-o intuído. Café Coimbra, com a mão atrás da orelha: ” Uma árvore que dura mais do que eu? Um castanheiro durar mais que eu? Era o que faltava. Uma árvore é para um gajo mijar. Vai logo à serra. É assim a natureza, os superiores governam os destinos dos inferiores. No outro dia comprei um kit com várias bactérias, um amigo meu tem uns conhecimentos na Secreta e vendeu-me… Para mim é assim, vai de fungos, vírus, cancros, tudo… não devia haver mais árvores do que homens. Um gajo não pode correr à vontade. Corre e bate. Vocês já viram árvores num campo de futebol? E é um exemplo de natureza, a relva, de socialização, o jogo, e de cultura, o árbitro. Para mim é um must. Percebo que tem de haver árvores por causa do papel, mas se formos a ver publica-se muita merda neste país. Há uma árvore de que gosto. Quando é grande. O abrunheiro. E dá um bagaço de arromba. Agora um gajo ler que a castanha está na moda e que daqui a vinte anos é um negócio tão rendoso como o vinho do Porto, não dá – é um embuste. Vinte anos é o tempo que um castanheiro leva a produzir castanha capaz. Um homem responde por si, aos treze, aos catorze… eu por acaso aos doze já enchia um balde. Nem sei se tenho gente do circo na família mas os meus espermatozóides são trapezistas…” Cacilheiro & Brown: “Adoro malta de cor com um bom pau. Telefona 919357430”: foi assim que soube, apopléctico, a mijar ao meu lado, das inclinações do filho.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasEu (não) estou aqui Horta Seca, Lisboa 20 Maio [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or estes dias, andei meio perdido na adolescência. Um dos meus liceus, agora vítima de curiosa vingança que o atirou para abandono semelhante ao do Cabo Ruivo de então, capitaneava margens esquecidas. De tempo e lugar. Os anos na Afonso Domingues, que de feminino pouco mais tinha além do nome (Escola Industrial), deram-me acesso a sítios que insuflavam de oxigénios a palavra aventura. Os territórios começavam logo ali, junto à linha do comboio, e desciam por azinhagas, de bruxas ou nem por isso, até à grande avenida dos velhos e britânicos autocarros de dois andares, com passe para patifarias e doidas corridas. Logo antes do rio onde brilhavam sombras até do império e o hidroavião, encostado ao labirinto de metais e cores, atracado a livros de cordel onde atlântico rimava com viagens e batalhas e as máquinas voadoras eram o passaporte para uma vida a sério. Estava na Afonso, em nome da força aérea, para que conste. Mais tarde, não muito, iria calcorrear os mesmo caminhos com atenções outras, de câmara na mão, a aprender a ver, sob a batuta do Luís Pavão, que animou na Afonso um clube de fotografia. Tenho que regressar a esses negativos, quase todos na cor precisa da memória, o preto e branco. Que olhos seriam os meus, no salto, óbvio para a idade, entre fantasia e real, entre astronáutica e consciência social? Cá em casa, as ideias mastigam-se muito, mas estava longe de imaginar que o projecto do Bruno [Portela] de celebrar os 20 anos da Expo 98 com mergulho no oceano do seu arquivo acabaria comigo, depois de conversadas e excluídas várias outras hipóteses mais naturais, a legendar as suas fotos, que estão em exposição de grande impacto no próprio local. «Você (Não) Está Aqui» atirará, até Setembro, os incautos transeuntes para viagem no tempo. Bem distinta da minha. Este trabalho do Bruno (exemplo algures na página) resultou de uma encomenda, estava sujeita a constrangimentos, aspirava à totalidade do registo, mas originou olhar que resistiu ao tempo e nos permite acesso à metamorfose. A cidade desfazia-se aqui, entre desvario e tangível. A melancolia habitava o sítio e ficou na fotografia. Para abrir, sugeri estas linhas, e falhei nas outras legendas abordar a minha púbere aviação. «Os lugares possuem um espírito. Mas o tempo não lhes permite que se mantenha para sempre o mesmo. Neste pedaço de Lisboa, qualquer coisa em hectares (340) como a extensão que vai do Terreiro do Paço a Entrecampos, morreram maneiras de fazer, de construir, modos de ir deixando andar, parte de um século. Paz à sua lama. A meio do século passado, uma certa vontade de desenvolvimento colocou às portas da cidade a refinaria de «ouro negro» que a alimentava, e à sua volta foram-se acumulando restos, matérias brutas, abandonos e abandonados, outras memórias. O século XX estava a acabar e a capital ignorava o seu oriente, quando a pretexto do encontro com outros orientes, resolveu fazer uma das maiores transformações urbanas do país. A regeneração do território foi, aliás, uma das principais razões para que Portugal ganhasse, há 20 anos, a organização da Expo 98 projecto, de par com a celebração da viagem de Vasco da Gama e ter escolhido os oceanos para tema. E assim aconteceu de modo único: uma das maneiras de aferir o sucesso da mudança está no apagamento da memória do que aqui foi. O trabalho bom do fotógrafo é captar espíritos. Ora Bruno Portela (Lisboa, 1966) estava, nos idos de 1994, no lugar exacto à hora certa para registar o fim de um ciclo. O seu percurso fez-se mais do documental. Por um lado, não ignora o humano nas estruturas, nas formas, nos restos e na poeira de que parece feita a paisagem. E por outro, coloca-nos no coração da vaga e sólida tristeza que se solta do tempo a passar. Uma cidade pode esconder outra: cuidado a atravessar.» Mymosa, Lisboa, 25 Maio Temos atrasos e temos atrasos dolorosos. A edição da Manuela Sousa Lobo tardou, mas vai resolver-se, a pretexto dos 130 anos de Pessoa. Há tantos anos lhe conheço os poemas, prodígio de criatividade, na língua, nas imagens que cria, no cruzamento de planos, perturbações, identidades. Sinto com a dor da injustiça este apagamento, mas isso pouco resolve. Almoçamos para acertar detalhes, para conversa solta, para isto e aquilo. De surpresa, aparece-nos o Patrak. Há muitas luas, em programa na Rádio Universidade Tejo, juntei os dois, a Manuela e o Luís Carlos Patraquim, outro poeta enorme, sem que um soubesse do outro, para encontro de amigos ao vivo do microfone. A coincidência de os ter agora aqui, descombinadamente, anima-me, sem outra razão que a alegria. «Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo.» Já na abalada, vejo a Manuela a baixar-se com esforço para apanhar qualquer coisa que me havia escapado, missanga de máscara zulu, dobrão de ouro, a chave da arca do Pessoa, tecla de máquina de escrever. Não, era um parafuso, torto, que trazia em si a própria inutilidade. Diz a poeta em resposta à minha surpresa: «anda tanta gente a perdê-los que alguém tem de os apanhar». Nem perdi tempo a imaginar o museu, corri a apanhar uma caneta-íman que outra poeta me tinha oferecido, desconfio que para me chamar velho ou apenas apagar o meu fascínio pelo objecto. Doravante, não precisará dobrar-se, basta abrir a extensão telescópica e apanhar os parafusos perdidos. Casa da Cultura, Setúbal, 1 Junho Alimento para os olhos, que não a pintura de naturezas mortas, a Festa da Ilustração obriga-me invariavelmente a esforço de orientação na selva das imagens. As boas exposições, qualquer que seja o volume, fazem-se paragem de comboio, lugar onde saborear o tempo. Não encontro melhor exemplo que esta «Bricolage», do João [Fazenda], portentoso construtor de cidades e metáforas, o melhor dos transportes públicos. Encontramos «trabalhos de vários momentos, mas sobretudo dos anos mais próximos. Estão representados os suportes essenciais (livros, periódicos, cartazes, cadernos íntimos). Melhor: estão os olhares e os gestos primordiais que fazem dele autor seminal, pois nele se vão mergulhando raízes para as mais vorazes experiências. Em cena no Palco estão actores, objectos e cenários dispostos como se obedecessem a encenador, urbanista, jogador de xadrez, que melhores peles pode o ilustrador vestir? Puro prazer se desprende do mecanismo, umas vezes literal, outras metafórico, sempre a atirar-nos para a viagem. Segue-se visita guiada ao Bairro, com trabalhos mais pessoais e narrativos sobre a cidade e as suas transformações. Ternura no olhar que toca cada figura, entalada entre o banal e o excepcional, eis o que nos espera. Avancemos em direcção à Arena, onde se recolhem os rostos e os corpos do inferno político, social, mediático, nosso. Pode explodir o humor, mas sem que aconteça cartoon. Tudo nos encaminha para a Pista de Dança, onde Fazenda chama a si a figura do coreógrafo-bailarino: cada desenho faz-se movimento que rodopia em movimento e transformação contínua, abrindo-se espaço de liberdade e imaginação. Cada desenho logo se faz outro desenho, sendo todos momento dessa transformação. Ninguém lhos pediu, mas todo ele, desenhador compulsivo, os exigiu. Este movimento não está, em momento algum, ausente das milhentas imagens que criou. A que deu vida. Mal voltem costas, tudo continuará a mexer-se, acreditem.”
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA humanidade como conspiração: Matriz e Budismo [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma época em que abundam teorias da conspiração, vamos acercar-nos de um filme que tem como base o encaminhamento de buda, isto é, um modo de pensar espiritual cujo objectivo é alcançar a consciência plena. E este modo de pensar pode também ser visto como a revelação de um segredo: a humanidade conspira contra ela mesma. Por conseguinte, este modo de ver o humano, não trata de uma teoria da conspiração acerca da terra ser ou não redonda ou dos ricos reunirem-se em volta de uma mesa para governarem os destinos do mundo, mantendo-o tal e qual ele é e sempre foi ou como querem que ele seja. Trata-se de algo mais profundo. O budismo pode ser visto como a revelação de que a humanidade conspira e sempre conspirou contra ela mesma. E fique desde logo claro, que não se trata de um texto acerca do budismo, mas de pensar um filme com elementos básicos do pensamento espiritual de Buda. Lembremos o filme que lemos aqui na semana passada. A génese da criação, antes mostrada através de um caso pessoal, é agora levada a cabo aqui através de um modo de pensar e de entender o mundo que é universal, no sentido em que é partilhado por muitos através do espaço e do tempo. As irmãs Wachowski, pegam nesse modo de entender o mundo, que é o budismo, e fazem uma criação onde mostram uma grande conspiração. Para aqueles que estão familiarizados com o caminho de Buda, e bem mais do que eu, o filme que aqui hoje vamos ler, Matrix, surge-lhes de imediato como uma visão desse modo de viver e entender o mundo aplicado a uma estrutura narrativa de ficção científica. O mundo onde usualmente habitamos, todos nós, que é resultado de uma consciência não desperta, o budismo chama Samsara (consciência comum ou consciência adormecida). A samsara é mundo da consciência que a maioria de nós habita. O mundo da consciência antes da libertação. E podemos aqui também lembrar a famosa alegoria da caverna, de Platão. Mas recorde-se a primeira conversa entre Neo e Morpheus, em que este último diz que o outro tem o olhar de quem espera que o que está acontecer seja um sonho e que a qualquer momento vá acordar, e acrescenta que isso não deixa de ser verdade. Não deixa de ser verdade, porque uma consciência adormecida é uma vida adormecida. Estar adormecido é viver na samsara (ou nas sombras da caverna de Platão). E, no filme, Matrix é metáfora de samsara. No início, Neo vive como que num sonho, na consciência comum, imerso na Samsara, na Matrix. Mas está ali, em frente de Morpheus, porque sente que há algo errado com o mundo, o conhecimento que ele tem, e que ainda não sabe, sempre esteve e está lá, dentro dele, à espera de se tornar consciente. Evidentemente, isto também nos lembra Platão. Mas aqui, com o budismo, a similaridade torna-se mais evidente. Como diz o budismo, todos nós somos Buda, mas a grande maioria não o sabe e nunca irá saber. Assim, Neo assume no filme a personificação daquele que quer descobrir o Buda que o habita, o Buda que é, apesar de haver também no filme alguma similaridade com a narrativa de Cristo, principalmente no uso da linguagem, “o escolhido”, “aquele que foi escolhido e que veio ao mundo para nos salvar.” Nessa primeira conversa, Morpheus diz “Matrix está em todo o lado, à nossa volta, aqui mesmo nesta sala. Você pode vê-la ao olhar pela janela, ao ligar a televisão ou ao ir para o trabalho. Quando vai à igreja, quando paga os impostos. É o mundo que puseram diante dos seus olhos para que não pudesse ver a verdade.” E a verdade, continua Morpheus, é que nós somos escravos. Nós nascemos numa prisão que não conseguimos nem ver, nem tocar. Uma prisão para a nossa mente. E esta é a própria definição de samsara. O mundo impede a consciência de se ver a si mesma. E o Matrix não pode ser explicado completamente ou mostrado, a não ser que se saia dele, que se alcance o despertar da consciência. É preciso alcançar o estado de buda – que em muitas tradições se chama Nirvana – para ver o Matrix. A mentira só pode ser vista quando já não estamos nela, quando estamos na verdade e a vimos de fora. É preciso alcançar o desabrochar (sanqyé) à imagem da flor de lótus, de modo a afastar a representação e ficarmos livres dos conceitos e das sensações. Aquilo que Morpheus está a dizer a Neo é que o Matrix só pode ser visto na sua totalidade através de uma experiência de cognição directa, quando a separação do sujeito-objecto desaparece. Porque a ignorância (avidya), em que todos estamos na samsara (matrix), consiste em confundir a realidade com a sua representação. Assim, quando Morpheus lhe dá a escolher entre as duas cápsulas, a vermelha, que o levará na viagem em direcção à verdade, ou a azul, que o deixará como está, a acordar na sua cama como se tudo não passasse de um sonho, Neo escolhe o caminho da verdade, o caminho do despertar da consciência, o caminho de Buda. E aquilo que primeiro choca Neo é precisamente o primeiro dos ensinamentos budistas: tudo é espaço (aliás, à imagem das novas teorias da física contemporânea, principalmente a Mecânica Quântica, que mostra que num átomo há muito mais vazio do que cheio). A própria palavra Bu (vacuidade) – da (compaixão), quer dizer abraçar o espaço com a consciência e com o coração. Há muito menos forma, aquilo que confere individualidade a nós e às coisas, do que espaço contínuo (sem forma). Mas nós somos parte desse espaço contínuo, nós somos vacuidade. Nada nos separa de nada. “Porque é que me doem os olhos?”, pergunta Neo, “porque nunca os usaste”, responde Morpheus. Na primeira vez que Neo luta, num treino com Morpheus, este diz-lhe: “Não penses que és rápido. Sê rápido.” E esta é a diferença fundamental para quem segue o caminho de Buda. Há que ultrapassar o pensar para ser. Há que ultrapassar os conceitos. E pouco depois diz: “Estou a tentar libertar a tua mente, Neo. Mas só posso mostrar-te a porta. És tu que a tens de atravessar.” É também isto, e apenas isto, que um mestre budista pode fazer por um discípulo, mostrar-lhe a porta, mostrar-lhe o caminho que ele tem de percorrer, mas é ele que tem de o fazer por si, sozinho. Apesar de se ter a mente liberta, diz Morpheus, quando estamos na Matrix (quando estamos na consciência comum, adormecida, diria um budista) as pessoas que nos rodeiam, que queremos libertar, são nossas inimigas, pois elas não estão preparadas para acordar. Porque é difícil largar a sensualidade do mundo. Há uma passagem central no filme, acerca disto. Cypher, que trai os companheiros, e a quem o agente Smith trata por senhor Reagan, quando no restaurante a jantar com o agente come um pedaço de bife diz: “Sei que este bife não existe. Sei que, quando o coloco na boca, a Matrix diz ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Depois de nove anos [com a consciência plena da realidade] sabe o que descobri? Que a ignorância é uma bênção.” Esta é uma passagem central do filme. Cypher / Regan [que nos remete para o Ronald Reagan, actor e presidente dos Estados unidos da América], está a trair os companheiros e a verdade em troca de um lugar ao sol na Matrix [ele pede para ser rico e importante, actor importante]. Isto é, ele renuncia à verdade para viver bem. Viver bem segundo os padrões Matrix ou, se preferirmos, os da sociedade onde vivemos. Viver bem segundo a sensualidade do mundo. E esta é também uma das dificuldades que os budistas apontam para a libertação. O mundo criou a ilusão de bem estar para tapar a verdade. E todos nós preferimos o bem estar, uma “vida boa”, regalada, ao sol, do que a verdade. E Cypher representa precisamente esta dificuldade, representa, no fundo, quase toda a humanidade. É como se a própria humanidade, ao criar o bem estar, a riqueza de uns sobre os outros, estivesse a conspirar contra si mesma, contra a libertação da própria humanidade. Neste caso, para o budismo, não são as máquinas que estão a criar uma realidade imaginária (como no filme), de modo a que os humanos não vejam a verdade, mas os humanos eles mesmos. A riqueza e o ideia de progresso são a armas que a humanidade usa contra a libertação de si mesma. Veja-se o que a respeito disto escreve o professor e pensador Paulo Borges, no seu livro O Coração da Vida (Edições Mahatma, 2ª Edição, pp. 26-7): “Surgiu assim com o Iluminismo, a ideia do ‘progresso’, entendido como a emancipação da humanidade, pelo trabalho, das necessidades do mundo natural e da subordinação da natureza, por via da ciência e da tecnologia, aos fins hedonistas, utilitários e materialistas da civilização. O resultado da crença fanática neste tipo de progresso, que se converteu num novo mito e na nova religião laica e globalizada, foram as sucessivas revoluções industriais, a superstição e o novo obscurantismo do crescimento económico infinito num planeta com recursos finitos, a devastação dos recursos naturais, a destruição massiva da biodiversidade e da diversidade cultural, a destruição, a industrialização e sofrimento da vida animal, a poluição e o lixo industrial, o aquecimento global e as mudanças climáticas, a sociedade obsessivamente mobilizada para o trabalho, produção, consumo e desperdício, com níveis de stress, ansiedade e depressão cada vez maiores.” E como não ver aqui nestas palavras o filme Matrix! Não apenas na sua base budista, mas também na sua base futurista e de ficção científica, de um mundo arruinado, destruído. De facto, os maiores adversários a qualquer tese budista são a ideia de progresso e o bem estar, que quase sempre andam de mão dada. E ao vermos para onde caminha esta ideia de progresso, bem se pode dizer que se trata de uma teoria da conspiração contra a humanidade. Quando Neo vai à Matrix pela primeira vez desde que viu a verdade, faz uma pergunta fundamental para o budismo: [depois de passar por um restaurante onde antes costumava jantar] “Tenho memórias da minha vida… E nunca aconteceram. O que é que isso significa?” E é a Trinity [Carrie-Anne Moss] que lhe responde: “Que a Matrix não pode dizer-te que tu és.” Ou seja, o mundo onde usualmente vivemos não pode dizer quem eu sou. Eu mesmo não posso dizer quem sou. Eu mesmo não existo, porque o “Eu” não existe. E é este o ponto de partida do budismo, a não existência do eu. Pois, como vimos anteriormente, há uma continuidade entre espaço e forma, entre vacuidade e todas as coisas. A nossa memória individual, singular, que nos confere a identidade, que nos permite dizer “eu, Paulo José”, que liga a criança que fui à pessoa de cinquenta e três anos que sou hoje, não passa de uma memória da samsara, uma memória de quem não vê a totalidade, the big picture, como se diz em inglês. Estamos convencidos de que somos quem somos, porque a memória que temos é uma memória que não corresponde à verdade, mas ao mundo, à “samsara”. Há também uma passagem, quase no início do filme, que foca em outro dos aspectos fundamentais do budismo, o Karma. É quando Neo, ainda no escritório onde trabalhava, recebe um telefone de Morpheus, que lhe dá instruções para fugir dos agentes que o foram buscar. E, de repente, ele diz: “Porque é que isto está acontecer comigo? O que é que eu fiz? Não sou ninguém. Não fiz nada.” Para o budismo, esta é a forma usual de lidarmos com as coisas, estamos depostos naquilo a que se chama “consciência comum”, a pessoa acha sempre que não tem culpa de nada, que nada do que lhe está a acontecer tem a ver com algo que ele tenha feito anteriormente. A isto, o budismo chama Karma, que é o facto de todos nós estarmos em rede, que cada gesto influencia os outros gestos, como um pedra atirada ao lago, que irá produzir ondas, mas também afectar as ondas que os outros produziram com as suas próprias pedras. Tudo se interliga a tudo e tudo influencia tudo. Cada acção nossa influencia o nosso futuro e o dos outros, ainda que não nos seja de imediato perceptível ou não seja perceptível de todo. Matrix é um filme que parte do budismo para nos mostrar que o humano conspira contra o humano, ainda que no filme sejam as máquinas que protagonizam essa conspiração.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEpístolas [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o tempo em que escrevíamos cartas o próprio tempo não tinha a mesma velocidade nem urgência do dizer, dado que muitas funções do aparelho social se mantinham estanques e o espaço onírico de cada emissor se propagava pelo grafismo, que era a renda de um instante ali plasmado e que funcionava também como contemplação para o seu receptor. Era maravilhosa a correspondência! Desde Abelardo e Heloísa, a Mariana Alcoforado, a Rilke e Salomé, o exercício epistolar formou em si um estilo único e literário. Hoje sabemos que a palavra escrita nestes espaços era produtora de capacidade amorosa através do respeito que este tema inspirava. Nem sempre já sabemos o quão bom é receber, tal como desconhecemos a magnitude do efeito de uma palavra que desliza… o outro é tudo. É nele, e por ele, que corre a seiva da nossa inspiração, não sendo dado ao escrevente outro ponto de equilíbrio que mais que amplexo, deve estar atento ao fluxo dessa fonte próxima do êxito: o bem-dizer. Mas também a correspondência entre amigos é um factor a considerar pela proximidade cultural e ideológica e, com muito gosto, acabo de reler a de Maria Lamas a Eugénio Ferreira sempre com uma saudade qualquer: as pessoas estimavam-se e declaravam-no de forma civilizada, quase ritual, eram cúmplices, eram fraternas, claras no diálogo e extraordinariamente bem educadas. Ficamos repletos de admiração. Repensamos a relação entre as pessoas e não descobrimos nada de semelhante a esta retórica e onde ficou, afinal de contas, a tão designada comunicação que todos os dias queremos mais tecnicamente comunicante. Os pares estão paralíticos, os amigos dizem coisas… nós, balbuciamos, outros ouvem-se e querem ser escutados, e já outros fazem de conta que não se passa nada. Teclamos a desoras e não estamos presos, ou estamos, e nem disso nos damos conta… fazemos silêncios estranhos, quando falamos somos avaros nas benfazejas descrições. É tudo um desnorte que tendemos a solucionar este imbróglio pondo fim ao comunicado. Por outro lado, os temas abundam nas vidas estranhamente estranguladas por uma instabilidade social de arrasar – eles são isto e mais aquilo e o que vier. Todos sabem de tudo e todos nos querem fazer prova da sua sapiência inesperada pois que a esperada está algures, e sempre, adormecida nos seus silêncios face aos nossos: em suma, cada um procura tentar ver se consegue produzir mais saberes num curto espaço de tempo, pois que vão já como foguetes tresmalhados conseguir mais coisas para dizer o que ninguém sabe e assim dominar um espectro, que também, diga-se, ninguém está vivamente interessado em escutar, contemplar. E, caso a nossa persistência seja inabalável na busca da boa relação entre outros falantes, cruzamo-nos também com a sua obstinação em nada repararem, de modo que temos de converter os discursos em ataques inconsequentes, que aí alguém nos vai tomar por “bons”. — Bom, que isto da relação falante vai da fonética à gestual e não raro apanhamos grandes e descontrolados safanões. Depois ainda temos a risível correspondência Pessoana de se dirigir ao amor seu como uma brincadeira querida, o que me parece profundamente poético também, pois que está prenhe de ternura, coisas que nem todos sabem como transmitir, e as Cartas de Manuel Laranjeiro a Unamuno, trágicas, belas… Tudo o que faziam na fonte dava resultados assombrosos. E ali se debruçavam na sua valentia de espíritos livres tentando contornar a desdita de serem poucos, e não raro, até perseguidos por aqueles que nada sabiam de leitura e liam tudo ao contrário. Ou, pior, liam uma palavra e acrescentavam na sua inverosimilhança aquela que julgavam nas suas cabeças poder estar lá. A chamada finta dos tolos. A epistolografia foi prática reinante entre gentes admiráveis, também muito usada como prólogo, e temos as célebres «Epístolas», as cartas que os Apóstolos escreveram para nós e se reescreveram de tal ordem que podemos continuar profetizando. É nesta versão sempre alterada, melhorada, desconstruída/construída, que o corpo de uma ideia se pode fazer então a carne do que busca. “Sou um pássaro em fuga, vejo Deus e não sei quem é, e penso que é um número que empurra”. Mas quem em diálogo nos escreve tanto, não necessita de interlocutor como no caso da «Carta ao Pai». Kafka arrasa o patriarcado de uma só vez, de modo que elas podem ser a bomba atómica de um modelo deslaçado, incomunicado até então… destinam-se a deitar fora uma vinculação para um inferno qualquer que só a realidade da construção verbalizada pode fazer acontecer. Só mandando a missiva para fora de si esse postulado cessará. Não sei se assim aconteceu, mas era esta a intenção. E a carta a Lord Douglas, «De Profundis», que fez um homem desnudar-se diante do Universo de forma bela e trágica, uma conversão como não há! Estas coisas com ponto fixo são de facto deslumbrantes. Só os que falam para o todo, aquele tudo que é nada, se amarfanham em descrições de tal ordem malfazejas que preferimos o desditoso incómodo da mudez. Que Moisés era gago, e nem por isso deixou de ouvir bem aquelas coisas todas. Por isso acho que vou escrever uma carta, talvez a vós que aqui e agora se encontram, um por um, até cada um ser um ponto fixo desta memória, e caso não nos lembremos de mais nada ainda há as Epístolas de São Paulo aos Coríntios. «Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos e não tivesse amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine». Mas Maria Lamas deixou uma tão bela frase que em nada desmerece aquela e que está curiosamente na sua correspondência: “Muitos temporais têm passado por mim. Alguns tremendos. E deixaram ruínas. Mas tenho conseguido – posso dizê-lo sem receio de exagerar – renascer da minha própria angústia mais desejosa ainda de dar, dar tudo quanto em mim caiba, para a renovação do mundo.” Vou ver a caixa do correio, pode ser que tenham escrito também uma carta para mim. Eu acredito que haja ainda emissores desta altitude, e que ainda haverá em latitude quem os recepcione. Nem tudo se resume ao caixote do lixo do desaire das notícias: não há notícias, há apenas coisas que acontecem.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasNão dá mais [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esta vez foi o Bourdain. Sem que nada o previsse, decidiu fazer check out. Para nós, que assistimos à morte alheia do conforto do sofá, é incompreensível. Quase todos trocaríamos os nossos empregos das nove às seis para fazer o que ele fazia: viajar pelo mundo, conhecer pessoas e comidas diferentes e falar sobre essas experiências. Aparentemente, ele tinha concretizado – pelo menos profissionalmente – o sonho que move a maior parte de nós e ao qual muito raramente logramos chegar. Não sei da história clínica do Bourdain. Não interessa. Um tipo para pôr fim à vida não precisa de história clínica. Esta só serve para prover uma explicação mais convincente – havendo antecedentes – para algo que em si já comporta a sua própria explicação: não dá mais. A morte voluntária é a derradeira das saídas. O caminho que se toma quando nenhum outro parece fazer sentido. E quanto a isto, o mundo divide-se em dois. Há aqueles que percebem ou tentam perceber este acto tão radical e esses, de algum modo, já sentiram o peso dessa sombra, mesmo que de muito longe. E há os outros, que munidos de uma camada extra de resistência ou de certa forma imunes ao canto desta sereia, não encontram justificação para a escolha de Bourdain. A diferença entre uns e outros é que os primeiros não podem regressar ao estado de perplexidade dos segundos, enquanto que estes, a qualquer momento, podem vir a compreender os primeiros. A nossa peculiar constituição assenta num pilar inequívoco: desde que nos conhecemos que estamos destinados a tomar conta de nós. Como se cada um se levasse a si próprio ao colo em direcção ao futuro. Este tomar conta de si próprio não implica que se façam sempre as melhores escolhas, implica apenas que a vida tem uma estrutura temporal e que o sujeito navega dentro dessa estrutura por via das decisões que toma. Das mais simples – como refugiar-se do sol em dias de calor – até às mais sofisticadas – escolher uma profissão e traçar planos para que essa escolha se cumpra. A desistência é, ela própria, uma escolha. Por muitas escolhas que façamos e por muito acertadas que estas pareçam ser, podemos ficar sempre aquém do sentido mínimo exigível para continuarmos por cá. Por muito que façamos e por muito escudados que nos encontremos pelos nossos sucessos e pelas nossas conquistas, podemos encontrar-nos expostos a uma dor de tal magnitude que nenhuma carapaça lhe é impermeável. Essa dor, tenhamo-la perfilhado ou descoberto, faz ninho no coração e fala-nos ao ouvido. Exige de nós uma atenção que não estamos em condições de lhe recusar. Como o cavalheiro de que Eça fala algures, interpela-nos travando-nos pelo braço. É essa dor que podemos carregar vida fora como um segredo ou como uma medalha. Podemos fazer tudo para minorar os seus efeitos ou podemos entregar-nos a ela. Ou, como humanos que somos, uns dias uma coisa, uns dias outra. Mas um dia, depois de muito lutar, depois de muito fingir que nada se passa, encontramo-nos frente a frente com ela e, nesse dia, decidimos que não lhe daremos um segundo mais de vitória. Levamo-la pela mão, sorrimos o sorriso dos resolutos e atiramo-nos ribanceira abaixo. Para os que ficam, para os que nos amam e não compreendem esta decisão, percebam que mais não era possível, que fizemos o que estava ao nosso alcance, que a nossa maior tristeza é abandonar a festa muito mais cedo do que gostaríamos. Mas não dava mais.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDecisão I [dropcap style=’circle’] A [/dropcap] partir de determinada altura, deixamos de ter aniversários. Fazemos anos todos os dias. Ficámos, de algum modo, à espera. O que era para nós um projecto vital pode ficar hipotecado. Não tanto relativamente à promessa que temos com a vida, seja nós a fazê-la, seja a vida a fazê-la a nós. Mais relativamente ao meio que escolhemos para ser quem somos. Há muita gente que não terá tido essa possibilidade. Mas eu conheço muita gente que teve. Há alturas em que parece que ficamos desavindos com amigos. Sem sabermos bem por quê. Acontece. A resposta imediata de parte a parte resolve a situação. Não ficam ressentimentos. Voltamos a estar como se não houvessem mal entendidos. Os entusiasmos passados lentamente se tornam cruzes que temos de carregar. Todas as nossas decisões tomadas de ânimo leve ou difíceis abrem horizontes temporais que podem ser de longo prazo. Mesmo que achemos que foram acertadas no momento da escolha, a partir de determinada altura na vida, pensamos o que teria sido se não as tivéssemos tomado. Podemos pensar que não havia alternativa, mas o resultado que é esta vida, a única que temos, parece, se não, negativo, pelo menos difícil. O modo de vermos as coisas pode ter sido o do ultimato. A decisão podia ter parecido inevitável. Mas pensamos sempre se não poderíamos ter esperado mais um dia, se não poderíamos ter visto “melhor” as consequências das nossas acções: do sim e do não. De algum modo, parece que podemos ter cedido a tentações: a do prazer a que dissemos sim e à da fuga ao sofrimento a que dissemos não. Sabermos, ainda assim, se não foi uma decisão motivada por princípios “patológicos” como Kant lhes chamava: por um lado, a cedência à promessa do prazer, por que nos decidimos como se não houvesse amanhã. Por outro, a fuga à ameaça de sofrimento como se só houvesse um amanhã sem alternativa, difícil de suportar. Em ambos os casos vemos a promessa como o que vai ficar para sempre. Tudo será como é agora no presente. Todo o prazer será bom e cada vez mais frequente e intenso. Por outro lado, todo o sofrimento é visto no presente como a ameaça não anulável de um futuro onde só haverá condenação sem redenção. A racionalidade promete a possibilidade de um escrúpulo da não cedência à primeira dificuldade ou facilidade. Mas como podemos percorrer as nossas vidas na fantasia da imaginação para ver o que efectivamente vai acontecer se ficarmos ou se formos, se partirmos ou insistirmos, se mudarmos ou ficarmos na mesma? É a racionalidade que transcende o prazer e o sofrimento, a promessa e a ameaça, a abertura possível a uma escolha que vai contra todo o prazer e tolera todo o sofrimento, que anula o vigor de promessas e ameaças como futuros aparentes e falsos? E esta elucubração sobre a possibilidade da racionalidade aparece por quê? Pode ela modificar o passado ou antecipar boas resoluções para o futuro? Posso eu ficar sossegado ao ver em retrospectiva as decisões passadas como boas decisões e que tudo estaria pior se tivesse optado pela outra alternativa? E no futuro, poderei eu decidir fora do âmbito do prazer ou do sofrimento e perceber que as coisas já acabaram e eu não sabia ou ainda não acabaram e eu também não sei? Nenhum sossego vem, contudo. Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação. Em qualquer dos casos, há alturas em que achamos que todas as nossas decisões tomaram o curso errado. Mas a aparência de resolução desta possibilidade cai por terra, quando se multiplicam as decisões no âmbito de todas as frentes da vida. Tudo é inquietação, porque achamos que somos o resultado da única alternativa possível. As coisas que fazemos por prazer admitem a abstenção. As que não fazemos por sofrimento admitem a motivação. Só podemos ter uma vida e com ela há uma possibilidade infinita de vida que corre paralela a esta vida. Mas é só na nossa imaginação. Viver todas as vidas de todos os amores possíveis, viver em todos os países que vivemos, ter todos os trabalhos que gostaríamos ter tido, viver todas as aventuras possíveis. E, contudo, só há isto que podemos viver. Mesmo que nos multipliquemos não seremos artistas, sacerdotes, amantes ou lá o que pudemos ter sido e ser. Amamos muitas coisas na realidade e na imaginação, mas haverá um único verdadeiro amor? Porque achamos que é um único o verdadeiro amor e que é o amor a motivação intrínseca para sermos quem somos. Há amores infelizes e amores felizes, amores que dão prazer e outros que são duríssimos. Há assim as pessoas das nossas vidas e as relações que com elas temos e as actividade a que nos dedicamos e que nos definem. Mas que seremos sem essas pessoas todas? O que seremos sem as atividades que são as nossas vidas? O que seremos sem conteúdos? Posso ser sem biografia? Posso ser sem o conteúdo dos dias como se fosse uma tábua rasa de tudo sem nada? E poderíamos viver na indecisão? A não decisão tem consequências também. A angústia invalida até o horizonte em que as possibilidades de decisão ocorrem.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasAvenida Vasco da Gama [dropcap style=’circle’] I [/dropcap] naugurada às 5 e meia da tarde de 20 de Maio de 1898, quatrocentos anos depois do dia da chegada a Calicute da primeira armada portuguesa à Índia, a Avenida Vasco da Gama fora planeada pelo então Director das Obras Públicas, Eng. Augusto Abreu Nunes. Encontra-se no sopé do Monte da Guia e tem 32.500 m², tornando-se o segundo jardim público de Macau e a primeira ampla avenida da cidade. Em alameda, com um comprimento na sua maior extensão de 500 metros e largura média de 65 metros, situa-se entre a Estrada da Flora e a da Vitória e desde a Calçada do Gaio até ao Quartel da Flora. Abreu Nunes quando a descreve no início do seu texto prolonga-a, “… a NE. da cidade, na encosta dos outeiros da Guia e da Flora, entre a estrada da Flora e a da Victoria, estendendo-se desde a Calçada do Gaio até à Rampa da Inveja, que passa junta ao jardim do Palácio de Verão do Governador da Província. (…) É dividida no sentido longitudinal por muitos renques de árvores vulgarmente denominadas de S. José (Ficus chlorocarpas) que, apesar de recentemente plantadas, produzem já um efeito muito agradável e que quando se tornarem frondosas formarão extensas abóbadas de folhagem transformando aquele local num retiro fresco e aprazível. Do lado do Norte termina a Avenida por um pitoresco jardim com a forma circular cujo diâmetro é de 58 m sendo torneado pela rua central da Avenida. Ao centro do jardim eleva-se um elegante monumento de mármore, levantado pelo Leal Senado em 1864 para comemorar a vitória que em 1622 os portugueses alcançaram contra os holandeses que pretendiam tomar a cidade.” Como dá para perceber por estas palavras do Eng. Abreu Nunes, a avenida termina na Praça de Vitória, mas agora é a data do Monumento que não está em sintonia com a referida pela História. Quartel da Flora Partindo do Palácio da Flora, residência de Verão do Governador, após atravessada a Rampa da Inveja apresenta-se, no extremo Norte do Campo dos Arrependidos, o edifício do Quartel da Flora. Ainda não representado no mapa de 1838, aparece referenciado em 30 de Março de 1882 quando para aí se mudou a 3ª Companhia da Guarda Policial e em 1896, no Quartel da Flora estava instalado o Corpo da Polícia de Macau. Entrando pela Praça da Vitória, inaugurada a 26 de Março de 1871, tal como o monumento ao centro colocado, “no mesmo jardim, entre o monumento e a rua que o torneia, com o centro na continuação do eixo da Avenida, acha-se implantado um vistoso lago de granito, tendo ao centro uma peça monumental de ferro formada de diferentes bacias de onde se desprende a água que nelas é lançada por meio de um tudo central. Quatro peixes, que ficam num plano inferior, lançam pela boca outros tantos jactos de água. Sobre a bacia superior, três garças simulam gozar aquela agradável frescura rematando assim este gracioso conjunto [o Padre Manuel Teixeira adita, <esta peça encontra-se agora no Jardim da Flora e as garças desapareceram>]. O lago é cercado por uma cadeia de ferro presa a doze pequenas colunatas colocadas nos ângulos de um polígono que o circunscreve sendo ela, a seu turno, cercada por canteiros de flores dispostos segundo uma coroa circular. Simétricos com o lago e em disposição análoga possui o jardim ainda um fontenário e dois elegantes caramanchões; é muito arborizado e, quando as árvores se desenvolverem, deve tornar-se aquele recinto de uma frescura agradabilíssima”, descrição do Eng. Abreu Nunes. <Este campo [dos Arrependidos, local onde os holandeses se encontravam e se mostraram indecisos e vacilantes (arrependidos) quando os dois tiros de canhão, calculados pelo Padre Rho e disparados da inacabada Fortaleza do Monte, fizeram estourar o seu barco da pólvora em frente da Praia de Cacilhas], ora transformado numa deliciosa Avenida e plantada de tenras árvores, já esteve regado de sangue…>, assim refere um jovem em 1898 n’ O Provir. Após descrever o lago, “no lado oposto está um fontanário também de ferro colocado simetricamente com o lago e em cada lado dele há um copo de metal preso por uma corrente”. Descrição da Alameda À Praça da Vitória chega a Avenida Vasco da Gama, cujos limites, a Leste tem a Estrada da Vitória e no outro lado, a Estrada da Flora, mais tarde chamada Rua Sidónio Pais. Colocados longitudinalmente na alameda uma fila de bancos de madeira e alguns renques de árvores de S. José. A cruzar a então longa Avenida Vasco da Gama duas ruas perpendiculares a ligar as estradas laterais, sendo uma próxima da Praça da Vitória, que deve ser a então Rampa da Vitória e a outra, aproximadamente a meio, a fazer a ligação da Estrada do Cemitério com a Estrada da Guia. Nesse pequeno troço, para o lado Leste, entre a Avenida Vasco da Gama e a Estrada da Vitória, aparece já um largo, onde se pretende colocar o busto do navegador. “Contíguo a este largo e do lado da estrada da Victoria procede-se actualmente à construção de um coreto para música, ao centro de um pequeno jardim, sendo este jardim fechado por duas rampas circulares d’ acesso da avenida para a estrada da Victoria que devem produzir um lindo efeito. Do lado da estrada da Flora, é a avenida cercada por sólidos muros de alvenaria e possui diversas escadas e rampas de acesso”, segundo Abreu Nunes. Inauguração da Avenida A cerimónia da inauguração da Avenida, realizada a 20 de Maio de 1898, ocorre no largo, ao lado do coreto que ficará ainda pronto em 1898, onde se projecta erigir o monumento com o busto do navegador português. O Independente de 22 de Maio de 1898 relata, “A acta do lançamento da primeira pedra, depois de assinada, foi encerrada num cofre de bronze, juntamente com uma colecção de estampilhas e bilhetes-postais do centenário, umas provas do Jornal Único (jornal feito para a comemoração), um exemplar do Echo Macaense e outro de O Independente. O cofre foi depois metido num bloco de pedra, onde assentaria o monumento a construir”. O busto de Vasco da Gama encontra-se ainda em forma de projecto, apresentado com um desenho no Jornal Único, diferente do que virá a ser realizado pelo escultor Tomás da Costa e só inaugurado a 31 de Janeiro de 1911. Abreu Nunes descreve-o em 1898: “Ao centro proximamente da avenida, no ponto onde esta cruza com uma rua transversal que parte da estrada da Flora, existe um largo com a forma poligonal onde se projecta elevar um elegante monumento a Vasco da Gama. Este monumento, representado na 1.ª vista [do Jornal Único], é construído por dois corpos de mármore sobrepostos encimados pelo busto fundido em bronze do grande Navegador; o todo eleva-se sobre uma escadaria de granito de forma hexagonal. Na superfície do corpo inferior de mármore serão colocadas passagens moldadas em bronze alusivas à saída de Lisboa da frota Vasco da Gama que em 1498 descobriu o caminho marítimo da Índia e à sua chegada a Calicut. No corpo superior serão aplicadas, em bronze também, de um lado as armas reais portuguesas e do outro, uma inscrição lembrando a época em que foi levantado o monumento.”
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasFranguinho no churrasco 03/05/18 Há gente que sabe aproveitar todas as oportunidades para se mostrar inconveniente. Como aquele padre que em todos os enterros improvisava em torno de um tema que só ele considerava fascinante: a história do ataúde, desde os sumérios até hoje. Como o presidente do Sporting, que se julga o criador do Jurássico Parque; como Hércules, que desflorou numa noite as 50 filhas de Téspio, sem que nenhuma delas tenha gozado; como o chato que apareceu na Feira do Livro e que me exigia a oferta de um livro em memória de uma bebedeira acontecida há trinta anos, o mesmo tempo há que não o via. Escrevo esta crónica depois de o ter tido de aturar meia hora até que o mandei às favas. E aproveito o incómodo para contar como esta feira do livro de Lisboa me entristeceu pelo excessivo número de stands e de promoções onde se “liquidam” livros – de um euro a cinco. Excelente para o leitor que sou, pois com 50 euros compro uma dúzia de livros de arromba, mas deprimente como sintoma do que se passa na área dos livros. Dia 31 fiz a apresentação de um livro de Carlos Alberto Machado, Puta de Filosofia. Um senhor policial com feroz incidência política e onde, sobretudo, se cria uma personagem, coisa mais rara do que se crê. Foi porém descoroçoador constatar – sabendo que o Carlos, como responsável pela Companhia das Ilhas, já editou mais de cem autores, e soma como autor inúmeros livros, entre os quais uma colectânea de poesia na Assírio e Alvim com excelente fortunata crítica – que ele veio da ilha do Pico, onde vive, para a Guilherme Cossoul para lançar o seu livro face a 7 pessoas presentes na sala, sendo que duas lá aterraram porque me queriam ver. Há algo que está realmente doentio na esfera da literatura e da sua recepção. Depois, a explosão de pequenas editoras com tiragens diminutas é simultaneamente salutar e um sinal de tribalização preocupante. A cidade está dividida, o meio literário está pulverizado, as leituras andam dispersas. Cada um fica com os seus e uma perspectiva geral afunda-se. Contaram-me que ia para guilhotina a biografia de Alexandre O’Neill da Maria Antónia Oliveira, editada pela Don Quixote. Espero que seja falso. Seria outro péssimo sintoma. Se nem já o O`Neill atrai leitores apetece deitar a toalha ao chão. O que é facto é que os média ajudam este estado das coisas: uma má comédia, um mau filme, uma má exposição de pintura, despertam sempre a atenção da imprensa. Um livro quase nunca. Quem deu conta da nova edição de poemas de Carl Sandburg, com versões de Vasco Gato a juntarem-se às de O’Neill da livraria-editora Flâneur? Como é que ainda não esgotou? Quem topou a edição do belíssimo texto de Paul Auster, Espaços em Branco, com uma boa tradução de Maria da Conceição Sendas, da (não) edições? Foram devidamente celebrados os últimos livros de Alberto Pimenta, na Pianola, uma figura absolutamente central em quarenta anos de experimentalismo literário e um pensador sobre literatura com poucos émulos à altura em Portugal? Já se falou sobre a tão “extravagante” como bela aventura editorial da Livros de Bordo, da Maria João Belchior, uma editora devotada à divulgação da cultura do Oriente? Vá lá, saiu uma referência no Diário de Notícias. Já nem se pede que se leia Wenceslau de Moraes e O Bon-Odori em Tokushima, que há meio século estava esgotado, experimente-se a História dos Mongóis aos Quais Chamamos Tártaros, de Carpini. A cultura definitivamente só é encarada como divertimento. É o franguinho no churrasco no reino do comissariado político. 04/05/18 A propósito, o O’Neill, este esteve sempre mais próximo das safadezas de Dada que da propensão oracular de algum Surrealismo, e fazia do riso uma arma com que desmontava as ilusões da teleologia poética. O seu é um riso que afirma, ou, antes, que desactiva pela afirmação uma energia reactiva, pelo que também não hesita em explorar todas as ambivalências, mesmo quando se articulam de forma desconstrutora. Peguemos numa das suas facécias mais conhecidas: O GRILO O grilo não só de ouvido eu cri-qu´ria sabê-lo não só de gaiola cati vá-lo mas dáctilo grafá-lo copiar seu abc de pobre o poema começa por ser “um achado tipográfico” que desenha meia gaiola – a outra metade desenha-o a imaginação do leitor. Depois traslada a natureza para a linguagem pela metamorfose aliterante do vocábulo «grilo» em «grafá-lo». Segue-se que, no próprio coração do texto/gaiola, o poema em vez de falar da linguagem do grilo, encarna-a: cri-qu´ria-a. Isto é, inclusive quando parece retirar à poesia a ganga romântica, dessublimando-a, o poema acaba por cumprir um dos desideratos românticos: nomear as coisas que se amam com a linguagem das coisas que se ama. E temos, à vez, riso, experimentalismo, ludismo… mas também, a contrapêlo: celebração e elegia. Só há uma forma de agirmos em vez de sermos agidos pela cultura que nos condiciona as virtualidades da deliberação: é apoderarmo-nos o mais profundamente de todas as suas florações até que, pela comparação e o diferimento, possamos potenciar uma distância crítica; visto não haver quaisquer hipóteses de nos ser devolvida a idade da inocência, a subtracção agramatical.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e Ideias«As recordações ajudam a esquecer» Cervantes, Lisboa, 14 Maio [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]squeço com demasiada facilidade. Se a poeira pouco importa, algumas migalhas dos dias mereciam repousar na conserva da memória. Para digerir mais tarde. Foi um dia forrado a urgências e agitação, que não lembro, embora me tenham até impedido este exercício diarístico. Podia ter nevado que o esqueceria de igual modo. No fim da tarde dou comigo sentado em mesa posta perante plateia, como em segunda tremenda adolescência, tremendo. Que desejei eu para merecer estar ali na companhia de Luis García Montero, do seu tradutor, Nuno Júdice, do pintor Juan Vida, e de Chus Visor, desmesurado editor? As capas negras da colecção Visor (50 anos, mais de 2000 títulos de poesia) escondiam a potência do desejo, claro. Júdice despertou apetites adolescentes com prosa inesperada, sim. García Montero iluminou longas tardes na Andaluzia onde aprendi sinuosidades do coração, pois. E creio que chegámos a ele por Lorca e Alberti, seus companheiros, talvez meus, se me atrevo. Mas o encontro devo-o por completo ao versado em desejo, Javier [Rioyo], que orienta a conversa exemplarmente, despida de formalidades, aberta às ondas dos que se fazem presentes e podem afirmar, contar, lembrar. Alegria, como laranjas acabadas de colher, eis tudo. Em voo, que parte de 1982 e percorre nove livros até 2017, com «À Porta Fechada», a antologia apresenta bem este labor que faz do quotidiano superfície, uma pele, na aparência transparente, que esconde/revela as convulsões que são a sua matéria, a sua carne. «Em lembrança/ do seu assombroso odor a sobrevivência,/ quero atravessar a casa/ e despir-me às escuras,/ sem incomodar,/ sem acender sequer as luzes do espelho,/ para não me perguntar/ de que serve um oásis,/ se o coração conhece os desertos/ e sabe que o esperam/ como pegadas antigas que já vão à frente.» (de «Nocturno»). As escolhas de Nuno desenham um percurso de maturidade que nos põe a andar, com o autor, no fio da navalha e de costas para o futuro, como mandam os clássicos. Uma antologia assim, que propõe distintos caminhos torna-se lanterna. Os versos com os quais o poeta foi experimentando o tempo, o natural, a cidade, a memória e a palavra ajudaram-me de imediato a andar sobre estes dias movediços. Não que seja a função, mas sucedeu. Apanhemos os ossos do cadáver do tempo nas ondas desfeitas. Senti-me um pouco menos estrangeiro da minha intimidade. Terei aprendido a lição? «Estrangeiro na própria intimidade,/ não conhecem o meu nome/ nem as margens da plenitude,/ nem o cadáver do tempo escondido nas ondas./ Mas entendem a forma dos meus passos/ na areia que cai,/ se confundo o relógio com o deserto/ ou vigio a casa tal como ao horizonte,/ e na minha taça de dúvidas cabe o mundo,/ e no valor encontro cobardia,/ nos olhos a noite com a sua luz/ e o coração da criança/ numa alma de antigas corrupções.» Também acontece mundo e até política, essa arte de saber construir casas que nos abriguem, dúvidas onde caibam o mundo, e desejos que poderão sempre afundar-se. De «Meia estação»: «Contra o meu corpo,/ o seu passado e as suas razões,/ a história devolve-me/ o repto de viver/ como numa segunda adolescência.// Volto a temer aquilo que desejo,/ outro luxo encantado nesta parte/ de minhas horas tardias. Não preciso do mundo/ que discute e ama e transborda/ com as suas regras alheias/ no andar de baixo.// Quero a minha residência, embora a casa/ seja uma árvore doente. Aqui estão a memória/ de ter sido, os anos de anseios,/ a chuva do caminho em cada livro/ que ainda guardo e a janela/ para aquela cidade que só existe/ dobrada com a minha roupa.» Falo mais do que devia, como no verso que dá título à crónica, roubado ao poema que rompe todas as regras e sobre quase até ao corte, rompendo as regras, para sussurrar «nos unen mis recuerdos y sus ojos cerrados.» Na sessão, García Montero teve gesto de comovente generosidade, ao ler belíssimo ensaio sobre as afinidades que encontrava na poesia do seu tradutor. Outra lição que te fico a dever, Javier. Somos vizinhos da cidade que existe nas dobras. Mymosa, Lisboa, 15 Maio Recebo a mesa (quase) completa da noite anterior em visita de cortesia e amizade. Encontro-os cansados de tanta cultura e património e passeio, levo-os à sala de estar para assistir em directo à barbárie: em Alcochete anunciavam o desmando com fragmentos de imagens. Tentávamos a todo o custo trazer a conversa para poetas, leituras, antologias possíveis e impossíveis, comentários soltos, mas era impossível. Foi chegando gente, como se o plenário voltasse a ter assim, de Moçambique, de Macau, aqui do lado, mas era impossível. Estávamos em plena peça de absurdo, Ubu era imperador e desinteressante, usava barba e gritava às riscas. Museu Bordalo Pinheiro, Mercado Santa Clara, Lisboa, 18 Maio Corrida entre lado e outro para apresentações falhadas. O Museu sentiu-se incomodado com a opinião da apaixonada, Isabel [Castanheira], no seu «Una Piccola Storia d’Amore». Sou capaz de perceber, quando se troca carne por papéis, tendemos a perder noção do sangue. Mas não me caiu bem a deselegância de convidar e depois pedir desculpa por isso, em público. Aprendi a estimar mais quem coleciona sabendo do que quem pensa sem arriscar. Logo a seguir, o que parecia mal-entendido modernaço – convocar lançamento para a hora de jantar – reveliu-se arrogância de senhores para quem a criatividade se faz meio de fortuna. Era mesmo ali, no meio do nada, fosse hora ou sítio, que «O Sono Desliza Perfumado», em torno da publicidade ilustrada, do Jorge [Silva] devia ser apresentado. Como se não bastasse, ainda tivemos que ouvir o histérico dono do microfone a tentar correr com quem estava em lugar nenhum. Saudade dos pianistas de bordel. José, Lisboa, 21 Maio Deveria escrever hospytal de tantas vezes te visito? De qualquer modo, preparo-me com Garcia Montero, e atente-se no fulgurante título, «A Ausência é uma Forma do Inverno»: «assim dói uma noite,/ com esse mesmo inverno de quando tu me faltas,/ com essa mesma neve que me deixou em branco,/ pois de tudo me esqueço/ se tenho de aprender a recordar-te.» Horta Seca, Lisboa, 22 Maio Na minha parede pobre brilham traços de negro, morse de expansiva alegria, uma mulher de braços levantados. Júlio Pomar (1926-2018) entrou em mim pelos livros, como tantas outros, oriundos do Círculo de Leitores, iluminando textos de José Cardoso Pires, que, não fora a minha inépcia, poderia ter sido abysmado. Temos para um século de carnes e superfícies por desvendar. Não consegui ir, também por insanável melancolia, ao novo mausoléu oficial dos sem-basílica, o Teatro Thalia. (Quem o baptizou de mausoléu foi o saudoso Diogo Lopes, que, após assinar a recuperação, logo o inaugurou nessa triste função de forma do inverno, tendo sido depois seguido pelo vanguardista, Manel Reis.) Horta Seca, Lisboa, 23 Maio Desmonto em ápice inglório os originais irregulares (exemplo algures na página) da Cláudia R. Sampaio, a que demos, trocando mensagens e por causa de maiúsculas espontâneas, o título de «NÃO ESTAVA A GRITAR». Para mim, a pintura da Cláudia levanta sempre a voz, mas a das plantas e das flores, um jardim bonsai de ervas daninhas e iluminuras e anjos. E seres, dos que se soltam das palavras. E de nós. A jardineira faz selfies, ora ruivas, ora com palavras, mas que precisa sempre do enquadramento vegetal. Diz-nos que muito crescer tendo nós como epicentro da horta: asas, olhos, pétalas, fuste, cabelos, seios, coração, mesmo que seja «coração prefácio à espera de ser escrito».
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAnimais Nocturnos, de Tom Ford – A Génese da Criação [dropcap style≠‘circle’]J[/dropcap]á escrevi aqui acerca de um filme de Tom Ford, “A Single Man”, e hoje vou escrever acerca do segundo e mais recente filme dele “Animais Nocturnos” (Nocturnal Animals, 2016). Aquilo que me importa salientar nesta leitura é o aspecto formal do filme e de que modo essa formalidade toca um aspecto essencial da criação literária. Em “Animais Nocturnos” há duas narrativas distintas: a narrativa do filme, ele mesmo, e a narrativa do livro que a protagonista do filme (Amy Adams) vai lendo, que se chama precisamente “Animais Nocturnos” e é dedicado à protagonista, Susan Morrow, que no filme vai lendo e nos permite acompanhar a sua leitura por imagens. Inicialmente, depois da primeira vez que as cenas do livro passam, não se entende a ligação entre as duas narrativas do filme. Mas voltemos um pouco atrás. O livro é um manuscrito que foi enviado pelo ex-marido da protagonista e que será editado em breve. Susan é uma bem sucedida galerista de arte, casada com o homem que conheceu quando se separou do escritor que agora lhe envia o livro. O marido da protagonista, esse, viajou para Nova Iorque a trabalho, disse, e ela interrompe a leitura, algo perturbada pela violência da acção que está a ler e telefona ao marido para saber se chegou bem. Dá-se conta de que ele está acompanhado por uma mulher. Desliga o telefone e retorna à leitura do manuscrito. Lê até que, na narrativa, o protagonista juntamente com a polícia encontra a mulher e a filha mortas. O manuscrito chega às mãos de Susan no momento em que o seu casamento parece estar no fim e conta-nos a história da família Hastings – pai, mãe e filha adolescente – a viajar de carro à noite pelo Texas em direcção ao local onde vão passar as suas férias. A meio do caminho são interrompidos na viagem por um grupo de marginais, que os tiram da estrada. Põe a mulher e a filha no carro deles e, no outro, no carro da família, um dos marginais obriga o pai a conduzir. Não é de todo por acaso que a mulher deste homem tem algumas semelhanças físicas com a protagonista do filme. De facto, de algum modo Amy Adams faz lembrar Isla Fisher (Laura Hastings, a mulher do pai de família). De algum modo. O filme passa para a protagonista, que interrompe a leitura e começa a lembrar o tempo passado com o autor do livro. E em flashback passamos a ver a história de Edward Sheffield e de Susan Morrow. O actor que faz de Sheffield é o mesmo que faz de protagonista do livro: Jake Gyllenhaal. Mas aqui ainda não se vê a ligação entre as duas narrativas, pois sentimos como natural que o protagonista do livro se identifique o seu autor. O filme passa agora a dividir-se entre o flashback – a história de amor entre Sheffield e Morrow, e a tensão familiar de Morrow com a mãe – e a narrativa do livro. Só a meio do filme se começa a perceber a ligação entre as duas narrativas, embora ainda não claramente. Susan confessa à sua secretária pessoal que era apaixonada pelo seu ex-marido, mas não acreditava nele como escritor e o trocou pelo actual marido de modo brutal. O momento decisivo, de modo a entendermos a ligação entre as duas narrativas, acontece a dois terços do filme, em flashback, quando Susan acaba de ler um manuscrito de Edward (Sheffield), seu marido na altura, e este lhe pergunta o que é que ela pensa do texto, ao que ela responde: “Vais entender isto de modo errado, mas acho que deves escrever mais acerca de outras coisas do que de ti mesmo.” Ao que ele riposta que todo e qualquer escritor escreve acerca de si mesmo. E, de repente, percebemos que o livro que Susan está a ler já não é um livro sem nada a ver com a história do filme. Intuímos – pois ainda não podemos fazer nada mais do que intuir, ainda não há “prova” para afirmar – que a história do livro e a história do filme estão atadas uma à outra como um recém-nascido à mãe. Um pouco adiante ficamos a saber que Susan fez um aborto do filho de Edward, com o apoio do então amante e futuro marido. E vemos uma imagem de Edward à chuva em frente ao carro onde estão Susan e o seu amante, depois dela ter feito o aborto. E é aqui que se faz luz. Toda a narrativa é acerca do que aconteceu a esse homem. Melhor: do que esse homem sentiu com o que lhe aconteceu. Como ele mesmo dizia, todo o escritor escreve acerca de si mesmo, mas agora ele escreve acerca do que sentiu no que lhe aconteceu, transfigurando os acontecimentos. Edward escreve acerca do que lhe aconteceu, mas através do que sentiu e não através dos factos. “Eu devia ter impedido. Eu devia ter previsto que isso ia acontecer.” Diz o herói do livro, como se fosse Edward a dizer acerca do aborto de Susan e do fim dos eu casamento. No livro, a morte da mulher e da filha, pelos marginais, corresponde ao casamento desfeito e ao aborto da história do filme. Mas ao invés de contá-lo através da sua “insignificante” vida, da sua vida de todos os dias e de todas as pessoas, o escritor usa isso e amplifica para uma história e uma intensidade narrativa que mostra muito mais aquilo que sentiu do que se contasse a sua própria história. Pois o que está em causa aqui é que o humano habitua-se de tal modo ao que lhe acontece, por pior que seja, que mesmo que seja contado literalmente passa a não exercer efeito sobre o ouvinte (ou leitor). A morte de um filho, por muito trágico e absurdo que seja, se contado literalmente não exerce um abalo sísmico por parte do ouvinte, porque a morte do outro – a não ser que nos seja próxima – não causa tanta perturbação. Para que isso aconteça, para que o ouvinte ou o leitor sinta essa tragédia e esse absurdo, o escritor tem de inventar uma coisa nova: a morte a dois; o leitor tem de sentir que morre junto com a morte de outro. Morrer a dois, que é algo que não existe na vida – pois mesmo que duas pessoas morram lado a lado morrem sozinhas, cada uma delas, como bem se sabe -, passa a existir na narrativa do escritor. E este filme de Tom Ford mostra-nos isto claramente.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO ar do tempo [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onhecemo-lo por Feiticeiro no célebre filme americano de 1939; no entanto, a sua autoria é de L. Frank Baum e data de 1900 em romance, mas o certo é que ninguém mais ficou de fora no seu encantamento. O primeiro Oz foi surpreendente ( até pela técnica de filmagem da altura), havia a cor estranha dessas novas “poções” que iriam a partir dessa época transformar para sempre o nosso próprio imaginário. Diz a lenda que Oz é a terra das fadas situada num continente fictício, uma visão da «Utopia» de Moore: havia o cariz igualitário de harmonia ambiental como se caminhássemos ainda para uma Terra Prometida. Diz estar dividida em quatro e no centro existir a «Cidade de Esmeralda» uma espécie de Jerusalém Celeste. Curiosamente, toda esta geográfica descrição se encontra no meio de um deserto, um fértil reino rodeado de areias, até uma estranha rainha o transformar num chão mágico por causa de uma herança que o culto misógino a Oz usurpou: a herança da cidade era de uma princesa, Oz ma. Não fora toda a correspondente esfera onírica dos sonhos humanos, tão próximos, tão arquetipicamente iguais e nem sobrepúnhamos a esta descrição uma outra, que de forma cultural está em nós: a Cidade de Esmeralda, ou seja, a Jerusalém Celeste, Oz – Amos Oz – que por aqui vive às portas do deserto, que nela nasceu, que num “kibbutz” se fez neófito e extingue Klausner (nome da família de judeus ucranianos). O sonho socialista existe no primeiro romance de 1900 e marca uma parte emblemática da obra, só que a «Cidade de Esmeralda» há muito que existia e Oz apenas conquistou o reino de Pastoria, o que nos remete para o rei David no seu exercício de pastor, alinha a Aliança pelo varão e nunca mais se livrou do seu próprio encantamento. Amos Oz tem o peso de um mito que hoje ainda vive no deserto e mítico porque participou na «Guerra dos Seis Dias», coisas improváveis de terem sido bem sucedidas… vendo talvez um dedo mágico… mas a magia é inimiga do divino. Quem foi, quem é, e a que magia ascende? Onde começa cada princípio? Quem está dentro da Cidade diz que existe uma grande diferença que só os leigos não distinguem e quem não sabe é como quem não vê. Oz funda ainda o Movimento Pacifista para a solução dos dois Estados (talvez quatro) a divisão é quaternária, tudo acaba em períodos de quarentenas, tudo se define por quarenta coisas. Anos, meses, dias, situações. E de facto eram quatro os reinos iniciais. Hoje é sem dúvida o mais virtuoso e controverso escritor judeu, um cidadão activo e com a beleza varonil de um feiticeiro, inspira instabilidade e é acusado de traição ao Estado, ele não desgosta do epíteto: diz que um traidor tem um lado feliz, não gosta do seu pai nem da sua mãe. Havia um outro “mágico” na «Cidade de Esmeralda» que o inspirou, muito certamente, mas aqui já a conversão misógina estava no seu auge não havendo antídoto que resgatasse o género deposto “mulher, o que existe de semelhante entre nós dois?”. São tarefas extraordinárias e toda a retroactividade nos encaminha para uma qualquer coisa no centro do mundo do nosso sistema solar interno que não cessa de construir um Templo onde cada um em alma e pensamento possa morar. A cidade é de Esmeralda, cintila, é um umbigo, um oásis, um dorso de sonhos, de lutas, para decantar o anátema do velho feiticeiro. Mas a parábola da casa voadora é quase uma pintura de Chagall… um roteiro de grandes promessas de aterragem, Judy Garland era a princesa Oz ma transfigurada. Aqueles caminhos, o Homem de Lata, O Leão cobarde, o Palhaço, e por fim a recepção no centro da consciência: esta parte acho-a detestável, assim, como dizer às crianças que não há Pai Natal, ou mesmo ter dito a Moisés que tinha alucinações. A Sarça Ardente existe, e só assim é possível um reino futuro que não seja combusto. Creio que as pedras não ardam e muito menos os diamantes, pois que a fornalha que é apanágio dos infernos se escoa na dimensão mineral da Cidade, e um Deus, por fim, esteja à nossa espera, para continuarmos a viagem. Oz levar-te-ei no longo caminho das coisas transfiguradas. Não acabamos bem os diálogos pois que eles não são para findar, depois de se chegar à conclusão acerca da Cidade, e tendo a magia findado, a máscara não existe, nós, não sabemos colocar o ferro, a lata, o cobre, numa «Cidade de Esmeralda». Nem andaremos puxados a energia fóssil, e mais uma vez creio no carro de ouro do Profeta Elias e no arrebatamento das fontes para a libertação total. E em cada instante olho para Chagall. Ele também é de Oz. Talvez por analogia me venha aquele verso de Pessoa. mas já sonhada se desvirtua, só de pensá-la cansou pensar: sob os palmares à luz da lua sente-se o frio de haver luar. Ah, nesta terra também, também, o mal não cessa não dura o bem. …………………………… MAS é ali, ali, que a vida é jovem e o amor sorri.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasAinda o Jornal Único [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara sair a 20 de Maio de 1898, o Jornal Único, quando chega o dia de comemorar o Quarto Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia, apresenta apenas as duas primeiras páginas do jornal. A sua publicação vai sendo adiada e os primeiros exemplares saem da tipografia provavelmente a 23 de Maio, sendo distribuídos à medida que as fotografias ficam prontas e coladas. Os primeiros a receber são as entidades da cidade, depois os órgãos de comunicação, que a 5 de Junho já o têm e só mais tarde, a 15 de Junho é que terá sido posto à venda, custando ele cinco patacas. De capa dura, a apresentação da publicação bilingue, em português e mandarim, é óptima e Dr. José Gomes da Silva tem um papel de vulto na elaboração desse jornal com 55 páginas. “A qualidade da impressão, feita na tipografia de N. T. Fernandes e Filhos e Noronha e Ca., graças à competência de Secundino de Noronha e Jorge Fernandes, era notória. A capa, um desenho aguarelado feito por António Rodrigues Belo, foi litografada e impressa, bem como a ante-capa da autoria dos senhores Fernandes e Noronha. Além de uma interessante colaboração na parte escrita, apresenta onze fotografias de Macau realizadas por Carlos Cabral e coladas no papel do jornal. Consta haver alguns exemplares desse Jornal Único com fotografias diferentes às estabelecidas. O Director das Obras Públicas, Eng. Augusto César d’ Abreu Nunes, a quem se devia a ideia e construção da Avenida Vasco da Gama, escreve no Jornal Único sobre essa avenida referindo, “veio preencher uma grande lacuna, que havia na cidade formada de ruas estreitas e de muitos becos sem saída, dando um desafogo aos habitantes de Macau.” Na publicação colaboraram também com artigos entre outros Wenceslau de Moraes e Camilo Pessanha, que apresenta o poema “San Gabriel”, o nome da nau que transportara Vasco da Gama à Índia. Publicação em Lisboa O Porvir de 25 de Junho de 1898 refere ter recebido a magnífica revista ilustrada de Portugal e do estrangeiro, Occidente cujo número 697 trata sobre as comemorações do centenário. Vem com 16 páginas e impresso a cores, tendo na parte ilustrada as seguintes gravuras: Paço real d’ Évora, onde El-Rei D. Manuel contratou com Vasco da Gama a sua primeira viagem à Índia; Sines, local onde segundo a tradição, existiu a casa em que nasceu Vasco da Gama; Fortaleza de Sines; Igreja de Nossa Senhora das Sallas, vista exterior e interior; Vidigueira, jazigo dos Gamas: Túmulo onde estão os restos mortais de Vasco da Gama, no Mosteiro dos Jerónimos; e um esplêndido retrato de Vasco da Gama, baseado sobre documentos de família e que representa o grande Almirante das Índias na idade em que ele empreendeu a sua primeira viagem à Índia, este retrato é uma verdadeira novidade. A parte literária compõe-se dos seguintes artigos: Chronica Occidental, por D. João da Câmara. O retrato de Vasco da Gama, por Brito Rebello; Ilha dos Mortos, por J.C.; Vasco da Gama e a Vidigueira, por A.C. Teixeira de Aragão; Exposição da Imprensa por Silva Pereira; etc. Um mês antes tinha O Porvir (jornal português de Hong Kong) recebido o Jornal Único e feito a sua apreciação dizendo, “Declara a redacção ter-se deleitado imensamente com a sua leitura e mais se deleitaria se “os srs. Pedro Nolasco e Horácio Poiares não destoassem do concerto colaboratório do jornal inserindo neste umas puerilidades impróprias dele, e as quais, apesar do brilhantismo das produções literárias dos outros colaboradores, e principalmente dos belos artigos do Sr. conselheiro Galhardo e do Revmo. Bispo D. José Xavier de Carvalho, muitos descoram o jornal, com o qual parece que os srs. Nolasco e Poiares quiseram brincar. Estimaríamos sumamente que o tivessem tomado mais a sério e que com algo mais sério tivessem contribuído para ele. (…) Podiam e deveriam ter empregado o seu tempo e a sua ilustração em assuntos de mais interesse e utilidade do que aqueles que preferiram, talvez irreflectidamente”. Ao Echo Macaense não agradou a apreciação feita pel’ O Porvir do artigo do Sr. Pedro Nolasco sobre patois macaense e do conto ‘pueril’ do Sr. Dr. Poiares. Fotógrafo profissional O Porvir acha as imagens publicadas no Jornal Único, pouco limpinhas vistas fotográficas. Tal se deve à comparação com as oferecidas ao jornal pelo talentoso e habilíssimo artista Joaquim António, distinto fotógrafo português estabelecido em Bangkok que, na sua passagem por Macau tirou uma série de esplêndidas fotografias instantâneas de alguns dos mais belos edifícios de Macau e dos pontos mais pitorescos da cidade. <Devemos, porém, declarar que se grande é o nosso prazer por tão apreciável mimo, grandessíssimo é o nosso dissabor por não vermos figurar esse trabalho do nosso distinto compatriota, no Jornal Único. Joaquim António, que, após muitos anos de ausência em Bangkok, veio passar alguns meses em Hong Kong e Macau, sua terra natal. Durante a sua permanência em Macau executou vários trabalhos fotográficos, que foram muito apreciados pelo então Governador de Macau Eduardo Galhardo, que lhe passou um atestado onde certifica que o Sr. Joaquim António, proprietário do The Charoen Krung Photographic Studio em Bangkok, português, natural de Macau, de passagem por esta cidade me prestou e à minha família os seus serviços como fotógrafo, ficando nós muito satisfeitos com a perfeição e nitidez dos seus trabalhos assim como com a modicidade da remuneração por ele exigida; obtendo também dele bastantes provas fotográficas de diversos monumentos, lugares e costumes de Siam e de Macau, que revelam o seu gosto e mérito artístico, pelo que o recomendo a todos os estrangeiros que visitarem o seu estabelecimento em Bangkok, e, especialmente aos meus compatriotas residentes ou em trânsito pela capital de Siam. Macau, 1 de Junho de 1898, assinado Eduardo Augusto Rodrigues Galhardo. “Apraz-me ainda registar que este nosso compatrício que tão desprotegido era quando residia em Macau, está hoje vivendo muito bem em Bangkok, onde encontra meios de vida e é muito apreciado, porque o Sr. António não é só fotógrafo, mas um bom desenhador, e como tal esteve há muitos anos para cá empregado nas Obras Públicas de Macau, tendo também acompanhado o Sr. Adolpho Loureiro nos estudos a que S. Exa. procedia sobre o assoreamento do porto de Macau”, n’ O Porvir de 18 de Junho. Dez dias antes de Joaquim António regressar para Bangkok, o que ocorreu no dia 22 de Junho, O Independente refere serem “raríssimos os casos de peste que se dão em Macau”. Na data da sua partida está já a cidade livre da epidemia, provavelmente pelas muitas preces dos chineses e dos católicos na Igreja de S. António a S. Sebastião, advogado contra a peste. “Podemos considerar, felizmente, de todo extinto este terrível flagelo, que trouxe por alguns meses sobressaltada esta cidade”. Termina o anual ciclo da peste, a poder estender-se a Julho, Agosto e iniciado em Fevereiro com o despertar da Natureza, quando se recomeça a ouvir à noite os insectos.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasLinguagem II Noite de inverno Georg Trakl [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando a neve dá na janela Longamente tocam os sinos. A mesa está pronta para muitos, E a casa está bem arrumada Alguns chegam à porta, Pelos caminhos sombrios da peregrinação. Dourada floresce a árvore das bênçãos, O suco fresco que vem da terra. Caminhantes entram em silêncio. O limiar petrifica a dor. Aí, reluzem num clarão puro Pão e vinho sobre a mesa[1] “A linguagem designa o tempo de uma noite de inverno. O que é este denominar […] Denominar não distribui títulos. Não emprega palavras. Chama à palavra. Chamar traz o que é chamado por si a uma proximidade. De igual modo, esta aproximação não torna o que é chamado disponível numa região mais próxima do presente, para aí o acolher. O Chamamento chama, de facto.Ele traz à proximidade o que é chamado. […] Ele traz o presente do que não tinha sido chamado até então a uma proximidade. Mas enquanto o chamamento convoca, dirige-se para o que foi chamado para o trazer. Para onde? Até ao longe, onde o que é chamado permanece ainda mas na sua ausência.“ (18) As formulações de Heidegger, em “A linguagem (Die Sprache)”, não são as mais fácil e directamente inteligíveis. Não são óbvias. A linguagem não é expressão, mas é chamamento. A linguagem não é a actividade que sincroniza eventos, espectadores, relatores e ouvintes, como no exemplo de Quine a respeito do arunta, uma língua desconhecida, com a palavra “gavagai”. Quando um coelho é avisado a passar, um nativo pronuncia a palavra. O antropólogo que não conhece a língua, reage ao coelho que passa: pode ser: “comida”, “caça”, e para além de outras hipóteses: “parte de coelho”, “coelho” ou “coelhidade”. A linguagem transforma o que é visto como facto ocorrido num acontecimento de sentido. Há significado. Não, factos. A referência é o que é em vista do sentido interpretativo. O horizonte da linguagem é a atmosfera universal do humano. Cada um de nós não é apenas uma biografia num tempo de esperança de vida. Somos cada um de nós à escala mundial. Melhor, existimos à escala universal implicados em todas as gerações passadas e futuras, que constituem cada humano. Este é o nosso “espaço lógico”. Por outro lado, a linguagem não se limita a expressar o que efectivamente acontece na realidade, no modo indicativo, seja passado, presente ou futuro. O que é, ontologicamente, não é apenas o que está disponível, se apresenta e é visto. O que não é, ontologicamente, não é o que não aparece não está visto, nunca aparece. O que aparentemente não aparece pode surtir um efeito anónimo. Pode ser uma reacção traumática a um acontecimento passado que é apagado da memória cognitiva mas que nos trabalha a partir do seu interior, nos faz ser quem fomos. Pode ser todos os sonhos destruídos que nunca desaparecem mas nos fazem viver uma vida com a possiblidade perdida da primeira vez de todas as primeiras vezes ou como dizem os românticos um amor infeliz. A linguagem fala a partir do horizonte do universal humano a constituir a sua abertura na tentativa de obter inteligibilidade e dar sentido ao que acontece. O modo da língua falar não é o de fazer a reportagem do indicativo, do que é representável, do que efectivamente acontece. Não é a expressão representativa da realidade interior daquilo para o que nos dá, das ideias que temos, dos sentimentos que vemos nascer em nós. Nem apenas da realidade exterior, quando a referimos meteorologicamente ou para saber a que dia da semana estamos. A linguagem fala para além dos factos, refere sentidos. O seu elemento é a vida. O seu modo é o condicional, o irreal do que poderia ter sido e não foi e do que não poderia ter acontecido e foi mesmo o que aconteceu. O nosso elemento transcende o indicativo e projecta-se para o futuro em que pode ser, quando acontecer o que gostaríamos que acontecesse, quando a vida será como gostaríamos que fosse. Ou então momento quando estivermos aliviados da existência. É também uma possibilidade projectada no futuro. Obs.: Denominar, dar nomes, designer, chamar. Trazer à presença, afastar da presença, não falar ou falar sobre alguém ou alguma coisa pode corresponder ao querer ou não querer lembrar-se de alguém. A revogação, o chamar o passado, a provocação, a chamada no presente, lembrar para o futuro, o que se chama do passado e se apresenta como o que virá a ser. A lógica da expressão é completamente diferente porque está alicerçada numa lógica de causalidade e portanto de presença ou então na relação entre interior daqui para aí ou exterior de lá para cá, quando o que se passa é no próprio comportamento da acção: faz favor? O que pretende? O pedido, a súplica, a interrogação, o comando. Nem sequer se dá quando há relações pragmáticas quando temos de ir a sítios tratar de assuntos particulares com alguém. A linguagem também não é reflexiva nem se reduz à palavra, embora a palavra seja a sua condição inalienável. Nem o que diz é o indicativo mas pode ser o possível, a ficção, a biografia e o futuro a haver mas no interior das veleidades. A linguagem pode dizer o impossível, o que não se aguenta, ressuscita mortos com quem nos faz conviver mais intensa e dramaticamente do que com qualquer pessoa viva: amores abortados, vidas interrompidas. No chamamento, há um convite. O convite convida as coisas a aproximarem-se dos seres humanos e a serem compreendidas no seu sentido como coisas. Não como factos. A queda da neve, o anoitecer, o inverno não são factos. Esses acontecimentos estão impreganados pela própria linguagem. São dizíveis no que são meteorologicamente, na hora do dia e na estação do ano. Mas existem num acontecimento conjuntamente com o ser humano no horizonte universal onde acontecem como sentidos. “A linguagem do poema traz as pessoas sob o céu que escurece ao anoitecer. O som do sino à noite traz os mortais enquanto mortais diante do divino. Casa e mesa ligam os mortais à terra. […] Este fazer e deixar permanecer da reunião faz das coisas as coisas. […] Na nomeação, estas coisas são chamadas na sua essência.” (20) Nós existimos num horizonte estrutural que Heidegger identifica como o espaço intermédio, o meio intermédio. Não nos encontramos como sujeitos à janela do mundo a espreitar ou a assistir ao que acontece. Não somos polarizados pelo mundo como objecto. Antes, sujeito e objecto existem na relação intrínseca entre um e outro. O sentido da relação entre um sujeito e um objecto é cognitivo ou teórico. Mas este não é o único. Também a teoria nos implica a nós como sujeitos e ao mundo e às outras pessoas num espaço interior. “O meio de duas coisas é designado pela língua: o espaço intermédio o espaço “entre” (“das Zwischen”). A língua latina diz: “inter”. Corresponde-lhe o alemão “unter”. A interioridade de mundo e coisa não é uma fusão. A interioridade reina apenas, onde o interior, mundo e coisa, puramente se separam e permanecem separados. No meio de dois, no entre do mundo e coisa, no seu “inter”, neste “entre” reina a fissura.“ (25). Mas é a dor “que se metamorfoseia em pedra não se endureceu no limiar para se fixar nela. A dor como dor manifesta-se e apresenta-se duradoura no limiar. […] A dor é a inserção da fissura. A inserção é o limiar. Ela suporta o entre, o meio entre os dois que se separaram. A dor insere a fissura da diferença. A dor é a própria diferença.” (24) A dor não é um fenómeno subjectivo. Pode acontecer no corpo ou na alma. A dor é uma realidade não anulável. Sente-se numa das suas dimensões de tal sorte que faz implodir e filtra toda a vida, sem apelo nem agravo. Custa. Dói, isto é, faz doer. Nos caminhos da peregrinação, encontramo-nos todos. Ou na via sacra da teologia da cruz ou nos caminhos contemporâneos que tornaram o planeta terra à quase ausência de distância. Nenhum animal peregrina. Só o ser humano se pode deslocar na forma de uma peregrinação, de uma viagem, até sem se deslocar. O limiar da porta é o portal de entrada para uma outra dimensão. Chega-se a casa onde se é acolhido. Mas só se chega desta maneira a casa com a percepção da dificuldade da dor que é fazer o caminho. Ou antes, o caminho do tempo usa o humano para o seu próprio acontecer. Mesmo sem nunca sairmos do mesmo local, sem sairmos do próprio corpo, o tempo faz o seu percurso em nós mesmos. Há silêncio, porque o que acontece não tem referente. O pão e o vinho sobre a mesa não são comida e bebida, não são meros alimentos. Estão sobre a mesa de uma casa bem arrumada. O encontro entre o peregrino e a mesa permitem um chamamento. Não apenas do passado, da infância, das refeições em família, nem da importância da refeição na vida de uma família, no quotidiano e nos dias de festa. O que é invocado é convocado da ausência: é o próprio clarão puro. É o brilho do que aí acontece que alegoricamente metamorfoseia simplesmente tudo para fora do âmbito estrito da realidade factual e para a dimensão do significado. [1] Winterabend Wenn der Schnee ans Fenster fällt, Lang die Abendglocke läutet, Vielen ist der Tisch bereitet Und das Haus ist wohlbestellt. Mancher auf der Wanderschaft Kommt ans Tor auf dunklen Pfaden. Golden blüht der Baum der Gnaden Aus der Erde kühlem Saft. Wanderer tritt still herein; Schmerz versteinerte die Schwelle. Da erglänzt in reiner Helle Auf dem Tische Brot und Wein. TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 58.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDos glúteos: recomendações [dropcapstyle=’circle’] S [/dropcap] ou de uma geração que ainda não tinha descoberto os glúteos. E que ainda não lia nos dicionários: Os glúteos formam a parte mais apreciada pelos homens. Não me lembro de Ginsberg a gabar os glúteos, embora tenha belos poemas de elogio ao caralho, ao qual também podemos classificar como artefacto, se o entendermos como um objecto desenvolvido a partir de uma produção mecânica e para uma finalidade específica. Posto o repetitivo e maquinal adestramento das mãos convocado pelo membro masculino podemos encostá-lo à ordem dos objectos de mais uso, ainda que uma vez por outra seja o plinto para um modo relacional. Cada palavra nova tem o seu Bartolomeu Dias, aquele que a descobriu e potenciou e socializou, ao proferir: Que belos glúteos! Em Moçambique há um herói para o primeiro tiro, aquele que inaugurou os actos de guerrilha da Frelimo. Quem será o cowboy que enrolou primeiro a língua nos dentes, para soltar a sentença: Àqueles glúteos, mordia-os todos! Se soubesse quem era oferecia-lhe um cd dos Penicos de Prata. O que é certo é que foi, com certeza, contraindo os glúteos (ou relaxando-os?) que António Costa confidenciou aos militantes: «Estamos onde sempre estivemos e estaremos exactamente onde estamos!». Melhor e mais substancial era difícil porque ao vazio da ideia acrescentou-se o glúteo. Tomada pelo glúteo foi igualmente Ana Catarina Mendes, que alçada sobre os seus três empinados músculos, arrancou aplausos da plateia com o inaudito: «vamos ganhar as próximas eleições legislativas porque António Costa merece continuar a ser primeiro-ministro e porque os portugueses merecem António Costa!». Bem, o vácuo a pedal nos glúteos talvez dê uma câmara-de-ar! Está garantida uma bicicleta para cada português na campanha! Sempre adorei gente com imaginação. Faz-me lembrar quando me contratam por causa das minhas supostas qualidades e depois afinal só querem o pior de mim, só me restando observar: está bem visto! Está bem visto que com tanta imaginação o Costa terá a merecida maioria absoluta, porque o povo mais não pede que um pedestal para pousar o glúteo! Há glúteos do catatau. Infelizmente não conheço todos. Só há uma condição em que os glúteos são inservis: em estátua. Contava-me o meu amigo João de Deus (onde foi ele buscar aquela ideia que depositou no livro A Paixão Segundo João de Deus, de que «o ouro é o minete da alma!»?) que uma filha do Imperador Augusto se entregava toda a noite ao desfrute das vergas em pedra das estátuas do templo de Minerva. Membros inapelavelmente erectos – que pensam vocês! – onde os seres carenciados podem ter a sua jangada. Já os glúteos de uma estátua não favorecem manobras similares. É uma pena, visto que politicamente têm outro potencial. Eu já decidi, depois de me finar terei um gesto politicamente correcto e doarei os meus glúteos à ciência. Esperem, passou agora por mim um glúteo que me fez sonhar. Tenho de ir aos lavabos. A sarapitola, vocês conhecem? 29/05/18 Dia cinco, na próxima terça, no Bar Irreal, em Lisboa terá lugar o lançamento do primeiro volume da minha obra poética, Oitenta Flechas para Atrair a Cotovia 1, que reúne dois glúteos, perdão, dois livros empinados: Harpo Marx na Jaula dos Leões, de 2013, e Os Testamentos Apátridas e Outros Cordéis sem Alma, de 2017. Este último livro foi um livro feliz que escrito de um jacto, como só é autorizado fazermos depois de trinta anos de rodagem, e poucas alterações conheceu, para além da habitual dança dos adjectivos. É dele o poema que aqui deixo, Talvez um gonzo: Na específica área da gandulagem/ progredi pouco além do que seja próprio a um zingarelho./ Não consegui ser firme a aceitar que o mal/ é o látego do ar./ O desnorte deste pífio desempenho não é só meu./ Na Idade Média, os monges compuseram os Cantos/ Gregorianos acreditando ser a música cantada por anjos/ e santos, no Céu./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo.// Desconfio que à consciência de que herdamos o mundo/ como o oco de um lugar mudo/ que a palavra escava ou preenche com pão d’água/ se segue que confundimos esta acção com o silêncio, /erro tão grotesco/ como julgarmos que é a espuma/ da escuna o que faz mover a quilha.// Estamos desde que nascemos a sós/ com as nossas inconfessáveis inabilidades/ e a tal ponto assustados que amiúde dizemos amo-te/ quando se abriu no dique a fissura./ Algo se perdeu no caminho,/ talvez um gonzo.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasTempo nenhum Mymosa, Lisboa, 3 Maio [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]esito e já mudei umas vezes este princípio. Deve ou não convidar-se a morte para a mesa, para as nossas mesas? O flamenco parece-me resolvê-lo melhor que o fado, mas vou em busca de confirmação. Encontro com manos – sim, insisto nessa forma irritante de nos assinalarmos próximos –, distendido no terreno que vamos amanhando vale a rega, a paciência, e espera do fruto. Pessanha janta connosco e afinámo-nos na vibração que desconjunta o mundo. Mãe pode baralhar o cima e o baixo fazendo-se pano de fundo, que o colo se faz mundo. Pai pode rasgar degraus que dificilmente subirás, sem antes os descer. Carlos [Morais José] vem das pirâmides a falar do céu e da canoa que comunica. António [de Castro Caeiro] domesticou o tempo e trá-lo a fazer as necessidades na Bica. Ele apanha os dejectos (luminosos), não se aflijam. Mas discutimos pela razão, para mim simples, de que a tradição mística interrompe. Reconheço, mais ainda debatendo em supremo desequilíbrio na Calçada da Bica Grande, a enorme intuição de que devemos caminhar de costas para o futuro. A cada instante, mudando a resposta ao que formos sendo, índio, mas cobói, cavalo, mas comboio, bala, mas seta. E eis que acontece o acontecer, sempre nem nunca: kairos. Deus na sua forma incandescente de ser todos os tempos ou nenhum, diz ao ouvido, inscreve na carne, de um e não outro, poema que atira a narrativa para um nó (desfaz aí a História…). Princípio e fim, cima e baixo, longe e perto são coordenadas que na experiência do místico desfazem o sentido. Por instantes, a experiência mística ilumina o mundo ao realizar-nos. Logo nos apagamos: mártires. Provocação: ser, no tempo? Mymosa, Lisboa, 10 Maio Cada encontro com o José Alberto Marques, ainda que seja marcado pelo ritmo estúpido dos afazeres, transfigura-se em brincadeira de putos. Jardim infantil!, atiram os (bons) tolos. Não percas tempo. Uma mesa não pode ser apenas lugar de pousar papéis. Entornámos agora memórias de beijos, quentes nos lábios mais quentes do surrealismo; uma repetição para afirmar traços entre a palavra e um texto; um recorte que tiras da cartola; o disparate enquanto o garfo amanha o peixe; a convicção de que o livrinho está feito, excepto o acrescento doido do momento; uma chamada para pedir o whiskey; aquele pacato regresso de comboio a casa depois da revolução, quando tudo ardia. Hoje Macau, 11 Maio Subidas e descidas na cidade, noite e dia, assim se fazem. Páginas de jornal dobram-se barcos, origamam-se aviões e isto. «A diferença é no modo de olhar. Uma diferença que está sempre a constituir-se, porque a passagem do tempo cria uma alteração convulsiva em cada instante: antecipa-o para o ver cair para o presente, e do presente, empurra-o para o passado. Cada instante é uma projecção do tempo na sua totalidade. O tempo é sempre o mesmo na sua duração, no trânsito e na sua passagem. E de um instante para o outro pode perceber-se a estranheza da passagem do tempo, inexorável, mas como se nada se passasse na realidade. É como se tudo fosse exactamente o mesmo e não conseguíssemos apurar a diferença. E na identidade absoluta da realidade a própria realidade desagrega-se na passagem, na alteração dentro da identidade, na estranheza de perceber que as coisas se alteram e é estranho perceber-se a alteração, quando tudo aparentemente se mantém na mesma.» E se for o tempo a mirar-nos, estamos capazes de o olhar, olhos nos olhos, ainda os não tenha? Fechar o tempo na sua totalidade é escolher a poesia. Portanto, a dedicatória é desafio: não és homem não és nada! Casa da Cultura, Setúbal, 11 Maio Luiz Fagundes Duarte enche uma sala cheia. Conta do Antero conhecido e desconhecido, lê Antero, interpreta Antero. O romântico quis combater. O progressista emendava para poupar trabalho ao tipógrafo. O poeta usava a poesia para provocar e para seduzir. O poeta foi o seu tempo com tal intensidade que é agora o nosso. Café Vitória, Porto, 12 Maio Uma sala de vidro para ouvir Júlio Machado Vaz, Rui Reininho e João Paulo Meneses tecer loas aos aforismos da Inês [Menezes]. Estes «Amores…» davam filmes. Agora que estão escritos, são convites a entrar na brincadeira. Muito calor e flores que se prolongaram noite dentro. Serralves, Porto, 13 Maio Experimento ir e logo me apetece ficar «No Tempo Todo». Até por acontecerem mesas, deuses antigos, heróis. Afinal como nas outras linguagens, apesar das vigilâncias académicas, a pintura possui ainda alguns casos-limite, inclassificáveis, que resistem aos alinhamentos onde as historiografias os tentam arrumar, aquietar. Álvaro Lapa, portanto. Grande leitor, as suas aproximações ao texto são do território da chama, do fascínio, no modo como o integra, na jogo cómico e lúdico com o pensamento até ao ponto em que as letras se desfazem em formas, passam a ser corpos apenas, seres que esvoaçam de quadro em quatro. No gesto, nas cores, no olhar, algo de primordial acontece. E convida-nos a mudar maneiras. Veja-se este (aqui na página, por gentileza da Fundação Serralves): « – Em que pensas? / – No tempo todo.» O texto surge singelamente como mais uma forma do negro, na sucessão das manchas. Equilíbrios e desequilíbrios que umas lâminas de cor ajudam a compor. O tempo fez aqui das suas, afectou a matéria, deu ar acabado ao que parecia inacabado. Rasga-se aqui uma janela na qual podemos ver que subidas e descidas, cabeças e montanha. A noite e uma conversa. Grande, grande exposição, que brilhará na noite mais obscura, graças ao saber de Miguel von Haffe Pérez. (Detalhe divertido, que o divertiria a ele, amante dos “materiais pobres”: um agrafo, no jargão museológico, passou a ser “elemento metálico”). Adega Sports Bar, Porto, 13 Maio Em boa companhia, vejo o Sporting soçobrar, desistir, sem chama. Aquele “frango” de Rui Patrício fica como o retrato da época na minha caderneta. Pinguim Café, Porto, 13 Maio «Quero risco, aventura, novidade.» Noite fria, meia dúzia de gatos-pingados sentiram na pele a voz marítima do João [Rios]. Sem solenidade falou do país, que é ele. «Conquistar é péssimo!» Neste dia tão particular, naquele sítio mítico, era dado início às comemorações oficial dos 25 anos da poesia de João Rios, que ainda não tinha feito as contas. Comissários oficiais: Mário Cesariny e Manuel António Pina (gatos).
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA vida vai ao cinema e o António Cabrita também [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos viajar por um livro muito especial. Um livro que parte de um personagem de cinema para levantar voo numas reflexão e diversão acerca do nosso contemporâneo, com os pólos no cinema em geral e João César Monteiro em particular, e arte e literatura em geral e Fernando Pessoa em particular. É assim como que um livro que vai ao cinema, com toda a confluência de artes que o cinema tem. E antes de entrarmos neste texto de António Cabrita, talvez até em todos os outros que ele escreveu, convém não trazer consigo a realidade. Deixemo-la à porta. Mas se a realidade não é para aqui chamada, também não é menos verdade que ela pode ver-se reflectida aqui. Não que o texto seja ou não um reflexo da realidade, mas que esta pode ver-se reflectida nele, se tentar espreitar. Assim, e para ser conforme a António Cabrita, que é prolixo de intertextualidades, diria mesmo que é um mestre nas intertextualidades, pois não usa outros textos para se mostrar, mas para mostrar o que está a fazer, também eu vou tentar aproximar-me de outros textos para melhor mostrar aquele que estou aqui a fazer. No seu célebre livro, Ou-Ou. Um Fragmento de Vida, a um dado momento Kierkegaard debate-se com uma tentativa de nos mostrar que o Don Juan de Mozart é a obra das obras, o clássico dos clássicos. Depois de várias páginas, reconhece que não pode apresentar prova e escreve: “Contudo, desisto de toda esta investigação. Está escrita apenas para apaixonados. E tal como uma criança com pouco se alegra, também assim acontece, como é sabido, que uma coisa amiúde muitíssimo estranha pode alegrar os apaixonados. É como uma calorosa disputa de amor sobre coisa nenhuma, e não deixa, contudo, de ter o seu valor – para os amantes.” (p. 94) Sem dúvida, também nós ao falarmos acerca deste texto de Cabrita, deparamo-nos com o mesmo paradoxo dos amantes: o mínimo gesto tem um valor absoluto, mas ninguém repara nele sem estar apaixonado. Um pouco mais adiante, Kierkegaard escreve aquilo que dará, agora sim, entrada à nossa leitura deste livro de António Cabrita: “Qualquer leitor que ache que brincar é uma maçada, não é obviamente cá dos meus, não lhe atribui qualquer significado e, contudo, aplica-se aqui como em toda a parte: as crianças parecidas brincam melhor.” (p. 95) Ora para Cabrita, brincar é tudo menos uma maçada. Podemos até ir mais longe e dizer que, para o autor, brincar é a verdadeira dimensão do humano. O humano aprende para poder brincar melhor. Mais: tudo no humano tem como finalidade um brincar melhor. Todo o esforço humano vai nesse sentido, mesmo que ele não se dê conta disso. Porque a brincar, o humano não só se descobre a si mesmo, como também se melhora a si mesmo. E não foi Fernando Pessoa quem melhor nos ensinou isto? Não é o jogo da heteronímia pessoana um enorme jogo que ele construiu para poder brincar melhor, para poder ser melhor, inventando outras crianças com quem brincar, porque as “crianças parecidas brincam melhor”? Pois e a verdade é que a raiz literária de Cabrita é Pessoa, ou pelo menos uma das raízes. E isto podemo-lo ver bem neste livro. Reparemos nisto: João César Monteiro faz de João de Deus um heterónimo seu – embora lhe chamem alter-ego – e Cabrita faz dos dois e dele mesmo heterónimos de si mesmo. Sim, porque em Cabrita – se não em todos nós – a memória é sempre heteronímica. Em Cabrita, tudo vale a pena se a brincadeira não for pequena. “Eu, João de Deus, um dos homens mais espertos da minha pessoa, estava entregue à paródia (…)” (p. 63) O jogo de Cabrita com Pessoa – crianças parecidas brincam melhor – começa logo no início e percorre o livro todo. Aliás, A Paixão de João de Deus começa com alguém a tocar realejo e a recitar o poema “Tabacaria”, de Fernando Pessoa. Mas leia-se, literalmente, como se inicia o livro: “Numa amolecida manhã de domingo de 2004, de malas já aviadas para o Báltico, flanava pela Baixa. Despedia-me dos lugares e murmúrios de meia vida; esquecido de ser lince, diluído no branco imponderável do Verão; sonâmbulo, sem pressa ou rumo. Desperta-me, algures, a repetida ladainha de um realejo. O Anacronismo levou-me até à esquina da Rua da Prata com a dos Retroseiros. Aí, um homem magro, meio encurvado, narigudo, de óculos escuros e rosto bexigoso, dava à manivela num realejo velho poisado sobre uma caixa de electricidade, ao mesmo tempo que, quase em surdina, recitava algo. Apurei o ouvido: era a Tabacaria, de Pessoa.” Daqui até cairmos num anúncio de jornal para tentar encontrar a rapariga suja que comia chocolates na “Tabacaria” de Pessoa, é uma estação de metro. O livro convida-nos a aceitar tratar-se de uma entrevista, ou do que resultou dela, a um personagem chamado João de Deus. E a primeira frase que este personagem diz, ainda antes do livro começar, ainda quando entrevistador e entrevistado estão em negociações, é uma citação de Fernando Pessoa: “Morrer é não ser visto.” Por conseguinte, a partir daqui, se aceitarmos brincar, vamos entrar num escorrega quase infinito pela contemporaneidade e as suas incongruências. O narrador a partir daqui é João de Deus / João César Monteiro / António Cabrita / Memórias de António Cabrita / Sombra Fantasmática de Fernando Pessoa. E a técnica preferencialmente utilizada é a da aglutinação frásica de mundos completamente distintos, que exige do leitor conhecimentos prévios vários, do mesmo modo que quando se vai brincar às Escondidas ou ao Amocha (Cá vai alho!) ou à Cabra Cega tem de se saber as regras do jogo. Aqui a regra é ter estado exposto à intempérie cultural do século XX, como por exemplo na cena entre o narrador e uma loura, ao balcão de uma tasca, em que ele, de modo a impressioná-la, vai antecipando as cenas do filme que passa na televisão, The Maltese Falcon (Relíquia Macabra, em Portugal, e O Falcão de Malta, no Brasil, que é como aparece no livro do Cabrita). Como é sabido, é um filme icónico de John Huston, com o Humphrey Bogart e a Laureen Bacall, que ainda não eram um casal, mas passaram a ser, durante anos e anos, até à morte de Bogart. E a célebre frase do filme, dita por Bacall, aparece escrita no livro: “Já sabes, se precisares de alguma coisa é só assobiares… sabes como se assobia? Põe-se assim os lábios e sopra-se…” O leitor não precisa de ter visto o filme, mas ganha em tê-lo visto, evidentemente. Assim como em relação ao compositor Robert Gerhard, bem menos conhecido do que o filme atrás mencionado. Ou em relação aos inúmeros livros, autores, quadros (estou a lembrar-me, por exemplo, da Ofélia, de John Everett Millais). Poder-se-á objectar com a célebre tautologia de que não é um livro para todos? É evidente que não! Mas quem é que quer escrever um livro para todos? Somente um deste dois: ou Deus ou um imbecil. Por outro lado, e de um modo mais modesto, poder-se-ia ainda perguntar se todas estas intertextualidades são necessárias. Mas então, para sermos honestos connosco e com a escrita, devemos também perguntar se o que um homem vive é necessário à escrita da sua biografia. Ora, o personagem de Cabrita viveu o século XX até ao tutano do que lhe foi possível – e é sabido que o tutano do século XX tem muitos outros séculos –, espremeu os limões do cinema, da literatura, da pintura e da música como pôde. E a vida dele não é possível de ser contada apartada disso. Um homem não é apenas aquilo que come e que bebe, é também aquilo que lê e que ouve. E cá temos outra vez o fantasma de Pessoa. Não percamos mais tempo com tautologias e adiantemos um exemplo daquele que é o recurso maior e mais característico da escrita de Cabrita: “Falta à miniatura japonesa a gordura que faz da picanha um menu e que entreabre o barroco ao infinito.” Ainda que esta frase nos chegue aqui fora de contexto, e independentemente de estar certa ou errada – como se houvesse certo ou errado numa brincadeira, a não ser tentar prolongá-la até ao infinito, até que nunca se volte a cair na hora da sesta –, veja-se os três mundos que nos abre: Haiku (a miniatura japonesa a que o autor se refere é essa forma poética); a gordura da picanha; barroco e infinito. Ou seja, passamos da arte à sensualidade da mesa e desta à estética (enquanto reflexão sobre a arte) e à filosofia. Uma só frase dá de comer a muita gente. É um festim. Fosse eu outro, e diria que é uma frase extremamente sinestésica. Uma frase cheia de sinestesia, que nos desperta todos os cinco sentido que temos, e mais alguns. Mas reparemos melhor nesta técnica, que não é “apenas” a junção de quatro realidades distintas (haiku, picanha, barroco e infinito). Para além da metáfora, que veste esta frase, cada um dos elementos deste quarteto aparecem ainda com os ornamentos da metonímia e da sinédoque. Por exemplo, o haiku, que nos mostra não apenas a si mesmo, mas também o bonsai e por arrasto todo o Japão; ou a gordura da picanha que nos leva para a América do Sul e para um churrasco, o calor das brasas e o barulho da gordura sobre o fogo; ou o Barroco, que nos leva para o passado e para a exuberância do detalhe, viagem que nos é imediatamente contrariada com a ideia de infinito, que aparece como que em forma de antítese. Assim, e numa mesma frase, pequena, vamos do Japão ao infinito, passando pela picanha, com uma pequena paragem na América do Sul e no barroco. E julgo que estamos aqui diante do que podemos chamar de tipicamente cabritiano: uma sinestesia metafísica. Ou, de um outro modo, muito mais cabritiano: o mundo de calções a cavalo numa trotineta, a descer para a praia com o Louvre, Hollywood e um quarteto de cordas no bolso, e a mascar pastilha elástica Gorila. Diz o narrador para a loiraça, sentado ao balcão da tasca: “O cinema é a vida e a vida sabe-se de cor.” Se antes nos aproximámos daquilo que é a arte de Cabrita, agora aproximamo-nos do que é o Leitmotiv deste livro. Do mesmo modo que podemos dizer que ler não é apenas ler, ler é viver, pois cada um de nós lê com o que põe na sua leitura, quer seja leituras anteriores, quer seja amores perdidos, braços partidos ou um filho morto, também o cinema não é apenas o que se vê, naquele momento em que se abrem as imagens diante dos olhos. No fundo, aquilo que perpassa por todo este livro de Cabrita é que o nosso ponto de vista existencial é hermenêutico, isto é, tudo chega até nós pela interpretação que fazemos. E tanto faz que seja através de um filme, como através de um livro, ou de um quadro, de uma pessoa ou de um grupo de pessoas. Nós estamos sempre a ler, a interpretar, a calcorrear o mundo e nós mesmos com pés de Hermes. O livro é absolutamente estonteante, repleto de episódios, a um mesmo momento divertidos e reflexivos, como o do hotel com o chinês Min Lau e a evocação de Genet, ou os sucessivos episódios de Porto-Sudão, onde se lê esta pequena passagem tão distante da pacata Lisboa: “Nesta vertigem, senti: a vida humana vale menos do que a de um cachorro e senti-me a perder a linguagem.” (p. 77) E, por falar em linguagem, aproveito a deixa para terminar com esta frase enigmática: “Se contar se fundisse com o que aconteceu seria proibitivo pois as retinas dos leitores seriam respigadas de cal viva.”
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO ar do tempo [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão sei o que aconteceu à minha geração e às gerações que lhe sucederam. Provavelmente fizemos más escolhas; não devíamos ter cursado filosofia, literatura ou belas-artes. Deveríamos ter optado por percursos convencionais e seguros. Direito, porventura; gestão, economia, ciências exactas. Merecemos decerto este pântano desconfortável do desemprego e da precariedade que nos obriga a cobiçar as migalhas alheias. Merecemos ter escolhido morar no centro de Lisboa ou do Porto – quando estes eram inseguros e insalubres – para agora sermos acossados pelos senhorios que nos receberam com as mesmas mãos untadas de ganância com que agora acenam à nossa saída forçada. Merecemos conduzir um tuk tuk para pagar parte da renda, servir copos à noite para pagar parte da comida, vender galos de Barcelo em cortiça para pagar parte do arranjo do carro. É a crise, diz-se. É a nossa inaptidão para sermos assertivos e empreendedores. O mundo é dos audazes. O mundo não tem carinho pelos que abrigam debaixo do cocuruto algum tipo de consciência moral. O mundo precisa de predadores. E se calhar também precisa de nós, os incautos, os mal-jeitosos, os sensíveis; pelo menos do nosso sangue para olear as engrenagens desta máquina insaciável. Para onde quer que olhe, vejo a derrota. As espinhas quebradas, os “joelhos vergados à condição de cera”, como diz o Vasco Gato. A tristeza perene que vestimos como um uniforme pela manhã para a remover apenas na companhia daqueles que amamos. Daqueles a quem nos podemos apresentar na nossa magnífica fragilidade. E assim andam quase todos aqueles que mais admiro. Sabemos que a arte, quase toda ela, não dá dinheiro. Que é muito difícil viver de direitos de autor ou da música, tirando fenómenos de popularidade – o que na poesia, convenhamos, é quase um oximoro. Sabemos que andamos cá a fazer o que gostamos, como nos dizem, e que quem corre por gosto não cansa. Mas deixem-me dizer-vos que já não temos forças para correr. Estamos subnutridos, cansados, desapontados. Estamos sem paciência para o vosso paternalismo de quem nos trata como dispositivos de distracção descartáveis. Estamos sem cu para a forma como encaram o nosso trabalho e o nosso talento, pelo modo desavergonhado como nos pedem uma borla para entreter aqueles a quem ordenham a carteira. Estamos pejados de cicatrizes. Não temos lombo para tanta vergastada. O que vocês não compreendem, por mais que jurem praticar o desporto de sofá da moda que é apoiar a cultura, é que há um preço a pagar pelo verso, pelo quadro, pela canção. E que pagamos esse preço desde que nos lembramos. E que esse preço passa muitas vezes por uma instabilidade vital de tal ordem que muito do conforto que vocês dão por garantido nas vossas vidas é apenas uma miragem a que nunca logramos chegar nas nossas. Porque não sabemos o que é isso da velocidade de cruzeiro, da moderação, da paciência do andar seguro. Somos instáveis, incertos, desesperados. Perdemos trabalhos, namoradas e namorados, dinheiro, oportunidades, anos de vida. Pagamos esse preço desde sempre, e pagamo-lo porque é o que o verso, o quadro ou a canção no-los exige. Mas dispensamos a dupla tributação que nos querem impor, essa míngua descarada com que avaliam o nosso suor, essa troça que fazem da nossa incapacidade de nos fazermos valer. Quero que se fodam os audazes, os empreendedores, os tubarões. A malta que dá emprego e “faz isto mexer”. Queremos ser os travões da vossa carruagem, os contrapesos da vossa ganância, aqueles que um dia vos farão descarrilar. Porque já há muito tempo que a velocidade disto tudo devia ser outra.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO comemorativo Jornal Único [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] ideia de editar um número único de um jornal, para comemorar o IV Centenário do Descobrimento do Caminho Marítimo para a Índia, surgira referida na reunião da comissão do dia 2 de Fevereiro de 1898. Estabeleceram-se diferentes subcomissões, sendo uma encarregada da direcção e publicação de um jornal comemorativo composta pelos senhores, António Joaquim Bastos, Conselheiro Artur Tamagnini da Mota Barbosa, Dr. José Gomes da Silva, Dr. Horácio Poiares, Capitão Eduardo Cirilo Lourenço, Pedro Nolasco da Silva, João Pereira Vasco e contando ainda com dois vultos da literatura portuguesa: Camilo Pessanha e Wenceslau de Moraes. Este último já não é professor do Liceu, apesar de ainda manter o cargo de imediato da Capitania de Macau, do qual será exonerado dezoito dias depois, em Junho, aspirando por incertezas de ir exercer funções de Cônsul em Kobe, no Japão. Pretende-se que esse Jornal Único seja publicado a 20 de Maio de 1898. A faltar vinte dias, o Echo Macaense de 1 de Maio refere que essa subcomissão “propôs que se eliminasse esse projectado jornal, por não terem aparecido até hoje artigos, a não ser um do Sr. Wenceslau Moraes e também porque as fotografias que o Sr. Carlos Cabral tirou de diversas localidades, para o mesmo jornal, custarão muito caro para serem zincografadas. Quinze dias depois, o mesmo jornal dá a notícia, “ao contrário do que resolvera anteriormente, a subcomissão encarregada desse jornal está trabalhando activamente para o dar à luz, ilustrado com fotografias, por serem estas menos custosas. Segundo nos consta, sairão apenas 50 exemplares no dia 20 do corrente e nos dias seguintes os restantes, à proporção que se for fazendo a tiragem das fotografias; consta-nos mais que cada exemplar virá a custar $2,5”. O Echo de 21 de Maio anuncia, “Espera-se que será posto à venda hoje, ou amanhã. Contará artigos, poesias, a viagem [de dez meses e onze dias] de Vasco da Gama [escrita por João Pereira Vasco para ser traduzida] em chinês, umas 10 fotografias das principais vistas de Macau, com as respectivas descrições, e, segundo se diz, um artigo em patois Macaense. Já O Independente do dia seguinte comenta, “O número único do jornal comemorativo, por deploráveis circunstâncias de força maior, não pôde sair nestes dias. Só estará pronto talvez amanhã”. Razão para o atraso Continuando n’ O Independente de 22 de Maio, “Colaboram neste jornal (Único) os srs. conselheiro Galhardo, Bispo de Macau, D. Ana Caldas, conselheiro Tamaguini Barbosa, A. C. Abreu Nunes, comendador António J. Basto, Dr. Camilo Pessanha [com o poema ‘San Gabriel’ escrito a 7 de Maio], António Talone da Costa e Silva, Dr. Horácio Poiares, Wenceslau de Moraes, Dr. José Gomes da Silva, Tenente do estado maior Eduardo Marques, Eduardo C. Lourenço, Mário B. de Lima, Pedro Nolasco da Silva, Abeillard Gomes da Silva, Domingos do Amaral, alferes J. L. Marques e João Pereira Vasco. As fotografias que ornamentam este jornal são: vistas da Praia Grande, do Leal Senado, do Farol da Guia, do Porto Interior, Pagode da Barra, Portas do Cerco, Sé, Gruta de Camões, Avenida Vasco da Gama e uma fotografia do projecto da sua estátua. Todas estas fotografias, que são as melhores que aqui temos visto, foram tiradas pelo distinto amador, Sr. Carlos Cabral. A capa, que é um primor, foi desenhada pelo Sr. Rodrigues Belo, imediato da canhoneira Liberal e a impressão do jornal feita sobre aguarelas. A composição e impressão são feitas nas tipografias dos srs. Secundino de Noronha e Ca. e N. F. Fernandes e Filhos. Dissemos, no nosso suplemento de terça-feira, que os prelos de Macau nunca produziram uma obra tão perfeita como deverá ser este número único, e de facto assim é, o que muito honra os srs. Noronha e Fernandes. Este número único deve ter umas cinquenta e quatro páginas”. A 4 de Junho de 1898, o jornal O Porvir, de Hong Kong, afirma que correm boatos de que o Jornal Único foi publicado depois da data prevista por vários artigos terem sido excluídos. Entre estes, um de Camilo Pessanha “em que este distintíssimo advogado estigmatiza o facto, ocorrido, não se sabe onde, de ter um advogado, depois de conseguir uma separação, recebido como honorário a honra da sua patrocinada”. Artigos de Horácio Poiares, Tamagnini Barbosa e João Vasco também teriam sido cortados, ainda segundo aquele periódico, como refere Daniel Pires. O Independente de 5 de Junho diz ser o Jornal Único um volume de 54 páginas com 11 fotografias de Carlos Cabral impresso nas tipografias dos srs. Fernandes e Noronha. “A qualidade da impressão feita na tipografia de N. T. Fernandes e Filhos e Noronha e C.a, graças à competência de Secundino de Noronha e Jorge Fernandes, é notória”. As folhas apresentam aguarelas com o característico chinês. A capa, um desenho devidamente aguarelado feito pelo Sr. 1.º Tenente da armada António Rodrigues Belo, é litografada e impressa, bem como a ante-capa, digna de especial menção, pelos srs. Fernandes e Noronha. O preço do jornal será de $5, que é o seu preço de custo, mas só a 15 de Junho é que poderá ser posto à venda. Três dias antes dessa data, O Independente a 12 de Junho aponta a demora na distribuição unicamente devido à negligência do fotógrafo, pois não tem dado prontas as vistas fotográficas. [De referir que cada exemplar era ilustrado com 11 fotografias, por serem estas menos custosas que se fossem zincografadas, tendo saído jornais com diferentes fotografias]. Diz ainda que os pedidos devem ser dirigidos ao Sr. João Albino Ribeiro Cabral, tesoureiro geral e a distribuição pelos colaboradores e membros da grande comissão foi já feita ontem. Aparece o Jornal Único completo a 11 de Junho de 1898. Da Guerra Hispano Americana ao fim da Peste Tal como O Independente, também o hebdomadário O Provir refere a guerra presentemente travada entre a Espanha e a América, “duelo tremendo, provocado por esta última, e que maiores simpatias atrai para a Hespanha, intrigada, provocada e afrontada por uma nação que se diz liberal, e que, à sombra da árvore da liberdade, procura espoliar a outra do que é seu, sem cuidar que com isso pode perturbar a paz universal, tão necessária para as conquistas do progresso e da civilização”. A Guerra Hispano-Americana ocorre de 25 de Abril a 12 de Agosto de 1898 e é devida à intervenção norte-americana nas guerras de independência, que sobretudo Cuba e as Filipinas travam com Espanha. Nas Filipinas, os espanhóis viriam a ser derrotados a 12 de Junho de 1898, tornando-se estas ilhas do Pacífico independentes, mas logo de seguida anexadas pelos americanos, que vieram para ajudar os nativos e assim estes continuaram na sua luta pela independência. Perdida a guerra em todas as frentes, a 12 de Agosto de 1898 teve a Espanha que ceder aos EUA as Filipinas, Porto Rico e Guam, tornando-se Cuba independente, mas sobre supervisão americana. Esta guerra custou à Hespanha para acima de dois mil milhões de pesetas, 39 barcos de guerra e um grande prejuízo no comércio colonial.
António Cabrita Diários de Próspero MancheteUm tremendo fotógrafo [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ncontra-se ainda no Camões, em Maputo, uma excelente exposição antológica de José Cabral, o primeiro fotógrafo moçambicano a assumir uma postura de “autor”, fugindo do foto-jornalismo e da “epicidade colectiva” que foi apanágio da geração anterior – cujas figuras de proa foram Ricardo Rangel e Kok Nam – para dar o salto “da fotografia testemunhal e de intervenção” e adoptar, no dizer de Alexandre Pomar “uma outra forma expressão de activismo que não está do lado imediato da denúncia, esse lugar tão ocupado e gasto, mas sim do lado sensível da confiança e da convivência, fraterna e íntima ou intimista”. Por isso se tornou José Cabral numa ponte entre a velha geração e a nova geração – Luís Basto, Mauro Pinto, Mauro Macilau e Filipe Branquinho. À entrada da exposição lêem-se duas declarações do fotógrafo. Diz uma delas: “O acto fotográfico? Há dois tipos de potencialidades, as que estão dentro de mim e as que estão fora, e quando estas duas se encontram há a fotografia”. Ora, isto é análogo ao que defendia Cartier-Bresson: “Fotografar, é pôr a cabeça, o olho e o coração no mesmo ponto de mira”. Ambas as frases apontam para uma indivisibilidade entre o corpo e o acto de fotografar, que tornam o observador e o observado um. Quando isto acontece a fotografia capta a essência do momento, isto é, acontece nela uma espécie de dobra pela qual o reconhecimento documental do assunto ou tema fotografado se duplica na organização rigorosa das formas, percebidas visualmente na composição que reitera e ilumina esse facto. Dou três exemplos. A foto do cartaz do Museu Al Capone, onde por “um acaso objectivo da luz” (como diriam os surrealistas) a silhueta da cidade se reflecte na parte de baixo do vidro que protege a foto do gângster, como se a cidade estivesse contida no seu ventre – e assim se transformou a imagem na metáfora do poder que o gângster teve sobre Chicago. Só um olhar muito treinado percebia o valor expressivo dos reflexos no vidro para sustentar o que a figura simbolizava. Na fotografia escolhida para a capa do álbum que a exposição complementa – Moçambique, organizado por Alexandre Pomar -, a força do “dito” é um efeito da composição da foto: um casal, ela de trouxa na cabeça, passa ao lado de uma montra com uma cortina que lhes esconde o que esteja à venda, como se o direito ao que lhes está lá lhes fosse vedado. As pregas da cortina prolongam a infinito o eixo horizontal. Mas a dignidade com que eles caminham, quase hieráticos, confere-lhes uma verticalidade que os coloca acima das circunstâncias (leia-se sociais) de que padecem. Leitura que só podia dar-se naquele momento de centralidade em que eles se encontram em relação à montra, dois passos antes ou dois passos depois e essa “dimensão oculta” e estrutural da composição da fotografia diluía-se. O terceiro exemplo é um caso de pundonor. A foto pertence ao ciclo “Os Americanos” e foi captada em Santa Fé, no Novo México. Um cowboy orgulhoso é fotografado contra uma montra onde, à exacta altura da sua cabeça, se encontram outros chapéus de vaqueiro. O seu olhar, colaborando com a foto, é de orgulho, ou seja, naquele momento ele representa um tipo humano, de bem consigo; naquele momento deixa de ser um cowboy singular para se tornar um ícone. Nos três casos as figuras representadas têm uma enorme “qualidade de presença”, um rasgo imprescindível para detectar uma obra de arte, segundo Walter Benjamin. Contudo, faça-se a ressalva, pois para o ensaísta alemão, uma fotografia, por ser um objecto reproduzido mecanicamente não podia ter uma presença genuína. Entre outras características, esta exposição demonstra-nos que Benjamin nem sempre estava certo. E a qualidade desta exposição torna ainda mais trágico que não haja uma verdadeira circulação de bens culturais entre os rincões do mundo onde se fala o português.