Mundos de papel

Gulbenkian, Lisboa, 27 Junho

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]isita rápida, em excelente companhia, à exposição «Pós-Pop. Fora do lugar-comum», que leva ainda como subtítulo a moldura enquadradora, «Desvios da «Pop» em Portugal e Inglaterra, 1965-1975». Desvios interessam sempre, guinadas para fora dos comuns lugares, mais ainda. A curadoria da Ana Vasconcelos e Patrícia Rosas desenhou percurso desafiante por entre surpresas e confirmações acontecidas, mais coisa menos isso, na década de 1965 e 1975, no eixo em L de Lisboa a Londres, com cotovelo em Paris. O passeio faz-se, além dos clássicos, está bem de ver, por entre paupérrimos materiais e outros tal o acrílico ou o poliéster, o natural perdido e química inventada. Com a matéria díspar veio, contaminado e contaminando, o quotidiano mais banal, nuclear. Lourdes Castro, além das suas sombras e perfis, desenha com os invólucros prateados dos doces da infância. A mais pura das tintas. O gozo da experimentação arrepia o caminho. A palavra brilha, como néon, omnipresente (onde está o nylon e a lycra?). Toca Teresa Magalhães, faz-se corpo com Ana Hatherly. Mas o que enche as salas são corpos, esse tema-abysmo inevitável. Corpos, corpos inteiros ou fragmentos, em dimensão ou reduzidos ao mínimo. Sérgio Pombo a perturbar com fragmentos de olhar pousado («Joelhos», algures na página). João Cutileiro a fazê-lo palco de lúdicos desejos. Depois tombo em Eduardo Batarda e podia para ali ficar, nas suas narrativas de impossíveis infra-heróis, no imenso burburinho em papel de golpes e contra-golpes. Lá estão, em frágil papel, corpos e texto a travarem-se de razões com a percepção do mundo. Parecem espelhar o lado de lá da grande janela (acrílico?) que abre para o jardim cheio de alegres. E patos.

Horta Seca, Lisboa, 29 Junho

Não sei quem disse ou escreveu, não me apetece procurar, que fique anónimo este saber óbvio: quando morre um homem, perdeu-se um mundo. Com a morte de Afonso Cautela (1933-2018) extinguem-se vários. Pioneiro do movimento ecologista, desconfio que nesses lugares se deu o nosso encontro, não tanto nos jornais, que eu ambicionava frequentar. Era alentejano e animou um jornal pleno de coentros quando a rega escasseava, A Planície, só na aparência regional, como outros, logo e penso no «meu» e do Drummond Jornal do Fundão. Cronista de mão cheia, era bem capaz de alimentar rotativas, como aconteceu com A Capital da minha adolescência, e não falava apenas do Planeta. Ou melhor, tratava-o como um todo. Partilhámos momentos e uma sala, ao Rato, em distintas militâncias, ele contra o terror sísmico nuclear, eu a favor da objecção de consciência. Recordo-o enxuto e ríspido, não sacrificava ao álcool, mas partilhei com ele das poucas refeições macrobióticas. Fez poesia, mas com lâminas. Ainda não tenho o primeiro volume, «Lama e Alvorada», que o José Carlos [Costa Marques] organizou para as Edições Afrontamento (tive pena de não saber do seu lançamento), mas quero voltar a lê-lo. Sem o esbofetear. «Não, não estou doente,/ não preciso de escolta,/ os rins funcionam, felizmente,/ ou por morrer também se paga multa?// Não preciso de nada,/ estou em ordem,/ despeçam-se de mim à bofetada/ e passem muito bem.// Deixem-me dormir que tenho fome/ e sede e sono,/ o meu corpo bebe e come/ dor e abandono.// Já tenho fato,/ metam-no na caixa,/ não esqueçam de pôr luto/ e nos sapatos, graxa.»

Campo Mártires da Pátria, Lisboa, 1 Julho

Vi-me à rasca, mas é costume, para encontrar onde comprar o primeiro Diário de Notícias da nova fase. Curiosamente, esta – chamemos-lhe, como o director gosta – transição tem como padrinho, Stuart de Carvalhais, homem de desenho libérrimo e nos mais diversos suportes, mas nado e criado nas páginas dos jornais. Ontem, à laia de manchete, um casal de anafados burgueses contemplava de um bote enorme navio que parece mais de guerra do que paquete. A mão no ar do homem pede legenda. E o mesmo acontece na que é oferecida em grande formato. Quem faz aqui a vez de pesada nave e ligeiro bote, o papel ou a rede? Ao contrário do que desejava, e julgando apenas por esta primeira edição que me suja os dedos, perdemos mundo, perdemos pé, com o abandono do papel.

Mymosa, Lisboa, 3 Julho

Volto-me para os regionais, que voaram e continuam a voar, tantas vezes abaixo do radar. Penso agora no «meu» Diário do Alentejo, que o Paulo [Barriga] faz vogar pelos mares alterosos do trigo com galhardia. Ou no surpreendente Jornal de Leiria, dirigido pelo João Nazário, para dar dois exemplos. À mesa do almoço, para qual não era servido este assunto, recebi da mão seu director, velho e querido amigo Ricardo [Salomão], o novíssimo Notícias da Gandaia, no qual e além do mais cronica a Luísa Costa Gomes. O Gandaia, que já pontuava online há muitos anos, a partir da Costa da Caparica para Almada, fez contas e percebeu que ganhar corpo de papel era forma barata de alargar a rede. Assenta tudo em trabalho associativo de primeira água, que assegura universidades populares, grupo de teatro, ciclos em torno dos livros e muito mais. O mar muda-nos todos os dias, dizem eles. A Luísa, cuja coluna se intitula «Nós e a Nossa Época», por coincidência, interroga-se sobre a estranha atracção dos jogos online: como usar o que vicia para nos agarrar aos poetas maneiristas ou a Astrofísica, «como aprender então a brincar com coisas sérias?»

Facebook, algures, 4 Julho

«A morte não te há-de matar», cantam os Sétima Legião, abrindo Glória. A dita poderá ter levado Ricardo Camacho, mas não o matou. «Há mil anos de memórias a contar», entoam ainda em Sete Mares, no qual celebram a força das marés contra as tormentas. Na pós-adolescência, nutria alguma desconfiança ideológica com a malta da Fundação Atlântica, sem que isso atrapalhasse o costumeiro voluntarismo de me atirar pelas janelas que abriram ao encontro do pós-punk, que o mesmo é dizer Durutti Column. A senhora da gadanha, e a sua auxiliar, melancolia, ajuda a descobrir o lastro que não somos obrigados a deixar para trás no caminho do envelhecer. Somos pó e aos pós (esta semana pop e punk) voltaremos.

Horta Seca, Lisboa, 6 Julho

O Carlos [Querido], na apresentação, topou um nexo entre o conto «Mestres Vivos ou A Lição do Silêncio» e este «Uma Mancha Chamada Berlim», que abre este terceiro volume de contos do Ricardo [Ben-Oliel]. O primeiro acrescenta uma geração a uma família que se apresenta o nó do mundo, tão dispersas as origens, recolhidas embora sob o tecto de uma mesma casa, uma tradição, bênção e maldição. Um filho que corre, um avô que se recolhe, entre ambos frutifica a árvore do narrador, que tanto oferece o fruto fresco da anedota como o sumo ácido da reflexão. Delicia-me esta escrita perdida entre línguas, como o narrador perdido entre pátrias, países, práticas em busca de identidade. Sinto o fôlego da respiração prestes a insuflar novela, noto o absurdo a espreitar nas frestas de monólogos e introitos, acompanho, por momentos, o autor a fazer-se. Ao caminho.

«Foi quando a morte se não conteve em ser dos outros só, e veio morar por detrás da porta. Quando deixou de avisar, de se anunciar, porque estava mesmo de chegada. Silente e firme. Invisível. Tão presente se tornara que as vozes se não ouviam. Um passo era bem um passo. Estalava o madeirame dos móveis. Ruminavam os canos nas entra­nhas da velha morada. Os relógios não tocavam já.

Em cada objecto da casa há um alguém que te fita, porque também contigo a morte está. A ramalhosa árvore que resiste lá fora contempla‑te à janela e solta‑te folhas em despedida.”

11 Jul 2018

“Pintor e a cidade”, de Manoel de Oliveira – Um amor inequívoco pelo essencial

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vamos abordar um filme algo esquecido da filmografia de Manoel de Oliveira. Trata-se de um documentário a cores, filmado em 1956. Grande parte daquilo que virá a ser os pilares estéticos na obra de Manoel de Oliveira – a outra encontraremos sete anos mais tarde em O Acto da Primavera – começa em O Pintor e a Cidade. Depois de Aniki-Bóbó, Manoel de Oliveira esteve 13 anos sem filmar. Mas durante este tempo, além dos afazeres de empresário, pensava e assistia a cinema, e em 1955 fez um curso de fotografia nos estúdios da Agfa-Gevaert AG – especificamente acerca da aplicação da cor ao cinema –, na cidade alemã de Leverkusen. O Pintor e a Cidade é o primeiro filme depois desse curso. Mas as diferenças entre este filme e o seu primeiro está muito longe de se traçar em cores.

“Fiz O Pintor contra O Douro. Enquanto O Douro é um filme de montagem, O Pintor é um filme de êxtases. Eu descobri no Pintor e a Cidade que o tempo é um elemento muito importante. A imagem rápida tem um efeito, mas a imagem quando persiste ganha outra forma. O Pintor e a Cidade é uma obra fundamental na minha carreira, na mudança da minha reflexão sobre o cinema. (…) É a primeira vez que eu volto as costas a um cinema de montagem.” [Manoel de Oliveira, Cem Anos, Cinemateca, pp. 56-7]

Em O Pintor e a Cidade, Manoel filma a cidade do Porto através do olhar e das aguarelas do pintor António Cruz, considerado como o maior aguarelista dos tempos modernos. Acerca dele, Abel Manta, em entrevista a Manuel Lavrador (in Sol), diz: “é sem contestação o maior aguarelista português dos tempos modernos. Tirou a aguarela da banalidade para a que a tinham arrastado Roque Gameiro e os aguarelistas portugueses. Deu-lhe grandeza, ressonância sinfónica; levou-a até atingir o valor de uma alta expressão sintética e afastou-a da superficialidade habitual.” Também, décadas mais tarde, em 2015, José Emídio, pintor e responsável da Cooperativa Árvore dirá que “António Cruz é o grande aguarelista português do século XX. É um artista de uma mestria extraordinária. Além de pintor talentoso soube tirar partido das neblinas, a luz, o granítico das sombras, as pontes e o rio. Só um homem que viveu intensamente a cidade seria capaz de a mostrar com este olhar sensível.” E é precisamente estas neblinas, esta luz, este granítico das sombras, as pontes e o rio, que Manoel de Oliveira vai filmar através dos quadros do pintor e do seu olhar.

Manoel mostra claramente duas coisas neste filme, que se tornariam fundamentais ao longo da sua obra: 1) não há distinção entre real e ficção no que é captado pela câmara; 2) a câmara é uma janela para o mundo – o que se filma –, e tal como a janela de uma casa, ela não se move e força-nos à atenção daquilo que passa por ela. Várias vezes, em entrevistas, Manoel de Oliveira referiu-se à relação entre ele e a câmara e entre esta e o mundo. Dizia que a máquina de filmar não faz nada, e que o cinema é tudo o que se põe diante da máquina de filmar. Podemos mesmo dizer, de modo Copernicano, que não é a câmara que anda à volta das coisas, mas as coisas que andam à volta da câmara. A câmara está no centro do universo.

Na sua obra, em dois volumes, acerca do cinema, Gilles Deleuze escreve: “Em regra geral, os poderes da Natureza não são enquadrados da mesma maneira que as pessoas ou as coisas, e os indivíduos da mesma maneira que as multidões, e os subelementos da mesma maneira que os termos. Tanto assim é que há no quadro muitos quadros diferentes. As portas, as janelas, os postigos, as frestas, os vidros de um carro ou os espelhos são outros tantos quadros no quadro. Os grandes autores têm particulares afinidades com tal ou tal desses quadros segundos, terceiros, etc.” [DELEUZE, Gilles. A Imagem-Movimento – Cinema 1, Documenta, Lisboa, 2016, p. 32]

Na verdade, e em relação à primeira afirmação de Deleuze, Manoel de Oliveira é claramente uma excepção. Mais: essa excepção torna-se a sua marca, pelo menos até aos anos 90. A câmara de Manoel de Oliveira enquadra um quadro do mesmo modo que enquadra a Natureza. E não é só em O Pintor e a Cidade – embora seja aqui que começa – mas pode-se ver claramente em toda a tetralogia dos amores falhados – e de modo geral ao longo de toda a sua obra. Especialmente nos três últimos filmes trágicos da tetralogia, Benilde ou a Virgem Mãe, Amor de Perdição e Francisca. Nessa primeira tragédia, o filme inicia-se precisamente com a câmara percorrendo os bastidores de um teatro. E, ao começar-se a cena, na cozinha de uma casa senhorial, a câmara foca uma fotografia pendurada na parede, que representa uma paisagem – muito provavelmente a paisagem exterior da casa –, e vai aproximando-se até que o quadro se torna toda a imagem captada pela câmara. Ficamos perante a evidência de que estamos no mundo da imagem, seja ela captada directamente pela câmara, seja ela captada indirectamente pela câmara. Não se distingue a imagem exterior, da imagem de uma fotografia do exterior, se a câmara de filmar fechar todo o ângulo de filmagem. Quando se começa a escutar o vento, sem que a paisagem se mova, compreende-se que estamos imersos no mundo da representação. Aquele quadro é uma janela, aquela janela é o mundo lá fora. Tudo é o que a câmara capta. Uma vez mais, e agora completamente ao encontro de Manoel de Oliveira, Deluze escreve: “Mas a única consciência cinematográfica não somos nós, cada um dos espectadores, nem o herói, é a câmara, ora humana, ora inumana ou sobre-humana.” [Op. cit., p. 40]

A câmara é a consciência do que se vê. É a consciência daquilo que se mostra. A câmara não distingue entre Arte e Natureza, filma igualmente um quadro exposto numa parede ou uma paisagem. Curiosamente, ou talvez não, Manoel de Oliveira faz precisamente aquilo que André Bazin – um dos co-fundadores dos Cahiers du Cinema – escreve em 1945 acerca dos surrealistas, num pequeno estudo intitulado “A Ontologia da Imagem Fotográfica”: “É que para o surrealismo, o efeito estético é inseparável da impressão mecânica da imagem sobre o nosso espírito. A distinção lógica entre o real e o imaginário tende a ser abolida. Toda a imagem deve ser sentida como objecto e todo o objecto como imagem.” [BAZIN, André. O cinema – ensaios, Editora Brasiliense, 1991, p. 25]

E podemos dizer o mesmo para a obra de Manoel de Oliveira: toda a imagem é um objecto e todo o objecto é uma imagem. A câmara transforma tudo em imagem. E não há imagens ontologicamente superiores a outras. Uma imagem é uma imagem é uma imagem é uma imagem. A imagem não é realidade. A imagem é o que a câmara capta. E ela não capta apenas quadros pintados, colocando-os ao mesmo nível da paisagem, ela também capta a nossa atenção ao plano fixo da câmara. E André Bazin, na sua análise ao cinema dos anos 20 aos anos 40, escreve: “(…) eu distinguirei no cinema de 1920 a 1940 duas grandes tendências opostas: os directores que acreditam na imagem e os que acreditam na realidade.” [Op. Cit., p. 69]

E páginas adiante vai anda mais longe, ao encontro do que aqui temos assinalado em Manoel de Oliveira: “É que acabámos de considerar o expressionismo da montagem e da imagem como o essencial da arte cinematográfica. E é principalmente essa noção geralmente admitida que questionavam implicitamente, desde o cinema mudo, realizadores como Erich Von Stroheim, F. M. Murnau ou R. Flaherty. A montagem não desempenha em seus filmes praticamente nenhum papel, a não ser o papel totalmente negativo da eliminação inevitável numa realidade abundante demais. A câmara não pode ver tudo ao mesmo tempo mas, do que escolhe ver, ela se esforça ao menos para não perder nada. O que conta para Flaherty, diante de Nanook caçando a foca, é a relação entre Nanook e o animal, a amplitude real da espera.” [Ibidem] É preciso não confundir esta “amplitude real da espera” com realidade. A “amplitude real da espera” é um acontecimento fenomenológico, não um facto real.

João Botelho, no seu filme O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu (2016), citando o seu mestre, diz: “A força poderosa e única do plano fixo – disse-me ele – tinha-lhe sido revelado pelo Dryer, na Joana D’Arc (1928), e pelo muito amado John Ford, aquele que dizia que só mexia a câmara quando os cavalos se moviam, para não correr o risco de distrair os espectadores do essencial.” Independentemente das influências que se possam ter, a verdade é que, tal como Miguel de Unamuno escreve em Do Sentimento Trágico da Vida, nós não somos pessimistas porque lemos livros pessimistas, pelo contrário, é porque somos pessimistas que lemos livros pessimistas. Os planos fixos exercem um poder sobre Manoel de Oliveira, porque ele os entende, ele vê neles algo de profundo, algo que faz parte de si mesmo, da sua natureza reflexiva. Em O Pintor e a Cidade, ele descobre o tempo como elemento fundamental no cinema. Tempo, aqui, em sentido de duração. E duração em ligação estreita com atenção. O tempo como tempo necessário à apreensão daquilo que importa, daquilo que é preciso realmente atentar. No fundo, o tempo como a nossa vida a dar-se conta dela em confronto com a arte. Pois é preciso não esquecer que, em Manoel de Oliveira, o cinema é sempre arte e não uma imitação da vida. O filme é um objecto para ser apreciado enquanto tal e não uma coisa que faz parecer ser outra coisa, sem que nos demos conta do objecto filme. Isto tornar-se-á mais claro ainda em O Acto da Primavera.

Quase cinquenta anos depois de filmar O Pintor e a Cidade, numa grande entrevista concedida ao programa Roda Viva, da TV Cultura do Brasil, uma jornalista – dos seis jornalistas que se encontravam no estúdio –, pergunta porque razão é que um homem que foi campeão de atletismo, de corrida de carros, que pilotou aviões, passou a fazer filmes que são o contrário disso. Ao que Manoel de Oliveira responde: “No automobilismo o movimento é o de vencer o tempo. No cinema é o de reflectir sobre ele.” O cinema é uma arte, que como toda a arte é reflexiva, que remete para a reflexão acerca da vida e não para a vivência da mesma. Na vida, Manoel de Oliveira anda depressa, na arte anda devagar. Assim, o plano fixo não é apenas uma influência de Dreyer e de Ford, é reflexo de uma hermenêutica de Oliveira acerca da arte do cinema. Há sempre como que um fundo fenomenológico nos planos de Oliveira, um forçar a atenção, quer seja pela repetição, quer seja pela permanência, forçando o espectador a ver, a atentar naquilo que está a ser mostrado, não lhe deixando possibilidade de fuga, não lhe lançando a corda da distracção, que tanto ele acusava o cinema “americano” de fazer. O cinema americano a que aqui nos referimos, tal como também Manoel de Oliveira, era o cinema dos blockbusters. Pois John Ford ou D. W. Grifith, por exemplo, são realizadores americanos e sempre foram considerados como mestres por Oliveira.

De facto, pelo menos a partir de um certo período da história, a arte não visa o entretenimento, e foi sempre assim que Manoel de Oliveira viu o cinema, como arte. Ele nem sequer era contra o cinema de entretenimento, apenas julgava que deveria também haver espaço para o cinema arte. E a arte, para ele, está indissociável do essencial, de mostrar o essencial. Um amor inequívoco pelo essencial. E, literariamente, não podemos deixar de pensar em Cesário Verde e no seu livro acerca da cidade de Lisboa, dos seus poemas que são como telas das paisagens desta cidade.

10 Jul 2018

O peso do braço

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] frequente ouvirmos louvores acerca do trabalho e dos méritos de quem sobe a pulso na vida com pouco mais do que o suor do rosto. Nem o Cristiano Ronaldo escapa às loas que se tecem sobre o esforço e as suas recompensas. Como o português de César Monteiro, Cristiano Ronaldo não nasceu Cristiano Ronaldo, tornou-se Cristiano Ronaldo. E isso fá-lo ainda mais extraordinário. Melhor que o Messi.

Este louvor do trabalho e do sucesso que lhe corresponde ou deve corresponder é uma das pedras basilares da sociedade capitalista. Sem ele e sem a promessa de mobilidade social que lhe está associada, seria difícil manter um sistema de cariz democrático a funcionar sem sobressaltos de maior. As pessoas continuam a ir a jogo porque existe – nem que seja apenas em teoria – a possibilidade de lhes sair a sorte grande. Mas para tal, e para começar, têm de se esforçar. Arduamente.

Nos primeiros anos da longa carreira contributiva a que estamos votados, não nos poupamos a esforços. Entusiasmados com a ilusão do caminho glorioso que se abre à nossa frente, cumprimos diligentemente aquilo que é esperado de nós e mais, muito mais. O credo diz que o esforço há-de ser recompensado.

Reparamos nalgumas inconsistências a que damos pouca importância: um tipo que entra para um lugar para o qual não tem currículo adequado ou suficiente, mas que mostra ter uma relação inesperadamente afável com aquele director de departamento que não passa cartucho a ninguém; um aumento concedido àquele sujeito cuja única característica de monta é dizer que sim entusiasticamente a qualquer ideia, por mais trôpega que seja, que os seus superiores atirem para a mesa.

Com o tempo, vamos percebendo as minudências pelas quais se rege o jogo empresarial, todo ele muito menos limpo e transparente do que o publicitado. As inconsistências deixam de ser excepções à regra e passam a ser, elas próprias, as normas sub-reptícias que regem o jogo. A competência, o profissionalismo e, sobretudo, o trabalho árduo, ou não são suficientes para assegurar a progressão de carreira antecipada ou são mesmo obstáculos a que tal aconteça. Enquanto isso, vicejam os bajuladores, os atrevidos e, muito especialmente, os chicos-espertos. Damos conta, muitas vezes assaz tarde, de estarmos a viver num mundo ao contrário, um mundo que se descreve a si próprio como um paradigma de justiça e equidade mas que, na verdade, se vive exactamente ao contrário, e damos por nós a pensar em como é que este mundo se aguenta e se tem aguentado durante tanto tempo, como é que não só se parece aguentar, com um crescimento económico apenas interrompido por correcções de mercado ou pela inevitável ganância financeira a fazer os seus estragos, como parece florescer malgrado o substrato malsão de que é composto. E damos conta, inevitavelmente, de que esta coisa da meritocracia é uma espécie de Disney – com os seus príncipes e as suas princesas – para adultos. Nesse momento, a juventude e a energia ficaram pelo caminho. E é com isso que o sistema conta: com a nossa ilusão e o nosso vigor de jovens e com a nossa resignação e placidez de velhos. É assim que a máquina funciona e continua a funcionar.

Li algures que numa daquelas conferências sobre o futuro da economia mundial e acerca da inteligência artificial e das suas consequências um dos assistentes, um empresário de renome com fábricas um pouco por todo o mundo, interrompeu o orador quando este discursava, empolgado, sobre um futuro livre do baraço do trabalho, um futuro em que cada um estivesse livre de labutar a vida toda a troco de umas migalhas de pão: “e que farão as pessoas sem os seus empregos?”, perguntou, indignado. “Outras coisas”, respondeu o orador, “tudo o que quiserem e que nunca puderam fazer”. “Isso nunca vai acontecer”, contrapôs o empresário. Não, por eles isso nunca vai acontecer.

9 Jul 2018

Cantos de Maldoror

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ntramos agora no ciclo anunciado do «Filho do Homem». Vêm aí os concebidos à nossa imagem e semelhança e não apenas meros utensílios ao serviço do deus que nos autoproclamámos ser. Irão como corpos autónomos firmar a sua própria complexidade que ultrapassará em muito o nosso poder de controle, designadamente a de se autonomizarem na busca de um sucesso do qual pouco ou nada sabemos na generalidade.

Pela designação, impõe-se-nos uma outra: «Filhos de Deus», nós, os últimos a serem abarcados na órbita desta imponderabilidade, mas que conseguiram o seu sucesso independente. Somos neste instante o que restou, até de uma secreta ilusão, e não podemos deixar de pensar o que nos separa já dos nossos irmãos, muito pouco tempo atrás, como por exemplo no século XIX. Perante eles, nós podemos até já ser os autodenominados robots por antecipação, na pior das hipóteses seremos designados «Filhos de Ninguém».

Vem esta questão a propósito dos «Cantos de Maldoror», de Isadore Ducasse, mais conhecido por Conde de Lautréamont, nascido quase na segunda metade do século XIX, com vida curta e obra imensa. Ora, entre a profunda vacuidade das nossas “obras” no tempo de ninguém e a desta urgência bem arquitectada dos ainda «Filhos de Deus», existe certamente uma grande separação. Reparar, também, que foram vários os de matriz romântica a fazer o percurso sem nenhum fogo fátuo que os pudesse queimar com a harpa afiada do reflexo das suas posteridades, havendo que fazer muito, mais que elaborar. Mas fazer como e com que tecido humano? Com uma consciência que se demarca da nossa inofensiva opinião, e aqui vamos encontrar uma vontade e uma urgência que até pode ser escandalosa, uma força e uma imprudência, um génio galvanizante e assombroso que nos avassala derrubando o nosso tímido inventário. Narrar, é demasiado curto para o propósito aqui exposto, pois que nem todos somos narradores e a narrativa tende para um fim que só os raros narradores já elevados à categoria de grandes romancistas sabe como contornar para que não fique a vaga e triste sensação de um certo marasmo que é a leitura fácil. Tenhamos em linha de conta que de todas as obras esta é certamente a mais difícil, mesmo para aqueles que se emplastram de circunstância e que se adentrem por aqui balbuciando discursos, não teremos capacidade emocional no nosso instante do tempo para filtrar um tal registo.

Entrar por aqui requer nervos de aço, e o autor apela mesmo para o perigo mortal de tal leitura, mas um livro não nos deve interpelar assim e sem medo, protegidos pela longevidade dos incautos, nós vamos buscar a alma que de formas várias nos foi fugindo, e eis-nos no centro de uma fornalha gloriosa. Como disse Jorge de Sena, a obra de Lautréamont é um marco miliário na construção de uma linguagem nova e tão insólita, de força tão estranha, que nos faz desviar o olhar. Apelidado de pré-simbolista, conde (pela autodenominação da distância diante o vagamente anormal ou a prosódica normalidade), ele vai devolver o significado de Homem, baixando-o para lá do natural nessa capacidade que tem para ser monstro, e nem por isso é menos belo ou menos digno de comoção, pois que tudo isto se passa no tempo da memória de uma ferida de amor. Não nos pretende mais altos, mas sabe da tendência para o endeusamento da espécie e com plena ironia blasfemante faz talvez o único épico do século XIX. Haja o que houver, estamos diante de algo que não mais ressuscitará. O limite da nossa Humanidade está todo ele plasmado na escrita, ou seja, naquilo que por ela fomos concebendo de extremamente humano. Daí que qualquer propósito bem intencionado ou até minuciosamente bem escrito, não possa atingir o domínio mortal de um homem VIVO. Sonambulizamos com tantos anos… vamos ganhando a crosta dos batráquios, as paredes do cérebro mantém-se intactas e um certo “bem- estar” cria também monotonia e foi conquistando um certo espaço vital. Temos o sexo “Sexus” que também já não dá resposta absoluta ao trilho da espécie, pois que no dia em que tudo fosse tão normativamente igual, aí teríamos o sinal do fim. E aqui chegámos! Estes livros são a única saída para um abismo a caminho da metamorfose, ou, quiçá, de uma apoteótica desaparição. E não, não temos medo. Os nossos medos são agora também de outra natureza e não têm em nós expressão, pois que continuamos a pensar nos nossos dias como garante de uma conquista que se eterniza.

A nossa realidade já nada tem de princípio natural. Ser real é coisa outra e os conceitos capturam-nos muito mais do que nós os sabemos desfazer, sendo sem dúvida, e inesperadamente já quem somos mas com saudades destas outras coisas. Quem for encontrado nestes livros passará a primeira prova, quem não for, não voltará. O livro está impregnado de Romantismo, pois que ave aziaga voaria sobre o abismo destas almas? Mas glorioso este voo que nos incita a saber em tempo tão curto coisas de uma intensidade tal, que uma vida, assim, até parece eterna. E os momentos que nos deixam esferas de uma provável imortalidade?! Ele quer que o céu se torne audaz para passarmos estas páginas, e que os nossos passos andem para trás…No seu tempo andar para trás seria mais próximo… hoje, para trás é tão longe…!

Este livro tem seis Cantos e no fim uma redenção tamanha que ficamos completos: «Poesias» dedicado a muita gente; condiscípulos, amigos futuros, passados e presentes, e até a um professor de retórica. O Fantástico está já distante daquilo que agora conseguimos alcançar «o passado fez brilhantes promessas ao futuro: é há-de cumpri-las. Para polir as minhas frases, utilizarei forçosamente o método natural, retrocedendo até aos selvagens, para que eles me ensinem» Assim está no Canto Sexto. Nenhum vindouro saberá como interpretar o que foi a nossa Humanidade. Do «Filho do Homem» nascerão ainda outros, nós, seremos a parábola, os tais «Filhos de Deus» que nunca vimos, fazendo Cantos para tentar ouvir a sua voz. E só nós soubemos que tinha várias.

9 Jul 2018

Vila Nova de Milfontes – Na véspera de partir

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]arregávamos o carro de noite. A mãe arrumava o quotidiano da casa num carro pequeno: roupa, tachos, farmácia, livros. Descíamos vezes sem conta as escadas. O carro ficava cheio de véspera. Nem conseguíamos dormir. A carga da nossa vida estava lá toda. E acordava-se cedo. Um café era engolido. Os últimos sacos, levados para baixo. Partíamos às 7h00 da manhã. Aparecia a Avenida da Índia em direcção a Alcântara. Atravessava-se a Ponte Sobre o Tejo.

As pernas eram esticadas ainda em Palmela. Depois, era rumo a sul. A viagem não era apenas a deslocação a sul. Não era para ir e vir. Não se ia tratar de um assunto rápido, para seguir com a vida. Era uma viagem. De Kilómetro a Kilómetro, tudo muda. A paisagem deixa a cidade atrás de si, sem ser vista. Mergulha-se numa dimensão rural, interior. O olhar está no Mira ou no Atlântico, mas não se avistam, verdadeiramente. Parávamos para almoçar. Na altura, ainda havia a avó com pastéis de bacalhau e arroz e vinho. Partíamos às 7h00 mas íamos a 60 km hora, a velocidade do pai. Passávamos Alcácer do Sal já à hora do almoço. Víamos viandantes que comiam connosco ou bebiam um copo de vinho. Recolhia-se a parafernália do farnel. Lá íamos nós.

Aproxima-se Cercal do Alentejo, já com outros odores e cores. A cidade de pé tinha ficado para trás há algumas horas. Era como um sonho inteiro de ano lectivo. Lá tinha ficado o Natal, a Páscoa, o fim do ano lectivo. Agora, era outra coisa. Demorei muito tempo a perceber o que era. Conduz-se. A mãe acende o cigarro ao pai, não sem o molhar. O pai refila. Mas mete o cigarro à boca que aspira. Vou no lugar da frente. Olho pela janela e vejo só o céu. Embora lá em cima, é como se fosse uma astronauta. O carro pouco veloz, leva-me nas horas. “Hás-de lembrar-te deste tempo”, dizia o Beta. Chegamos ao Cercal do Alentejo. Pára-se para um café. Falta pouco tempo. Mas não será de seguida. Paramos ainda para beber água da fonte.

O pai bebia com a mão a fazer concha. Bebia como tinha bebido na sua infância pobre de dinheiro mas rica de tudo o que a Terra dá. Enchem-se garrafões. Metem-se no carro. Aconchegamo-nos no carro mas só para o último troço. Sente-se o horizonte. Pressente-se a orla marítima. A infância tinha ficado umas temporadas antes, mas ainda fazia-se sentir. A juventude estava já quase aí. Terá sido assim? Chegamos a Milfontes. A terra dizia-se das três mentiras. Na altura: Vila Nova de Milfontes. Não era vila. Não era nova. Não tinha Milfontes. Anos mais tarde, descobri que seria Melis Fons ou Fontes: a fonte ou as fontes do mel. Os piratas subiam o mira para roubar o mel aos apicultores. A chegada não era agradável. Descobria-se uma casa vaga. Faziam-se as camas. A roupa ia para os armários. Os tachos iam para a cozinha. A farmácia para a casa de banho. Havia o primeiro reconhecimento. Íamos a pé até ao café da Dona Maria ou do Artur.

Chegávamos ao fim da Barbacã, com a fortaleza do lado direito. Lá estava ele: o Mira a olhar para o Atlântico, como o meu Tejo. Esta, contudo, não era a chegada absoluta. Havia a noite. Íamos encontrar aos poucos como peças de um puzzle complexo os amigos do verão passado. Entretanto, tinham ficado amigos em Lisboa. Outros tinham a sua inauguração àquela terra mágica de pais e avós, tios, primos, irmãos e amigos. A noite era invariavelmente um reconhecimento. O que se tinha passado entretanto? Quem tinha 16 anos tinha agora 17. Como estávamos. Antecipávamos Setembro no fim e ainda era Julho ao princípio. Descemos lentamente ao Malhão. Só a partir de uma dada altura, percebemos o Atlântico. Arruma-se o carro. Desce-se desfiladeiro abaixo. Despimo-nos até aos calões. Corremos até à beira-mar. E o mergulho é o baptismo de renovação que sufoca.

Oxalá houvesse sempre esse mergulho.

6 Jul 2018

O fanfang de Macau

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap]s festas do V centenário do nascimento do Infante D. Henrique, que decorreram a 3, 4 e 5 de Março de 1894 no Porto e em todo o país, também Camilo Pessanha não assiste, pois vem de barco a caminho de Macau, onde chega a 10 de Abril. No Extremo Oriente está um ar pesado, sob o constante espectro de guerra, pois o colonialismo comercial instiga a abertura de novos mercados. Assim, a 1 de Agosto ocorre o ataque militar do Japão à Coreia.

As comemorações poderiam ter servido para lembrar, não estivesse fora da memória, mesmo no próprio país, a China há cinco séculos estar a preparar a última série de viagens marítimas e em 1433 deixava o mar, faltando-lhe apenas navegar no Oceano Atlântico.

Na sequência das sete viagens de Zheng He, Malaca rapidamente se afirmara como um novo reino, servindo de base de apoio a todas as suas expedições. O Almirante chinês em 1409 aí abriu uma feitoria e colocou o príncipe hindu Parameswara debaixo da protecção dos imperadores chineses da dinastia Ming. Deixando tropas para conter os ataques do Reino do Sião, levou Parameswara numa visita à China.

Assim, Malaca, um dos principais entrepostos comerciais da região, era um dos países tributários que podiam enviar embaixadas ao Celeste Império e quando em 1511 os portugueses a conquistaram, aí continuava a feitoria da dinastia Ming. Era então o porto mais afastado onde os chineses se dirigiam e aí os portugueses contactando-os, com eles vão até Tamão, local de veniaga e entrada da China. Mas para os portugueses serem aceites a viver em território chinês passaram dezenas de anos mais.

No Japão, o ansiar pelas sedas chinesas levava os japoneses a adquiri-las em alto-mar sobretudo aos portugueses que, ao chegarem em 1543 a esse país, dividido em 67 feudos, e apresentando a espingarda, abriu as portas ao comércio, entrando a Religião Cristã com a seda chinesa. Mercadoria adquirida também a marítimos de Fujian e Zhejiang, fora da lei do Imperador e presas fáceis para os piratas japoneses ávidos de seda.

Chineses de Haojing

O ambiente de Macau era de um fanfang em terra da China, aceite pelo Governo Imperial como bairro de administração estrangeira, comum ao longo da História do país. Houvera-os séculos antes pelos caminhos terrestres da Seda e com estes interrompidos, apareceram bairros estrangeiros em muitas cidades portuárias chinesas. Solução encontrada também pela dinastia Ming para albergar os comerciantes portugueses, onde a Sul da grande Ilha de Hiangshan, na pequena península de Haojing ergueram uma cidade com estruturas de governo próprias, permitidas se não fossem incompatíveis com as leis do Império Celeste. Com os marinheiros, mercadores e comerciantes chegaram os missionários, construindo-se a cidade cristã mais tarde amuralhada, habitada por famílias de comerciantes, com Senado, escolas e templos.

Já em 1279, Haojing acolhera sobreviventes das províncias de Zhejiang e Fujian, acompanhantes da nómada corte da dinastia Song do Sul, derrotada pela esquadra mongol na batalha naval em Yamen, num braço do Delta do Xijiang, às portas de Macau; Rio Oeste que passa no Porto Interior. Os agricultores da aldeia de Mong Há e os pescadores da zona da Baía de A-Má, aqui se encontravam quando os portugueses chegaram, havendo pelo menos duas povoações, ou três com Sa Kong, hoje no lugar entre Patane e o Mercado Vermelho. A Norte da península estava Mong Há, a Oeste Sa Kong e a Sul viviam os pescadores, a maioria a residir nos seus barcos que aportavam nessa baía junto ao templo de A-Má. Só quando os portugueses para aqui vieram e fizeram a cidade cristã na parte central da península, apareceram para os abastecer os comerciantes de Guangdong. Estabelecendo mais tarde o Bazar, alimentavam a cidade com produtos frescos trazidos do outro lado das Portas dos Limites.

Fecha o Japão, abre a China

Com a China fechada ao exterior desde meados do século XV, no século seguinte os portugueses e espanhóis navegavam no Pacífico. Da doutrina Católica já tinham saído os Anglicanos e os Protestantes, quando no início do século XVII os holandeses e ingleses chegaram ao Oriente, projectando-se na Ásia a Guerra dentro do Cristianismo, a ocorrer ainda na Europa.

A Religião Cristã levou o Japão a fechar as portas aos comerciantes europeus e desde 1639 manter-se fora do mundo pelos Éditos de Isolamento; mas foi a Companhia de Jesus, uma das causadoras desse encerramento, quem encontrou a solução para Macau ser a porta do Celeste Império. “Com o Sistema Comercial de Cantão, iniciou-se a abertura da China ao comércio internacional a partir dos finais da década de 1680, durante o reinado do Imperador Kangxi (1661-1722).

Com este sistema, os comerciantes estrangeiros passaram a visitar regularmente a cidade de Cantão, a única onde podiam realizar os seus negócios para além de Macau, mas sem contactar directamente com as autoridades imperiais”, segundo Alfredo Gomes Dias, que refere, “Os estrangeiros passavam por Macau, onde se inscreviam para frequentar as feitorias de Cantão durante os meses de Outubro a Janeiro. Findo este período, eram obrigados a regressar a Macau. (…) A necessidade de equilibrar a balança comercial com a China empurrou o poder político e económico de Londres para a I Guerra do Ópio.”

Saber o que contar de Cantão

Os mercadores ingleses, sem prata e nada para trocar pelas deslumbrantes sedas, porcelanas, chás, lacas, encontraram no ópio a mercadoria para a China. Aí ilegal, após a queima do ópio pelo Governo Chinês, estes mercadores pediram ajuda à armada britânica e pela guerra obrigaram os chineses a assinar o Tratado de Nanjing.

Ainda durante a Primeira Guerra do Ópio, o Reino Unido a 26 de Janeiro de 1841 proclamou a soberania da Ilha de Hong Kong e tudo mudou. Os estrangeiros, sobretudo britânicos, a residir em Macau rapidamente atraídos pelo excelente porto aí abriram as suas companhias e investiram na construção da cidade. Com eles vai muita gente, sobretudo macaenses para intérpretes e intermediários com a população chinesa, e outras funções, tanto comerciais como administrativas, necessárias à sua organização.

O Governo de Macau enviou em Novembro de 1843 uma missão a Cantão para negociar com o Vice-Rei, encabeçada pelo conselheiro Adrião da Silveira Pinto (que fora Governador de Macau de 22/2/1837 até passar o cargo a José Gregório Pegado em 3/10/1843), mas esta fracassou. Não conseguiu autorização para a colónia deixar de pagar foro e estender a demarcação do limite da cidade para fora dos muros do Campo de St.º António. Sem permitir o aumento dos 25 navios desta praça, os chineses anuíram, porém, à igualdade de tratamento na correspondência oficial entre as autoridades portuguesas de Macau e as chinesas do distrito e à permissão para os navios portugueses poderem também comerciar nos portos de Cantão (Guangzhou), Amói (Xiamen), Fôk-Tchâu (Fuzhou), Neng-Pó (Ningbo) e Xangai (Shanghai).

O fim do fanfang de Macau ocorrerá com o Governador Ferreira do Amaral.

6 Jul 2018

Séries e os Malogros de Deus

02/07/18

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ou arredio à televisão e na generalidade às séries. A última que vi com agrado foi True Detective. A primeira temporada – já não espreitei as seguintes. Porém, como até em casa que não pratica a televisão tal frenesim chega, tive de trazer de Lisboa, gravadas sob encomenda, uma caterva de séries para a minhas filhas.

Este fim de semana espreitei uma das três que gentilmente, sem eu ter pedido, gravaram para mim: Homeland, que anda em torno do terrorismo e do regresso dos prisioneiros políticos de Al-Qaeda e cujos heróis são agentes da CIA. E papei a primeira temporada inteira, doze episódios em dois dias.

Gostei. Enredos bem estruturados, com personagens e diálogos adultos e, como é normal, bem ritmado.

Contudo, ao dar o mau passo de ver a segunda temporada percebi como por intratável inverosimilhança a coisa baqueava. O que era qualitativo na primeira temporada era a plausibilidade humana. Na segunda temporada a lógica narrativa já é totalmente televisiva, impõe-se o esquema da dramatização (o espectáculo acima de tudo) e o inesperado é o que rege a acção; pior, com uma causalidade sempre justificada ao posterior (- é o dispositivo de Eurípedes convertido em matéria televisiva). Além disso, as personagens começam a caricaturar-se e a reflectir um mundo maniqueu e em derrapada islamofobia.

Tivesse a série acabado no 12º episódio, com tudo em aberto, e seria perfeita. Depois a lei do mercado arrasa tudo. Para além da débacle moral: os terroristas e os supostos defensores do Bem são cegos prisioneiros da mesma teia de aranha, num mundo embutido no friso cinismo dos líderes e de profunda raiz escatológica, pois escava fundo a ideia de que um mundo manietado por gente tão feia é melhor que acabe.

Duas coisas compreendi: primeiro, como Séneca tem razão ao alvitrar que pobres não são aqueles que têm pouco mas antes os que necessitam de muitas coisas, pois é uma intensidade emocional aditiva absolutamente artificial a que nos leva a não conseguir largar o osso na sucessão de episódios de uma série, seja qual for o lixo que se vai alastrando nas nossas retinas. É mais fácil criar dependência do que dispensá-la.

Segundo, o romance está condenado a sobreviver como uma estética gourmet, tal como o livro, e vocacionados para franjas do mercado. Sobretudo nas sociedades em que o dogma da comunicação e da sua suposta instantaneidade foi substituindo o mais árduo valor da transmissão do conhecimento. A transmissão supõe uma inacabável aprendizagem de códigos sucessivos, o que exige um maior labor hermenêutico, enquanto a ilusão da transparência comunicacional faz parte de uma sociedade em que o sentido é gradualmente preterido pela performance e a reverberação da presença.

O romance é um veículo narrativo por excelência do primeiro regime e a televisão do segundo.

Daí que a literatura se veja hoje sob pressão de uma novelização crescente, que a modela como avatar pré-filmico, o que acontece já a oitenta por cento dos romances que se publica.

É impossível a um romance fornecer em cinquenta minutos o mesmo volume de informação e obter uma igual densidade de efeitos emocionais. Até porque um bom romance não visa preferencialmente o tabuleiro das emoções e quer igualmente partilhar o jogo da inteligência: que por exemplo o leitor se aperceba dos actos de linguagem. Numa boa série televisiva ou num bom filme a linguagem é apenas veículo formal e quanto mais invisível melhor – o Godard foi uma excepção. Há, por outro lado, uma competência artesanal nestes produtos que “parece” substituir com vantagem os recursos expressivos da narrativa literária – quando os domínios da literatura, os seus meandros e objectivos, não se esgotam na trama e visam uma especificidade inabordável por qualquer outro modo. Um bom romance, por fim, dado que não se limita ao factor da identificação, pressupõe um encontro com o leitor de recorte mais apurado do que a mera “atenção distraída” que dedicamos à televisão.

Já para não falar da desonestidade de se começar com um registo ficcional, para agarrar o espectador, e a meio do processo se alterarem as regras do jogo para se explorar unicamente os mecanismos certos para o êxito. Mas, enfim, estes são pruridos que já a ninguém interessa, desde que se ofereça um suposto bom espectáculo.

Vendo esta série lembrei-me de um reparo feito por Abel Barros Baptista ao mais recente romance português. Dizia o ensaísta que dantes os ficcionistas reflectiam uma experiência de vida e que agora os romances lhe pareciam aplainados e semelhantes uns aos outros porque espelhavam a mera experiência de espectador dos seus autores. Concordo em absoluto.

03/07/18

A natureza é muito mais perfeita do que Deus, sobretudo nas oportunidades humanas que os seus erros propiciam.

Em Mary Shelley, o filme, não faltam as escorregadelas, mas dá um retrato vivo de um drama de género que devia ser mais ponderado. A Percy Shelley, o poeta romântico com quem Mary se envolve até à morte dele, apaixonam-no a inteligência e o talento dela mas, contraditoriamente, mostrou-se incapaz de empatia e de superar a mentalidade da sua época. E aceitou prefaciar Frankenstein (romance que devido aos preconceitos sobre as mulheres não podia ser assinado pela autora, obrigada a anonimato), mesmo sob o preço de erroneamente passar por autor do livro escrito pela sua amante. O que constituiu um vexame para ela.

Numa das lojas do prédio da minha infância havia um merceeiro que nascera hermafrodita. O sr. Virgílio foi educado como menina até aos doze anos, quando se denunciou o desenvolvimento do seu verdadeiro sexo. Dizia a dona Luísa, sua esposa, que vivia nas sete quintas porque o marido entendia perfeitamente as mulheres. O dom que lhe dotara aquela partida da natureza.

Julgo que, se nascêssemos todos hermafroditas para só nos definirmos mais tarde, ganhávamos em empatia e numa relação interpessoal mais consentânea e além género.

Deus não, situa-se aquém da ideologia, enquadrado na pauta da cultura que o moldou.

5 Jul 2018

«Um rumor na noite!»

Horta Seca, Lisboa, 14 Junho

 

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s idas a Paredes, ao REALIZAR:poesia, ecoam pelas mais diversas razões. Fazem-se com facilidade amizades que perduram. Desta vez e por exemplo, os vizinhos Do Lado Esquerdo apresentaram-me a «Um Tal de Koslowski». Tenho conversado amiúde com a figura, com quem me cruzo quase todos os dias. Nenhuma razão para espanto, tende a acontecer quando personagens literários coincidem com esqueleto do real. «Koslowsky jura a pés juntos ter-se encontrado pessoalmente com Huckleberry Finn, há muitos anos. “Mas ele é apenas um personagem literário!”, protestou alguém. “Também eu sou”, disse Koslowsky.» A criação do poeta alemão, Michael Augustin, que também faz colagens, essa linguagem de restos significativos, nasceu no riquíssimo país do absurdo, que visitei já. Importado para português de corte impecável por João Cláudio Arendt e pelo João Luís [Barreto Guimarães], apresenta-se esculpido em contos curtos, golpes de lógica que volteia no ar e corta em todas as direcções. Cada título surge à maneira de proposição de tratado, como se procurasse, em desespero e com asma, o âmago do ser. Veja-se o cristalino Da pergunta e da resposta: «“É verdade que você, independentemente do que lhe perguntem, dá sempre uma resposta errada?”, pergunta alguém. “É isso mesmo!”, responde Koslowski.» O humor está sempre a querer chegar-se à frente, mas não consegue, nem à força de cotovelo, afastar a melancolia que se instalou de armas e bagagens. Estes olhares que descascam tendem a deixar-nos em carne viva. Trouxe o Mário Henrique-Leiria para a conversa, que, por muito produtiva, acaba sempre de modo abrupto. Tal qual a puta da vida. Em Da proximidade da morte, o Koslowski namora com a senhora da gadanha e entra em coma, nada de grave. «Fui subitamente invadido por um sentimento de conforto semelhante ao calor de um casaco de pele de animal, pois sabia que, em breve, o famoso filme da minha vida passaria diante dos meus olhos. Preparei-me, então, para cenas extraordinárias. Mas a única coisa que vi foram anúncios comerciais».

Horta Seca, Lisboa, 15 Junho

A placa gráfica do computador encheu-se de pó e curtocircuitou. Tenho uma relação especial com o pó, coisa de amor-ódio que hei-de levar a próxima conversa com o Koslowski. Mas enquanto o pobre do José Carlos [Gonçalves] resolvia o problema “informático” tratei de ouver «Sonatina», escrita por José Miguel Gervásio, e composta para livro pelo mano Miguel [Rocha], que me custa ver tão pouco. Mão amiga e por coincidência havia-me avisado que estava disponível a entrevista dada à Ana [Sousa Dias], há mais de uma década, a propósito do «Salazar, Agora na Hora da Sua Morte», talvez a empresa que mais me satisfez e perturbou (https://arquivos.rtp.pt/conteudos/joao-paulo-cotrim-e-miguel-rocha/). O Miguel mantém relação íntima com o teatro e foi ele que suscitou esta raridade, pequeno livro no meu A5 fetiche, capa dura e crua apenas forrada com sobrecapa, com edição artesanal da Oficina de Impressão e Oficinas do Convento, de Montemor-o-Novo. O conto, esticado quase a pequena novela, poderia ser vivido por um tal de Koslowski, se este tivesse conhecido Bernardo Soares. O absurdo não explode neste caso com o fogo de artifício da (i)lógica, antes procura o reverso do sentido, a bainha onde as minudências se ocultam da narrativa: uma cidade e um porto, talvez um amor, pelo menos um encontro, e rumores não bastam para que as vidas ganhem propósito, para que desfaçam o enigma, se desmanchem em enigma. Como migalhas em labirinto, os minúsculos paladares, gostos, prazeres são transformados em anúncios ilustrados. Bolachas, fósforos, carne enlatada, biscoitos, sabão, sardinhas em conserva, os rótulos inventados, as caixas iluminam-se em evocações do que pode ser a vida. A história seria outra, sem os desenhos, a cadência da paginação, o trabalho de corpos na tipografia, as entradas de capítulo, as duplas páginas engenhosas, o texto estendido à maneira de toalha de piquenique, pronto a acolher os insectos-afectos que recolhemos de velhos grafismos. O meu exemplar tem caderno fora de sítio e resisti à tentação de o tentar corrigir. Se não estivesse atento, poderia ter lido o fim antes, muito antes. Mas nem assim daria desígnio àquelas vidas. As últimas páginas começam por ser manchas ruidosas de cor antes de terminarem com pontos arrumados. Se dançarmos algo se arruma. Antes, um halterofilista de enormes bigodes promete saúde. Na legenda aconselha: «Conservar em lugar seco e fresco. E ao abrigo de insectos.»

Horta Seca, Lisboa, 16 Junho

O Jorge [Silva], de tanto zombar com a minha tendência para o, chamemos-lhe assim, barroco bucólico, acabou por provar do mesmo veneno. O anódino «Publicidade Ilustrada – 1895 -1972» passou a «O Sono Desliza Perfumado», belo fecho de anúncio, com desenhos de Carlos Carneiro (algures nesta página). O álbum, capa dura em tons de azul texturado, anuncia colecção de prazeres gráficos, todos com raiz na Biblioteca Silva. «Uma biblioteca com facilidade se torna floresta de faróis, se plantada com saber e sabor. Outra coisa não vem fazendo Jorge Silva, no que à ilustração portuguesa diz respeito. Há décadas que demanda, nos baldios do património, com extremo afinco e persistência, a matéria de que é feita a memória gráfica nacional. Como colecionador apaixonado, persegue a presa, indo longe na investigação, não apenas de documentos, mas de figuras e testemunhos, desfazendo o nevoeiro da dúvida, sistematizando o terreno das explicações até à solidez. E depois constrói e comunica, por via de textos e enumerações, alguns recolhidos em Almanaque Silva (https://almanaquesilva.wordpress.com), organizando inúmeras exposições e espalhando-se por aulas e conferências e mais. Almeja tudo recolher, para o ter à mão de semear, debaixo de olho, sem nunca por nunca excluir o gosto. Como bom coleccionador.» São 227 anúncios com trabalhos de Bernardo Marques, Carlos Botelho e Cottinelli Telmo, e tantos outros. De cada vez que folheio, descubro razão para voltar. Antes de mais pelas imagens, também pelos jogos com a tipografia e o grafismo, mas sobretudo pelo desenho puro, as composições engenhosas, o cómico, o realismo, o espírito. Estou sempre a encomendar fotogravuras com Fred Kardofler, a beber café com Luís Flipe Abreu e cerveja com Lima de Freitas. E a dançar no Bristol com Carlos Barradas. Mas também vale a pena voltar para nos vermos ao espelho do que fomos, do que vestimos ou comemos. E do que ainda somos, seguidores cegos do progresso, crentes ingénuos nas propriedades salvíficas da moda. Quase acredito que um telefone nos pode salvar da solidão e do perigo.

Horta Seca, Lisboa, 18 Junho

Há atrasado, o Ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, considerou em entrevista que «temos pequenos editores que fazem um trabalho notável… a Língua Morta, a Abysmo. Fazem um trabalho importante e publicam autores importantes de poesia, mas não têm a distribuição que deveriam ter.» Agradecemos a atenção, algo distorcida, e apesar da companhia, não tanto pelos livros, mas pela doença do editor. Mas eis que, na altura em que podiam ajudar, as autoridades se negam com argumentos falaciosos. Talvez até tenhamos autores importantes, e até traduzidos para castelhano, mas, pelos vistos, não possuem suficiente sex appeal. Vem isto a propósito de novo bocejo. A comitiva portuguesa à Feira do Livro de Guadalajara, hoje anunciada, confirma aquele mais do mesmo que se faz costume: só o que é mediático é bom.

4 Jul 2018

Virar gente, Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos

[dropcap style≠‘circle’]Q[/dropcap]uatro anos antes de filme de Glauber Rocha, Terra em Transe, acerca do qual se escreveu aqui na semana passada, Nelson Pereira dos Santos adaptava para cinema, o romance de Graciliano Ramos, Vidas Secas, em 1963. Esta obra de Graciliano, escrita um ano antes da de John Steinbeck, Vinhas da Ira (1939), com a qual divide o ponto de vista realista, vai muito para alem da questão social e política, se bem que este seja o centro gravítico da obra. Se Glauber filmou uma fábula que mostra como funciona a monstruosa máquina da política sul-americana, Nelson Pereira dos Santos filma as consequências do funcionamento dessa máquina, nas franjas mais desprotegidas da sociedade, os mais pobres, os que não têm nada. E há quem não tenha nada. Há quem aspire a ser gente. O filme tem uma frase que bem podia servir de leitmotiv, que gira em nosso cérebro como uma broca: “Um dia temos de virar gente.” Frase que Sinhá Vitória repete três vezes ao longo do filme, mostrando claramente o quanto sente que a sua vida não faz parte da vida humana.

Pessoas que vivem como bichos, sem nada, fugindo continuamente de nenhum lado para lado nenhum, porque em nenhum lado há abrigo. Em nenhum lado encontram repouso, segurança, um momento de paz. Em Vidas Secas, viver é literalmente estar em guerra com a natureza e com os outros. E, aqui, nestes outros, nunca há uma mão amiga. Há, no mínimo, uma mão que te explora e nessa exploração te resgata do inferno de viver a céu aberto, sem telha, sem fogo, sem farinha. Ser explorado é melhor que nada, porque a exploração traz um tecto e um prato de comida. Mas em Vidas Secas não há amigos. O humano aparece neste filme num esplendor facínora. Aquela família – Fabiano, Vitória e seus dois filhos, crianças – não estão sozinhos. Estão muito pior do que isso, estão no mundo com os outros. A vida, nesta guerra contra a natureza e contra os outros, surge-nos como sendo contra si mesma. Vive-se contra a vida. O preço de estar vivo é matar. Matar animais para comer, matar outros para continuar – embora isto não se veja literalmente no filme, apenas subentendido –, matar sonhos para calcar bem a realidade. Como diz Fabiano à mulher: “É, seu Tomás sabia muito, mas quando botou o pé no mundo se acabou no caminho.” O mundo é duro demais para as palavras. De que vale aprender as letras, aprender a ler nos livros, se não se sabe enfrentar a dureza e a crueldade do mundo? Se não se sabe resistir. Há ainda na mulher, Vitória, uma vontade de ir mais além. Uma vontade de ser gente. Vitória não quer muito, quer apenas pôr os filhos a estudar, ter um canto, não precisar de se preocupar todos os dias se tem comida para dar aos filhos, ir para numa cidade grande e ter muita coisa nova para ver, contrariamente aos seus olhos de agora, que só viram miséria.

No filme nunca há um beijo, uma carícia, uma palavra de amor trocada entre Fabiano e Vitória. Ali não há esse amor. O amor que há ali – e há e muito – é o amor que liga um humano a outro para atravessar o deserto, quer seja o sertão ou a existência. Porque o deserto do Sertão é aqui o deserto, ele mesmo, o deserto do Sertão, mas também uma metáfora da existência. Envolve estes personagens e envolve-nos a todos. Estamos todos náufragos no deserto. Quando Fabiano e Vitória, já no final do filme, a caminho de nada – mas com esperança de que haja alguma coisa – olham ao redor, não são só eles que vêem a paisagem árida quase infinita de nada do deserto do Sertão, somos também nós, os espectadores, que sentimos que apesar de privilegiados, infinitamente privilegiados se comparados com eles, também não vemos lugar seguro no horizonte. O amor, aqui, é um amparo, uma cumplicidade para atravessar a vida. É como se ambos dissessem “eu responsabilizo-me por estar sempre a teu lado e ajudar-te a atravessar o deserto.” E ajudam-se. Trabalham lado a lado, caminham lado a lado, suportam o peso lado a lado. Dois náufragos no deserto, que se amparam um ao outro, é este o amor que encontramos aqui.

É um filme acerca do qual não se escreve sem perturbação. Porque o filme é perturbação pura. E a perturbação começa logo no início com o barulho que se escuta durante os primeiros três minutos, o tempo do genérico. Um barulho profundamente irritante. E poucos minutos depois, Sinhá Vitória, numa pausa do caminho, logo no início, mata o papagaio que viajava com eles, para que tenham o que comer, e diz: “Também não servia para nada. Nem sabia falar.” Estava dado o mote. Muito se tem ligado este filme ao neo-realismo italiano, e não sou eu que o vou contrariar, mas há neste filme uma perturbação que dificilmente encontramos no neo-realismo destas nossas latitudes.

As últimas palavras do filme, que surgem escritas sobre a película, dizem-nos: “E o deserto continuava a mandar para a cidade homens fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos. GRACILIANO RAMOS” E continua a mandar. Continua a mandar.

3 Jul 2018

Agora, o regresso

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]embro-me de quando ganhámos o Euro. Vi o jogo com uns amigos nos kebabs do largo do Conde Barão. Os paquistaneses tinham instalado uma televisão na esplanada e asseguravam um fluxo ininterrupto de cerveja do balcão para as mesas.

Quando Fernando Santos fez entrar Éder, aqueles de entre nós que percebiam de bola um bocadinho mais de bola do que o adepto instantâneo que surge em todos os europeus e mundial jogaram as mãos à cabeça. O Éder? O Éder era aquele tipo alto e mal jeitoso que tinha uma relação mais complicada com o golo do que um neurótico com a mãe. O Éder estava lá porque tínhamos vergonha de apresentar uma convocatória desprovida de pontas-de-lança. Se calhar era um gajo que animava o balneário. Se calhar era o talismã ou a mascote. Mas não era certamente pelo talento para o jogo que tinha sido convocado.

Quando o Éder marcou, o mundo (pelo menos em Portugal) veio compreensivelmente abaixo. Era como se de repente todo o karma e todas as coisas maravilhosas passíveis de terem acontecido e de nos virem a acontecer tivessem confluído naquele ponto específico de espaço-tempo para nos redimirem de todas as vitórias morais, de todos os quase, da eterna maldição de sermos uma das melhores selecções do mundo sem baliza. Os deuses, por uma vez na vida, tinham engraçado connosco.

Celebrámos com abraços prováveis e improváveis. Lembro-me do empregado de mesa gritar “Portugal” como se tivesse sido possuído pelo espírito de um tenor num ataque de fúria doméstica. Quando soou o apito final, os donos dos kebabs deixaram de receber pela cerveja. Estiveram abertos até às seis da manhã a servir copos à pala. Afinal, não se é campeão europeu todos os dias e eles, portugueses por opção, festejaram como se tivessem no ADN um Afonso Henriques pronto a despertar.

Passados alguns dias, a euforia deu lugar a um contentamento envergonhado. Afinal, a presença na final tinha sido uma surpresa, tendo em conta o desempenho dos recém-empossados campeões europeus nas fases de grupo e nas eliminatórias. Ao contrário daquilo que estávamos habituados há uns dez anos, Portugal jogava mal e aborrecidamente e ganhava. Ou melhor, empatava no tempo regulamentar e decidia a coisa nos penalties ou através de um golo fortuito no tempo complementar. Era uma espécie de Itália sem a vocação ultradefensiva mas com muito mais sorte. No fundo, e não queríamos olhar a coisa por esse ângulo, mas havia uma parte de nós que sabia não que não merecíamos aquela vitória inusitada. Por outra parte, tínhamos o Ronaldo, e quem tem o Ronaldo arrisca-se a ganhar sem ter que justificar nada.

Este mundial, penoso de assistir, veio confirmar o que já sabíamos: a selecção dos anos noventa, a melhor do mundo sem balizas, já foi. Portugal é uma equipa regular, pragmática sem ser cínica, voluntariosa mas atabalhoada e solidária com a ideia de que Ronaldo tem a obrigação de resolver. É uma espécie de funcionário mais ou menos zeloso, mais ou menos competente, à espera da sorte de um deslize alheio para lhe calhar a promoção. Faz-me lembrar uma reportagem da saudosa liga dos últimos na qual um jogador de uma equipa da terceira divisão repetia, sem fim à vista, “somos todos humanos, onze contra onze, vamos danificar a camisola do clube”. Ao contrário desse jogador, já não temos a ideia de que vamos deixar tudo em campo no processo. Portugal já não é um país de românticos.

2 Jul 2018

Melancholia revisitada

[dropcap style=’circle’] F [/dropcap] austo na versão de Thomas Mann vende a alma ao diabo para obter anos livres de criação. Em troca, o compositor Adrian Leverkuhn não podia amar. Nem sequer “abrasar-se”. Era paradoxal, segundo uma das projecções da configuração do diabo. O diabo inspira a luxúria, a violência, o priapismo. O próprio casamento para o apóstolo Paulo era a segunda melhor opção. Melhor seria que nunca ninguém vivesse com outrem. O celibato era a melhor opção para o cristão militante. O exercício da castidade é o método.

Fausto, Adrian Leverkuhn, não chega a fazer bem a promessa. Facto é que durante 24 anos, qualquer forma de amor que o ligue a um qualquer ser humano: a uma mulher ou a um sobrinho, acabaria sempre por abortar. Ninguém fica impune a um coração partido. Como se sobrevive a uma decepção romântica? Uma mulher amada que faça a vida longe com outro homem com quem teve filhos é uma abstracção concreta. Não é nunca ninguém. É sempre alguém com o volume espesso do inatravessável. É compreendida com o coração como uma transparência absolutamente opaca. Uma criança amada que tivesse morrido ou fizesse vida fora das nossas vistas é o quê? É um vulto com uma biografia e uma cronologia que passam ao largo da nossa vida. Revisita-nos de quando em vez ou sempre, na realidade ou em sonho, mas não tem a espessura que o quotidiano dá às relações humanas.

O pacto de Fausto com o Diabo é feito, quando o artista é jovem. Na versão de Goethe é completamente diferente. Fausto é um homem velho que se apaixona por uma rapariga muito jovem. Compreende-se fora de prazo para o amor. A sua compleição física não é erótica nem sensual para a menina. Vende a alma ao diabo em troca de tempo. O tempo agora é de juventude e é um tempo para amar. O sábio abdica de tudo para regressar a um tempo em que era possível recomeçar de novo. Este recomeço é feito com a certeza de que não esbanjará de novo a vida com o estudo. Será para ter uma vida amorosa, banal para o teólogo e o filósofo, burguesa para o artista.

Não nos enganemos, vivemos a projecção existencial que compreende a vida a partir da situação esboçada por Thomas Mann. Talvez Nietzsche lhe sirva de modelo. E poderá mesmo servir, porque na sua biografia há elementos importantes que o deixam na situação de Fausto. Não se sabe se terá sido ou não correspondido. Não terá sido de certeza correspondido por quem quis ter e com quis ser, pressupondo que teria tido o talento para ser marido. As vidas fora da ordem da normalidade não são compatíveis com nenhuma forma de amor, não pelo menos aquela forma de amor que faz do outro a representação do tudo que nos diz.

O ricochete dessa impossibilidade não dá a paz da neutralização. Dá outra coisa. Se todas as acções ficam em quem as pratica, a renúncia ao amor é a mais poderosa das acções. Não se rejeita toda a gente, nem todas as mulheres, nem todas as crianças, nem todas as pessoas em geral. Só aquelas que nos podem tornar escravos delas. É que a renúncia ao amor que tem como objectos amores efectivos, reais, poderosos, violentos, traz consigo o poder criativo. É desse poder criativo que vive o sacerdote, o artista, o político, o poeta, o filósofo.

Sem querer pode ter-se feito o pacto. É-nos concedido tempo, muito tempo. Mas o pacto não nos blinda em absoluto. De quando em vez, vem até nós um sonho de amor. Como teria sido se tivesse ficado com alguém para ter sido a outra versão de mim próprio?

Talvez o Fausto de Goethe seja a versão velha do Fausto de Thomas Mann. Na verdade, quer-se tudo e não se pode ter verdadeiramente nada sempre nem da mesma maneira.

As asas da melancolia, ao baterem, afastam qualquer espécie de vida que tenhamos escolhido, presumindo que a escolhemos efectivamente.

29 Jun 2018

Viagens Oceânicas e entre mares

[dropcap style=’circle’] E [/dropcap] stá Camilo Pessanha ainda em Óbidos, Portugal, quando em Novembro de 1893 a Rainha regente de Hespanha, Maria Cristina da Áustria, convida todas as potências a participar na Exposição Universal Internacional. Realizar-se-á de Abril a Outubro de 1894 em Madrid e comemora o IV Centenário do Descobrimento da América. Inaugura quando o poeta simbolista está a chegar pela primeira vez a Macau e na secção portuguesa dessa exposição encontra-se a imagem do Arcanjo S. Rafael, a figura de proa da nau daquele nome, “uma grosseira escultura em madeira de azinho com 68 centímetros de altura”, relata o Echo Macaense, “Na base tem aparafusada uma chapa onde se fixava um barão de ferro que passava por duas argolas também de ferro, pregadas nas costas da imagem para a segurarem à proa do navio”. Caravela capitaneada por Paulo da Gama foi no regresso da primeira viagem à Índia queimada junto aos baixios, que ficaram com o nome de S. Rafael. Vasco da Gama tinha por esta imagem uma especial devoção, tendo-a levado consigo na segunda e terceira viagem que fez à Índia. “Talvez seja esta a única peça existente dessa primeira esquadra de 1497”. Quatro anos mais tarde, em Maio de 1898 participa Camilo Pessanha em Macau na celebração do IV Centenário do Caminho Marítimo para a Índia de Vasco da Gama.
Centenários de datas memoráveis, para a História de Portugal e a marcar o início de Espanha, excepcionalmente importantes para a Humanidade Europeia pois, dominado o Cabo das Tormentas passaram os oceanos a estar todos ligados e daí o mundo mudar para uma época nova. Pelas portas da Boa Esperança, prosseguem os portugueses na exploração das rotas deixadas de usar cem anos antes pelos chineses e atravessando o Estreito de Malaca, conquistada a cidade, em 1513 vão à China. Viagem num junco chinês partilhada com Nina Chatu, o Bendara de Malaca, ficando o feitor Jorge Álvares como o primeiro português a chegar por mar a terra chinesa.
Malaca era um reino tributário da China quando os portugueses a conquistaram em 1511, mas continuaram-se a enviar embaixadas ao Celeste Império sob costumes e direito marítimo malaio até 1517, nas quais os portugueses se integravam. Modalidade usada nesse ano para enviar Tomé Pires como primeiro embaixador de Portugal à China e esperava-se já na Boca do Tigre permissão para seguir viagem até Cantão, quando o Capitão Fernão Peres de Andrade reparou nos compartimentos estanques dos juncos chineses.

Orientados pelo Céu

[EM 2018 FAZ 600 ANOS] Gonçalves Zarco em 1418 chegou a Porto Santo e Tristão Vaz no ano seguinte à Ilha da Madeira. Estavam os portugueses a iniciar a aventura pelo Oceano Atlântico quando, ao outro lado de África, no Índico, aportavam os chineses a realizar as suas últimas viagens por mar, tendo legado os seus conhecimentos marítimos aos muçulmanos, recolhidos no Mar Arábico por Pêro da Covilhã e enviados do Cairo em 1491 para Lisboa.
A China dera um grande contributo à navegação com inventos como o leme de popa, o sistema de içar e baixar o leme, a divisão do casco do barco em compartimentos estanques, assim como pelos mapas celestes e terrestres, onde cartografaram as suas rotas, baixios, ventos e correntes.
Com o reconhecimento do Céu, a China no final do século I navegava até ao Golfo Pérsico e retirava-se do mar em 1433, após pelos oceanos Pacífico e Índico, em mar aberto atingir longínquos países e regiões de África Oriental, as costas do Malabar e o Sri Lanca, onde a China Han, pelo Reino Nanyue, fizera trato no século II com o Império Romano.
As últimas sete viagens por mar, iniciadas em Dezembro de 1405, tiveram como propósito do Imperador Yong Le desenvolver a influência da dinastia Ming, combater a pirataria nos mares do Sudeste Asiático e estreitar relações diplomáticas, políticas e económicas pelo mundo. Pretendia demonstrar o poder erudito e prestígio da civilização chinesa e por trocas de preciosas prendas esperava tornar vassalos outros países e regiões, alguns a necessitar voltar a cativar. Fechada estava a lucrativa rota terrestre da seda desde a substituição da dinastia mongol dos Yuan pela han dos Ming. Os mongóis controlavam os territórios para Norte e Oeste da China e a Ásia Central, por isso só havia um caminho, o mar. Um século depois, em 1513 chegavam em junco chinês os portugueses ao Celeste Império da Dinastia Ming, mas para aí se estabelecerem levaram quarenta anos de espera.

Fanfang

A cidade cristã de Macau era o único território dentro da China a ser governado por uma administração estrangeira durante a Dinastia Ming (1368-1644) e tal continuou com a chegada da dinastia manchu dos Qing (1644-1911). Privilégio concedido aos portugueses sob a forma do sistema de fanfang, arrendamento a permitir dentro de algumas cidades chinesas existir bairros cujos residentes estrangeiros se governavam com as suas próprias leis, logo que estas não fossem contra os princípios de soberania da China. Solução encontrada durante a dinastia Tang (618-907), havendo fanfang ao longo do território chinês pelos caminhos terrestres da seda e quando estes ficaram interrompidos, os bairros estrangeiros de mercadores muçulmanos, árabes, persas, judeus e hindus, mudaram-se para os portos marítimos, sobretudo durante a dinastia Song (960-1279). A Pax Mongólica abriu de novo os caminhos terrestres, mas a chegada ao poder da dinastia Ming, fechou a China a todo o comércio, tanto terrestre como marítimo e expulsou os estrangeiros.
Para apresentar a nova dinastia brilhante chinesa aos antigos reinos e países tributários do tempo da dinastia Song, o Imperador Yong Le, o terceiro da dinastia Ming, mandou fazer uma grande armada e sob o comando do Almirante Zhang He realizaram-se entre 1405 e 1433 as últimas Sete Viagens marítimas intercontinentais, deixando desde então a China o mar. O conceito dessas viagens, muito pelo peso confucionista, fora sobretudo de amizade e afirmação de protecção aos países tributários, não pagando os produtos trocados os enormes custos das armadas, que engoliram fortunas ao país. Valeu a investigação de conhecimentos nos portos onde aportaram para adicionar à Grande Enciclopédia, mandada compilar pelo Imperador Yong Le, trazendo-lhe novos produtos, animais e plantas desconhecidas no Celeste Império.
Em cada expedição, a armada era uma cidade flutuante de duas mil embarcações, com barcos jardins e hortas, e dividindo-se em diferentes frotas, combinavam encontros na longínqua África. Uns, navegando de porto em porto pela costa do Oceano Índico, visitando as comunidades chinesas ultramarinas no Mar Arábico, outros atravessando-o sem terra à vista, com a ajuda da bússola marítima, invenção chinesa do século XI.
Se a navegação portuguesa pelo Atlântico fez desaparecer a última porta que não deixava unir os oceanos, na viagem iniciada a 19 de Fevereiro de 1894, Camilo Pessanha pode já aproveitar um atalho aberto há 25 anos, o Canal do Suez, passagem inaugurada a 1869 entre o Mediterrâneo e o Mar Vermelho.

29 Jun 2018

Campeonato Mundial

25/06/2018

[dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]illiam Carvalho, intuo, passou a infância numa garagem que antes fora um galinheiro, daí que exiba no campo a velocidade da ervilha que mede pelo canto do olho o nervoso esporão do galo capão.

Diz o treinador que ele “andou perdido”. Em que labirintos não disse. Em que casa de passe? Em que casa de penhores, para onde um tio alcoólico lhe terá desviado o primeiro esférico de couro, oferta de natal? Em que crânio alheio? Eu há cinquenta anos que não conseguia ver num campo de futebol alguém disposto a demonstrar que o futebol se joga a passo, e para trás e para o lado e para trás, e que nada o distingue de um jogo de xadrez disputado por um caracol e uma couve galega. Nesta equipa que trabalha em slow motion, William Carvalho satisfaz todas as quimeras.

Eu é que “fico perdido” como espectador: os meus olhos correm para a frente no campo, à espera da bola, quando esta afinal revisitou a linha traseira e nela se demora em passes laterais. Não estranharia que levassem cartas para o campo e se entregassem igualmente os jogadores ao crapô ou à lerpa, o ritmo do jogo da equipa de Portugal autentifica que se podem fazer duas coisas ao mesmo tempo, vamos supor: jogar futebol e fingir que se joga futebol. Ou “andar perdido” e estar em campo.

O craque nesta inércia é o antigo médio sportinguista, talvez seguido pelo João Mário que sendo igualmente do género forreta faz muitas economias de energia.

Não sei de que escola de futebol terá saído este William – palpita-me que duma escola de maquinistas. Em apresentando-se em miúdo ao chefe da estação, disse-lhe este, Rapaz, se queres ser maquinista vem amanhã às oito com uma bicicleta. E ele não faltou. Ao que lhe sugeriu o chefe: Equilibra-te na bicicleta sobre o carril e pedala sem nunca perderes a lâmina do carril de vista. E lá foi, hora e meia até à terra mais próxima, para lá sobre o carril direito, de regresso sobre o esquerdo, a 2 km hora.

Agora, perdidas as veleidades de guiar um TGV, reduziu a velocidade de ponta para 1 km hora e neste gotejamento faz as transições no campo, pastando, mesmo que às tantas lhe ofusque ainda a luz do sol no carril –nestas alturas fica “perdido”.

Se eu soubesse que era isto tinha-me candidato à selecção. Andaria por ali com menos sono e como não sei o hino sempre mo ensinavam.

Bom, a avaliar pelo Dinamarca-França que decorre enquanto escrevo esta crónica o drama de William Carvalho é ter-se enganado na equipa, devia jogar na França, composta por onze velhinhas entorpecidas que fazem tricot.

26/06/2018

Das coisas mais difíceis de encontrar é o brilho do crânio.

Não para Sebastião Barbosa, um professor de Português e História expulso do ensino oficial, e que empreende uma viagem a Moçambique depois de um divórcio conflituoso. Em terras africanas muda de nome e já com novo patronímico mergulha nas noites loucas de Maputo, enquanto tenta adquirir a cabeça do presidente Samora para ampliar a sua coleção de crânios.

Farto de Clotilde Maria Barbosa da Encarnação Monteiro Pignatelli Andersen dos Santos Aragão e Mascarenhas, que lhe engomava o pénis ao domingo, Barbosa ruma a Maputo, entronizando-se numa atmosfera de uma sensualidade sempre em delta que lhe renova o ânimo e lhe permite descobrir a grande generosidade do seu carácter: é um homem tão solidário que não se importa de ser enganado.

É o que o leva a adquirir uma dúzia de crânios, alavancando a economia do país – dos partidos políticos até às mais irrenunciáveis personalidades, toda a gente lhe impinge o “verdadeiro crânio” do fundador –, sendo coberto dessa “aura renovada” que voltará a Lisboa com Graça, a vendedora de caju com quem teve uma epifania.

Desta epifania nasceu Afonso Henriques, o pequeno mancebo que será baptizado em Guimarães e com o qual se iniciará um novo ciclo de uma simbologia restauradora, quiçá, o Quinto Império.

Com brilho e muito humor cumpre Manuel da Silva Ramos este seu novo romance, Moçalambique (Parsifal, 2018). É evidentemente uma farsa política divertidíssima, em que a trama – e em Silva Ramos são sempre originais e extravagantes – é penetrada por um inesquecível gozo com a linguagem, uma das suas marcas de autor.

Não se pense, contudo, que o clima do livro descambe em facilidades e num erotismo vulgar, sobre tudo releva a engenharia literária. É da forma mais elegante que o romance nos faz conhecer através de elipses as desenfreadas aventuras sexuais de Sebastião:

«Estava a pensar no seu pai sempre escondidinho, discreto, hipócrita e, por fim, louco, quando ouvir bater à porta do quarto. Foi abrir. Era uma belíssima jovem de 18 anos.

– Sou a Célia, a prima do Iniciazinho.

– Entra, vamos ver o que se pode arranjar!»

Sebastião não é gabarolas ou se identifica com os conquistadores: é quase relutante que se entrega ao sexo. E o esquema repete-se, em série, mas inventivo, muitas vezes com epítetos em latim atribuíveis às donzelas:

«Vamos ver o que se pode arranjar, minha themeda trianda!»

Triste foi saber que este autor de 23 livros, e alguns excepcionais – lembro Os três Seios de Novélia, Os Lusíadas, Beijinhos e As Noites Brancas do Papa Negro (esta trilogia sobre os emigrantes em França, em co-autoria com Alface), Jesus, the Last Adventura de Franz Kafka, Café Montalto, Ambulância, Pai, levanta-te, vem fazer-me um fato de canela!, -, este autor inventivo que doseia sempre experimentalismo e uma inimitável capacidade de comunicação, tem um público reduzido contra tantos nabos que vendem como bananas.

O que me leva a concluir que só por abstracto acaso ultrapassaremos os oitavos de final no campeonato do mundo: os nossos melhores são invariavelmente trocados por um William Carvalho de escassa utilidade, ou com extrema função como fogueiro – desatentos a que os tempos sejam outros.

28 Jun 2018

Ponha-se no seu lugar

Parque das Nações, Lisboa, 9 Junho

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]em sempre os dias coincidem com as datas. Desmentindo Junho, o dia amanheceu cinza e chuvoso. Nem por isso impediu que se cumprisse a anunciada abertura de exposição que acaba sendo sobre um fecho. Raramente me encontro nas horas, aliás, assim sendo, faça-se fotografia: daquelas onde estamos sem fazer nada, apenas sendo. «Você (Não) Está Aqui» aproveita as fotografias do Bruno [Portela] para mostrar restos de não-lugar algures na encruzilhada entre o industrial lento, o rural perene, e o nada, simplesmente. Em sete sítios, estrategicamente colocados ao longo do que acabou sendo, há vinte anos, a zona de intervenção da Expo ‘98, os velhos slides iluminam-se para abrir cortes no tempo. O fotógrafo capturou o espírito, sobretudo com expediente de alto poder simbólico: ao compor as imagens usa amiúde dois planos, um próximo, e outro mais afastado, desfocando até um ou outro. O tempo capta-se melhor assim, suscita contraste entre o aqui e o longe, o parado e o movimento, coloca-nos em perspectiva. Pede-nos para avançar, para ganhar horizonte. Em qualquer direcção. A zona oriental de Lisboa, com e sem intervenção, ser-me-á continuadamente íntima.

Até Setembro ainda terei tempo de lá voltar para afiançar do impacto em advérbio das imagens, mas desta não consegui aproximar-me do Trancão que tanto atravessei, atravesso. Força maior colocava-me no hospital de S. José a cruzar, de autocolante no peito, a azáfama de desgraças confirmadas em voz alta, impudores expostos, macas desprezadas aguardando corpos de ocasião, despedidas chorosas, pensos de branco a brilhar nas partes dos corpos indefesos, gritos tesos e mudos, risos e ternuras, actos clínicos de passagem e olhos fechados a mentir descanso, mãos tocando-se como piano. Até chegar ao meu velho pai irritado por não lhe deixarem fazer a barba e, pior, lhe terem tirado o relógio com que governa o seu dia. No hospital estamos sempre sós, por mais companhia que tenhamos. E temos as horas todas e em peso.

Não se erguem os dias sem a argamassa da coincidência. Acabo de conhecer, pelas boas razões do encontro, o gentil Jean-François Revah, autor de curioso estudo dedicado aos condutores dos transportes colectivos, ainda para mais estabelecendo nexos com o meu estimado «Discurso Sobre a Servidão Voluntária», de Etienne de La Boétie: «Le discours de la solitude volontaire – lien social et conflictualité dans les metiers de conduite du transport collectif». Inúmeras são as questões abordadas a partir da identidade e da aprendizagem, da importância da profissão na construção de um sujeito activo, na relação deste com os que rodeiam, profissionais ou não do mesmo ofício, com o autor a tentar perceber o essencial das angústias de quem transporta a responsabilidade de transportar outros. Fiquei-me pelo belo início da viagem, que continua depois para lugares mais específicos e úteis. «Independentemente da situação objetiva de ser privado de companhia, o sentimento de solidão interior desperta ansiedades arcaicas relacionadas com a mais completa de todas as experiências vividas: ser entendido. A nostalgia de ser entendido deriva, então, do sentimento depressivo de ter sofrido a perda irreparável de uma situação outrora gratificante na qual a comunicação e a segurança eram obtidas sem o uso da palavra.» Escusado será escrever que o meu pai foi, entre outras identidades, condutor. De eléctricos que desciam as colinas em velocidades líquidas. De autocarros de dois pisos que ainda percorrem as minhas zonas orientais.

Liga dos Combatentes, Lisboa, 9 Junho

Lisboa possui ainda destas rarezas: na exacta curva da rua, a porta abre para encenação de memórias, uma travagem brusca na fluidez do tempo, na sala os ecos dos combates, a janela atira vistas para O Século, desaguando o conjunto, como de costume, no rio pessoano. Antes, enquanto fumávamos a espera com o mano mestre do tempo, el António [de Castro Caeiro], pássaros indistintos atiravam-se suicidas contra o muro da colina abaixo do Conservatório penetrando o concreto cinzento de Juan Gris. Estamos como se vivêssemos em uma das colagens do Felipe Benítez Reys, pedaços contra o cenário de autor, e vemo-nos, de súbito, no lugar exacto para ouvir as suas incursões pessoanas recolhidas à chuva em «Privilégio de Penumbra», que o Vasco [Gato] soube tornar transparentes. «Estou cansado de sentir./ De sentir até esses sentimentos/ que deixei há algum tempo de sentir/ e que regressam do passado como um eco/ para que eu os sinta sem os sentir.» Como uma nuvem cubista de Almada navegando a fingir pensamentos, nestes dias, não larguei a singela plaquete, que, apesar de um ou outro sublinhado de imperfeição (as colagens deveriam ter sido noutro papel, uma deles escureceu como tarde de Inverno, a gralha grasnou), me agrada sobremaneira. Ou não fora Lisboa um dos mares que navega. Um dos poemas pertence ao mais recente, «Ya la sombra», que o Felipe generosamente acaba de me oferecer (batota com sentido) fazendo-o matéria dos dias adiante (mais batota que o tempo desmentirá) e prendendo-me mais ainda nas volutas melancólicas da sua espiral, da sua minuciosa investigação em feiras da ladra da memória perseguindo as rodas dentadas do mecanismos do tempo. E portanto da morte, esse sombra a fingir-se lugar. «Que trace la noche el mapa/ del sitio em el que no estoy./ Que vengo de donde no estuve./ Que soy tan sólo el huido./ Y yo no tengo un lugar.» O meu lugar são versos. Será a noite verso teu, Felipe?

Galeria do 11, Setúbal, 9 Junho

Não consigo correr a tempo de outra exposição da Festa, cujo título se me fez programa: «A vida é engraçada, mas eu levo-a muito a sério», dedicada a Tóssan. Nos últimos meses, fui testemunha do maravilhamento crescente do Jorge [Silva], ignorando até o princípio da realidade que nos escraviza, com a investigação em torno desta figura sui generis. António Fernando dos Santos (1918-1991) continua a fazer sorrir, percebemos nós. Quem com ele contactou continua a celebrar uma disposição e abertura à vida que se revela plenamente nas suas línguas: escrita, desenho, design. Sei que perderei festa emocionante, na qual se celebrará, sobretudo, a amizade e a alegria de viver. E a memória. Apesar das sombras. Tenho na mão o livro-nuvem que prolongará o essencial. Com formato generoso de álbum, evitámos a capa dura e experimentámos, até na gramagem do papel, algo mais ligeiro, sem a transparência perturbasse a fruição. Resultou mais lúdico, afastando-o da praga dos coffe table books. Em modelo que andamos a apurar há algum tempo, oferece-se mormente imagens, com pequenos textos de enquadramento, muito saborosos, como o Jorge diz não saber fazer mas desmente a cada passo, e que se revelem transparentes na simpatia pelo seu tema. Recolhem-se nestas páginas algumas delícias, muita informação e um sem número de inéditos. Podia ater-me ao desenho de miúdos, perdoe-se a pedofilia, a série Cão Pêndio, certa capa expressionista, a coluna Lógica Zoológica, que misturava texto e desenho, magníficos ambos, e de que me recordo de o bisnau, ou as aventuras do detective Pararraios. Fico-me, às tantas, por ilustração de 1959, algures na página, que levava por título «Solidão ai dão, ai dão». E um dos poemas (inéditos), que o Jorge escondeu (com ponto de fora) nas badanas: «O escritor/escreve um livro/ de tantas páginas./ A páginas tantas,/ essas páginas/ são editadas pelo editor./ Mas do livro,/ não se vende uma página!/ A páginas tantas/ morre o Escritor./ Esgota-se o livro./ E com a indigestão/ de tantas páginas,/ a páginas tantas/ morre o Leitor./ E o Editor/ Como já não tem páginas/ morre às tantas.»

10 Junho

Termina a Feira do Livro de Lisboa em enorme bocejo, que só me consome caracteres. Panorâmica de done sobre filas e filas: para o autógrafo dos da televisão, para o bolo de caco e o sumo biológico, para as selfies com o Presidente da República. Nem vou ali, nem venho já.

27 Jun 2018

Apresentado estudo pioneiro sobre o valor económico e social do património arquitectónico português

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] Nova School of Business & Economics e a Spira – agência de revitalização patrimonial, com o mecenato exclusivo da Fundação Millennium BCP, promovem o estudo pioneiro “Património Cultural em Portugal: Avaliação do Valor Económico e Social”. O estudo conta ainda com o Observatório do Património como parceiro, com o apoio da Portugal Heritage e com a patrimonio.pt como media partner. Em torno do projecto estão José Tavares, da Nova School of Business & Economics, Catarina Valença Gonçalves, da Spira, e José Maria Lobo de Carvalho, do Observatório do Património, apoiados pela Fundação Millennium BCP. A Nova SBE é uma das faculdades da Universidade Nova de Lisboa e a mais prestigiada escola de negócios em Portugal e uma das mais importantes na Europa, e a Spira é uma empresa especializada na concepção, execução e produção de projectos de revitalização patrimonial.

O estudo, que decorre durante o ano de 2018, foi apresentado no passado dia 18 de Abril, Dia Internacional dos Monumentos e Sítios, na Fundação Millennium, numa sessão que visou também recolher opiniões, sugestões, críticas e advertências que a comunidade possa trazer a este instrumento de trabalho, e incluir essas recomendações. Está ainda prevista uma apresentação preliminar para a edição deste ano da AR&PA – Bienal Ibérica do Património Cultural, a decorrer em Valladolid, em Novembro; e uma apresentação final no mês de Dezembro, na sede da Fundação Millennium BCP.

Os autores do estudo consideram que, perante a tendência evidente de estruturação do sector, abordagem estratégica e ganho de escala e amplitude de representação e actuação de agentes, importa, por um lado, analisar o momento em que o país se encontra do ponto de vista de organização do sistema da gestão patrimonial, confrontando essa análise com a leitura de casos internacionais de destaque; assim como importa aferir economicamente o valor do recurso endógeno transversal ao território do país que é o património cultural. O cruzamento destes dados permitirá identificar modelos de gestão, linhas de actuação, prioridades, critérios, isto é, uma estratégia de longo prazo para o melhor retorno, sustentabilidade e partilha do património cultural de Portugal. O estudo, inédito em muitos aspectos, inventaria e sistematiza exaustivamente, pela primeira vez, todo o património edificado em território nacional, composto por cerca de 30.000 monumentos classificados, um trabalho que tem sido feito, mas que nunca foi devidamente organizado pelas várias instituições, acabando resultar num inventário do património não uniformizado.

Antecipa-se a relevância do património como recurso endógeno que pode contribuir de forma decisiva para um desenvolvimento harmonioso do país pela sua equitativa dispersão geográfica e diversidade tipológica.

Catarina Valença Gonçalves, directora-geral da Spira e historiadora de arte, que coordena o projecto, considera que o património cultural pode ser gerador de formação qualificada, de uma maior estabilização da população no interior do país, de criação de emprego e de criação de inovação. Considera que esta dinamização económica das regiões irá trazer, entre outros factores, a fixação das pessoas, a criação de riqueza e tornar os territórios apelativos para visitar e para a fixação de mais pessoas.

Tendo em conta a população residente, as regiões do Alentejo, da Beira Interior, uma parte de Trás-os-Montes e do Alto Minho têm a maior concentração de património por habitante do país, até mais elevada que Lisboa e Porto. Porém, em termos de visitantes, a maior concentração encontra-se em Lisboa e Porto, cerca de 40%, sendo muito evidente, através duma análise dos números, que há uma disparidade (no território nacional), e um desperdício da potencialidade da atractividade, nomeadamente turística, do conjunto de património monumental que todos herdámos, e que está nas regiões. A historiadora entende, assim, que o país não precisa de construir nada, nem o `shopping`, nem o castelo nem as igrejas porque já lá estão, tendo essa enorme vantagem, e há é que activar tudo isto, económica e socialmente.

Além disso, a historiadora considera que “a distribuição no país do património cultural edificado é muito equilibrada, quer do ponto de vista de quantidade, quer do de qualidade e de atractividade, mas não há nesses territórios a adaptação a este recurso. É necessário criar nas diferentes regiões as condições necessárias, como formar um olhar e uma perspectiva económica sobre esse património. A questão que coloca é, com o fluxo de turismo que já se aproxima do excesso em Lisboa e no Porto, porque não aproveitar este recurso em todo o país? A ideia parece óbvia mas não se põe mãos à obra sem primeiro estudar o terreno.”

Neste sentido, Catarina Valença Gonçalves sublinhou que “qualquer valorização do património cultural do ponto de vista turístico – tendo em conta o que são as tendências do turismo, em que as pessoas procuram autenticidade e contacto com a população local -, obriga a que o próprio território seja o cicerone desses turistas, enfatizando que tem de haver pessoas da região a receber os turistas. Defendeu a necessidade de formação na área do turismo cultural dando, desta forma, uma carreira profissional aos jovens, que podem, assim, criar empresas locais e criar valor e, deste modo, contribuir para uma melhor e mais harmoniosa distribuição da população pelo país”. A responsável afastou qualquer “perspectiva capitalista ou meramente económica” deste projecto, mas antes “adicionar um olhar económico-social ao olhar cultural”.

Referiu ainda que “o património cultural raramente é visto como um activo estratégico do ponto de vista do desenvolvimento económico e social. Nunca foi feito um levantamento do que existe e muito menos foi feita uma análise do que isso pode significar”. E é por aí que o estudo vai começar a ser feito. Um levantamento exaustivo das igrejas, capelas, túmulos, sítios arqueológicos, castelos, fortalezas, e e outro património, que existem de norte a sul do país e que têm o seu valor simbólico por analisar e o seu verdadeiro potencial económico por aferir. Uma segunda etapa será a distribuição geográfica desses monumentos, e tentar perceber qual a incidência de património classificado ao longo do território.

O propósito deste estudo é olhar também para os 308 concelhos nacionais e perceber quantos mosteiros ou igrejas existem per capita, ou seja, que “activos patrimoniais há por habitante”. Catarina Valença Gonçalves diz que “este é o melhor negócio que podemos ter visto que a infra-estrutura já lá está, sendo só preciso animá-la, aplicar o nosso conhecimento para saber como animá-la e usá-la. Até as auto-estradas já existem!”

Será ainda levado a cabo um inquérito com vista a identificar uma base de cerca de 350 elementos do parque patrimonial, que, pelo número de visitantes, empregos associados e receitas directas, permita qualificar um número de visitantes para cada concelho do país de forma mais correcta. Além disso, depois de feito esse inquérito, será realizada a caracterização do sistema de gestão em uso pela Direcção-geral do Património Cultural, a entidade estatal que gere o património, e para as políticas culturais nesta área dos últimos 44 anos.

Catarina Valença Gonçalves referiu que “a ideia é fazer recomendações estratégicas para o sector com base numa análise crítica dos números, comparar o nosso sistema de gestão com outros modelos europeus, perceber o que funciona ou não e o que é possível fazer em Portugal. Esta abordagem nacional, que pela primeira vez inclui as ilhas, é uma espécie de ‘começar de novo’, apoiado na premissa de que todos os territórios são iguais e de que é preciso ‘olhar para o que temos’ para a partir daí recriar dinâmicas locais.”

Portugal tem uma das mais baixas taxas europeias de visitantes nacionais a monumentos e museus, estimando-se que cada estrangeiro que veio a Portugal em 2017 (um número que se aproxima dos 12,6 milhões) tenha visitado, em média, um monumento durante a sua estada, sendo o património cultural, amiúde, a principal motivação da sua vinda a Portugal. Porém, existem 4300 imóveis classificados – 15 detêm a classificação da UNESCO de Património da Humanidade – e 30 mil bens patrimoniais imóveis inventariados, lista a que acresce o património intangível já classificado também pela UNESCO: chocalhos e olaria preta de Bisalhães, cante alentejano, fado e bonecos de Estremoz, e ainda, em conjunto com outros países, a dieta mediterrânica e a falcoaria.

José Tavares, da Nova SBE, explicou que, apesar disso, quando falamos em monumentos mais visitados, falamos sempre dos mesmos dez, aqueles cujo investimento turístico é mais forte, onde os meios de transporte mais chegam, onde existem mais agentes económicos, mais hotelaria e mais operadoras, e dá um exemplo: há três milhões de visitantes nos Parques de Sintra, um fluxo excessivamente orientado para os mesmos locais. Logo, a assimetria económica não corresponde à assimetria patrimonial. Outro exemplo é a Rota do Românico, em Lousada, que compreende 12 municípios e mais de 30 monumentos. A articulação entre eles teve como resultado o sucesso do número de visitantes, êxito na educação patrimonial, recuperação e criação de emprego.

Depois de fechada a análise a nível nacional, proceder-se-á ao cruzamento de dados com os existentes nas entidades públicas como a DGPC, o INE, e o monumentos.pt e ver se há incongruências. Tudo isto envolve dados geográficos, demográficos, descrição, localização e distâncias entre monumentos. No entanto, a base para inferir o valor económico e social do património cultural é deduzida a partir de três grandes factores associados: o emprego gerado, a receita (de bilheteira) e o número de visitantes de cada monumento. José Maria Lobo de Carvalho, do Observatório do Património, referiu a este propósito que “cruzando todos os dados se podem determinar quais são os factores mais importantes para cada município.”

O passo seguinte é descrever o modelo de gestão que existe e propor o modelo que maior rentabilidade dá. A isto chamam os criadores do estudo “potenciar o impacto económico e social do património cultural”. Uma metodologia que vai pela primeira vez ser aplicada. José Tavares explicou que “os dados são para ser interpretados através do princípio da história e técnicas estatísticas para inferir qual é o potencial valor, gerar uma estimativa município a município, para que os atores políticos e privados possam dizer o que vão fazer a mais.”

O retrato à escala nacional tem objectivos tácticos e estratégicos: avaliar o potencial de distribuição do tráfego turístico, nomeadamente para o interior do país — potencial esse que ainda não foi nem avaliado nem devidamente explorado —, contribuindo, desta forma, para que o património cultural seja reconhecido como parte integrante da agenda estratégica económica e social do país.

Note-se que são poucos ou nulos os intervenientes privados na gestão do património cultural português, representando este a maior fatia do Orçamento de Estado para a Cultura e executando-se principalmente em obra física nos monumentos, esquecendo-se quase sempre a fruição do mesmo.

Nas suas recomendações estratégicas, de resto, os elementos que realizam o estudo propõem avaliar a criação de modelos de parcerias interinstituições a nível nacional e regional, a criação também de modelos de parcerias público-privadas e a concretização de uma nova mecânica de financiamento dos recursos considerados activos estratégicos, que conte já com o apoio do Turismo 2027 e do Portugal 2020 e futuro quadro comunitário.

O estudo não deixa de lado a vontade de mostrar a capacidade dos vários territórios de fixar gente, apresentando-se como um caminho para a sustentabilidade e regeneração do interior e “para uma nova abordagem às políticas dessa região”.

O estudo estará disponível online em versão portuguesa e inglesa (www.valordopatrimonio.pt), bem como será editada uma versão portuguesa do estudo completo. O acompanhamento do estudo e de alguns dos dados alcançados à medida do seu desenvolvimento serão divulgados de forma periódica na plataforma patrimonio.pt.

27 Jun 2018

A actualidade de “Terra em transe”, de Glauber Rocha

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m 1964 um regime militar derruba o governo democrático do presidente João Goulart e institui a ditadura. Em 1967, Glauber Rocha filma Terra em Transe – que nesse ano vence o Prémio da Crítica no Festival de Cannes – e traça uma estranha fábula acerca do Brasil, que pode ser estendida à América do Sul.

O país desta fábula chama-se República de Eldorado. É um filme político, claro. Mas é também um filme de uma beleza sinistra. O preto e branco do filme parece nunca nos mostrar o seu lado branco. O branco aparece sempre carregado de algum cinzento. O céu parece nunca brilhar. Aqui, não reconhecemos o país do sol, como por muitos é conhecido. O filme não tem as cores da terra do sol, tem as cores da asfixia, as cores de uma força militar imposta. Não pelo preto e branco, mas pelo preto e branco deste filme de Glauber Rocha. Se na semana passada já tínhamos falado aqui de um preto e branco especial, o de Jim Jarmusch em Stranger Than Paradise – e também no posterior Down By Law –, onde o branco e o preto contrastam no seu esplendor, acentuando os branco e preto, apesar do granulado da película, este preto e branco de Glauber também se destaca mas nos antípodas do filme de Jarmusch, os branco e preto quase se esbatem num eterno e omnipresente cinzento.

Tudo é ou parece ser cinzento. O único branco do filme é o casaco do vereador populista Vieira (José Lewgoy). E os planos de Glauber são asfixiantes, a despeito dos horizontes tropicais que de quando em quando fecham as cenas filmadas nos exteriores. A forma em si mesma, o modo como o filme é filmado, faz-nos sentir presos, fechado naquele Eldorado que parece não ter solução. O espectador não pode deixar de se sentir parte daquele país, parte daquele modo claustrofóbico de viver. E este não ter solução, acerca de Eldorado como metáfora do Brasil, pode ser estendido a toda a América do Sul.

Recentemente na Colômbia, numa retrospectiva sobre a obra de Glauber Rocha, no Festival de Cinema de Cartagena, o FICCI (Festival Internacional de Cinema de Cartagena das Índias), a jornalista portuguesa Cláudia Marques Santos conta-nos que à saída da exibição de um dos filmes, um jovem aluno de filosofia, de 21 anos, dizia: “Eu diria que o cinema do Glauber Rocha é muito importante, permite-nos olhar para nós mesmos, permite que nos vejamos ao espelho. Nós vivemos actualmente a violência. Não é apenas memória.” (Jornal Público, 20 de Maio de 2018) E se esta actualidade é verdadeira na Colômbia, muito mais a é no Brasil. Infelizmente, para além das qualidades poéticas dos filmes de Glauber Rocha, as suas alegorias políticas e sócias continuam actuais. Ainda na reportagem da jornalista portuguesa, podemos ler o que uma jovem estudante de cinema, também 21 anos, diz à saída de outro filme de Glauber: “Rocha representa muitas coisas que existem também na Colômbia: a corrupção, muitos políticos falsos, muitos lobos vestidos de ovelhas.” (Ibidem) E neste filme, Terra em Transe, os interesses acima de qualquer suspeita atravessam o filme de cabo a rabo. Mas para atentarmos melhor na actualidade do filme, veja-se esta sequência, já na parte final, em que Sara (Glauce Rocha), que é professora e revolucionária, dialoga com Paulo Martins (Jardel Filho), que é jornalista, poeta e amigo do tecnocrata Porfírio Diaz (Paulo Autran), numa rua, no meio dos populares e de alguns políticos:

“ Sara: Veja, Vieira não pode falar.

Paulo: E por mais de um século ninguém conseguirá.

Sara: Você jogou Vieira num abismo.

Paulo: Eu? O abismo está aí, aberto. Todos nós marchamos para ele.

Sara: Mas a culpa não é do povo. A culpa não é do povo. A culpa não é do povo.

Paulo: Mas saem a correr atrás do primeiro que lhes acena com uma espada ou uma cruz.

Sara: (segurando um cidadão) O povo é Jerônimo. Fala Jerônimo. Fala.”

Faz-se silêncio. O filme, ele mesmo, fica mudo por um curto instante, até que um dos políticos se aproxima de Jerônimo, lhe põe uma mão sobre o ombro e diz: “Não tenha medo, meu filho! Fale! Você é o povo.” E volta a afastar-se, deixando a câmara sobre Jerónimo. E o plano vai abrindo e mostrando aqueles que o envolvem: a igreja, os militares, os políticos, os idealistas revolucionários. De repente, ele fala directamente para a câmara: “Eu sou um homem pobre, um operário. Sou presidente do meu sindicato. Estou na luta das classes. Acho que está tudo errado. Eu não sei mesmo o que fazer. O país está numa grande crise e o melhor é aguardar a ordem do presidente.” Neste momento, Paulo aproxima-se dele por trás e tapa-lhe a boca. Dirige-se para a câmara, ainda com a mão na boca de Jerônimo, e diz: “Estão a ver o que é o povo? Um imbecil. Um analfabeto! Um despolitizado! Já pensaram um Jerônimo no poder?” Hoje, esta cena é arrepiante. Oracular. Hoje, é impossível não ver em Jerónimo, Lula da Silva. Aquele homem do povo, analfabeto, dirigente sindicalista com a boca tapada é Lula da silva. “Já pensaram um Jerônimo no poder?” E esta frase continua actual! E à beira das eleições no Brasil, não podemos deixar de tremer ao escutar esta frase “Mas saem a correr atrás do primeiro que lhes acena com uma espada ou uma cruz.”

A cena de Jerônimo com a boca tapada pelo jornalista e poeta Paulo é posteriormente interrompida por um anónimo do povo (o actor Flávio Migliaccio), com a camisa toda rasgada e de pé descalço, que diz, também em forma de oráculo: “Um momento! Um momento, minha gente! Um momento! Eu vou falar agora. Eu vou falar. Com a licença dos doutores, seu Jerônimo faz a política da gente, mas seu Jerônimo não é o povo. O povo sou eu que tenho sete filhos e não tenho onde morar.” É de imediato interrompido e acusado de extremista. É morto.

Em Eldorado é clara e assustadora a diferença, o abismo que separa os ricos dos pobres. Os primeiros nas suas torres de marfim e os últimos de pés rapados. E à volta de todos uma profunda ignorância. A ignorância, a fome, a violência. Escreve a jornalista Cláudia Marques Santos, infelizmente com acerto: “Nunca ter vindo à América do Sul é já ter vindo à América do Sul. Graças ao cinema de Glauber Rocha.” (Ibidem)

O filme foi evidentemente proibido durante a ditadura militar. E, em Portugal, também foi proibida a sua exibição até à queda da ditadura salazarista em 1974. Eldorado, infelizmente, continua a assombrar-nos. Inesquecível, o rosto de Paul Autran, com os cabelos ao vento, bandeira negra numa das mãos e um crucifixo na outra. Um filme magistral, de uma beleza sinistra, que faz corar a ética, depois de forçá-la a ver-se a si mesma ao espelho. Actual como a infelicidade.

26 Jun 2018

A infância ao longo da vida

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] infância é o território pluripotencial do sonho. Tudo é possível. Podemos ser astronautas, veterinários, bailarinos. Nascemos ilimitados para o mundo, mesmo quando este se revela um lugar inóspito onde só parece vicejar a miséria, e a idade é um funil poroso através do qual vamos actualizando ou perdendo as possibilidades com que todos nascemos. Como se levássemos um grupo de miúdos pela mão a passear e nos déssemos conta, a certa altura, de termos deixado mais de metade pelo caminho.

Quando era criança, queria ser astronauta. O grande mistério – e o grande interesse – era o que estava longe. Longe estava igualmente de perceber que a proximidade não era de todo sinónimo de clareza e que as motivações dos homens podiam ser tão insondáveis como a mais distante estrela.

Com sete ou oito anos, pedi ao meu pai para me comprar um livro especial: “Astronomia para amadores”. Se queria ser astronauta, era importante preparar-me teoricamente. Tudo me fascinava. Os tipos de estrelas; as suas dimensões e temperaturas incompreensíveis; a velocidade da luz no vácuo; a distância entre os corpos celestes. Estava convencido de que havia uma organização inteligente por detrás da composição de um espectáculo aparentemente tão perfeito. E estava convencido de que tornar-me astronauta era ter a possibilidade de chegar mais perto do mistério.

Como é óbvio, e embora a paixão pela astronomia não se tenha dissipado com a idade, não me tornei astronauta. Como muito de vocês não se tornaram veterinários, actores ou bombeiros. Deixámos isso na infância e pelo caminho alimentámos outros sonhos, outras possibilidades. Ser adulto é também – e sobretudo – isso: conformar-nos com a realidade. Como aquelas ementas deliciosas das quais afinal só sobram meia dúzia de pratos que eram as nossas terceiras escolhas.

Quando olho para trás, percebo que não foram as estrelas ou as constelações que me fizeram apaixonar pelo espaço. Foi o mistério, essa intangibilidade de muitos nomes. O mistério que atrai tanto os poetas como os filósofos e teólogos. O mistério que de algum modo justifica e dá sentido a esta existência infinitesimal que fingimos, logo de manhã ao acordar, ter espessura.

Escrever tornou-se para mim uma forma de tentar acercar-me do mistério. É o meu espaço possível. É onde encontro a infância, o outro, o exótico e o familiar, os meus mortos e os mortos alheios, aquilo que deixei pelo caminho e aquilo com que fui substituindo o que deixei. Dir-se-á que é um fraco paliativo para a contemplação da terra na órbita da mesma. Verdade. Mas há quem não tenha encontrado um paliativo. E há esteja tão distraído com a seriedade que impõe ao dia-a-dia que já não dá conta de que este é apenas um aspecto ínfimo de uma coisa muito mais vasta e permanente.

25 Jun 2018

O nada esvazia

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] negação na vida não é apenas lógica. Fazemos a experiência do “não” de diversos modos. Logicamente podemos perceber que não nega um predicado dito de um sujeito: o quadro não é preto, o tampo da mesa não é branco. Pode também negar a existência ou a disponibilidade de um sujeito: já não existem dinossauros, já não há leite, no sentido em que dizemos que acabou o leite na dispensa. A forma como a lógica e a linguagem pensa a negação é complexa porque a operação de negação se complexa conforme os horizontes semânticos que se constituem. É possível que não chova é diferente de é provável que não chova e diferente ainda de é necessário que chova. A complexificação do pensamento modal implica todo um conjunto de correlações entre o ser necessário e o ser possível. Mas também podemos trazer quantificadores à colação. É possível que nem todas as pessoas tenho os mesmos gostos. Não é possível que algum ser humano não seja mortal. A predicação negativa, a negação da existência absoluta de um objecto expresso como sujeito gramatical, a negação modal e a negação quantificada enquanto tais e individualmente e numa relação entre si dá para podermos perceber a densidade do operador de negação. Se acrescentarmos ainda a dupla negação e compreendermos como a afirmação pode daí resultar, então a análise terá de sempre sempre também semântica e pragmática e não apenas sintática.

Há, assim, muitas maneiras de dizer “não”. Há muitas maneiras de expressar a negação. Com pronomes: ninguém, nenhures. Com advérbios: nunca, nenhures.

A antiguidade pensa a “negação” não apenas como apofático (enunciado declarativo negativo, como demos alguns exemplos lá em cima) mas também como privação (sterêsis). A cegueira é uma negação essencial da possiblidade da visão. Ter olhos não quer dizer ter a possiblidade da visão. Há coisas em sonhos e ficção que não são vistas com os olhos. Toda a forma de mutilação que resulte de amputação não é uma mera negação. O corpo humano é um todo que sem partes deixa identificar diversas impossibilidades, de outro modo possíveis se não estivesse privado delas. Se a mesa não tiver tampo ou não tiver pernas, se a porta não tiver trinco ou não estiver encaixada, se a estante ou a tenda não estão montadas, sucede não apenas uma negação lógica mas a compreensão da impossibilidade de uma possibilidade.

E, contudo, a vida ensina-nos outras formas de negação bem mais profundas, apesar da complexidade “lógica” daquelas que enunciamos.

Mais abissal do que a mera negação que se adequa ao pensamento do que não existe e não há é a dureza da contrariedade. A abominação da solidão é duríssima e não anulável. É agudíssima. Em toda a recusa, encontramos uma dor impiedosa. Toda a interdição e proibição nos faz ver o que não é para nós, quem não é para nós. Faz-nos ver também quem nós nunca seremos. Em toda a carência, haverá mais amargura? A interdição, a abominação, a rejeição, a contrariedade, não são ausências de registo de possibilidade, mas possibilidades impossibilitantes. Trazem simultaneamente consigo, na verdade da noite da angústia, o que corresponde ao sentido do ser na sua possibilidade de problematização extrema. O que é possível é arrancado ao nada.

25 Jun 2018

Poesia de Georg Trakl

ALMA DA VIDA

 

Decadência, que suave ensombra a folhagem.

O seu amplo silêncio mora na floresta.

Em breve, uma aldeia parece inclinar-se, como um fantasma.

A boca da irmã sussurra nos ramos negros.

 

O homem solitário vai desaparecer em breve,

Talvez seja um pastor, sobre caminhos sombrios.

Sai em silêncio um animal da arcada de árvores,

Enquanto as pálpebras se abrem bem perante a divindade.

 

O rio azul escoa, belo.

Nuvens mostram-se de noite.

A alma está num silêncio angelical.

Figuras passageiras decaem.

 

Seele des Lebens

 

Verfall, der weich das Laub umdüstert,

Es wohnt im Wald sein weites Schweigen.

Bald scheint ein Dorf sich geisterhaft zu neigen.

Der Schwester Mund in schwarzen Zweigen flüstert.

 

Der Einsame wird bald entgleiten,

Vielleicht ein Hirt auf dunklen Pfaden.

Ein Tier tritt leise aus den Baumarkaden,

Indes die Lider sich vor Gottheit weiten.

 

Der blaue Fluß rinnt schön hinunter,

Gewölke sich am Abend zeigen;

Die Seele auch in engelhaftem Schweigen.

Vergängliche Gebilde gehen unter.

 

Dia de Todos os Santos

a Karl Hauer

 

Triste aliança, homenzinhos, mulherinhas,

Espalham hoje flores azuis e encarnadas

Sobre as suas sepulturas, que timidamente se aclararam.

Agem como pobres marionetas perante a morte.

 

Oh! Como parecem existir aqui cheios de angústia e humildade,

Como sombras de pé atrás de negros arbustos.

No vento de outono, lamenta-se o choro das crianças não nascidas,

Também se vêem luzes perderem-se na loucura.

 

Os suspiros dos amantes sopram nos ramos

E lá apodrece a mãe com a sua criança.

Irreal parece a dança dos seres vivos

E admiravelmente espalha-se no vento nocturno.

 

Tão confusa a vida deles, tão cheia de lúgubres tormentos.

Tem piedade, Deus, do inferno e do martírio das mulheres,

E do seu lamento mortal, desesperançado.

Sozinhas, em silêncio, vagueiam na sala das estrelas.

 

Allerseelen

An Karl Hauer

 

Die Männlein, Weiblein, traurige Gesellen,

Sie streuen heute Blumen blau und rot

Auf ihre Grüfte, die sich zag erhellen.

Sie tun wie arme Puppen vor dem Tod.

 

O! wie sie hier voll Angst und Demut scheinen,

Wie Schatten hinter schwarzen Büschen stehn.

Im Herbstwind klagt der Ungebornen Weinen,

Auch sieht man Lichter in der Irre gehn.

 

Das Seufzen Liebender haucht in Gezweigen

Und dort verwest die Mutter mit dem Kind.

Unwirklich scheinet der Lebendigen Reigen

Und wunderlich zerstreut im Abendwind.

 

Ihr Leben ist so wirr, voll trüber Plagen.

Erbarm’ dich Gott der Frauen Höll’ und Qual,

Und dieser hoffnungslosen Todesklagen.

Einsame wandeln still im Sternensaal.

22 Jun 2018

Os sobreviventes do Passaleão

[dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]o artigo da semana passada afloramos a governação de Macau pelo Capitão-de-mar-e-guerra João Ferreira do Amaral e o seu assassinato em 22 de Agosto de 1849, história interrompida na altura em que três dias depois, sem ordem superior o macaense 2.º Tenente Vicente Nicolau Mesquita convida os soldados que o quiserem acompanhar para ir tomar o forte do Passaleão (Pac-Sa-Leong) a meia milha das Portas do Cerco e vingar assim a memória do Governador.

A 25 de Agosto, às 4 da tarde (complementa Armando Cação), “Trinta e seis bravos voluntariamente responderam ao seu brado, e avançaram para o forte debaixo do mais aturado fogo de artilharia e fuzil deste e das iminências, através de difícil terreno, caminhando apenas os soldados um a um, sobre os estreitos valados que em frente do forte cortam o terreno, todo alagado com plantações de arroz; apesar de tudo, dentro de uma hora aquela força se assenhoreou do forte Passaleão, que estava guarnecido com vinte grossos canhões e 400 homens, coadjuvados por mais 2000 nas alturas vizinhas; todos fugiram abandonando a artilharia, armas, e muitas munições.

Este arrojo, que antes do êxito feliz que teve era por alguns reputado louca temeridade, desassombrou Macau, e transtornou completamente os projectos dos chineses, que no interior da cidade já se dispunham para o massacre dos europeus. [Esse temor leva a perceber quanto pesada estava a consciência dos portugueses pela quebra do trato com a China e ser essa ameaça uma desculpabilização à invasão.]

Alguma força britânica e americana tinha desembarcado para proteger os seus compatriotas; mas o conselho do Governo prudentemente não anuiu a que fossem guarnecer as fortalezas, como solicitavam. Cumpre declarar que os ministros e cônsules estrangeiros geralmente manifestaram o maior interesse pela conservação do estabelecimento nesta melindrosa crise; mas ainda desta vez permitiu a providência que se salvasse só pelo esforço e valentia de um punhado de portugueses”, segundo Carlos José Caldeira (1811-1882) em Apontamentos de uma viagem de Lisboa à China e da China a Lisboa. Beatriz Basto da Silva refere ser este “o único confronto significativo entre a China do Sul e Macau, durante os mais de quatro séculos de vizinhança”.

 

Mesquita suicida-se

O Vice-Rei de Cantão a 16 de Setembro de 1849 mandou “um ofício ao Conselho do Governo de Macau participando ter preso, processado e executado, o verdadeiro assassino do Governador João Maria Ferreira do Amaral, Sen-Chi-Leong”, segundo Beatriz Basto da Silva. Quatro meses depois, a 16 de Janeiro as autoridades de Cantão enviam para Macau a cabeça e a mão de Ferreira do Amaral.

Após a tomada do Passaleão, o 2.º Tenente Mesquita a 12 de Janeiro de 1850 foi promovido a Tenente, atingindo mais tarde o posto de Coronel e encontrando-se já na reforma, Mesquita suicidou-se a 19 de Março de 1880, notícia referida no B.O., “Num acto de loucura e desespero, Vicente Nicolau Mesquita tira a vida à esposa, Carolina Maria Josefa da Silveira e à filha mais nova, Iluminda Maria, feriu dois dos filhos e, seguidamente, suicidou-se atirando-se ao poço da sua residência no n.º 1 da Rua do Lilau”.

O Coronel António Joaquim Garcia, Comandante geral da Guarda Policial, por ter incorrido na falta de confiança, em virtude de ter comparecido no funeral do Coronel Mesquita, deixou de exercer as suas funções e passou a ser Comandante da Fortaleza de S. Paulo e do Depósito do Monte. Segundo Beatriz Basto da Silva, “Protestou e foi reabilitado”.

O Coronel Vicente Nicolau Mesquita só muito mais tarde, a 25 de Junho de 1910 será reabilitado pelo Bispo de Macau, João Paulino e puderam assim os restos mortais seguir para o Cemitério de S. Miguel. Nesse mês, Camilo Pessanha contribui com cinco patacas para ser edificado um mausoléu e a 25 de Agosto colabora com o texto “As duas datas”, na edição do jornal A Verdade integralmente dedicado ao Coronel Mesquita, como chama a atenção Daniel Pires.

 

Os bravos do Passaleão

Do grupo de homens que acompanharam Mesquita até ao Forte do Passaleão, passados cinquenta anos, segundo consta, apenas resta Luiz Maria do Rosário. Personagem que O Independente de 13 de Março de 1898 noticia, “Existe com vida, apenas um dos bravos que acompanharam o valente Vicente Nicolau de Mesquita, na tomada de Passaleão”. É filho desta terra e ainda aqui residente. “Alistou-se em 1847 no extinto Batalhão de Artilharia de Macau, onde serviu até 1858, passando a fazer parte do Batalhão Nacional. Foi admitido na Câmara como polícia em 1857, passando em 1860 a exercer o cargo de Alcaide, sendo reformado em 1897 para se poder dar esse lugar ao serventuário actual. Para o convencerem a reformar-se, o que ele não desejava, prometeu a câmara dar-lhe mensalmente, além do seu ordenado, mais cinco patacas para renda de casa, o que apenas se cumpriu durante cinco meses, sendo-lhe depois retirado esse subsídio, apesar de naquela ocasião lhe ter sido certificado que o receberia enquanto vivesse!

Nesta ocasião, em que se procura prestar um preito de homenagem ao valente Mesquita, é de inteira justiça que este bravo, o único que existe dos 36 homens a quem Macau tanto deve, seja de qualquer forma lembrado, parecendo-nos mesmo de inteira justiça que o Leal Senado lhe alvitre, como recompensa do seu feito glorioso e dos seus longos serviços ao município, uma pensão que, por pequena que seja, concorrerá para melhorar, no pouco tempo de vida que lhe pode restar [no entanto, Luiz Maria do Rosário falecerá apenas em Fevereiro de 1913], as circunstâncias em que vive, representando tal benefício ao mesmo tempo um tributo de gratidão”, O Independente.

Por iniciativa do Sr. Genuino A. da Silva foi aberta, entre a pequena comunidade portuguesa de Cantão, uma subscrição que rendeu $50 a favor de Luiz Maria do Rosário, o bravo do Passaleão. Tal serve para colocar de novo achas no conflito entre O Independente e o Leal Senado, no qual o jornal se queixa da diferença de tratamento preferencial dado ao outro jornal, o Echo Macaense. Já neste último semanário, a 24 de Abril, uma carta do IMPARCIAL ao redactor refere conhecer “um outro desse punhado a residir em Hong Kong. É o Sr. José Francisco Campos da Rosa. Era então rapaz, e estava como voluntário no Batalhão Provisório, guardando um dos principais pontos da cidade. Viu passar Mesquita, que lhe disse que ia tomar de assalto o forte. Ofereceu-se para acompanhá-lo, e logo foi aceite.

Mesquita certificou ser este incidente verídico. Este documento estava em poder do contra-almirante Scarnichia, que representava Macau no Parlamento. Queria ele mostrá-lo ao ministro, para conceder uma distinção ao nosso bravo compatriota. Faleceu Scarnichia, e não se sabe para onde foi parar o documento. Existe uma cópia registada no Cartório Judicial”.

Em Hong Kong ninguém se terá lembrado do Sr. José Francisco Campos da Rosa, mas em Macau os alunos do Liceu foram a casa de Luiz do Rosário homenageá-lo durante os festejos.

22 Jun 2018

Cenas do mundo flutuante, de Kenneth White

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara o Paulo José Miranda

1

Fiapos de bruma, brancos e pegajosos, retocam a baía

e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho –

dava tudo para não perturbar esta mansidão…

mas já o dia alça consigo as gruas giratórias,

as pessoas apressam-se e tossem, os motores

e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones

– Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas.

2

Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho

nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas

e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso

que pescadores exaustos até ao osso acendem

para agradecer a bondade da Rainha dos Céus

e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes

3

Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado

de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon),

o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito

por entre juncos, chalupas e wallas-wallas:

jornais impressos em vermelho e negro

e expostos às lufadas do mar da China

4

Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se

quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo

(i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK)

de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley,

amante de um próspero médico local, e que sonha

vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa

das horas de ponta, no ferry-boat da manhã

5

O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro

nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido

cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus

deixando atrás de si um rastro de vazio,

uma larga onda de riso e de vazio

que reflui até à Montanha Fria

6

No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar

a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos

e uma tonelada de coelhos chineses

é expedida noutra – enquanto nas ruelas

reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong

por entre um estrelejar de frituras, o fedor

dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos

7

No seu encavalitado gabinete em Mody Street

“Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês)

atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se

a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» –

e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores

e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos

uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos

8

Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe,

em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post

e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club

– passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas

de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura

9

Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton»

e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%),

Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road

pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga,

nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro

que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…»)

10

Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia,

sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui,

uma garrafa de uísque ao alcance da mão

e um caderno novo aberto sobre a mesa –

na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este»

e abaixo desta: «um romance impossível».

11

Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon,

Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa,

numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios

aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo

para marinheiros ianques empanturrados de cerveja;

enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico

se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong

12

Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas,

castanhas que fumegam ao ritmo do abanador;

um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango –

na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão

enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra

e as heroínas gemem no écran gigante

13

No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes –

esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se

um pi-pa chinês – Christopher Cheung

(«não sou um artista, eu sou um ser humano»)

serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto

14

No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho:

Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças

a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher

no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças,

depois regressa ao seu quarto, inconsolável

com o seu magazine ilustrado

15

Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro

esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais

os últimos jogadores bocejam e cospem,

num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes,

enquanto dois juncos maciços, a popa alta,

lavram as águas sombrias da noite

farejando a rota dos antigos lugares de pesca.

 

am a baía

e um velho junco acomoda-se pesadamente no seu caminho –

dava tudo para não perturbar esta mansidão…

mas já o dia alça consigo as gruas giratórias,

as pessoas apressam-se e tossem, os motores

e as sirenes afogam o ring-ring dos telefones

– Hong-Kong desperta para o rodopio das moedas

2

Espreite-se agora o mercado do peixe: como cintila o sol vermelho

nos olhos bugalhudos, nas carpas, raias, tubarões, barracudas

e serpentes do mar, enquanto se solta um fumo azulado dos paus de incenso

que pescadores exaustos até ao osso acendem

para agradecer a bondade da Rainha dos Céus

e o seu regresso sãos e salvos ao Cais dos Perfumes

3

Tilinta um vozear cantonês sobre um amontoado

de faces amarelas (lado Hong-Kong e lado Kowloon),

o ferry-boat aberto aos ventos atravessa o verde estreito

por entre juncos, chalupas e wallas-wallas:

jornais impressos em vermelho e negro

e expostos às lufadas do mar da China

4

Uma secretária privada («privada, a que ponto?», inquietou-se

quando lhe deram o trabalho), de vinte anos, bonita como um óleo

(i.é, sem o brilho plástico dos posters), com cerca de três mil dólares (HK)

de remuneração ao mês e um apartamento só dela em Happy Valley,

amante de um próspero médico local, e que sonha

vir a ser estudante no Hawaii – ei-la, acotovelada no lufa-lufa

das horas de ponta, no ferry-boat da manhã

5

O vetusto e encardido pedinte mongol desce do seu poleiro

nas colinas de Kowloon, levado pelo peso do seu longo e escorrido

cabelo, e, rindo sozinho, calca o passeio com os seus pés nus

deixando atrás de si um rastro de vazio,

uma larga onda de riso e de vazio

que reflui até à Montanha Fria

6

No refrigerado escritório de um arranha-céus acaba de chegar

a uma linha de inventário um milhar de caixotes com abalones mexicanos

e uma tonelada de coelhos chineses

é expedida noutra – enquanto nas ruelas

reformados movem ruidosamente as peças do Mahjong

por entre um estrelejar de frituras, o fedor

dos legumes apodrecido e o fantasmático odor dos incensos

7

No seu encavalitado gabinete em Mody Street

“Patrão” Wong, aliás Eduardo (Chinês das Maurícias, passaporte inglês)

atende a sua próxima fornada de clientes e afiambra-se

a vender-lhes fatos, relógios, malas – «sou um topa-tudo» –

e a propor-lhes a sua famosa viagem-mistério nos seus barcos-flores

e no seu penumbroso expresso onde se apalpa a rodos

uma pequena vizinha nua todos os cinco minutos

8

Espreguiçado à sua vontade, coçando as costas contra um pilar do molhe,

em Kowloon, Ken Cameron, vagabundo, abre o South China Morning Post

e lê o discurso que um general inglês proferiu num jantar do Rottary Club

– passando depois a pente-fino a página de chegadas e largadas

de navios, sonhador, pronto para uma nova aventura

9

Com dois novos scripts sob o braço: «Os Matadores de Canton»

e «Assassinato em Macau» (sucesso comercial garantido a 100%),

Brooklin Joe, bigode mate e fato branco, sobe a Nathan Road

pelo colarinho azul da tarde enquanto a sua amiga,

nova sensação nas passarelas, insiste em fumar o cigarro

que lhe dá náuseas («somos gente de Hong-Kong, nada de política…»)

10

Eis Scott Hawkins, escritor muito rodado em toda a Ásia,

sentado no seu quarto de hotel em Tsimshatsui,

uma garrafa de uísque ao alcance da mão

e um caderno novo aberto sobre a mesa –

na primeira linha lemos: «o Rosto do vento do este»

e abaixo desta: «um romance impossível».

11

Ao cair da noite, as ruas são estriadas pelos reclames em néon,

Negro bailado de ideogramas: uma loura holandesa,

numa cave bruxuleante, expõe os seus transpirados seios

aos turistas japoneses; uma jovem filipina faz o mesmo

para marinheiros ianques empanturrados de cerveja;

enquanto um bisonho e mastodôntico homem de negócios britânico

se deixa escoltar por uma grácil, mínima e tímida jovem de Hong-Kong

12

Um cinema em Kowloon: no átrio, laranjas descascadas às carradas,

castanhas que fumegam ao ritmo do abanador;

um chiqueiro de miúdos, asas e pés de frango –

na imensa sala o vizinho fuma como um danado e cospe no chão

enquanto os ossos se quebram e o sangue jorra

e as heroínas gemem no écran gigante

13

No seu apartamento, num décimo andar dos arrabaldes –

esteiras atapetam o chão, à japonesa, mas num canto vê-se

um pi-pa chinês – Christopher Cheung

(«não sou um artista, eu sou um ser humano»)

serve-se de um copo de maotai e sonha com Kyoto

14

No bar, perto das duas horas da manhã, hora de fecho:

Oscar Eberfeld, 46 anos, celibatário, gala sem esperanças

a baixa empregada de saia fendida ou segue às vezes uma mulher

no passeio colando os olhos à linha dos slips sob as calças,

depois regressa ao seu quarto, inconsolável

com o seu magazine ilustrado.

15

Lá em cima em Aberdeen um rato lambareiro

esgueira-se para o buraco sob as pranchas de um restaurante do cais,

os últimos jogadores bocejam e cospem,

num relance aos rebocadores que reentram no porto, silentes,

enquanto dois juncos maciços, a popa alta,

lavram as águas sombrias da noite

farejando a rota dos antigos lugares de pesca.

21 Jun 2018

A vida não tem futuro ou “Para além do paraíso” de Jim Jarmusch

[dropcap style=’circle’] E [/dropcap] m Stranger Than Paradise (Para Além do Paraíso), Jim Jarmusch toca-nos uma das mais contemporâneas melodias acerca do não sentido da vida humana. Não há rumo, não há o que fazer, não há senão tempo para nada. Lembremos que o filme é filmado em plena ressaca do punk rock e que Jim Jarmusch, embora não esteja ligado a este estilo de música, esteve desde sempre ligado à música mais alternativa, a começar pelo actor fetiche dos seus primeiros dois filmes, John Lurie, músico de jazz. E neste filme há um blues que serve de leitmotiv ao filme: “I Put A Spell On You” [Lancei-te Um Feitiço], interpretado pelo seu compositor Screamin Jay Hawkins. Mas antes que esta canção comece a iluminar-nos o filme, é o grande lema do punk, o grito dos Sex Pistols, “No Future”, vindo do outro lado do oceano, de Londres, que parece percorrer todo o filme como um fantasma. “There’s no future. No future. No future for you”, cantavam os Sex Pistols na sua canção “God Save The Queen”, em 1977, no disco Never Mind The Bollocks Here’s The Sex Pistols. E agora, aqui no filme, estamos em 1984. Há sete longos anos que já não há futuro. Há sete anos que o tédio parece ter abafado as cidades e os campos e as existências humanas, pelo menos aquelas que têm menos de trinta anos.
O enredo é simples e talvez seja o que menos importa. Há uma prima, jovem, Eva (Eszter Balint), que chega de Budapeste a Nova Iorque, a casa de Willie (John Lurie), de passagem para Cleveland, para a casa de uma tia mais velha. Este primo, um pouco mais velho do que ela vive dos ganhos que consegue em jogos de poker e em apostas nos cavalos, juntamente com o seu amigo Eddie (Richard Edson, primeiro baterista dos Sonic Youth). Depois de poucos dias em Nova Iorque, em que espera que a tia saia do hospital, Eva ruma a Cleveland. Passado um tempo, e depois de um bom ganho no poker – 600 dólares, que os faz pensar que são ricos – Willie convence Eddie a irem até Cleveland visitar Eva, num carro emprestado. Assim fazem.
A película, a preto e branco, bastante granulada – Luís Miguel Oliveira, na folha de sala da apresentação do filme na Cinemateca de Lisboa, escreve “um preto e branco muito composto, muito granuloso e muito áspero, que passou à história como o ‘preto e branco Jarmusch’ – que se tornou uma imagem de Jim Jarmusch e do seu fotógrafo, Tom DiCillo, junto com o enquadramento de lugares exíguos e pobres mostram-nos claramente que estamos num universo de subúrbio da existência. As pessoas são o que vão sendo e não o que podem vir a ser. Tudo é um estado remediado da existência. Sobrevive-se e tenta-se a todo o custo afastar o tédio. A existência humana é a preto e branco, sem grande definição, e sem nenhum sentido, que não seja sentir o menos possível a passagem do tempo. Viaja-se para Cleveland, porque sim, sem nada para fazer, que não seja esperar que o dinheiro não se acabe depressa e que a morte e o sofrimento tardem. Quando chegam a Cleveland, numa paisagem cheia de neve, Eddie diz a Willie: “Sabes, é engraçado. Conheces um lugar novo, mas tudo parece igual.” Tudo parece igual, porque tanto de onde se veio como onde se está continuamos sem sentido. Tanto antes como agora não há sentido. A vida é como uma paisagem tolhida por uma tempestade de nevoeiro. Não se vê nada e mesmo que se visse nada haveria para ver, como na magnífica cena junto ao lago Erie, em que os personagens vão ver o lago e não se vê nada a não ser branco por todo o lado, neve e nevoeiro. O que está por vir não se vê e o que se vê entedia. Tudo entedia. O mundo é uma máquina de criar tédio. Willie responde “Não digas! Sério?” E atira pedras à neve. A frase “No future” corre pelo interior do corpo.
Ninguém se apaixona. Não há amor nem paixão no filme. Não há nem bem nem mal. Ninguém é bom, ninguém é mau. O tema do filme não é ético, é ontológico. Tudo é tédio. Ninguém tem planos, ninguém tem talento. Aposta-se nas corridas para continuar. Não há sequer paixão nas apostas. Nunca se vê os personagens a apostar e vê-se uma única vez a jogar poker. Jogam para continuar e não por paixão ou vício. Jogam como quem vai para a fábrica trabalhar (como aquele que espera pelo autocarro quando eles estão a sair de Nova Iorque). A vida é continuar e não se sabe nem porquê, nem para quê e nem sequer se pergunta. Arrasta-se a existência e atira-se pedras à neve e conduz-se um carro pelas estradas, de uma cidade até outra e até outra. “I Put A Sell On You”, é posto a tocar num pequeno gravador de cassetes por Eva, de vez em quando, como se fosse a própria vida que lhes tivesse lançado um feitiço. “I Put A Spell On You”, com os gritos e os exageros vocais de Screamin Jay Hawkins transforma-se em nós no grito “No Future” dos Sex Pistols. A vida não tem futuro. Essa, a vida que nos foi lançada como um feitiço, cheia de tédio até à medula. “I Put A Spell On You”, diz-nos ela, a vida, o tédio. E os desencontros no final do filme sublinham a impossibilidade de nós mesmos fazermos sentido da vida que levamos. É a vida que nos atira para onde quer, quando quer… Lança-nos um feitiço.

19 Jun 2018

Da noite para o dia

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] história de Rip van Winkle descreve um dia na vida do protagonista em que se dá a passagem para uma outra dimensão da vida. Rip vai à caça. Sobe às montanhas de Kaatskill com o seu cão Lobo, escapa ao quotidiano do casamento. À medida que o tempo vai passando, sente-se o carácter líquido das montanhas. A atmosfera é diferente. Lá em cima é longe. É de lá que se vê “lá em baixo”. O sítio onde se encontra: ermo e desgrenhado, o fim do dia, são literais, mas também figurados. O tempo começa a alterar-se com os seus conteúdos: fora da azáfama do dia a dia, longe da cidade e de casa, num outro sítio, mas também numa outra dimensão. Fica absorto naquele cenário durante algum tempo e ouve uma voz chamar pelo seu nome. Pode ser irreal, mas ele vai atrás desta personagem que o leva para junto de homens não menos estranhos. Joga às cartas e bebe uma poção destilada. Tudo é como habitualmente, depois da hora de expediente na taberna ou como nos dias feriados. À medida que vai bebendo, o tempo altera-se. Altera-se também a relação com o tempo. A consciência de tempo metamorfoseia-se. Perde a consciência de tempo. Perde o contacto com o tempo. Cai num sono profundo.
Quando Rip acorda, procura assegurar-se de que não ficou ali a noite inteira, como se o problema do tempo que entretanto passara fosse de curta duração, ainda que de uma noite. Não sabia bem o que se tinha passado. Não tinha acompanhado o tempo a passar. O tempo da noite que decorreu entre ontem e hoje está fora da relação com a consciência. A tentativa de recuperação do último instante antes de ter perdido a consciência revela o esforço complexo em que nos encontramos sempre com preocupação de não inconsciência.
A espingarda que era novinha em folha enferrujou. São os primeiros conteúdos concretos com que Rip se debate. Apontam para a passagem do tempo. Uma passagem do tempo que não se percebe enquanto tal mas que se projecta sobre conteúdos. O corpo não é o mesmo: não depois da convalescença de uma gripe, não, no dia de ressaca em comparação com a véspera, não durante as décadas em convívio com ele. Mas a diferença de conteúdos é também genérica. Não conheçe ninguém, quando achava conhecer toda a gente. A estranheza dos rostos é comparada sem dificuldade com a familiaridade dos rostos outrora. A roupa, por exemplo, é diferente. A moda muda.
Mas a forma como os outros nos olham reflecte também o próprio reconhecimento que o outro tem de nós ou a ausência de reconhecimento. Sabemos quando alguém conhecido está a olhar para nós e não nos reconhece. Sabemos como se dá o olhar de ex-amantes, sabemos como é o olhar dos amigos desavindos. Provavelmente é o mesmo que os outros reconhecem em nós, quando passou tempo desde a infância sem nos vermos, quando acabou uma relação romântica, quando tudo se alterou.
Toda a aldeia estava modificada: O aumento dos pequenos pormenores está reflectivo nas pequenas percepções ou percepções do desequilíbrio: há o reconhecimento do sítio como geograficamente o mesmo, com características complexas mas abstractas. Já não é o que era. Só se encontram objectos em macro estruturas temporais: montanhas, o rio, colinas e pequenos vales. Definitivamente o álcool como o tempo têm o condão de tudo alterar, a partir do seu humor. A casa está em ruínas. A estalagem da aldeia sumira-se. Tudo se encontrava singularmente metamorfoseado. E procura saber o que se passou com as personagens da sua vida: Nicholas Vedder, Brom Dutcher, Van Buymmel, a mulher, a filha, o filho, mas também o próprio. As personagens da nossa vida envelhecem ao mesmo tempo, desaparecem afectivamente, fisicamente, mas não deixam de ser figurantes ou personagens das nossas próprias vidas. O mais interessante é o desconhecimento de si próprio, o desconhecimento do outro, a possibilidade de sermos confundidos com outros em quem estamos plasmados. A estrutura do próprio é o mesmo e outro. Mas a confusão da alteração complexa entre mim e mim de uma hora para a outra é absolutamente problemática. Uma só noite dura 20 anos. Um qualquer instante pode durar muitos anos. Um instante tem uma distensão temporal. 20 anos podem também ter exactamente os mesmos conteúdos e nós não damos por eles.

15 Jun 2018

Ferreira do Amaral e o Passaleão

[dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ara a comemoração do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia fora proposto erigir estátuas a homenagear o ex-governador Ferreira do Amaral, assassinado em 1849, e o Coronel Mesquita, cuja memória precisava ainda de ser reabilitada, pois caíra em desgraça em 1880, após em estado de loucura ter assassinado a família, suicidando-se de seguida.

Camilo Pessanha ofereceu-se no início do ano de 1898 “para conduzir o processo de reabilitação do Coronel Mesquita”, segundo Daniel Pires, que refere, nos finais de Abril “realizou-se uma audiência no Paço Episcopal, para serem ouvidas as testemunhas do processo canónico de reabilitação do Coronel Mesquita. Camilo Pessanha era o advogado que representava a comissão organizadora daquela iniciativa”.

Para compreender o que se passara, convém referir estar Macau em território da China (cuja terra era inalienável) e para os portugueses aí se estabelecerem foi encontrada a solução criada já na dinastia Tang, quando os estrangeiros dentro das cidades tinham o seu quarteirão para viver e governarem-se com as suas leis, desde que não atentassem contra os princípios de soberania chinesa.

Ao contrário de Macau, que desde 1573 era um fanfang cristão português, Hong Kong foi ocupada a partir de 1841 pelos ingleses, após a sua vitória sobre os chineses na I Guerra do Ópio (1839-41). A China, destroçada, foi obrigada a abrir os seus portos ao comércio com os estrangeiros, levando a uma época de humilhação, em que se promoviam guerras para demonstrar a superior tecnologia ocidental e assim conseguir chorudas indemnizações, esvaindo os cofres chineses.

Mudança de sistema

O porto de Hong Kong levantou receio aos portugueses de perderem Macau para uma potência ocidental e assim tiveram que tomar soberania da península e desligar-se do governo chinês, quebrando o antigo Trato. “Julgou-se necessário alterar o sistema de administração daquele estabelecimento e ao mesmo tempo se aproveitou a ocasião de reivindicarmos, na parte em que havia sido lesada, a plenitude dos direitos de soberania no território de Macau. Coube ao distinto Capitão-de-mar-e-guerra João Maria Ferreira do Amaral, levar a efeito esta espinhosa tarefa, pondo em execução o Decreto de 20 de Novembro de 1845, que tornou franco o porto de Macau; estabelecendo um novo sistema de impostos, como tornava necessário a supressão da alfândega, única fonte até ali de receita pública; reformando em vários pontos outros ramos da administração, e reduzindo as despesas dela a dois terços do que antes consumia”, segundo Carlos José Caldeira, que continua: “Aumentou porém extraordinariamente esta indisposição das autoridades chinesas quando o mesmo governador, desempenhando a segunda parte da sua missão, deu começo à reivindicação da independência política de Macau. A posse do porto da Taipa, como ponto dependente do território de Macau; construção ali de um forte, onde foi arvorada a bandeira portuguesa; a recuperação do território ocupado pelos chineses, entre a Porta do Campo e a Porta do Cerco, que marca os limites da possessão portuguesa; a supressão dos direitos de tonelagem, chamados medição, que abusivamente se cobrava para o imperador, sobre os navios portugueses que entravam no porto português de Macau; a expulsão desta cidade dos hopus ou alfândegas chinesas, que parece também abusivamente ali tinham sido introduzidos, e que depois da declaração de porto franco se julgaram intoleráveis…”

Pelas actividades chinesas em Macau, percebe-se considerar a China como seu este território e tal é confirmado pelo foro anual pago pelos portugueses desde 1573. O Governador Ferreira do Amaral assumindo o controlo da terra, dava por findo o fanfang de Macau e deixava de pagar em 1849 o arrendamento, quebrando assim o antigo trato com os chineses. Manifestando uma posição de poder, tomou posse das terras para além das muralhas a envolver a cidade cristã portuguesa, o que logo se fez sentir com a vida do Governador. Ainda em 1847, o Senado queixou-se e reclamou para Lisboa contra a obra governativa de Ferreira do Amaral.

Assassinato do Governador

“Na tarde de 22 de Agosto de 1849, o Governador Amaral saíra a cavalo a passear no campo, como de costume, e neste dia só ia acompanhado pelo ajudante de ordens Leite; a menos de duzentos passos antes de chegar à Porta do Cerco, um chinês se aproximou apresentando um papel como de requerimento, e outros saíram de repente detrás de uns pequenos combros de areia que os escondiam, e ao todo sete o atacaram com taifós (espadas curtas e rectas que os chineses usam aos pares, manejando uma em cada mão), e foi-lhes fácil fazer sucumbir um homem, ainda que bastante valente e corajoso, que estava desarmado e só tinha o braço esquerdo. Derrubaram-no do cavalo, e bem assim ao ajudante Leite. Cortaram-lhe a cabeça e a mão, e sem medo ou precipitação as levaram, passando pela porta do Cerco, onde então havia um posto de guarda chinesa, que a duzentos passos observou pacificamente tudo isto, e deixou passar em sossego os assassinos! Existe ainda hoje uma tosca e delgada coluna de pedra no sítio do assassinato…”, escreve Carlos José Caldeira, que chegara a Macau um ano depois deste episódio e aqui esteve de Setembro de 1850 a Janeiro de 1852.

“Este inaudito acontecimento lançou o terror e a consternação na cidade; organizou-se logo o conselho de guerra do governo, e para corresponder à atitude hostil dos chineses (que de antemão haviam guarnecido o Passaleão e vários pontos vizinhos com numerosas forças, ameaçando uma invasão a Macau), [creio, um pressuposto dos portugueses], foi postar-se na Porta do Cerco na manhã de 25 (de Agosto de 1849) uma força portuguesa, [de 24 homens sob o comando do Capitão Fidelis da Costas] sobre a qual os chineses [do fortim] romperam primeiro o fogo, que foi sustentado com calor desde as 10 da manhã às 4 da tarde. O desejo e a indicação geral era ir atacar os chineses; porém os escrúpulos e observações dos diplomatas estrangeiros residentes em Macao, sobre as consequências do que eles chamavam uma violação do território chinês, e alguns ânimos timoratos conservaram o conselho do Governo em indecisão, a qual foi quebrada pela heróica resolução do tenente Mesquita, que sem ordem superior convidou os soldados que o quisessem seguir a irem acometer o Passaleão”, segundo C. Caldeira.

O Fortim do Passaleão, nome dado pelos portugueses a Pac-Sa-Leong, que após ser ocupado foi logo abandonado, mas desde então, e por 30 anos, o terreno entre o pequeno forte e as Portas do Cerco, numa meia milha de distância, passou a zona neutra.

Vicente Nicolau de Mesquita, nascido em Macau a 9 de Julho de 1818, era filho de Frederico Alves de Mesquita, advogado dos auditórios desta comarca. Assentara praça a 9 de Julho de 1835, frequentou com aprovação a aula de Matemática e prosseguiu pelos postos inferiores até 1.º sargento e por decreto de 15 de Julho de 1847 foi despachado 2.º tenente de artilharia.

15 Jun 2018