Portos da China e Japão abertos ao comércio

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]China, desde que perdera por via militar a I Guerra do Ópio, percebera ter sido tecnicamente suplantada pois ficara fora da intelectual inteligência do renascimento ocidental, sussurrada aos ouvidos do Imperador Kang Xi (1662-1722) quando ainda criança. Sinergia entre Ocidente e Oriente trazida pelos jesuítas para dentro do Palácio Imperial, onde entraram através da Matemática, Astronomia e relógios, e por oferendas como âmbar cinzento, brinquedos, rapé e quadros pintados em perspectiva. Por ordem do segundo Imperador Qing, em 1708 começaram a ser cartografadas todas as regiões do Império, colaborando os jesuítas nesse trabalho. Compilado em 1718, foi guardado num dos pavilhões imperiais e aí ficou; já os missionários, com o valioso e estratégico mapa da China, enviaram-no aos Superiores na Europa.
A manchu Dinastia Qing (1644-1911), a última das imperiais dinastias chinesas, a partir do quarto Imperador Qian Long (Gao Zong, 1735-1795) começou a entrar em decadência. Em 1781, a Companhia Inglesa das Índias Orientais sem nada para trocar de interesse com os chineses, começou a enviar ópio para a China. Com o sexto Imperador Dao Guang (Xuan Zong, 1821-1850) ocorreu a I Guerra do Ópio (1839-42), devido à recusa do governo imperial em aceitar essa droga, “levando as costas marítimas chinesas a serem fustigadas pelos canhões dos 38 navios de guerra, com 4 mil tropas britânicas que terminou com a assinatura do Tratado de Nanjing a bordo da nau inglesa Cornwallis a 29 de Agosto de 1842 (24.º dia da 7.ª lua do 22.º ano do Imperador Tao-kuang). Sir Henry Pottinger, por parte da Grã-Bretanha e o comissário imperial Ki-ing I-li-pu (Qiying) e Neu-kien, por parte da China, sendo as ratificações trocadas em Hong Kong a 26 de Junho do ano seguinte”, segundo Marques Pereira e nesse tratado “o Imperador da China ficou obrigado a pagar a soma de 21 milhões de patacas, a título de indemnizações da I Guerra do Ópio e outras, no prazo de três anos e quatro meses, contados desta data da assinatura, e outrossim a abrir inteiramente ao comércio estrangeiro os portos de Cantão, Amoy, Fuchau, Ningpo e Shanghai, admitindo neles cônsules e adoptando razoáveis tarifas de direitos. Foi pelo mesmo tratado confirmada a cessão da ilha de Hong Kong à Rainha Victoria e a seus herdeiros e sucessores, e aceitação da ocupação das ilhas de Chu-san e Ku-lang-su até à completa abertura dos portos mencionados e integral pagamento das indemnizações.”
Tamanha humilhação marcou a viragem da China Imperial para um semi-feudal e colonizado país. Após o Tratado de Nanjing, os britânicos controlavam o comércio marítimo da China e as outras potências Ocidentais, como a França, a Alemanha, a Rússia e os EUA, assistindo à fraqueza dos governantes chineses decidiram fazer pressão para obterem também privilégios, concessões e território. Os Estados Unidos em 1844 assinaram em Macau o Tratado de Wangxia, que concedeu os direitos dados aos ingleses e reduzia as taxas sobre os barcos americanos, podendo estes navegar nas águas interiores da China. Crimes cometidos por cidadãos americanos na China seriam apenas julgados por tribunais americanos, mesmo os relacionados com a morte de chineses por americanos.

Aceitação da civilização ocidental

O Japão (Nippon para os japoneses) mantivera-se fora do mundo desde 1639 devido aos Éditos de Isolamento que o Shogunato Tokugawa (1603-1867) sucessivamente foi proclamando, até que a 11 ou 12 de Fevereiro de 1854, o comodoro americano Mathew C. Perry regressou ao Japão com uma esquadra de sete navios para saber a resposta à carta do presidente Norte Americano Millard Fillmore (1850-1853), por ele aí deixada um ano antes, quando em 8 de Julho de 1853 na Baía de Yedo (Tóquio) aportara na primeira vez. Recebido a 14 de Fevereiro, exigia a abertura dos portos japoneses ao comércio americano. O shogun adiando a resposta, pois a corte imperial em Quioto era defensora da guerra para não deixar entrar as potências estrangeiras, logo recebeu a ameaça: . Tal levou em Março de 1854 o Presidente do Conselho dos Veteranos, Abe Masahiro a assinar o acordo com os americanos, onde o Japão abria portos ao comércio.
As reformas no Japão iniciaram-se com aquisições de armamento e navios de guerra, dando-se em 1855 a abertura com instrutores estrangeiros das escolas Naval e Militar. Em 1858, o governo shogunal assinava novos tratados, agora com a Holanda, Rússia, Inglaterra e França, e ao ser obrigado a abrir mais portos aos estrangeiros perdeu força interna para os partidários do imperador, começando o declínio do regime de shogunato, que vigorará até 1867.
Os estrangeiros, comerciantes e diplomatas, estabelecem-se no Japão e muitos jovens japoneses vão para a Europa e EUA estudar. Era aprender com o Ocidente, compreender os seus modelos para conseguir o melhor e negociar em pé de igualdade.
Desde 1603 a família Tokugawas detinha o poder e quando o shogun Iemochi morreu sucedeu-lhe Yoshinobu a 29 de Agosto de 1866. A 25 de Janeiro de 1867, “Os jornais e as cartas são unânimes em afirmar grandes reformas sociais no Japão, devidas sem dúvida às ideias progressistas do novo taicun (taiko, Grande Príncipe). Os nobres do império principiavam a usar trajes europeus e a empregarem carruagens em seu serviço. Todos os vapores que actualmente partem dos portos abertos ao comércio, conduzem japoneses para a Europa, que vão visitar a exposição de Paris, e muitos jovens enviados pelos seus parentes aos colégios de educação. Uma escola se ia abrir em Yokohama, dirigida por ingleses, para os filhos do país, à imitação da escola para o mesmo fim criada pelos franceses e estabelecida no distrito de Yokohama, conhecido pelo nome de Benten.
O governo (japonês) adoptou um figurino francês para fardar e equipar o seu exército, tendo engajado alguns instrutores franceses. O Dr. Maggowan, chegado àquele país, apresentou uma proposta para estabelecer um telégrafo eléctrico entre a capital do império e os portos abertos, excelentemente acolhida, com os trabalhos a começar para se fixar o fio eléctrico entre Yeddo e Yokohama e crendo ficar concluído ainda este ano. Afirma-se que já o novo Taicun dirigira aos ministros estrangeiros residentes, o convite para o irem visitar ao seu palácio em Osaka e supõem todos que nesta ocasião se tratará da grande questão pendente, a abertura do porto de Hiogo”, segundo Boletim do Governo de Macau e Timor, 1867.
Levadas a sério as ameaças americanas, com espelho na humilhação que a China passava, em 1868 o Japão colocou no poder com 15 anos de idade o Imperador Meiji e em galopante transformação radical se modernizou pela matriz ocidental de competição e guerra, até atingir um Império na Ásia

10 Ago 2018

O passeio – poema de Georg Trakl traduzido

O passeio

 

1

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á música a sussurrar no bosque à tardinha.

No milheiral, viram-se espantalhos de semblante sério.

Delicadamente, os sabugueiros espalham-se ao longo do caminho.

Uma casa cintila maravilhosamente e vaga.

 

No dourado, paira um aroma a tomilho.

Numa pedra, está um número sereno.

No prado, as crianças jogam à bola.

Depois, à tua frente, ganha corpo uma árvore para a contornares.

 

Tu sonhas: a irmã penteia o seu cabelo louro.

Um amigo distante escreve-te uma carta.

Um cilindro de feno voa tosco através do verde amarelado,

E, às vezes, tu pairas com leveza em suspenso e maravilhoso.

 

2

O tempo corre. Oh! doce Hélio!

Oh! Imagem doce e clara dos sapos nas poças.

Na areia, um Éden maravilhoso enterra-se.

Escrevedeiras baloiçam no regaço de um arbusto.

 

Um irmão morre-te num país encantado

E o seu olhar de aço contempla-te olhos nos olhos.

E no dourado ali, há uma fragrância de tomilho.

Uma criança inicia um fogo ao pé da aldeia.

 

Os amantes abrasam-se renovados em borboletas.

Oscilam serenamente em redor da pedra e do número.

Corvos esvoaçam à volta de uma refeição repugnante,

E a tua testa ferve por entre o verde suave.

 

No espinheiro, um animal selvagem morre ternamente.

Atrás de ti escorrega um dia claro da infância.

Cinzento é o vento que, volátil e vago,

Lava odores pútridos durante o crepúsculo.

 

3

Uma velha canção de embalar deixa-te angustiado.

À beira da estrada, piedosa, uma mulher amamenta um recém nascido.

Escutas como a sua fonte emana, a transformar os sonhos.

Do ramo de uma macieira, desce um som de consagração.

 

E pão e vinho são a doçura que vem do duro esforço.

As tuas mãos apalpam prateadas frutos.

Raquel morta anda pelos campos arados.

Com gestos de paz acena o verde.

 

Abençoados florescem os regaços das pobres criadas,

Que ali estão de pé junto à velha fonte a sonhar.

Solitárias seguem serenas os seus caminhos, em silêncio,

Na companhia das criaturas de Deus desprovidas de pecado.

 

Der Spaziergang[1]

 

1

Musik summt im Gehölz am Nachmittag.

Im Korn sich ernste Vogelscheuchen drehn.

Hollunderbüsche sacht am Weg verwehn;

Ein Haus zerflimmert wunderlich und vag.

In Goldnem schwebt ein Duft von Thymian,

Auf einem Stein steht eine heitere Zahl.

Auf einer Wiese spielen Kinder Ball,

Dann hebt ein Baum vor dir zu kreisen an.

Du träumst: die Schwester kämmt ihr blondes Haar,

Auch schreibt ein ferner Freund dir einen Brief.

Ein Schober flieht durchs Grau vergilbt und schief

Und manchmal schwebst du leicht und wunderbar.

 

2

Die Zeit verrinnt. O süßer Helios!

O Bild im Krötentümpel süß und klar;

Im Sand versinkt ein Eden wunderbar.

Goldammern wiegt ein Busch in seinem Schoß.

Ein Bruder stirbt dir in verwunschnem Land

Und stählern schaun dich deine Augen an.

In Goldnem dort ein Duft von Thymian.

Ein Knabe legt am Weiler einen Brand.

Die Liebenden in Faltern neu erglühn

Und schaukeln heiter hin um Stein und Zahl.

Aufflattern Krähen um ein ekles Mahl

Und deine Stirne tost durchs sanfte Grün.

Im Dornenstrauch verendet weich ein Wild.

Nachgleitet dir ein heller Kindertag,

Der graue Wind, der flatterhaft und vag

Verfallne Düfte durch die Dämmerung spült.

 

3

Ein altes Wiegenlied macht dich sehr bang.

Am Wegrand fromm ein Weib ihr Kindlein stillt.

Traumwandelnd hörst du wie ihr Bronnen quillt.

Aus Apfelzweigen fällt ein Weiheklang.

Und Brot und Wein sind süß von harten Mühn.

Nach Früchten tastet silbern deine Hand.

Die tote Rahel geht durchs Ackerland.

Mit friedlicher Geberde winkt das Grün.

Gesegnet auch blüht armer Mägde Schoß,

Die träumend dort am alten Brunnen stehn.

Einsame froh auf stillen Pfaden gehn

Mit Gottes Kreaturen sündelos.

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 26-27.

9 Ago 2018

A benzina de John Zorn

 

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma excelente jornalista portuguesa veio interrogar-me sobre a minha experiência de professor em Moçambique e agora publicou a reportagem – da qual gostei –, onde descreve a minha casa: «uma casa esvaziada mas com muitos livros».
Desconcerta-me o adjectivo: há quinze dias tivemos dificuldade em descobrir o buraco onde enfiar o piano da minha mulher, regressado a casa vinte anos depois. Não é inabitual que a percepção que o outro tem sobre nós nos surpreenda. Seja como for, ainda esta semana acrescentei trinta cds de John Zorn à minha discografia e uma casa com um piano e dois violinos (que são tocados, não são decoração), muitos livros, dois gatos, todas as sinfonias do Messiaen, do Lutoslawski, do Mahler, do Bruckner e do Beethoven, pode considerar-se esvaziada?
Parecerá uma casa de quem está de passagem, embora com milhares de livros e muita música? Na verdade, não temos carro, objectos decorativos, plasma.
Vou à estante, abro ao acaso um livro de Adam Zagajewski, e topo este poema: «BUSCA: Voltei à cidade/ onde fui menino/ e adolescente e um velho de trinta anos./ A cidade recebeu-me com indiferença,/ os megafones das suas ruas murmuravam:/ não ves que o fogo ainda arde?/ não ouves o estrépito das chamas?/ Vai-te./ Busca noutro lugar./ Busca./ Busca a verdadeira pátria.» Volto a arrumá-lo, por detrás de uma reprodução de Hokusai, olho em volta, e dou conta: o meu conforto resume-se a ter-me despojado de pátria.
Como Hannah, Arendt sou incapaz de amar uma pátria, só amo pessoas. A minha pátria está nas gargalhadas das filhas, no sorriso da minha mulher – um dos mais belos do mundo. E troco a pátria, qualquer, pela poesia do José Ángel Valente, do José Hierro, do Hugo Claus, do Mario Luzi, do Mark Strand, do Adonis, do Lezama Lima, do Milozs, de centenas de poetas que fui colecionando, na esperança de os reler, uma e outra e outra vez.
Sou despojado sim, sou mesmo um caso de estultícia-prima, o péssimo exemplo de alguém que emigra para ganhar metade do que recebia, em troca de ter agora o triplo do tempo para si. Para escrever, fruir a música, estudar arte e calafetar as lacunas.
Será arrogante declarar que me concentro mais no que importa desde que voluntariamente escolhi a “pobreza”? Que me consolei ao ler que o John Zorn, que vive numa casa austera, se sentiu libertar-se ao abdicar dos jornais, da televisão, e de inúmeras amizades laterais, para se focar no seu trabalho musical – e começa a ser um legado monstruoso. O problema é que não vejo como possa fazer-se de outra forma.
O Zorn. Tinha-o ouvido em Naked City e nos primeiros cds do projecto Masada, depois perdi-lhe o rasto, e agora, surpreendido por a Gulbenkian lhe dedicar uma semana à obra, resolvi ver o que apanhava no Youtube. É o que vos digo: já baixei trinta cds, preparo-me para baixar outros tantos; há cinco dias que obsessivamente leio sobre ele e lhe ouço a música.
Estou abismado, é para mim o maior poeta do século XXI. Entendendo a poesia como o que harmoniza momentaneamente o caos e desperta um padrão no informe, uma melodia que emerge de «um sentido para a existência que estava até aí fora do conceito» (Yves Bonnefoy), é um exercício que não precisa de residir na palavra. Além disso, se normalmente um autor é um rio, Zorn aparece como um inteiro sistema hidrográfico. O músico nova-iorquino interiorizou tudo sobre a energia e a tangibilidade da heteronomia e consegue escrever música para vários públicos, desenvolver plasticidades, texturas, ritmos e estilos distintíssimos, baralhar os géneros, mesclar o popular e o erudito, o jazz e o rock, o étnico e o contemporâneo, escrever música tonal, concreta, electrónica, atonal, integrar as dissonâncias e o ruído em harmonias mais amplas, ou cultivar esses géneros simultaneamente sem que se contaminem – é à vontade do freguês!
Que têm em comum Naked City, Bar Kokhba, Commedia DellArte ou Rimbaud, At the Gates of Paradise, Insurrection, Cobra ou Oo? Apenas o nome do autor e a sua inusitada destreza para demonstrar que o múltiplo e o sistema podem enriquecer-se mutuamente. Outra coisa liga a sua pluralidade: uma exorbitante capacidade conceptual que nunca perde de vista o visceral, os sentidos.
Quanto à inspiração literária – que evoca nos títulos – vai buscá-la aos autores que nunca perderam de vista o cosmos: William Blake, Rimbaud, René Daumal, os Gnósticos, por exemplo.

René Daumal, muito novo, intoxicava-se com benzina, para ver se a consciência desaparecia. John Zorn, que lança três, quatro, cinco cds ao ano, não precisa de benzina, “a sua consciência” (o ego) já se diluiu há muito na música que produz, em requintes transfronteiriços.
O que me magnetiza no poder total desta música é a facilidade com que dissolve todas as ideias feitas em que cresci. Pela sua complexidade – apesar de manter a espontaneidade intacta – pulveriza qualquer culto à juventude; é cada vez mais livre à medida que a idade apetrechou tecnicamente a impulsividade omnívora do seu autor: presume-se que será melhor quando Zorn tiver setenta e oitenta e por aí fora. O seu apetite para a serialização e o sistema não lhe inibem em nada a atenção que coloca no pormenor, no singular; o “rock’n roll”, nele, não lhe dispensa o rigor e a metafísica; o seu profundo espírito Dada, é concomitante de uma apreensão quase mística da música. Zorn cavalga todos os corcéis, simultaneamente, numa busca e curiosidade incessantes.
Esta capacidade para encarnar a pluralidade e a síntese não estará ao alcance de todos – Zorn está para a música como Cage para a divagação ou Eugenio Trías para a filosofia – mas acho-a extremamente cativante e inspiradora. A energia da sua música transporta-me. Uma casa vazia com muitas obras de Zorn faz o júbilo de Deus quando relaxa e o seu sistema arterial desenha o mais confortável sofá

 

9 Ago 2018

Nada é óbvio nem absoluto

 

 

Mymosa, Lisboa, 19 Julho

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão me lembro da última vez que almocei sozinho, gestos dos mais anti naturais da civilização. O desatino destes dias de apocalipse que piso a tanto obriga, daí o peso acrescido da mensagem que me trouxe à tona do aquário alheado em que mergulhei: Luis García Montero acaba de ser dado como novo director do Instituto Cervantes, substituindo o querido Juan Manuel Bonet, que não reencontrei durante o seu mandato. A ausência dos óculos fez com que o colocasse em uma qualquer short list do homónimo Prémio. Ambas as situações segregam estranheza, que os nossos autores não são de frequentar prémios, ou melhor, os prémios não os visitam a eles; e os corredores do poder estão em lados opostos da cidade. Ainda assim, a notícia alegra-me, pelo que conheço do afã polémico da figura, do modo como radica em Lorca uma ética, da sua paixão pela língua, do carinho por Portugal, da generosidade que testemunhei. Sendo apenas nomeação a um cargo, estou em crer que pode sair daqui algo de bom, assim como horizontes. Melhor: tenho a certeza, pois acredito no que salta do seu O Dogmatismo É A Pressa das Ideias: «Aqui junto das dunas e dos pinheiros,/ enquanto a tarde cai/ nesta hora ampla de beleza no céu/ e faço meu sem pressa/ o vermelho livre da luz,/ penso que sou o dono do minuto que falta/ para que o sol repouse sob o mar.// Essa é a minha razão, o meu património,/ depois de tanta margem/ e de tanto horizonte,/ ser o dono do último minuto,/ do minuto que falta para dizer que sim,/ para dizer que não,/ para chegar depois ao outro lado/ de tudo o que afirmo e do que nego.// Essa é a minha razão/ contra as frases feitas e a manhã,/ enquanto a tarde cai por amor à vida,/ e nada é óbvio nem absoluto,/ e a águia que desfaz os jornais/ arrasta as palavras como peixes de prata,/ como espuma de onda/ que sobe e se matiza/ dentro do coração.» Não fecha assim, antes afirmando «esse único dogma do abraço, minha única razão, meu património.» Partilhando esse dogma único, o do abraço, aqui segue um, com o devido atraso.

Horta Seca, Lisboa, 23 Julho

Circunstância do devir: de cada vez que cai relâmpago perto sinto-o na pele como frase de jazz, desmultiplicadora de inspiração e presságio. O nascimento do Jaime, filho da Liliana [Ribeiro] e do Paulo [Moura], marca nas constelações que pisamos tantos e tão díspares princípios de viagem que justificam este queimar da alegria. Os autores não são de papel, são árvores de tantos frutos. Por cada criança que nasce, vejo surgir, na voz, no olhar, um outro pai, uma distinta mãe, baralhando a posição do céu e da terra, dos ramos e das raízes.

Horta Seca, Lisboa, 25 Agosto

Nos últimos anos, quem se atreva a escrever, a publicar e a editar, está sujeito, ao abrigo da liberdade (talvez de imprensa), ao enxovalho de julgamentos e condenações sem sombra de contraditório. Eles afirmam-se jornalistas, mas confundem código deontológico com etiqueta masturbatória; eles dizem-se críticos, mas trocam a leitura aberta pela cegueira maldosa; eles julgam-se poetas, desde que cada verso se faça degrau para o altar supremo do culto em que oficiam, o único que assegura a única e mais verdade que a verdadeira poesia; eles são editores, mas que só arriscam o himalaia do cânone, aquele que congela para sempre o tempo e as opiniões sagradas dos mortos; eles são livreiros que criticam o capitalismo aberrante, sem que nada os impeça de especular com as raridades anti-sistema. Mimetizando outros tempos e outras figuras em versão serôdia e fora de prazo, celebram a «postura crítica», mas nisso agridem, fazem execráveis ataques de carácter, cometem sem pejo a ignorância mais profunda, riem do seu próprio fel, arrotam sound bites vendendo-os como pensamento. E há quem compre, claro. Gente até que devia saber mais. Não se lhes exija coerência. Estão tão acima moralmente de todos os outros, que nenhuma das regras detestadas por escrito se lhes aplica. Estão muito fora, muito além, muito apesar, muito contra, tudo e todos, mas não sei de nenhum que tenha estado preso ou passado fome. Detestam militantemente a alegria e a festa e o único prazer que se lhes conhece está em chafurdar no ódio. Por mim, levá-los-ei a sério quando doarem o corpo à ciência para que se estude o seu inegável contributo civilizacional: de tão puros, deixaram de cagar.

Curry Cabral, Lisboa, 27 Julho

Não sou supersticioso pela óbvia razão que dá tremendo azar. Tive e estimei gata preta, senhora de muitas sortes. Adoro a parte de baixo das escadas, mesmo quando não as subo. Parto espelhos e espalho sal com displicência e descuido. Celebro muito o treze, por razão tremendíssima, e acumulo bilhetes em que me sentam, por acaso, na sobredita cadeira. Partilho com poetas de envergadura este divertimento. Como interpretar agora o facto do meu velho pai aterrar, ao fim de deambulação de meses, em cama número 13?

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

Parece impossível mas couberam nas nossas duas modestíssimas salas os cinquenta e nove autores de Ilustração Portuguesa. O veterano Diniz [Conefrey] comentava há pouco o caminho, desde o Salão Lisboa e outras iniciativas semelhantes, vetustas de duas décadas: «o que andámos para aqui chegar». Alguns nomes mantêm-se em estimulante laboração, mas nada impressiona mais que a riqueza de estilos e linguagens e temas e projectos. Tal selva só se atravessa sabendo onde pôr os olhos. No último canto, mesmo junto à janela, a ordem alfabética arrumou aqui as peças assinadas por Tida Siuda, polaca a residir no Porto. A janela alargou-se, melhor escrevendo, tal a frescura dos seres-formas que por ali convivem (um deles algures na página, mas outros podem ser verificados aqui: https://tinasiuda.com/). A força poética toca-me, bem como a subtileza das suas cores. Despertam gestos e palavras muito para além do óbvio.

Horta Seca, Lisboa, 2 Agosto

Eis as palavras do poeta Montero chegando ao cargo com pressuposto radical, antes mesmo de irónico presupuesto, contra a desintegração ética da sociedade: o esforço de ser bom, ainda que seja, por ora, tão pouco sexy. «Esta mañana siento la voz de don Quijote, en una de sus famosas parrafadas en homenaje a la libertad, la poesía, la dignidad o el buen gobierno, advirtiéndome sobre la responsabilidad que asumo. Yo le contesto que en mi responsabilidad se abrazan a la vez la exigencia y la ilusión. A los 60 años de edad, cuando he vivido tantos momentos diferentes de la historia de España, agradezco la oportunidad que se me da de compartir en mi oficio una vocación cívica y un tiempo nuevo para la democracia española.
Empecemos por las primeras palabras, esas que según Elsa Morante hacen del arte una apuesta contra la desintegración ética de la sociedad. El mayor reto que tenemos, desde muy diferentes perspectivas, es el esfuerzo por ser buenos, en el buen sentido de la palabra bueno, frente a los que trabajan por crear un tiempo propicio al odio. Cito, como ya sabéis, a Antonio Machado y a Ángel González.»

 

8 Ago 2018

Cerejas

[dropcap style=’circle’]R[/dropcap]efiro-me à «Antologia de Autores Portugueses Contemporâneos», uma bela obra com prefácio de Eduardo Lourenço e posfácio de António Ramos Rosa da «Editora Tágide» Junho de 2004, abrindo assim o fruto do tempo onde cada poema é acompanhado com um desenho. Percorre-se assim o medieval “ciclo da flor” dos frutos, fazendo lembrar sempre Eugénio de Andrade: poetas-comensais exercitando o banquete mais bonito, cantando o fruto, tecendo o suco, vestidos de púrpura, polpa dura, verso tenso, inebriante, intenso. É um passar de folhas delicioso! Esta Antologia é dirigida por Gonçalo Salvado e Maria João Fernandes com capa de José de Guimarães, o mérito, esse, encontra-se defendido da praga das multidões.
Vazamos cestas delas em cada alvorada de poema, e, é tanta a metáfora, o conceito, a curva, a cor… depois, o conjunto fica inexplicavelmente e sem dúvida sempre mais bonito. A temática faz crescer o fruto, ampliamos a sua fórmula e de tanto o descrever vem-nos um perfume quase cheiramos a página. É todo um universo que deixa melhor o outro vasto mundo, mesmo que não seja por ele visto, pois que há muitas coisas deixam melhoradas outras sem contudo se anunciarem. Foi o Fundão que apoiou esta edição, tão funda é esta Beira; certeza de saber que um chão que dá tais maravilhas é sem dúvida um solo abençoado. Quando entregámos a terra aos algozes ela deixou de produzir maravilhas, e, nunca me esquecerei que no litoral havia umas cerejeiras tristes que davam cerejas solitárias, a mesma faixa de chão que foi assassina do seu “verde pino” e não pode agora ser solo de boas coisas.
É bom voltar à Beira no mês de Junho, a essa terra da Amália que dizia orgulhosa – nasci no tempo das Cerejas.- Lembrar um velho gato que as adorava, retirando com as patas dezenas delas numa esfuziante manobra de cor e movimento, vê-las nos rostos das raparigas, rodar a sua circular forma na boca até produzir o líquido rosa das delícias. É bom saber deste momento. As Cerejas são autênticas declarações de amor. Portugal é o país com as melhores cerejas do mundo, e não há nos seus campos a maldição dos incêndios, todo o reduto de um paraíso tem os seus dragões à porta… aquela gente tem outros carreiros pois que fizeram um estranho pacto com o solo, e a pedra é dura, e a vida não menos dura, e nestes locais encontram-se as maravilhas.
Creio ter sido uma Antologia temática bastante simples de elaborar, pois sem que reparemos, todos já tínhamos escrito sobre elas, e foi só ir àquela «Árvore da Vida» que é a dos versos, buscá-las para outro canteiro. Que ele há muito de metafórico no tema, e mais se lembra parábola do fruto da figueira, seja como for, o que aqui se deu foi demasiado bonito para esquecer. «Le temps des cerises» Comuna de Paris e seu advento socialista, transformámos a rosa em cereja e em todas as Primaveras ela se renova na memória de uma história comum “quand nous chanterons le temps des cerises et gai roussignot et merle moqueur seront tous en fête/mais il est bien court le temps des cerises/ c´est de ce temp lá que je garde au couer une plaie ouverture”. Destas saudades mantemos o desejo de um mundo renovado, pois que se saiba também não há revoluções fora do tempo primevo, e mesmo que os solos se tinjam de negro e calcinem as fontes e tudo fique sem nascentes, haverá cerejas e guardiões às portas dos seus campos como se fossem os últimos jardins. Cada uma é uma oferenda para pássaros e homens, para orelhas e grinaldas, para leitos enamorados, para esponsais em festa. Há quem faça curas de cerejas pois que se diz que limpa o sangue e o torna mais forte, temos no sangue a seiva da cereja. Tal como as manchas de sangue, a da cereja, são difíceis de sair, ninguém comete crimes sem a denúncia do seu rasto e ninguém as saboreia sem que o saibamos. Ficam timbradas em nós.
A metamorfose da flor é um encantamento tão grande que todos os versos são apenas flor pois se cada poema se comesse, uma deriva de súbita transformação nos mudaria o plano. Há quem tivesse na poesia portuguesa sugerido isso, e biblicamente há também a sugestão imposta pelo anjo «come o livro!» mas ficamos aquém do poema da vida. Talvez nos crescesse a Árvore nas veias e fôssemos grandes e arbóreos como nas histórias antigas onde havia comedores de pedras. Tinha escrito este simples poema quase juvenil e não hesitei em colocá-lo aqui que me parece algures desses míticos tempos :” quando andavas nos umbrais do tempo/ sabias a sal e a luar/ agora nem as cerejeiras consegues fazer florir com o sol do teu olhar.” Depois, alguém em outra página escreveu-me cereja ” Totalmente herética absolutamente hermética és a corrente eléctrica que subverte a métrica” e assim uma imensa alegria transforma os dias e a nossa natureza, unidos numa Cereja. Única. Absolutamente luzidia.
Os Samurais de Henriques Manuel Bento Fialho: os samurais subiam às cerejeiras/ penduravam-se nos ramos até darem flor/ esmagavam as cerejas como quem quebra nozes/ no dorso da mão/ e besuntavam o corpo com o suco da polpa/ para ficarem mais perto do sangue.
E quem te pôs na orelha essas cerejas, pastor? (José Gomes Ferreira)
Agora é quase Verão, e para todos, as nossas Cerejas

7 Ago 2018

Um adeus invisível

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] s redes sociais vieram revolucionar a forma como fazemos negócios, como acedemos à informação ou como ouvimos música. Mas acabaram por mudar, ainda que mais subtil e gradualmente, a forma como nos relacionamos. Por um lado, alargaram o campo de possibilidades: a nossa presença online permite-nos não depender do corpo e da sua geografia existencial para encetar ou manter contacto com alguém. Habituámo-nos a dispor de duas formas de apresentação distintas: no Facebook (e restantes redes sociais) e pessoalmente. Uma não exclui nem complementa a outra. São dois mundos que – embora por vezes se possam sobrepor – têm uma existência perfeitamente independente.

Esta adjudicação mais ou menos involuntária de um património alargado de conhecimentos virtuais não acontece sem um acréscimo de ansiedade da nossa parte. De repente, este “outro mundo” passa a exigir-nos uma atenção existencial: há toda uma série de comportamentos e de reacções digitais que nos convidam a estar atentos e a interagir. Seja na apreciação do conteúdo que os outros colocam na rede, seja na análise do modo como os outros reagem ao que fazemos online. Este mundo fosforescente não é – ainda – um substituto da realidade física e do leque de estímulos e perspectivas que esta possibilita. É antes um faz-de-conta assaz elaborado que nos permite ter uma presença social semi-velada, semi-comprometida de que podemos dispor sem o receio de que as nossas escolhas tenham as consequências que estas costumam ter no “mundo real”.

Mas esta vida dupla não acarreta somente a ansiedade da notificação. Traz também o conforto de ter sob a alçada dos polegares um conjunto de situações no formato da disponibilidade. Se fulano não pode sair hoje há sempre sicrano ou beltrano – e, coincidência, até estão online; se a mulher ou homem com quem estou decide, por algum motivo, deixar-me, não fico refém da minha limitada geografia existencial para suprir as necessidades que uma relação colmata. Mas nem precisamos de chegar ao limite supra-enunciado: o próprio balancete a que estão sujeitas todas as relações – e que lhes determina o futuro – é afectado pela aparente amplitude de possibilidades que o virtual dispõe sobre o tecido do tempo. A paciência para solucionar as fricções que necessariamente advêm do contacto continuado entre duas pessoas é menor; a disposição para fazer as mudanças que permitem aumentar o grau geral de tolerância numa relação diminuem. Tudo o que é difícil parece ou fica mais difícil. Desde logo, encetar ou terminar uma relação parecem ser os únicos momentos em que as coisas são mais fáceis que dantes.

Ghosting é a palavra escolhida para o fenómeno que consiste em determinado sujeito eclipsar-se numa relação. É o equivalente contemporâneo a “ir comprar tabaco” e a forma mais eficiente de alguém se ver livre de um compromisso sem as consequências que advêm de verbalizá-lo. Sem conversas, sem justificações, sem lágrimas. A forma como já tínhamos higienizado da morte da vida contemporânea estendeu-se agora aos finais de relação. Para quê perder tempo e apanhar uma camada de nervos quando dispomos do silêncio para anunciar a nossa saída de cena? No máximo um “não sei o que te dizer” ou “deixo-te as chaves” e o outro que resolva as ambiguidades de sentido. É fácil. É tudo fácil.

6 Ago 2018

Cônsules portugueses de Fuchau e Xangai

As comemorações não realizadas em Hong Kong contrastam com as dos 25 residentes portugueses de Fuchau (Fuzhou), província de Fuquiam (Fujian), que prestaram “homenagem à Pátria, festejando condignamente o 4.º Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia pelo ínclito navegador Vasco da Gama”, segundo O Porvir que refere, “No dia 17 de Maio reuniram-se na residência de monsieur Frandon, ilustrado cônsul de França e vice-cônsul de Portugal naquela cidade, e de lá expediram o seguinte telegrama COMISSÃO EXECUTIVA VASCO DA GAMA, MACAU. Esta pequena colónia portuguesa não podendo festejar grandiosamente este glorioso aniversário une-se do coração felicitando seus compatriotas. FRANDON Cônsul.

Após o telegrama enviado, seguiu-se uma esplêndida garden party e um lauto banquete em que todos foram muitíssimo obsequiados por monsieur e madame Frandon, e no qual o digno cônsul fez o seguinte eloquente e agradabilíssimo brinde, que nós daqui, em nosso nome e no da pátria agradecida, penhoradíssimos lhe agradecemos: O dia de que os portugueses, não somente residentes na sua Mãe Pátria, mas em todos os países do mundo celebram solenemente hoje o quarto centenário universal, não é uma data memorável, somente na História de Portugal, é uma data memorável, direi mesmo excepcionalmente importante na História de todos, humanidade.

Se o príncipe Henrique, não o da Prússia que actualmente se acha na China, mas o de Portugal que vivia no XV século, não houvesse tido a ideia genial de alargar os conhecimentos marítimos dos seus contemporâneos e de ir, sobre os frágeis navios da época, reconhecer….”

O Sr. Ernest Frandon está há quinze anos encarregado do consulado português em Fuchau (Fuzhou) com o cargo de vice-cônsul de Portugal que o desempenha gratuitamente e zelando sempre “com tanta dedicação pelos interesses dos portugueses residentes naquela cidade como se eles fossem seus compatriotas, e tem também mostrado sempre tanto amor por Portugal como se ela fosse a sua própria nação. É um benemérito em toda a extensão da palavra, e são tantos, tão valiosos e desinteressados os serviços que tem prestado aos portugueses de Fuchau, que todos o estimam e lhe são gratos, e todos gostariam, assim como nós também gostaríamos, que o nosso governo recompensasse de algum modo o digno cônsul concedendo-lhe uma mercê honorífica, que ele bem a merece, e podemos até dizer que lhe é devida”, segundo O Porvir de Maio de 1898.

Cônsules de Shanghai

O francês Ernest Frandon desde 1883 desempenhava as funções de Vice-Cônsul de Portugal em Fuchau, cargo para o qual já a 10 de Julho de 1855 fora nomeado o negociante inglês Guilherme Halis Luce.

Em 1849, o Governador Ferreira do Amaral escolhera o negociante estabelecido em Cantão, John Dent, cônsul de Portugal nessa cidade e o negociante britânico, Thomas C. Beale, para o mesmo cargo, em Xangai, até que em 1862 ocorreu a falência da Firma Dent, Beale & Co., que então representava os interesses portugueses em Xangai.

A 20 de Março de 1862 “foi criado o consulado português de Neng-pó (Ningbo) em Fuchau, com sede no primeiro porto e com jurisdição na costa da China, desde Amói até Xangai, sendo nomeado Francisco João Marques para o desempenho do cargo de cônsul nesses dois portos”, Luís Gonzaga Gomes.

“Reconhecida pelas autoridades chinesas, a casa Dent manteve a representação consular portuguesa em Xangai até 1862. Depois, o nível de representação diplomática acompanhou as oscilações sociais de quem assumia aquelas funções. Quando se deu a falência da casa Dent, foi nomeado como cônsul António José Homem de Carvalho” Jr. (?-1878), que emigrou para Xangai, onde veio a falecer. “Deste modo, <rebaixou-se o Consulado português da alta esfera social em que vivia o nosso cônsul (…) Para ir albergar-se em a oficina de um typografo”, segundo Alfredo Gomes Dias, que em nota refere, “De acordo com Forjaz trata-se de um comerciante, mas na List of Foreign Residents in Shanghae, publicada no North China Herald, de 23 de Setembro de 1850, em Xangai, este macaense trabalhava no North China Herald Office, como revisor.” (…) “Homem de Carvalho e José da Silva, macaenses, foram cônsules de Portugal em Xangai até à chegada do primeiro diplomata de carreira”, Anselmo Ferreira Pinto Bastos. “Formado em Direito pela Universidade de Coimbra, Pinto Bastos foi nomeado cônsul de 1.ª classe em Xangai por decreto de 23 de Janeiro de 1879, sendo a 1 de Novembro de 1881 promovido a cônsul de 1.ª classe em Londres.”

Já o nosso protagonista, o tenente de cavalaria Joaquim Maria Travassos Valdez, nomeado Cônsul de Portugal de 1.ª classe em Shanghai por decreto de 3 de Fevereiro de 1887, tomou posse do consulado a 8 de Junho e como cônsul geral em Xangai a 14 de Agosto de 1889. Mas a 18 de Outubro de 1890, O Macaense refere, para substituir o cônsul Valdez na sua ausência é nomeado para o lugar de vice-cônsul português em Shanghae o Sr. Bottu”, (empregado do arsenal do governo chinês). Uma desconsideração aos nossos compatriotas! “Assevera-se que o Sr. Valdez pediu ao cônsul francês para o substituir e, como era de esperar, o pedido não foi aceite, porque o cônsul francês tem muito que fazer na própria concessão com os seus inúmeros encargos. Não consta, porém, o que era de estranhar, que o Sr. Valdez se lembrasse ou tivesse a vontade de fazer o mesmo pedido aos outros seus colegas que tem menos a lidar nos seus respectivos consulados; e alguns dos quais já ficaram temporariamente encarregados do nosso consulado aqui, nomeadamente o Sr. Bonilla, cônsul de Espanha, o Sr. Carl Bock, cônsul de Suécia e Noruega, o Sr. Joseph Hass, cônsul de Áustria, em fim vários outros cavalheiros de alta posição social com prestígio, e com vasta ilustração e experiência em coisas de leis.”

Mas no sábado dia 4 de Outubro de 1890 foi preso Filomeno Pereira, acusado de ter posto fogo à casa, onde morava, na rua margin 1 de Soochow Creek, num renque de casas há bem pouco incendiadas e subsequentemente reconstruídas por conta das companhias de seguro. O irmão Eusébio também ali tinha casa e participara no crime. Estavam elas asseguradas em 2500 taéis. “Este caso foi inquirido no consulado português em audiência secreta. O Sr. Valdez procedeu na terça-feira a uma visita domiciliária na casa de Filomeno Pereira”, onde se encontraram maiores vestígios do crime. Mandou os dois irmãos, um preso para a estação de polícia em Hongkew e outro para a estação central. É de interesse público “que o Sr. Valdez empregue todos os meios ao seu alcance para descobrir a culpabilidade dos incendiários”, visto que “tanto em Hong Kong como em Shanghai nestes últimos tempos têm havido muitos incêndios que provocaram suspeitas, mas não foram descobertos os criminosos, que ficaram impunes, sendo além disso beneficiados com as indemnizações das casas de seguro. O cônsul Valdez, com a pressa que tem de regressar ao reino, tem trabalhado até altas horas da noite” neste caso.

3 Ago 2018

Improvisos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vida, dizia alguém, é como um concerto de cordas que se executa em pleno palco, à medida que se vai aprendendo, que a sua partitura se inscreve em nós – em sangue.

Também o poema. Dizia o René Char: «coitado do poeta a quem o poema não ensinou algo que ele não sabia de antemão!», aludindo a esta experiência de jogar sem rede. E não é só bazófia romântica; impele-nos a necessidade de desfazer as imediações e as tramas discursivas para conseguir aquilo a que Derrida chamava “o deslocamento dos limites do cerco” (ele chamava-lhe “cloture”, que à letra seria mais “fechamento”, mas recorta-se um cerco em qualquer fechamento).

Não por acaso as vanguardas acabaram nos anos cinquenta e sessenta por querer diluir o hiato entre a vida e a arte. O que a sermos lúcidos nos levou a grandes equívocos, embora nos tenha indubitavelmente favorecido em ductilidade.

Mas hoje até a linguagem televisiva aprendeu a jogar com esta nossa necessidade de desfazer as imediações para nos tornar adictos. Como agora comprovei em cinco minutos. Paguei o café e levantei-me para sair mas dando-me conta que no plasma passavam os penaltis Espanha-Rússia, do campeonato do mundo, jogo que eu não vi, detive-me. E o que assisti no último penalti espanhol maravilhou-me.

Iago Aspas parte para a bola e bate-a e no arco de um segundo vemos o rosto dele mudar como um ecrã: primeiro contente por ver que tinha dado à bola uma direcção oposta à do estiranço do guarda-redes russo, o que prometia golo, chega mesmo a sorrir numa intensidade da expectativa vencida pois sentia que havia cumprido com o seu dever, e de repente assoma-lhe o espanto à face por ver que o pé do guarda-redes, uma réstia do mísero pé, acertara na bola e desce-lhe a decepção ao rosto por se certificar de que falhou o que meio segundo antes parecia certo.

Esta gama de emoções faciais deflagrada num segundo é o que é acolhido emocionalmente pelo espectador que – sem que faça uma leitura decomposta dos estados de animo do jogador – a recebe de uma forma directa e na totalidade do seu espectro.

Não há mediações, qualquer necessidade de um ajuste discursivo no fluxo das imagens, nada a compreender ali: basta acolher a imagem para se experimentar o inteiro valor dela.

Este segundo de televisão ilustra de forma genuína a transição epistemológica que hoje ocorre nas sociedades mediáticas, como foi diagnosticada por Hans Gumbrecht, de uma cultura do sentido para uma cultura da presença.

Já não são as olímpicas capacidades hermenêuticas que provocam a valorização e o desejo dos indivíduos na grelha das suas expectativas sociais mas sim a entronização de cada um na lógica de participação que faz do poder da performance e do sulco da presença as qualidades que agora são investidas no enlace entre o individual e as representações colectivas. Não admira assim que as actividades desportivas hoje sobrepujem sobre as intelectuais e que a imagem ganhe momentaneamente o estatuto de uma natureza.

Aquilo que os artistas dantes buscavam, no afã de romperem as barreiras e de inocentemente se aproximarem de uma concepção da arte totalizadora que transfigurasse a vida no acontecimento de uma expressão sublimada, é agora obtido em cinco segundos de televisão, por meios técnicos e sem pretensões artísticas. A televisão parece conectar a palavra à coisa e a imagem à vida sem mediações.

Sabemos que isto é ilusório mas o simulacro é impactante e ilustra o que defende a psicanálise, i. é, que o nosso inconsciente não distingue entre o facto e a coisa imaginada. E, pior, isto deixa-nos a sós com a pergunta: afinal passa-se alguma coisa no exterior da nossa cabeça? Poderemos alguma vez fugir à fatalidade de sermos solipsistas sem perdão? Ou, no seu inverso, à fatalidade de sermos prisioneiros como as personagens de Solaris das suas próprias imagens?

Creio que a saída está no amor. O amor dá-nos a prova de que o mundo existe fora de nós e pode ser benigno. Porém, para que essa exterioridade que o amor valida aconteça é exigida a coragem de ser vulneráveis e de nos propormos não controlar nada. Como aventei num apontamento que havia esquecido: «… não acho qualquer benefício na fusão, que anula não apenas o outro como a experiência do seu atrito em mim. Mesmo no amor, o outro deve respirar pela sua própria cabeça. E ainda que reconheça o atractivo das sugestões dos filósofos-terapeutas, como Samuel Buber e James Hillman, para quem um encontro é uma relação sym-bálica, ou seja, um plinto que ajudará a manifestar-se em mim uma propensão latente, ou que, no mínimo, ao levar-me a funcionar como reagente, me catapulta para a transformação, gosto ainda de me pensar como testemunha de um outro que me resiste, que não me é conjugável e pertence a outras dimensões e formas de ser, tão legítimas como a minha.»

Assisti esta semana ao vídeo do encontro entre George Steiner e António Lobo Antunes. E o Steiner confia a Lobo Antunes que o alinha entre os autores para quem o amor sobrepujou o ódio. E no contraponto dele coloca o Céline. Isto não faz de um melhor que o outro, no entendimento do ensaísta, mas em Lobo Antunes divisa-se um percurso do perdão ao amor e um respeito pelo outro e o mundo que pelo menos não o degrada, em Céline o ressentimento do autor sobrepõe-se ao mundo e oblitera-o, torna-o uma mera projeção dos seus fantasmas – espantosamente bem encenado como são todos os espectáculos de guilhotina.

Eu – que adoro o Céline, não é isso que está em questão – comprei momentaneamente esta dicotomia do Steiner.

Embora a xaropada da canção romântica do Roberto Carlos que começa a soar no café me faça debandar e fugir da crónica.

2 Ago 2018

Uma vida a arder

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] o mais recente número da revista “Flanzine” (número 17, Junho de 2018) com o tema Cinzas, a convite de alguns leitores da mesma escrevi um texto intitulado “Uma Vida a Arder”, que é uma breve incursão ao tema do suicídio. No contexto de divulgação da revista, no próximo sábado, 4 de Agosto, irei estar em Palmela para ler este mesmo texto, juntamente com outros convidados. E é este texto que partilho hoje aqui.
Quem concretiza o suicídio, ou o tenta seriamente fazê-lo ainda que falhe – quer seja por uma resistência do corpo, que o próprio desconhecia, quer seja porque o processo foi interrompido por outrem antes do tempo necessário para a execução da tarefa a que se tinha proposto –, fá-lo porque padece de uma dor insuportável (ou que lhe parece insuportável), quer seja física (como o cancro, por exemplo), quer seja moral (uma vergonha insuportável), quer seja metafísica (não encontrar qualquer sentido para a sua vida ou a para a vida humana em geral). E se não há mais casos de suicídio é precisamente pela dor que o acto comporta, pois quem pensa em suicidar-se tem como horizonte o fim de alguma dor, e a dor que envolve o acto de suicídio (suspeita-se) acaba por ser dissuasora. Pois ninguém duvida que cortar as veias ou enforcar-se ou atirar-se para baixo de um comboio sejam actos que envolvam alguma dor, desde o menor corte com a faca até ao ficar-se pendurado pelo pescoço até que este se parta ou nos afoguemos em falta de ar. Por outro lado, há também o peso de dar trabalho aos outros ou atrapalhar-lhes a vida. Interromper a viagem de um comboio vai atrapalhar a vida daqueles que vão no comboio, assim como será uma enorme trabalheira para quem tiver de colectar os restos do corpo. Cortar as veias, ainda que se possa fazê-lo na banheira, também comporta uma enorme sujidade que é preciso limpar. Assim como um tiro na cabeça, ainda que este seja um dos modos de suicídio que nos parece mais indolor. Resta-nos o tão popular excesso de barbitúricos, que infelizmente, para quem pretende seriamente suicidar-se, é também o modo menos eficaz. Se bem que, se der resultado, seja o que dá menos trabalho aos outros e que menos suja o mundo à volta. E se conseguíssemos nos suicidar apenas por fechar os olhos, quando estamos deitados numa cama, num sofá ou no chão – imaginemos um modo especial de fechar os olhos dizendo para si mesmo “quero morrer” e que isso acontecesse – o índice de suicídios quintuplicava ou até decuplicava. Pois era como se alguém morresse a dormir, sem dor, sem dar trabalhos acrescidos aos outros e ainda sem estigma social e religioso. Morria-se apenas porque adormecíamos. Como se ainda estivéssemos vivos, apenas no território indescritível dos sonhos. Passava-se assim de um acto condenável pela religião a uma morte santa. Este é o desejo de muitos que pensam em suicidar-se: morrer sem dor e sem dar trabalhos. Ai, se bastasse fechar os olhos e desejar a morte!…
E, no fundo, talvez a vontade de morrer, que pode ter causas físicas, morais ou metafísicas, advenha também de uma profunda crença de que não passamos de pó. Não apenas como diz a bíblia, que do pó viemos e ao pó retornaremos, mas que somos agora mesmo pó. Pó entre dois pós limite. Talvez o que leva aquele que padece de uma dor insuportável a querer morrer seja acreditar que não passa de pó, que nós todos não passamos de pó. A dor insuportável, e neste caso é quase sempre a dor física e não as outras suas formas, apenas espoletou aquilo em que ele acreditava ainda que não o soubesse.
A procura de morte por sua própria decisão pode também ser uma doença e a psiquiatria identifica muitos casos. Mas não será também porque esse doente não consegue ver-se a si mesmo senão como pó? Talvez ele se sinta como se ele mesmo fosse pó de si mesmo. Pó de si mesmo que vai respirando e consumindo-se lentamente nessa dor de respirar não só pó, mas o pó que ele mesmos é. Assim, para essa pessoa, viver é como que um eterno respirar pó, que é matar-se dia a dia, hora a hora, minuto a minuto, a cada inspiração, e sofrer horrores por essa dor. E isto que dissemos para os doentes psiquiátricos talvez seja o que acontece com todos aqueles que vêm no suicídio o seu caminho: ser ele mesmo o pó que lhe queima lenta e dolorosamente os pulmões; ser ele mesmo uma vida a arder.

31 Jul 2018

A casa dos vinte e quatro

[dropcap style=’circle’] M [/dropcap] undial, o futebol conquistou o mundo, é esta uma extensão que podemos reflectir como unidade pseudo-combinatória do número como programa, numa orquestração de onze para onze, seguida de dois, o que dá mais ou menos um alfabeto, e dado a importância a que ele chegou, nós, os mais arredados, somos tentados a permanecer vigilantes, sabendo que ocupou aos poucos o lugar dos antigos exércitos e jogos de gladiadores, com denominadores comuns, como a destreza, a estratégia, a precisão e a atenção, e assim foi ganhando nos nossos tempos as formas Olímpicas. Os heróis, esses, mudam de registo “tomando sempre novas qualidades” a que esta deu a tónica de uma ampla pacificação.
E eis-nos no Mundo Palco na Casa dos Vinte e Quatro, essas tribos, tal como as designou Umberto Eco, onde o nosso sistema tribal ganhou nova tónica, novo fôlego, novas formas. E aqui vamos rumo ao sentido numérico do vasto passado histórico nacional, que bem se anteciparia por algébrica ao que viria depois. A Casa dos Vinte e Quatro é assim um microcosmos de uma realidade por vir, criada em 1383 por D. João I, à época ainda Mestre de Avis, com o objectivo dos mesteirais participarem no governo do país. É no seu apoio ao Mestre na Crise de 1383- 1385 que se encontra a génese do seu nascimento. Foi durante séculos uma organização sindical com poder deliberativo, onde as medidas eram aprovadas por maioria e quis o irónico destino que fosse extinta pelo regime liberal em 1834. Mas o seu enunciado numérico como bem provam os factos não se perdeu. O Mundo é agora uma grande Casa e as associações continuam em formato Vinte e Quatro.
Grandes acontecimentos improváveis estão unidos a esta prática colectiva, a ver pelos meninos da gruta, os jovens futebolistas e seu mestre, em número de doze mais um, que puseram expectante a Casa Mundo pela difícil operação de resgate, aqueles discípulos já não resistiam no deserto, mas sim fechados num buraco dentro da terra com um mestre pouco mais velho do que eles cujo amor dos homens fora de grande importância para a salvação de todos, vamo-nos dando conta que o futebol é um coro mundial, que joga sim, com probabilidades geométricas e nele reside algo mais do que a prática desportiva. O rolar, a bola, o marcador, o golo, o êxtase em uníssono…O que é um golo? Uma bola que passa por um sistema defensivo com todos a correr para o mesmo lado, uma quase espermatozóica manifestação… o mais veloz, o mais habilitado, o acaso que gerou a fuga, em suma, o mais conseguido que passou.
Jorge Luís Borges disse que o mundo gosta de futebol dado que é estúpido. Pode ser, o mundo é um local mimético, andamos fora e dentro a representar as mesmas coisas como se esta Casa fosse um campo fechado numa circulação sanguínea de outro sistema fechado, adaptando sistemas melhorados mas sem muita antevisão de qualquer outro plano. Nós esgotamos até ao delírio as fontes das origens- e se a origem nos faz originais — estamos a atravessar um mundo em que tal designação é cada vez mais inexistente, e no entanto, face a um tempo Galáctico que espreita, devíamos sair da roda, inventar com carácter de urgência campos novos, não vá acontecer que estejamos todos absortos nesta curvatura fechada quando alguma coisa de novo se der.
Estamos informados e muito desalinhados com o que vem de ontem, e não saberemos dos significados semióticos que devemos antever para não só sobrevivermos enquanto espécie, mas sobretudo, como sabê-lo fazer de outra maneira. A Casa dos Vinte e Quatro é um grande sindicato à escala global e os mesteirais votam “livremente” a fortuna que a todos pesa num grande corpo sem saída, a Economia, estrangulando assim os Olimpos, que em rédea solta deixará a cratera por onde o tempo luxuriante se esvai. A projecção do santo padroeiro passou para o clube, fundaram-se outros juízes, temos novos deuses, e como diria alguém na busca patética de transcendência: “Ronaldo já não é humano”. Não sei em que parte o nosso Estado tão laico criou para si os seus próprios deuses que figuram no Panteão dos humanos mas que são olhados exactamente como partes imortais, e onde deixámos Deus na sua mais abstracta abrangência esquecido entre um mundo que jamais o conceptualizou no seu devido entendimento.
Entre a manifesta noção de ser, enquanto estar ( uma rudeza gaulesa) quem se infiltrará para nos conduzir ao teletransporte, e quem não lá estiver, quem será? Ou, melhor, se não estando se conclui que não é, então nada somos, mesmo olhando a Casa em ecrãs gigantes que podem ser a manifestação de um “arrastão” por encantamento colectivo, a tal Roma com a mesma cabeça que um Imperador desejou decapitar num gesto só. Não nos esqueçamos que foi uma nova ordem que acabou com a Casa dos Vinte e Quatro, aquela que teria por missão unir o mundo, e dele fazer um grande empreendimento colectivo. Talvez o Presidente Português tivesse rectificado Trump para dizer-lhe que não pertence à velha estirpe ibérica, pois que na Europa somos diferentes, e que as balizas ainda não se galgam. Mas tudo isto são subtilezas num mundo que não as encara como grandes princípios.
Vinte e quatro horas tem o dia comum, e a Terra é um grande relógio que pode em boa Hora transformar os ponteiros se outros ajustes tiver doravante que fazer. E porque vai solta, pode a um tempo transbordar de todos nós, que sendo expelidos, nos consumará em suas entranhas. Há muitos campos, até magnéticos, transversais aos campos de futebol. Paradoxalmente, é na guerra que os homens se unem para cantar, e na paz, unem-se para ver. Ou não fosse o canto a velha forma inventada para apaziguar as feras.

31 Jul 2018

Festejos em HK nos Clubes portugueses

[dropcap style≠‘circle’]R[/dropcap]ivalidades na comunidade portuguesa de Hong Kong levam dois clubes a ter distintos programas para as celebrações do 4.º centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia. O Club Luzitano, sob a presidência do Sr. Conselheiro Agostinho Guilherme Romano, irá celebrar no dia 17 de Maio de 1898 um Te-Deum às 5,30 da tarde na Catedral de Nossa Senhora da Conceição, pelo vigário apostólico de Hong Kong, Bispo de Clazomme, com a assistência do clero espanhol, francês e italiano ali residente. Nesse dia ainda se realizará um sarau literário e musical, assim como a inauguração do busto de Vasco da Gama no Club Luzitano e a iluminação do edifício sede, que continuará até ao dia seguinte, quando se irá efectuar o baile no Club. Já o Club Vasco da Gama propõe-se fazer uma festa no seu Club, na Peel Street e uma excursão a Macau, mas a 8 de Maio de 1898 a comissão executiva da celebração do Club Vasco da Gama resolve: 1.º Que em vista do luto que cobre muitas famílias e da dor que, pela irreparável perda de entes estremecidos, actualmente as excrucia, o referido Club e os seus aderentes não fizessem nenhuns festejos aos quais se pudessem atribuir qualquer sombra de regozijo público, e que se pusesse de lado a ideia de adiamento de tais festejos por não deverem ter lugar em época tão anormal como a que estamos atravessando, e nem depois, porque, depois, o que se deverá fazer será darem-se graças a Deus por nos haver libertado do terrível flagelo que óra nos traz consternadíssimos a todos. 2.º Que se convocasse uma nova reunião, a fim de nela se deliberar sobre a melhor aplicação humanitária e patriótica a dar-se à quantia subscrita para os festejos que estavam projectados”, de M. Fernandes de Carvalho n’ O Porvir.

A 9 de Maio, a Comissão Executiva da Celebração em Macau do IV Centenário publica uma circular: <devido ao irregular estado sanitário da província, não serão enviados convites especiais para os festejos oficiais aos portugueses e estrangeiros residentes fora de Macau>. Sobre a terrível epidemia da peste bubónica já dois meses antes o Hongkong Daily Press de 7 de Março de 1898 dá conta de existir na colónia inglesa.

O Cônsul-Geral de Portugal em Hong Kong emite a 10 de Maio uma circular, “Tendo-me comunicado a Direcção do Club Lusitano a resolução tomada, de acordo com os sócios do Club, de se adiarem os festejos comemorativos (…) – em vista do estado de consternação geral, estando por tal motivo bastante sobressaltados os habitantes desta colónia; pedindo-me a referida Direcção ao mesmo tempo para assim o fazer constar a todos os portugueses aqui residentes, cumpro por esta forma este dever, sentindo, como representante do governo (…) este adiamento forçado…”

O Porvir, cujo editor responsável é Lisbello J. Xavier, presidente do Club Vasco da Gama, a 14 de Maio cai logo sobre o Sr. Agostinho Guilherme Romano, Cônsul, referindo, “… os festejos comemorativos do Centenário da Índia, que deveriam ter lugar no Club Lusitano, seriam obra exclusivamente dos dignos sócios do mesmo Club, pelo que não teriam nem poderiam ter um carácter público” … “O Sr. Romano assinar a circular como cônsul, sendo presidente do Club, e devendo, portanto, tê-la sua Exa. expedido nesta qualidade ou tê-la feito assinar e expedir pelo sr. secretário do mesmo Club. (…) Além disso, a circular era do Club Lusitano e só aos sócios dele pode interessar, que não a todos os portugueses residentes aqui, pois que a grande maioria destes últimos não pertence àquela agremiação e, nem que quisessem, poderiam ir ao baile daqueles, por não haver onde os alojar, e, mesmo que o houvesse, sabem bem que a ‘boda ou baptizado não se deve ir sem ter-se contribuído para isso ou ter-se sido convidado’, caso que se não deu com eles, com essa grande maioria dos portugueses residentes em Hong-Kong.”

“Ainda se o Club Lusitano estivesse, relativamente aos festejos do Centenário, nas circunstâncias do Club Vasco da Gama, vá que não vá. Este tem como subscritores e aderentes, para os festejos que projectara, grandíssimo número de cavalheiros portugueses residentes aqui e que são completamente estranhos a ele. Por tal motivo, a festa promovida por este, em comemoração do Centenário da Índia, teria um carácter mais nacional e seria mais da nossa comunidade, porque esta tomaria maior parte nela, e as decisões a tal respeito tomadas pela comissão executiva do Club Vasco da Gama devem, portanto, interessá-la mais do que as decisões da direcção do Club Lusitano sobre o mesmo assunto, visto que a festa projectada por aquele seria uma festa pública portuguesa, em quanto que a d’este seria uma coisa apenas dos seus sócios”, n’ O Porvir.

Tristes festejos

No dia 17 de Maio em Hong Kong não se canta um Te Deum na Catedral Católica em honra do centenário da Índia e somente é içada uma bandeira no Club Lusitano. O Independente de 22 de Maio diz ter a direcção do Club Luzitano resolvido “adiar os festejos projectados para comemorar o Centenário. Contudo, não podia o jubileu nacional, nesta ocasião, fossem quais fossem as circunstâncias, passar despercebido a essa associação que em tantíssimas ocasiões tem sabido honrar a nossa querida pátria, que é a de todos os seus membros efectivos; por isso o seu digno presidente, Sr. conselheiro Agostinho Guilherme Romano, nosso cônsul geral nessa colónia, no dia 17, o primeiro dos festejos, à noite depois das 7 horas, quando no Club se costuma reunir o maior número de sócios, convidou todos os presentes a subirem ao salão Luís de Camões. Aí ficaram todos agradavelmente surpreendidos vendo erguida no meio da sala, no topo de uma linda haste dourada, uma bandeira de seda, semelhante à que guiou Vasco da Gama na gloriosa viagem à Índia, e que gentilmente fora feita e oferecida ao Club pela esposa do Sr. Conselheiro Romano para cobrir o busto do grande navegador e que no referido dia devia, segundo o programa dos festejos que foram adiados, ter sido ali inaugurado. O Sr. Conselheiro tendo feito servir champanhe,” pede licença para oferecer ao Club Lusitano essa bandeira, que ficará sendo a da associação. Bandeira semelhante conserva-se na fachada do edifício do Club, arvorada durante os dias 17 a 20, período em que no Consulado está hasteada a bandeira nacional.

Múltiplos brindes se fazem e ainda no dia 17 o Sr. conselheiro Romano expede para Lisboa telegramas, um como presidente do Club Lusitano para a Comissão do Centenário e outro como cônsul para El-Rei o Sr. D. Carlos, associando-se ao jubileu nacional em nome da comunidade portuguesa desta colónia, mas sem lhe dar conhecimento. No dia seguinte recebe a resposta: <Suas Majestades agradecem muito. Conde Arnoso>.

Estes os únicos festejos em Hong Kong e a desencantada comunidade portuguesa logo a 1 de Julho de 1898 assiste ao júbilo do Reino Unido, quando força a China a arrendar-lhe os Novos Territórios por 99 anos para os juntar a Hong Kong, tomada em 1841 e a Kowloon, anexada em 1860.

27 Jul 2018

Para não ver claro

[dropcap style=’circle’] A [/dropcap] seis meses de fazer os sessenta sinto que continuo a não ver nada claro e que isso afinal é que me alimenta a curiosidade.
Se associarmos a idade ao hardwire, como um circuito que não pode ser reprogramado porque ficou como soldado a uma conexão anterior, não sinto nada que aos estímulos novos queira antepor alguma perspectiva de controlo. Estou nos antípodas da velhinha da anedota que procura a moeda que perdeu debaixo do candeeiro onde está a luz, na ilusão de que o problema se situe num perímetro em que o possa controlar.
Quando era novo actuava como um x-acto, fosse na crítica que exercia, fosse na vida, porque achava que tudo era questão de ver claro.
E via tão claro que aterrorizei a minha mãe durante anos com a obsessão de que me suicidaria quando fizesse vinte e três anos. Quando fiz vinte e quatro ela acordou-me e disse-me, Venho dar-te os parabéns que mereces, e esbofeteou-me com um furor idêntico à crueldade com que a mortifiquei durante um lustro.
Aos vinte e nove divorciei-me porque via claro e segundo me contaram amigos dez anos depois – eu tinha-me esquecido de todo – separei-me porque, justifiquei, “não consigo ser suficiente burguês para ter uma mulher e uma amante ao mesmo tempo!”. Dada a beleza excelsa da esposa rejeitada e a sua inteligência emocional, percebo que me precipitei como o cretino embriagado pela teia das suas próprias palavras e ainda a milhas de saber que a burguesia tem pelo menos a virtude de ter menos ilusões quanto aos seus próprios enganos.
Mas o fito era ver claro, bovinamente.
Felizmente retirei-me dos comandos de uma tão decapitadora luminotecnia e passei a aceitar que uma certa falta de controlo faz bem à vida e que muitas vezes não vemos claro e sobretudo não vemos em 360 graus, isto é com a lucidez exigível.
Hoje fascina-me que o documentarista Joris Ivens aos noventa anos tenha partido para a China para tentar fazer “um retrato” de algo verdadeiramente impalpável, o vento, fechando com o mistério desse elemento a sua carreira tão marcada pelo factor político.
Deixou de ter medo de não ver claro.
Neste campeonato do mundo confirmei. Das coisas mais penosas na tv é a redundância dos comentadores de futebol. Precisamente porque eles querem manter a ilusão de que vêem mais claramente do que os outros. A bola é centrada para a esquerda e repete o locutor: “a bola é cruzada para a esquerda”, como se fôramos cegos. “Em quatro minutos dois penaltis. Incrível, penalti claro, levou a mão à bola”, ouço, e que acabámos de ver? Dois penaltis e num deles a mão na bola. É um trabalho que se pode fazer com um olho nas costas. Um trabalho mecânico, com escassíssimas inflexões.
Como eles próprios, inexplicavelmente, não morrem de tédio com a vacuidade produzida, dado esse mistério são considerados especialistas. Especialistas da duplificação inútil das figuras, como se fosse uma revelação extraordinária anunciar “A múmia está morta!”.
É trabalhinho que dispensa o raciocínio, chega um vocabulário de 300 palavras, e ter engolido um megafone para ensaiar de cinco em cinco minutos os efeitos da ênfase: a dramatização é um ver claro.
O sonho do meu tio Isidro era fazer relatos de futebol. A Rádio Renascença abriu-lhe as portas. O meu tio Isidro prometia não gritar golo antes da bola estar reposta no centro do terreno para não haver enganos. E chegou o dia, uma partida para a taça, 16 horas à canícula: Freamundo-Casa Pia.
O que a seguir se passou ficou nos anais do jornalismo: o meu tio dividiu o campo em quartas e quartos (ao todo, explicou-me ele mais tarde, em 128 divisões) como na rosa-dos-ventos, estabeleceu que as balizas eram os pontos cardeais e os cantos os pontos colaterais, e a bola circulava de leste para nordeste, enquanto o ponta-de-lança corria de sudoeste para norte, numa angulação de 75º graus, o guarda-redes defendia por se ter metido nos cornos do Bóreas – um vento dos antigos – enquanto um tiro frouxo de fora da área era comparado a um Zéfiro esmorecido.
Não se entendeu nada do jogo, mas as pessoas tiveram bastas informações sobre como orientar-se com uma bússola.
Os actuais comentadores de futebol, pelo contrário querem “ilustrar” o jogo e mostrar como vêem mais claro.
Por isso é urgente lembrar que faz cem anos nasceu um dos génios do cinema, Ingmar Bergman, cujas personagens se debatiam no nevoeiro.
Num dos filmes, o Persona, uma enfermeira conta uma história a uma actriz em crise e que deixou de falar. Ouvimos o relato duas vezes. Primeiro sobre a imagem de quem o conta, depois sobre a imagem da actriz que escuta.
Perguntaram-lhe porque tal acontecia e ele explicou: a história que se conta nunca é igual à história que se ouve. Ou seja: existe o relator, o ouvinte e o intérprete. O intérprete é cada um que ouve o relato a partir do seu contexto e estória de vida, diferente para todos. E com isto Bergman descentra o espectador do eixo do filme para nos fazer descobrir que aquelas personagens existem para além do público, têm uma dignidade própria que ultrapassa a função de fazer passar informação para o espectador.
É isto que falta a muitos personagens de hoje, seja no cinema ou na literatura: tridimensionalidade. Mesmo que para tal as personagens, que tanto falam, deixem de ver claro para se emaranharem ainda mais. Mas há nos seus filmes um respeito pelas personagens, pela sua veracidade, que não se compadece com o espectáculo mas antes adianta a ideia de que vivemos num mundo múltiplo, onde às vezes é difícil o contacto humano. Ou encontrar, apesar da loquacidade, clareza no discurso.
Seria útil que os locutores de futebol percebessem que vivemos num mundo múltiplo e não uniforme. Talvez assim, sem saberem como chegar a todos, se calassem.

26 Jul 2018

As formas do tempo

Horta Seca, Lisboa, 8 Julho

Liga-me o Nuno [Ramos de Almeida] anunciando a morte de Steve Ditko (1927 – 2018), o criador do Homem-Aranha, com Stan Lee. Improviso comentário que não viaja longe do óbvio: este ícone da cultura popular há gerações foi o primeiro super-herói a duvidar da sua condição, a perguntar-se adolescentemente. A personagem não encaixava no mundo que era suposto salvar. Os longos monólogos, em versão brasileira, cedo me espantaram. Mas só muito mais tarde descobri a grande dinâmica gráfica, que fugia à gramática aparentemente simples, mas sempre eficaz, que, por alturas do voo abaixo dos radares, foi sendo construída peça a peça por operários, que não autores, como Ditko nos comics. Estou em crer que só a máquina da indústria cinematográfica, que remastiga até às migalhas a enigmática categoria dos super-heróis, consegue assinalar o desaparecimento de um obscuro obreiro. Confesso que não estou em condições de analisar o que se simplificou na passagem para as versões cinematográficas, portanto mais divulgadas, mas o Homem-Aranha contém original potência de mito.

 

Vale de Santo António, Lisboa, 14 Julho

Escolhos recebidos das marés vivas, por estes dias chegaram-me inúmeras colagens, na forma de propostas para exposições, enquanto acompanhantes de poemas, agora mesmo nos bastidores do labor actual do José Manuel [Rodrigues]. O eremita, que não deixará nunca o Alentejo, abriu atelier em Lisboa e estendeu festa. No meio das vitualhas, lá estava a sua actual matéria: velhas fotografias de todo o tipo, resgatadas pela gandaia nas feiras de antiguidades, aguardavam em repouso os cortes que, para começar, as tornarão ainda mais fragmentadas, antes de se fixarem em novas e unas composições. As primícias que nos foram dadas a ver estão cheias de potencial, de latências e pulsações. O jogo na colagem reside no descentramento do olhar, nas formas originais que surgem das ruínas, dos restos. Há muito que não as pratico, de tal modo o meu tempo se fez sucessão de nós por desatar. Tinha por material de eleição convites em papel que ia recebendo para exposições e lançamentos, isto além de múltiplas outras proveniências. Desconfio que me seria muito difícil sacrificar velhas fotografias. Bem sei que sacrifício talvez seja peso exagerado, e os anónimos renascerão, mas há um lado patrimonial que me custa ofender. Curiosamente ou mais que isso, os dois poetas que me têm acompanhado, o Luis Garcia Montero e o Felipe Benítez Reyes tratam o tempo por tu, escavam-no por dentro revelando o seu vazio de formigueiro. Acresce que o Felipe também compõe colagens, como as que incluiu na sua prova de amor a Pessoa e a Lisboa (uma delas ilumina aqui a prosa). Em todas as cinco, o mostrador de relógio com os ponteiros na sua marcha inexorável surge no lugar de protagonista. Faz-se mesmo cabeça nos casos agudos. O tempo persegue-me.

 

Horta Seca, Lisboa, 15 Julho

Folheio o catálogo que o Museu Internacional de Escultura Contemporânea, de Santo Tirso, dedicou ao desenho de Júlio Resende, nos idos de 1950. Para as lermos com o corpo todo, precisamos ver os originais ao vivo. Mas um livro, quando bem feito, transfigura-se em museu portátil, disponível em qualquer altura, sempre pronto a surpreender. Folheio e fico preso. Um após outro apresentam figuras em diálogo, confinadas à sua paisagem, às tantas quase caracteres, como se o gesto libertasse formas. Até que me encontro nas figuras compostas de finos traços, volutas que parecem evoluir até se fixarem numa forma, concreta aqui, abstracta além. «Homem com rede» só se faz corpóreo pelo título, mas assim que se lê o homem dança, feito forma pelos traços súbitos das suas horas. Talvez ganhe o dia, o peixe, o pão. Ou se perca no rodopiar, modos do cinzento ganhar um pouco mais a espessura de negro. E o mar sobrando no quase branco do papel, ressoando.

 

Horta Seca, Lisboa, 16 Julho

Devidamente notificado do lançamento das novas listas (primeiro semestre) do Plano Nacional de Leitura, descubro que temos dois títulos seleccionados, «Poetas Portugueses de Agora» e «Odes Olímpicas», mas a única forma de tal sabermos será usando o motor de busca da Rede de Bibliotecas de Lisboa (BLX). Torna mais difícil analisar o conjunto das listas e tinha curiosidade de ver o que mudou, se alguma coisa tiver acontecido, com os novos avaliadores. O que acabou por me tocar foi ver os livros aparecerem com os selos da biblioteca a que pertencem, encimados por traço verde, números e letras a marcarem com coordenadas a pureza. A minha aldeia lúgubre de infância foi uma biblioteca no topo da colina. Não perdoarei à Junta de Freguesia ter expulsado os livros de tão perto das nuvens. Nem mesmo por os mudar para a vizinhança da escola, no Vale Escuro.

 

Hoje Macau, 19 Julho

O mano António [de Castro Caeiro] continua a traduzir [Georg] Trakl, enchendo-me com os suspiros pestilentos da melancolia, rezando a quotidiana proximidade da morte, ainda ela: «Oh! a noite que chega até às aldeias lúgubres da infância./ A lagoa entre as pastagens/ enche-se com os suspiros pestilentos da melancolia./ Oh! a floresta que mergulha suavemente nos olhos castanhos,/ para aí das mãos ossudas do solitário/ a púrpura dos seus dias delirantes decair./ Oh! a proximidade da morte. Rezemos./ Nesta noite, desfazem-se sobre almofadas mornas/ amarelecidos pelo intenso os frágeis corpos dos amantes.»

 

CCB, Lisboa, 19 Julho

Fechamos a temporada do «Obra Aberta» com o Fernando [Sobral], a trazer sobretudo romances históricos, dos que nos poem a pensar quem somos, sobretudo na relação com o poder, e o Vítor [Paulo Pereira], oriundo dessa esfera do poder, mas do próximo, daqueles que fazem a diferença, e assente na cultura, soltou tocante e espontâneo, como é seu timbre, apelo à leitura. Por causa dos mundos que os livros contêm. Professor, que talvez não tenha deixado de ser, em comentário à crise da educação, Vítor afirmou depois que nada é mais importante do que a relação criada entre o professor e o aluno na sala de aula. Tudo o resto pode estar a ruir, mas o essencial acontece ali e dependendo pouco de terceiros. Deixou-me a pensar.

25 Jul 2018

A Trumpização da linguagem

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ueixamo-nos de Donald Trump pelo parco vocabulário que evidencia, repetindo sempre as mesmas palavras, como se ele mesmo fosse um estrangeiro recém chegado à sua língua. Mas todos nós – salvaguardando as universais excepções de serviço – estamos também a trumpizar-nos, não só pela falta de vocabulário que cada vez mais vamos ganhando, como se isto não fosse um oximoro, mas também pelo mau uso das mesmas. Neste caso, temos o recém chegado “realizar”. Quantas vezes não se escuta pela cidade alguém a dizer “foi então que realizei o que ele estava a dizer” ou “realizei aquilo”, como se ele fosse realizador de cinema. O que ele gostaria de dizer em português, caso não fosse estrangeiro, é que “foi então que me dei conta do que ele estava a dizer” ou “dei-me conta daquilo”.

Quanto à falta de vocabulário, ela advém muitas das vezes da nossa falta de interesse pelo mundo à nossa volta. A maioria das palavras surgiram como forma de nomear as coisas. Por exemplo, quando olhamos para uma flor, a maioria de nós só identifica as folhas, os caules, as pétalas, mas a constituição da flor vai muito para além disso. Assim como a constituição de tudo quanto há. A própria constituição humana é-nos desconhecida, a não ser de uma forma algo vaga. Mas em relação às flores, para além do desconhecimento da sua constituição, há um desconhecimento dos nomes das diferentes flores que habitam a cidade ou os campos que habitamos. A maioria de nós fica-se pela capacidade de distinguir uma rosa de um malmequer. Pois, contrariamente ao que se possa pensar, não é apenas pela falta de leitura que o nosso vocabulário decaiu, é principalmente pela nossa falta de interesse. Um rapaz que se interesse por carros, em menos de nada está a usar com precisão e extensivamente um vocabulário apropriado, identificando pistão, bateria, veio de transmissão, etc. O problema é que o mundo não é só carros. Cada vez menos há mundo que nos interesse.

Outro mau resultado, fruto da queda vocabular, é a ficção dos sinónimos. Havia um poeta que dizia que não há sinónimos, estes são uma invenção dos gramáticos e dos dicionários. Cada adjectivo tem uma aplicação mais ou menos precisa. Isto parece evidente, mas a maioria de nós usa o “great” ou “brutal” ou “magnífico”, independentemente da frase. Veja-se por exemplo estes exemplos: se alguém disser “está um tempo muito agradável” ou “foi um encontro muito agradável” nada parece estranho e ninguém dirá que o adjectivo está a ser mal usado (caso esteja um tempo muito agradável e o encontro também tenha sido muito agradável). Mas imagine-se que alguém usa o mesmo adjectivo para outra situação: “o senhor X tem poemas muito agradáveis”, ou “apesar de não gostar dos romances do senhor Y, ele tem romances muito agradáveis” ou ainda “foi uma foda muito agradável”. Ficamos a perceber que o “agradável” não cabe ali, não tem força magnética suficiente para puxar para si aquilo de que quer dar conta.

E se os adjectivos podem não dar conta daquilo que querem mostrar, também o seu uso indistinto acaba por desgastar o seu valor, não precisando nada do que se diz. É o mundo do “great” do “brutal”, do “magnífico”. Se tudo é “great”, “brutal”, “magnífico”, os adjectivos desvalorizam. Vê-se um golo do Ronaldo e é “brutal”, acaba-se de ler um romance e diz-se “brutal”, bebe-se um vinho e diz-se “brutal”. E de brutal em brutal vamos mapeando o mundo, do mesmo modo que Trump com o seu “great”. Evidentemente, esta indistinção do adjectivo e redução vocabular advém, mais do que qualquer outra coisa, de uma falta de interesse “brutal” pelo mundo e seus arredores.

24 Jul 2018

Dois poemas de Georg Trakl traduzidos

Melancolia – 3ª Versão

 

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros,

Que longamente me fixam, ao passar.

Acordes suaves de guitarra acompanham o outono,

No jardim, dissolvido em lixívia castanha.

As mãos das ninfas preparam a lugubridade séria

Da morte. Lábios podres sugam leite de

Peitos encarnados e na lixívia negra

Deslizam os caracóis húmidos do filho do sol.

 

Melancholie[1]

Bläuliche Schatten. O ihr dunklen Augen,
Die lang mich anschaun im Vorübergleiten.
Guitarrenklänge sanft den Herbst begleiten
Im Garten, aufgelöst in braunen Laugen.
Des Todes ernste Düsternis bereiten
Nymphische Hände, an roten Brüsten saugen
Verfallne Lippen und in schwarzen Laugen
Des Sonnenjünglings feuchte Locken gleiten.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 22.

 

Humanidade

 

Humanidade posta perante gargantas de fogo,

Rufar de tambores, semblantes escuros dos guerreiros,

Passos através de um nevoeiro de sangue. Ressoa o ferro negro.

Desespero. Noite em cérebros tristes:

Aqui as sombras de Eva, a caça e o dinheiro encarnado.

Nuvens que a luz trespassa, a ceia.

Um silêncio suave habita o pão e o vinho

E aqueles ali reuniram-se. Doze em número.

À noite, gritam a dormir debaixo dos ramos da oliveira.

São Tomé mergulha a mão nas feridas.

 

 

Menschheit[1]

 

Menschheit vor Feuerschlünden aufgestellt,

Ein Trommelwirbel, dunkler Krieger Stirnen,

Schritte durch Blutnebel; schwarzes Eisen schellt,

Verzweiflung, Nacht in traurigen Gehirnen:

Hier Evas Schatten, Jagd und rotes Geld.

Gewölk, das Licht durchbricht, das Abendmahl.

Es wohnt in Brot und Wein ein sanftes Schweigen

Und jene sind versammelt zwölf an Zahl.

Nachts schreien im Schlaf sie unter Ölbaumzweigen;

Sankt Thomas taucht die Hand ins Wundenmal.

[1] Trakl, Georg. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 27.

24 Jul 2018

O Verão há muito tempo

[dropcap style=’circle’] N [/dropcap] a minha infância, o Verão anunciava um horizonte inteiramente diferente daquele que vigorava no resto do ano. Era uma espécie de intervalo que redimia os meses de frio e de solidão em Clermont-Ferrand, França. O inverno em Clermont-Ferrand era sinónimo de frio e de neve. Ao contrário da imagem romântica que temos da neve – e num país como Portugal, só se pode ter uma imagem romântica – a época da neve não corresponde a parzinhos românticos dançando no gelo, felizes, em pleno Central Park, ou a bonecos alvos salpicados de vegetais fingindo narizes e olhos. Na maior parte do tempo em que neva, a vida quotidiana e a poluição encarregam-se de transformar as ruas num lamaçal castanho que toda a gente gostaria de evitar e não o consegue.

Eu tenho demasiados genes portugueses para a vida naquelas condições climatéricas. Para além de uma asma que acordava em Outubro para adormecer apenas em Maio, tinha amigdalites constantes no Inverno, período no qual a minha dieta se resumia a leite quente e antibióticos. O próprio acto de sair à rua, com temperaturas negativas e vestindo malhas sobre malhas, era um acontecimento para o qual tinha de me preparar psicologicamente. Os dias em que não tínhamos aulas eram, para mim, os mais felizes (e eu gostava de ter aulas).

Em Agosto, como a maior parte dos emigrantes, regressávamos a Portugal. Com o carro carregado de parafernália electrónica, queijo Brie e brinquedos, empreendíamos a viagem de carro que durava dois dias e duas noites de Clermont-Ferrand a Tavira. Em Tavira, os miúdos da minha idade ficavam a olhar para o nosso carro, um Renault 18 GTL que, não sendo de todo um modelo de topo, fazia ainda assim um brilharete. Lembro-me dos olhares de espanto das crianças quando eu lhes mostrava os vidros eléctricos. Aquela banalidade ao nível de ligar e desligar a luz, em França, era em Tavira pouco menos que magia.

As famílias das minhas irmãs recebiam-nos como reis magos temporãos. Da goela do porta-bagagens do Renault saíam objectivas e máquinas fotográficas para um cunhado fotógrafo, acessórios de caça para um cunhado de clique mais barulhento, brinquedos para os meus sobrinhos, roupa para as minhas irmãs, iguarias francesas para todos. Sentia-me feliz com aquela distribuição de prendas, sentia que bastava pouco para fazer os outros felizes. A família era como o Verão: tinha uma época e era simples.

Na praia eu era invariavelmente a criatura mais branca sobre a areia. Acabava o Verão com inveja do meu sobrinho, apenas um ano mais novo e consideravelmente mais escuro que eu. Eu começava a temporada num tom azul-claro e, passando de leve pelo branco, ia directamente para o vermelho. Não tinha jeito para aquela forma de ser português, descontraído e alheio à necessidade de protector solar. A minha pele absorvera demasiada frança, demasiada neve.

Quando acabava o Verão, a pouca cor que adquirira naquele mês de praia dissipava-se no regresso a França e, já na escola, quando me perguntavam pelo que tinha feito nas férias e eu respondia “praia”, orgulhoso, o resto da turma ria-se. Para aquela medalha de veraneante, os meus genes portugueses nunca chegaram.

23 Jul 2018

A hipótese de Alan Shore

Para o José de Freitas

 

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]ames Spader, como Paul Shore, diz à personagem de William Shatner, Denny Cane – n’ A série Boston Legal – que existiremos no Céu como nos dias mais felizes da nossas vidas. Mas nós não sabemos se haverá vida no além. Não se pode provar que não há nem provar que há. Tal como na “Aposta” de Pascal – sobre se Deus existe ou não existe – também não se podem provar nenhuma das teses. A fé faz depender de si a existência de Deus. Mas a fé é a fé, uma determinação modal que depende da crença, e a crença depende da mente, mesmo quando resulta da Graça. Ora isso faz que a tese: “Deus existe”, “há vida eterna”, conteúdos de um acto mental. Actos mentais são actos mentais e não podem extrapolar o seu conteúdo para nenhuma realidade. Ainda assim, é sabido que podem ser eficazes. Por outro lado, pelo contrário, a tese de que Deus não existe, pior, de que Deus não pode existir, depende também de um acto mental. Não querer que Deus exista tem consequências, porque se anula toda e qualquer religiosidade, toda e qualquer epifania ou revelação. Todo o ateu tem um trabalho árduo em destruir o sentido de Deus, mas a sua tese também resulta de um acto mental.

Na “aposta” de Pascal, o laboratório é o jogador a fazer a sua aposta num jogo de possibilidades repartidas, 50%-50%. Agora, o jogador está com os seus olhos nos dados, mas a sua mente está completamente virada para o futuro. O jogador vive da antecipação. O jogador está como o pescador se encontra a olhar para a linha, mas a ver se ela mexe e as boias se afundam. O jogador está lançado para um momento futuro. Todo ele é antecipação. Ele não está à espera apenas de saber se ganhou ou perdeu. Tal como o pescador não está à espera de saber se pescou muito, pouco ou nada. Nenhum está à espera do desfecho, porque na verdade não querem nenhum desfecho. A Realidade deles depende da antecipação.

Nenhum espera o desfecho da situação de prospecto, de antecipação. Quando o peixe é apanhado ou o jogo acaba, suspende-se a antecipação. Qualquer que seja o resultado, a vida deixa de depender do momento da antecipação e passa a requerer acção, uma reacção pragmática. Por isso, mesmo quando se ganha, ao desfazer-se a antecipação, perde-se a riqueza da transcendência, a forma excessiva que ultrapassa o dado na percepção. Na antecipação, não há sincronização entre percepção e conteúdo. O conteúdo está projectado para mais tarde. Ao mesmo tempo, o conteúdo do momento que se tornará realidade – mas ainda não aconteceu – exerce o seu efeito sobre o presente. É retroactivo como é prospectivo.

Existiremos numa outra vida a reviver os dias mais felizes das nossas vida? E como existiremos? Teremos o corpo na nossa melhor forma? Estaremos com todas as pessoas que amámos em simultâneo, quando as amámos umas a seguir às outras? Os nossos melhores amigos serão quais? Teremos os amigos de infância que morreram violentamente por acidente ou não sobreviveram? Teremos os amigos desavindos tal como os amámos e eles a nós? Seremos uma comunidade de pessoas no seu melhor sem o cuidado e a aflição de acompanhar os seus na via da cruz que é a antecipação da morte? Como resolver a equação? Vivemos nós já a antecipar esse momento, como quando revisitamos vésperas de férias na infância? Será a vida futura caucionada pela antecipação de que dias melhores virão?

Ou anteciparemos o sossego da paz eterna, em que nada se passa, quando apenas há a grande noite? A grande noite é como nos tempos anteriores ao nosso nascimento, quando não se sabe de nada, na era eterna que nos é pré-natal.

Ou será que fazemos a aposta de Alan Shore e vaticinamos para os Denny Cane das nossas vidas? Existiremos então para todo o sempre, desmultiplicados por todos aqueles que nós somos nas relações intrínsecas que temos com os outros que amamos? Existiremos como nos nossos melhores momentos, os momentos mais felizes das nossas vidas?

A aposta dá-nos a antecipação do momento. A antecipação pode trazer a realidade pragmática do não. Tudo será como a abominação da desolação.

A antecipação, contudo, pode dar-nos um pouco de esperança. A esperança é uma velha decrépita com olhar de menina. É também o que nos poderá trazer um pouco de fé.

O pior de tudo é não poder ser enganado.

20 Jul 2018

Festejos de 1897 e o cônsul de Hong Kong

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]residente da Direcção do Club Lusitano de Hong Kong em 1893, o conselheiro Agostinho Guilherme Romano em 1897 acumula já essa função com a de Cônsul. Da inicial proposta de se fazerem as celebrações da partida de Vasco da Gama para a Índia nada encontramos em Macau registado nos jornais e em Hong Kong, só no Club Vasco da Gama é festejado.

Este Club, situado na Peel Street em Hong Kong, envia um folheto ao jornal de Macau, O Independente que o publica a 21 de Novembro de 1897 com o título, “Memória dos festejos celebrados no Club de Recreio, hoje Vasco da Gama, por ocasião do IV Centenário da Índia, na noite de 8 de Julho de 1897, e onde, com precedência da fotografia do quadro alegórico existente na sala do referido Club em Hong Kong, se faz desenvolvida narração da maneira briosa e patriótica como a festa correu.” Este o único registo que encontrei da comemoração do IV Centenário da partida de Lisboa da primeira armada para a Índia comandada por Vasco da Gama.

No estrangeiro, o IV Centenário é comemorado em Munique no dia 14 de Fevereiro de 1898, na grande sala do Instituto das Artes e Indústrias da Sociedade Geográfica daquela capital com uma sessão solene e festival em honra de Vasco da Gama, que obteve um êxito brilhantíssimo. “Na presença dos presidentes de honra, suas altezas o príncipe Luiz e a princesa Thereza, do presidente da câmara alta, conde de Lercheufeld e de um selecto concurso de damas e cavalheiros fez o professor Eugénio Oberhummed uma descrição viva e interessantíssima dos conhecimentos geográficos na Idade Média, auxiliando-se de uma grande quantidade de mapas e cartas soberbamente coloridas pertencentes ao rico tesouro da Universidade.

O Sr. Dr. Haunnerich, conferente da sessão, apresentou em fases eloquentes uma fiel e pitoresca imagem das navegações do grande descobridor e herói marítimo português e dos tempos que o precederam e lhe sucederam, comunicação científica e eloquente, principalmente baseada em novos documentos e estudos dos arquivos de Lisboa.

Causou viva sensação no auditório a apresentação feita pelo pintor Adolpho Schmidt Celle, de uma cópia em tamanho natural do retrato original de Vasco da Gama existente no Museu de Lisboa. O painel ficará em exposição na Liga Artística”, notícia do Echo Macaense de 6 de Março de 1898.

Tricas com o Cônsul Português

Em 1898 publicam-se em Hong Kong dois jornais em língua portuguesa, O Provir, editado por Lisbello Jesus Xavier, presidente do Clube Vasco da Gama, com constantes reparos ao Sr. Conselheiro Agostinho Guilherme Romano, cônsul português desta cidade e presidente do Club Lusitano, que tem a seu favor o jornal Extremo Oriente. É numa rivalidade entre clubes portugueses com os seus jornais que o ambiente da preparação em Hong Kong do IV Centenário se desenrola. Ambos apenas estão de acordo ao pedir para Macau adiar por dois dias as datas dos festejos, para assim calhar no fim-de-semana de 21 e 22 de Maio, a permitir aos sócios aí se deslocarem. Não houve resposta de Lisboa.

De Macau, o Echo Macaense de 13 de Março de 1898 envia um recado na primeira página do jornal, “Aos nossos compatriotas em Hongkong. É deveras penoso ler o que estão publicando os nossos dois colegas de Hongkong, o Extremo Oriente e O Porvir, a propósito da dissidência originada da formação da comissão executiva do centenário da Índia.

Como de ambos os lados vieram à imprensa liquidar as suas responsabilidades, diremos francamente o nosso parecer, que, pelo que nos consta, se ajusta com o sentir geral das pessoas imparciais.

Em vista de factos e documentos que vieram à luz da publicidade, se infere que de ambos os lados houve precipitação e falta de savoir faire. Em primeiro lugar é evidente que a comissão directora do Club de Recreio, tendo conhecimento de que havia sido convocada pelo Sr. Cônsul Romano uma reunião magna da comunidade portuguesa, para o dia 20 de Setembro [de 1897], no Club Lusitano, afim de a assembleia eleger uma grande comissão para elaborar o respectivo programa dos festejos do centenário, não devia de modo algum expedir na véspera, isto é, no dia 19 de Setembro, um expresso, convidando todos os sócios do Club, os seus amigos, e a comunidade em geral para uma reunião no mesmo dia 19 de Setembro, a fim de tratar dos festejos do centenário da Índia.

Uma tal reunião, na véspera da outra, não podia deixar de ser considerada uma provocação, como realmente o foi.

D’ outro lado, é também certo que, tendo o Sr. cônsul Romano convocado uma reunião magna da comunidade portuguesa no Club Lusitano, para eleger uma comissão executiva, devia ter deixado completamente ao alvedrio da assembleia eleger a comissão por meio do escrutínio secreto, o que evitaria toda a discussão acrimoniosa, e daria óptimo resultado, porque o bom senso da maioria teria pronunciado com acerto o seu veredictum. Mas longe de seguir esta orientação, o Sr. Cônsul Romano apresentou uma lista de 32 cavalheiros que propunha para compor a grande comissão. Esta proposta tirou à assembleia a liberdade de eleição, e inutilizou a reunião”.

Não havia nada a censurar se o cônsul “desde o princípio tivesse agregado a si alguns dos nossos compatriotas mais conspícuos, constituindo entre si uma comissão, que levasse a efeito os festejos”. “Quis, porém, que a comissão fosse da sua escolha, e, ao mesmo tempo, fosse eleita, ou nomeada por aclamação, pela comunidade, sobre proposta dele. Não conseguiu o que desejava, e teve de dissolver a assembleia, dando lugar às tristes dissensões que aí vemos. Deu-se um passo falso, que trouxe consequências lamentáveis. Nas actuais circunstâncias, afigura-se-nos dificílima uma reconciliação; mas o que é fácil, e muito digno de todos, é a abstenção de mútuas hostilidades”.

Está levantada “uma polémica desabrida em que de ambos os lados se procuram deprimir e rebaixar uns aos outros! É altamente triste tal situação!”

“Ao Sr. Romano, que pela sua idade, posição social, e bom conceito de que goza, deve dar bom exemplo em tudo, pedimos que dê mais uma prova de patriotismo, de conduta, e de bom senso, e seja o primeiro a apresentar o ramo de oliveira, mandando cessar desde já essa triste polémica, e esses longos e fastidiosos artigos, que sob o pretexto de o defender, tendem a cavar mais funda a sizunia entre os nossos, e a acumular sobre o Sr. Romano mais ódio e mais rancor, falando dos seus meios de fortuna, que toda a gente conhece, e não é preciso assoalhar ao público com o fim de deprimir os outros. Que os nossos compatriotas de Hongkong façam as festas como cada grupo quiser e puder, mas que se abstenham de mútuas hostilidades, é o que pedimos em nome de bom senso, de cavalheirismo, e de patriotismo”, apelo do Echo Macaense de 13/3/1898.

Faltam nove semanas para a realização das comemorações e dois diferentes planos de festejos vão sendo tratados em Hong Kong, ainda com a esperança do adiamento das datas em Macau para em fim-de-semana aí ir celebrar.

20 Jul 2018

Dois poemas de Georg Trakl traduzidos

Proximidade da morte
2ª versão

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]h! a noite que chega até às aldeias lúgubres da infância.

A lagoa entre as pastagens

enche-se com os suspiros pestilentos da melancolia.

Oh! a floresta que mergulha suavemente nos olhos castanhos,

para aí das mãos ossudas do solitário

a púrpura dos seus dias delirantes decair.

oh! a proximidade da morte. Rezemos.

nesta noite, desfazem-se sobre almofadas mornas

amarelecidos pelo intenso os frágeis corpos dos amantes

 

Nähe des Todes

 

  1. Fassung

 

O der Abend, der in die finsteren Dörfer der Kindheit geht.

Der Weiher unter den Weiden

Füllt sich mit den verpesteten Seufzern der Schwermut.

 

O der Wald, der leise die braunen Augen senkt,

Da aus des Einsamen knöchernen Händen

Der Purpur seiner verzückten Tage hinsinkt.

 

O die Nähe des Todes. Laß uns beten.

In dieser Nacht lösen auf lauen Kissen

Vergilbt von Weihrauch sich der Liebenden schmächtige Glieder.

 

Dia de Todos os Santos
a Karl Hauer

Triste aliança, homenzinhos, mulherinhas,

Espalham hoje flores azuis e encarnadas

Sobre as suas sepulturas, que timidamente se aclararam.

Agem como pobres marionetas perante a morte.

 

Oh! Como parecem existir aqui cheios de angústia e humildade,

Como sombras de pé atrás de negros arbustos.

No vento de outono, lamenta-se o choro das crianças não nascidas,

Também se vêem luzes perderem-se na loucura.

 

Os suspiros dos amantes sopram nos ramos

E lá apodrece a mãe com a sua criança.

Irreal parece a dança dos seres vivos

E admiravelmente espalha-se no vento nocturno.

 

Tão confusa a vida deles, tão cheia de lúgubres tormentos.

Tem piedade, Deus, do inferno e do martírio das mulheres,

E do seu lamento mortal, desesperançado.

Sozinhas, em silêncio, vagueiam na sala das estrelas.

Allerseelen[1]
An Karl Hauer

 

Die Männlein, Weiblein, traurige Gesellen,

Sie streuen heute Blumen blau und rot

Auf ihre Grüfte, die sich zag erhellen.

Sie tun wie arme Puppen vor dem Tod.

 

O! wie sie hier voll Angst und Demut scheinen,

Wie Schatten hinter schwarzen Büschen stehn.

Im Herbstwind klagt der Ungebornen Weinen,

Auch sieht man Lichter in der Irre gehn.

 

Das Seufzen Liebender haucht in Gezweigen

Und dort verwest die Mutter mit dem Kind.

Unwirklich scheinet der Lebendigen Reigen

Und wunderlich zerstreut im Abendwind.

 

Ihr Leben ist so wirr, voll trüber Plagen.

Erbarm’ dich Gott der Frauen Höll’ und Qual,

Und dieser hoffnungslosen Todesklagen.

Einsame wandeln still im Sternensaal.

 

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 21.

19 Jul 2018

As costas de Deus

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o belíssimo livro de entrevistas entre o poeta argentino Robert Juarroz e Fernand Verhesen, Poésie et Création, a dado momento o entrevistador comenta que o primeiro tomo da Poesia Vertical (a obra do argentino é unitária e teve sempre o mesmo título, só acrescentando um número aos diferentes volumes) é atravessado pela nostalgia de Deus, de um Deus visto de costas, de um Deus que vira as costas.

E responde o poeta: «O seu reparo é para mim de uma extrema importância; e concerne um ponto nevrálgico. Mas pede uma pequena rectificação. Mais do que de um Deus que vira as costas, eu creio falar da busca das costas de Deus. Porque o Deus da face, o Deus conhecido, esse das religiões, não nos serviu para nada. A obsessão que se revela no meu primeiro livro sob o nome de Deus e naqueles posteriores onde eu não o nomeio, significa isto: a parte visível das coisas, descrita, recontada, histórica, conhecida de todos, não nos serviu para nada. É o reverso das coisas que é preciso descobrir, e está aí todo o sentido da minha busca.» (pág. 37).

Acicatado pela curiosidade resolvi reler o primeiro livro de Juarroz e então encontro o poema 22:

As costas do homem estão mais nuas do que a sua frente,

e seguramente pesam menos.

Não parte o vento nem as palavras,

tão somente as sustém.

Mas nas costas do homem não está o homem.

Estão os outros homens e a morte,

os risos e os deuses,

a angústia dos mortos.

 

E aí está, também, o fumo de uma antiga fuga,

a forma de um leito demasiado tempo só,

a palavra que ninguém vai pronunciar,

a ausência disto que ainda não se foi

e sobre tudo a abóbada da ausência,

como uma rede perdida,

como um mar inútil,

como o fracasso de todos os abrigos.

 

Sim. As costas do homem estarão sempre mais nuas,

muito mais nuas do que a sua frente.

 

Gosto muito deste poema porque me projecta numa questão que sempre me fascinou: que tipo de nudez quis Deus mostrar a Moisés?

Moisés só divisou as costas de Deus, a afastar-se. Ainda bem para o judeu, se lhe tivesse visto o rosto ficaria calcinado como Sémele quando, após um implicativo rogo, viu o rosto de Zeus. Aliás, fora avisado: «Mas tu não poderás ver o meu rosto, porque ninguém pode vê-lo e continuar com vida». É um dos mistérios de Deus, o seu rosto é uma corrente impetuosa que não permite o olhar.

2500 anos depois, assegurou o cineasta Jean-Luc Godard «uma paisagem só se filma de costas», o que não passa de uma variante para a percepção de Moisés. Como se filma uma paisagem de costas, essa parte mais nua da sua visibilidade porque a mais desprotegida ou a mais oculta?

Algumas trilobites, concluíram os biólogos depois de lhes estudarem os fósseis, viam em 360 graus – o que corresponde a uma vigília insusceptível de abrandar. Ver tudo continuamente à nossa volta há-de gerar uma visão amorfa dado que a perpétua visibilidade de tudo obtura os níveis da atenção que de comum só se intensificam quando se particularizam, ou então pode degenerar num estado de paranóia, sem remissão, no qual o trivial e o raro se equivalem na significação. Algumas trilobites não tinham costas.

Creio que o que nos torna humanos se funda na opacidade que tem raiz no ponto cego das nossas costas e nos obriga, para superarmos o medo que lhe é latente, a uma suspensão da incredulidade: a apostar na confiança. Sem esse lado cego à nossa percepção nunca assumiríamos a confiança como um dos vectores que agregam os homens.

Aceitar a nossa vulnerabilidade, destiná-la ao outro, que constitui o nosso penhor é um acto magnífico e exige coragem e desprendimento.

Num filme do Hal Hartley, um ritual de um pequeno grupo de amigos era cada um deles, à vez, subir a um muro, meter-se de costas para os amigos e deixar-se cair de costas, confiando em que o grupo lhe sustém a queda. Não era para todos, não é para todos, mas é o que funda uma comoção, a sua sombra e a sua reciprocidade. Daí que, para lá da sexualidade, seja a confiança o combustível mais duradouro do amor.

Por outro lado, como podia Moisés reconhecer as costas de Deus? O que são as costas de uma paisagem senão o quiasma onde o nosso olhar se entrelaça e excita e faz resplandecer o oculto?

O que Moisés afinal vê nas costas de Deus são as costas do homem – as suas, as nossas – e nesse gesto Deus está a dar um aval absoluto ao livre arbítrio. Ao mostrar as suas costas, o que ali é pedido ao homem não é a obediência mas que se torne digno de confiança; ao ilusoriamente lhe figurar as costas Deus mete o livre arbítrio do homem em prova, pois quem pode impedi-lo de um gesto agressivo em relação a toda a fragilidade manifesta – sempre que os homens, entre si, se viram as costas?

Deus mete-se em jogo nesse dar as costas, supostamente indefesas, e cauciona com isso, irrefragavelmente, a razão e o livre arbítrio no homem.

É uma das atitudes mais espantosas de um Deus face ao homem, um gesto que no meu parco entendimento é mais digno de ser fundador do que a Tábua das Leis: eis um Deus que ao virar-lhe as costas oferece aos homem a sua  trégua.

O rosto é o ser irreparavelmente exposto do homem, diz Agamben; as suas costas seriam então o ser irreparavelmente inacabado do homem – essa metade do símbolo com que Aristófanes definia o homem e lhe prodigalizava uma busca incessante pelo Amor que o complete.

19 Jul 2018

Urgências

Horta Seca, Lisboa, 6 Julho

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ejam minudências, mas com solidez de pedra no sapato. Por mais provas que se façam, nada evita o maravilhamento do livro acabado de imprimir. Só então se revela a sua aura, se acede ao seu espírito. Além do pasmo. Temos controlo total para diminui-lo, mas o imprevisto acontece, por mais testes que se cumpram. O nosso mais recente, «Uma Mancha Chamada Berlim», tem a capa ligeiramente descentrada. Mais, a escolha daquele amarelo para segunda cor provocou uma aflição no Ricardo [Ben-Oliel], pois só lemos as dedicatórias com esforço extremo. Na rede que tece entre as memórias e as palavras estas ligações a nomes são de extrema importância. Estamos fartos de saber que abrir branco sobre o amarelo não resulta. Experimentar sempre, mas já agora para errar diferente. No caso, aceito as imperfeições com bonomia. O descentramento do rosto parece resultar do movimento que a espiral suscita. E os destinatários quase apagados no amarelo ganham doravante a potência do enigma. Neste ofício, a perfeição resulta de estranhos equilíbrios.

Mais uma colecção que não o queria ser, mas conta já com uns cinco volumes, foi iniciada precisamente com «Silêncio», do Ricardo, para contrariar ideias feitas em torno do parente pobre dos géneros literários, o conto. Com o Luís [Taklin], grande criador de infografias, desenvolvemos paginação desafogada, desperdiçando entradas generosas para cada conto, além de pictograma, essa máxima síntese de conceito numa figura, e duas cores no miolo, em papel de toque suave pouco transparente. Queríamos dar máximo conforto ao leitor, uma respiração mais pausada em objecto que revelasse pensamento e cuidado. Na capa, um desenho mais elaborado, com a espessura do baixo-relevo, capaz de sugerir tema ou de piscar o olho, como aconteceu com o espelho em «Da Família». E, desde o início, me agrada a sugestão de parede dada pelas texturas. Um conto pode ser fenda, tijolo, marca em grande muro. No caso de «Uma Mancha…» demorámos a encontrar o tom, mesmo depois de nos termos fixado no óbvio: o tempo. A espiral, onde podíamos colocar (breve) história do universo, chegou tarde, soavam de novo os alarmes das urgências. Este título estava previsto para o mês em que se confirmou a falência, tendo sido o primeiro a ser empurrado pela onda de choque. Não podia atrasar mais, de tão cheio de ícones de relógios e referências ao soberano que nos escraviza.

Sem resultados palpáveis, pretendíamos com o expediente gráfico sugerir unidade, sem vender narrativa por lebre. Afirmar que, por exemplo, as deambulações das personagens do Ricardo eram fruto de uma mesma demanda de identidade, podiam ser lidas como faces, fragmentos de uma mesma viagem pelos lugares e na continuidade. Parte da popularidade do romance resulta da capacidade de nos transportar para algures e aí nos manter tempos infindos. Por ironia, o conto acontece ser demasiado curto para estes dias de não haver tempo para nada. Menos ainda para ler.

S. Luiz, Lisboa, 7 Julho

O Sérgio [Godinho] chamou fechar de círculo a este seu primeiro concerto com orquestra sinfónica. Orquestra Metropolitana de Lisboa e banda, os Assessores, dirigidos pelo Nuno Rafael. Orquestra, sob batuta de Cesário Costa, e piano. Orquestra e arranjos, também do Filipe [Raposo], aquele que desenha paisagens sentado ao piano. Orquestra e pulmão do SG. O palco estava, portanto, transbordante a ponto de nos encher de marés a nós, aos sentados sob o grande candelabro. Com sensível sabedoria, na escolha e alinhamento, nas oscilações entre o sussurrante e o extravagante, na carne acrescentada ao esqueleto das canções, o concerto insuflou. E voou. O gozo contagiante do bloco das cordas, que tantas vezes nos levou às cordas, cantando coros e gingando foi apenas sinal do que por ali se ergueu. Gastámos o resto da noite a discutir que outras canções mereciam ser aumentadas e de que modos e maneiras. Como pedras atiradas à água, as canções continuaram como continuam ondulando em círculos. Abertos, de tal modo que vou ao passado apanhar o que quero para matar esta sede de dizer agora.

«”E coisa mais preciosa no mundo não há”. Falamos de canções, certo? Não vejo maneira de crescer sem elas, miopia minha, que não distingo o longe horizonte sem degrau mínimo, este íntimo à mão de semear. As paisagens que fomos construindo no último século, hesitando ou correndo, sentados no passeio ou comendo alcatrão, seriam impossíveis de percorrer sem estes seres particulares. Chamemos-lhe canções, para facilitar, embora sejam bastante mais do que isso, síntese letal de poder que invoca diamantes e granadas. Não conheço melhor maneira de cruzar ciência e poesia, pensamento e prazer, quotidiano e intemporalidade do que nestes nós que nos acompanham vida fora, por causa do verso estilhaço ou da melodia tatuagem. Os dias deixam-se oxidar, amarelando sensaborões até que a batida nos invade, aquela que sendo de todos parece apenas nossa. E logo Lisboa amanhece. Ou o Porto fica perto. Tão fácil falar de lugares comuns! Lá está, se se tornaram comuns devemo-lo a autores como Sérgio Godinho.

Década após década, SG fez-se gigante construtor de canções que traçaram pontes, ruas e túneis, aliás, mapas entre gerações e géneros, temas e estilos, personagens e imagens. Foram relâmpagos que continuam acontecendo à medida que vivemos, para nos ajudar a perceber a dimensão exacta do que fomos mal o ouvimos, mal ouvimos as canções. Esta arte do Sérgio assenta na peculiar atenção ao que fica do que passa; na raiz mergulhada na experiência pessoal mas de um modo tal que rima com universal; nas coreografias com que a palavra arrasta os ritmos. Nisto e nos enigmas da curiosidade que recolhe, mistura, amadurece e atira. Para voar e nos levar também.»

S. José, Lisboa, 9 Julho

Quando em apuros, volto à música. O flamenco acompanha-me nas idas e vindas ao hospital tornando peregrinante o percurso banal. A imensa noite de S. João da Cruz dedilhada à velocidade da luz, as palavras jorrando de fonte fresca onde Lorca bebe enquanto faz tombar as estátuas. As vozes de Enrique Morente ou Rosalía são visitas das horas.

Horta Seca, Lisboa, 12 Julho

Recebo do José Carlos [Costa Marques] o seu «Uma Voz Entre Vozes», nas Edições Afrontamento, dedicado ao eterno adolescente Cristovam Pavia e tendo a morte por horizonte. São 35 poemas que ajuízam caminhos, causas, lutas, entre o solar tenebroso e o brilho iluminado da noite, que reflectem e celebram a natureza. Com candura. E alegria, mesmo tintada de amargura. «Alegria suprema é estarmos vivos na carne/ Como Larkin, estremecê-la e sentirmos assim// Sentirmos assim a carne habitada Vibrante/Ridente como o sol da manhã lá fora// Entre neblinas devassando o inverno/por entre a erva tépida// Sermos assim alegres na carne Que é onde a vida passa e trespassa/ E onde a somos E onde ela é pro dentro de nós// Vibra também a carne do crucificado A carne do torturado/O estremecer no fim da carne que a doença venceu// Vibra no terror No grito que não chega a gritar Vibra no pânico e exala// Quem nos levará da suprema alegria que vivemos na carne/ Àquela outra liberta da carne Liberta da tortura// Quando nada mais formos Nem carne nem espírito// Apenas Alegria»

Gosto deste modo de, com maiúscula, abrir vale da quase pausa, afirmando assim que o verso pode esconder um outro. Assim descubramos o valor da letra.

18 Jul 2018

“Quando uma mulher sobe as escadas” – para nada -, de Mikio Naruse

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] cinema japonês, que teve uma imensa influência em muito do cinema europeu, acabou por ficar reduzido a três nomes, fora do Japão, e mesmo assim restrito a cineastas: Kensi Mizogushi, Yasujiro Ozu e Akira Kurosawa (este claramente o mais conhecido e também o mais ocidental dos cineastas japoneses).

Mas há um outro realizador de extrema importância no Japão, e contemporâneo destes: Mikio Naruse. E hoje vamos ver um dos seus filmes mais famosos, Quando Uma Mulher Sobe As Escadas, de 1960. Num dos números da revista Egoísta, dedicada à política, escrevi acerca da diferença de se ser mulher. O contexto era a Antiga Grécia e uma das tragédias de Eurípides, As Troianas. As mulheres troianas estão na condição de prisioneiras devido aos seus homens terem perdido a guerra, uma guerra que não aconteceu por decisão delas, mas de seus maridos.

No filme de Naruse, Quando Uma Mulher Sobe As Escadas, 2500 anos depois de Eurípides, e numa terra e cultura bem distintas da da Grécia Antiga, encontramos uma situação que se pode considerar semelhante. As mulheres que aparecem naquele filme foram tolhidas pelo destino traçado pelos homens. Antes de mais – repetindo a guerra de Tróia – porque os homens decidiram fazer a guerra e foram derrotados, estamos na ressaca da Segunda Guerra Mundial. As oportunidades de trabalho são escassas e para as mulheres mais ainda, deixando-as numa situação próxima da das troianas da peça de Eurípides. Qualquer trabalho executado pelas mulheres era muito mal pago, muito abaixo do que se pagava aos homens. A protagonista do filme gere uma espécie de bar de alterne, em que as mulheres têm de beber e dar atenção aos homens, que aí vão gastar dinheiro. E as escadas que ela sobe para o bar são para ela como que subir ao calvário. Pois ela detesta aquilo que faz.

Escuta-se no filme, em voz off, primeiro com ela a olhar para as escadas, antes de as subir: “Eu odiava subir aquelas escadas, mais do que qualquer coisa.” E depois escuta-se, enquanto as sobe: “Mas, uma vez lá em cima, encarava o que viesse.” Fá-lo por ter ficado viúva e não ter trabalho. Mas quando o filme começa, a angústia da protagonista, Keiko Yashiro, representada pela actriz Hideko Takamine, é o tempo a passar pelo corpo. Pois muito em breve os clientes vão deixar de se interessar por ela. Ela só tem o trabalho que tem, porque é bonita, porque tem utilidade para os homens, a de ser agradável ao olhar dos homens. Mas a beleza está a passar, e Keiko tem três alternativas no seu horizonte: casar com um dos clientes, abrir um bar ou tornar-se amante de vários clientes (que é a que mais lhe repugna). Há uma tensão existencial ao longo do filme, que é a que mais importa, sem dúvida, mas ela é condicionada pela situação em que o Japão se encontra, pelo que os homens decidiram fazer – a guerra – e como o país ficou depois disso. Por outro lado, fica a claro, literalmente preto no branco, que as mulheres estão às mãos dos homens.

O destino delas depende dos caprichos deles. Decida o que decidir, e ainda que a decisão seja cumprida, Keiko Yashiro ficará sempre nas mãos dos homens. Para abrir um bar, precisa do dinheiro deles – que estão dispostos a ceder em troca dos serviços dela e não de outros serviços, como ela chegou a propor. Para casar, ainda que o conseguisse fazer, seria com alguém com quem não queria casar e ficava sujeita às vontades dele. Para se tornar amante dos clientes, é evidente que o seu destino passa literalmente pelos caprichos dos homens. Keiko Yashiro está a menos na vida. E está a menos na vida, porque nasceu mulher. Esta é a tese mais forte e radical do filme, que nos remete para a tragédia de Eurípides e nos faz pensar neste mundo. Quem precisa de dinheiro de outros nunca será livre, quer seja homem ou mulher. Mas à mulher foi sempre dada essa condição de precisar do dinheiro dos homens, de modo a mantê-las como troféus ou como utensílios. Entre uma e outra escolha, Keiko sente que sobe as escadas para nada. Sobe as escadas para deixar de ser. Para ser um brinquedo aos olhos dos outros.

17 Jul 2018

Recuperação urgente dos carrilhões de Mafra prestes a começar

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]oi publicada no dia 14 de Março de 2018 em Diário da República a portaria de extensão de encargos conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério das Finanças do Governo de Portugal que desbloqueia os 1,5 milhões de euros destinados ao restauro dos carrilhões do Palácio Nacional de Mafra, ficando a Direcção Geral do Património Cultural autorizada a celebrar contrato no valor máximo de Euro 1.549.025,33, através do Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, destinado à operação de restauro dos carrilhões, encargos repartidos pelos anos económicos de 2018 e 2019.

No passado dia 18 de Abril, o ministro da Cultura, Luís Filipe Castro Mendes, afirmou no parlamento que “há luz verde” para que se inicie a empreitada de recuperação “urgente” dos carrilhões de Mafra, após a obtenção do visto do Tribunal de Contas, marcando o fim de um impasse de 14 anos, iniciado em 2004, quando se procedeu ao escoramento dos sinos. O ministro falava aos deputados da Comissão de Cultura, Comunicação, Juventude e Desporto, na qual estava a ser ouvido no quadro de uma audição regimental, para apreciação da política geral do Ministério da Cultura.

Desde Maio de 2014 que os carrilhões e sinos do Palácio Nacional de Mafra, que, no seu conjunto, constituem o maior carrilhão do século XVIII sobrevivente na Europa e um conjunto histórico de valor patrimonial único no mundo, figuram entre os sete monumentos mais ameaçados do continente europeu, segundo o movimento Europa Nostra (www.europanostra.org), o principal movimento de cidadãos europeus para a protecção do património cultural e natural europeu. O Europa Nostra, liderado pelo tenor e maestro Plácido Domingo, com o apoio do Banco Europeu de Investimento, veio alertar para a urgência das obras e mobilizar entidades públicas e privadas a nível nacional e internacional para se encontrar o financiamento necessário para uma rápida intervenção em Mafra.

Os conjuntos sineiros apenas se têm mantido por estarem sustentados em sucessivas intervenções de escoramento. Apesar da maioria dos sinos de maior dimensão estarem escorados, as estruturas de suporte de madeira apresentam apodrecimento generalizado e as suas ligações de entalhe há muito que se encontram fragilizadas ou mesmo desaparecidas pela perda de material lenhoso. Existem cabeçalhos que, pela degradação da madeira e dos elementos metálicos, se encontram em perigo de queda, verificando-se, inclusivamente, deformações dos escoramentos em consequência do assentamento contínuo de estruturas e sinos, encontrando-se, frequentemente, peças, tanto de madeira como metálicas, ferragens e ligações, nos pavimentos das torres e nos terraços contíguos onde são visíveis danos no revestimento de cobre pelo impacto da queda de peças dos carrilhões.

O Palácio Nacional de Mafra, mandado construir pelo Rei D. João V de Portugal “o Magnânimo”, no início do séc. XVIII, alberga o maior conjunto sineiro do mundo – composto por dois carrilhões e 119 sinos afinados musicalmente entre si (divididos em sinos de horas, litúrgicos e de carrilhão), encomendados na Flandres a dois fundidores de sinos diferentes e pesando o maior 12 toneladas, num total de 217 toneladas. Estes constituem – a par do único conjunto conhecido de seis órgãos de tubos concebidos para utilização simultânea, instalado na basílica do palácio, encomendados por D. João VI no final do séc. XVIII para substituir os primitivos que estavam degradados, e da biblioteca – o património mais importante do palácio. O carrilhão da torre norte nunca foi alterado e constitui, por conseguinte, um exemplo raro do som de sinos no seu estado original de afinação. O restauro dos seis órgãos, concluído em 2010 pelo mestre Dinarte Machado, foi distinguido em 2012 com o Prémio Europa Nostra.

Um carrilhão é um instrumento musical de percussão formado por um teclado e por um conjunto de sinos de tamanhos variados, controlados pelo teclado. Os carrilhões são normalmente alojados em torres de igrejas ou conventos e são um dos maiores instrumentos do mundo. Os carrilhões de Mafra são instrumentos musicais notáveis, cobrindo cada um deles uma amplitude de quatro oitavas e sendo, por isso, considerados carrilhões de concerto. Foram executados por dois fundidores de sinos dos Países Baixos: Willem Witlockx, um dos mais respeitados fundidores de sinos em Antuérpia e Nicolas Levache, um fundidor de Liége responsável por diversos carrilhões e que deixou efectivamente em Portugal uma tradição de fundição que perdurou por mais de um século após a conclusão do trabalho em Mafra. Este património único inclui também o maior conjunto conhecido de sistemas de relógios e de cilindros de melodia automática, possuindo ambas as torres de Mafra mecanismos automáticos de toque. Este é um marco mundial para o estudo, quer da música automática, quer da relojoaria. Estes complexos engenhos são capazes de tocar de modo intermutável de entre cerca de dezasseis diferentes e complexas peças de música, em qualquer momento. Os cilindros melódicos de Mafra foram executados pelo famoso relojoeiro de Liège da primeira metade do século XVIII, Gilles de Beefe.

A Câmara Municipal de Mafra congratula-se pelo início dos trabalhos de restauro dos carrilhões do Palácio Nacional de Mafra. A intervenção tem a duração prevista de 450 dias, devendo estar concluída em Setembro de 2019. O restauro dos carrilhões constitui um ponto importante na valorização do património identitário do Concelho, assegurando a sua transmissão às gerações futuras, permitindo reforçar o papel único do Real Edifício de Mafra no campo dos instrumentos musicais integrados no património arquitectónico, inscrevendo-o nos principais circuitos internacionais.

Na mesma ocasião, o ministro sublinhou que a tutela “tem um projecto” para Mafra, que é a transferência do Museu da Música, sobre o qual já estabeleceu acordo com a autarquia local para instalar os instrumentos em dois pisos do Palácio Nacional de Mafra.

O Museu Nacional da Música encontra-se instalado num espaço provisório desde 1994, disponibilizado pelo Metropolitano de Lisboa, na estação do Alto dos Moinhos. O Museu detém “uma das colecções mais ricas da Europa”, de acordo com a sua apresentação, contando com cerca de 1400 instrumentos, entre os quais o cravo de Joaquim José Antunes (1758), o cravo de Pascal Taskin (1782), o piano Boisselot et Fils, que o compositor e pianista Franz Liszt trouxe para Portugal, e que documenta a sua passagem por Lisboa em 1845, e o violoncelo Antonio Stradivari, que pertenceu ao rei D. Luís. Espólios documentais, acervos fonográficos e iconográficos, como os de Alfredo Keil, autor do Hino Nacional português, fazem igualmente parte do Museu da Música.

16 Jul 2018

O colosso de Rodes

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]á para o Mar Egeu ergueu-se algures um monumento tão descomunal que parecia a metáfora mais conseguida da megalomania humana – isso mesmo – um colosso de 33 metros de comprimento. De pé a pé ia a convergência de três civilizações, pois que aos descendentes de Hércules pertencia o domínio entre o mar e a terra (no entanto, a imagem mítica será mais do fantástico medieval) seja como for, sabe-se que existiu e que um terramoto a fez desaparecer no ano de 226a.c: “para ti, ó Sol, o povo dórico de Rodes ergueu esta estátua de bronze que alcança o Olimpo… ele acende a linda tocha da liberdade e independência”. O deus de bronze de Rodes! Longe estamos do Bezerro de Ouro, que de tão lendário, não foi menos corruptível, os metais fundiam-se para erguer estátuas que tivessem a dimensão sagrada de uma consagração metalúrgica, pois que sem essa poderosa alquimia as leis da sustentação seriam inexistentes, e, sem a altura de uma construção ficaríamos à escala horizontal dos dias, sem a visão da grandeza galvanizadora.

Partimos para Rodes como para uma profecia, para o seu «OVO» – um poema extraordinário, para o seu deus, um deus extraordinário, para o seu mar, um mar extraordinário – afinal, é aí que os deuses moram. Porque escolheram eles o azul cobalto ao verde musgo atlântico, o sol do meio-dia à luz do ocaso, a seca garrigue à luxuriante flora? Porque os deuses são caprichosos, são colossais, gostam de cegar ao sol olhando do cimo, gostam de testar os nossos limites perante o fascínio que temos pela grandeza. Provocam a devoção e o martírio, e de tanto os olharmos, nossos olhos são de pedra. Quando petrificados avançamos à sua sombra resolvem ir embora com um grau de convulsão tamanha, que arrasam torres e homens, e argamassam sangue com pó mineral e deles contam nos seus mundos como foi. Não é em vão que queremos que tenham face humana, erguer de fachos, imensidão… depois da linha do horizonte no nosso espectro astral não há mais nada.

Estas cidades representadas por estátuas monumentais têm segredos que não convém lembrar, até porque são segredos, imitam o propósito colectivo, mas quase todas sucumbirão num mar qualquer e passarão para a memória lendária quando os tempos se desfizerem. O facto de a maior parte estar erguida ao pé do mar, de um rio, indica a vaidade dos guardiões que olham as cidades, o seu lago narcísico, que o céu fica um pouco mais distante. Esteve de pé cerca de 50 anos e simbolizava a vitória dos gregos contra os macedónios, contra outro grande, Alexandre, e parece tudo ainda maior quando a escala é mais pequena, sem dúvida, mas o sonho mantém-se intacto, apenas mudando, claro está, a própria escala. Ainda hoje o sonho primário de um qualquer político é fazer uma coisa que o perpetue pela grandeza do betão, é uma função que implica testosterona e a capacidade de expansão a ela implícita…o mais alto, o maior, o mais poderoso! Uma ambição «Ájax».

No entanto, creio chegado o tempo em que a conquista do andrógino, esse ser mais evoluído do que este arquétipo espermicida ( cai, levanta, vai, entontece…) abrirá talvez caminho a uma mais vasta harmonia ambiental, há que pensar na atmosfera das coisas a curto prazo, ou ficaremos submersos pelos muitos que somos, sem espaço para quedas do tamanho dos Colossos. Nós todos empilhados daremos um regalo em altura para o mais megalómano, expansionista, desmesurado deus da extravagância: nós somos o labor, os escravos levantando cultos, e de tão in(cultos) andamos contentes como os inteligentes. É considerada a sétima maravilha do mundo, depois da sexta, e a sua inutilidade nem era assim tão grande, o farol na mão indicava às embarcações nocturnas o rumo certo. Pesa 70 toneladas e sendo a sétima em maravilha, quem diz que os Anões não eram os seus mestres obreiros? Muita coisa esconde o reino encantado, mas neste instante só sinto os afogados que tombam aos milhares naquele mar e os magros “gigantes” a Ocidente tão letais quanto as águas do Mediterrânio, e não há estátua que se erga do tamanho da dor humana, da dor, em suma.

Não tarda haverá uma só estátua no mundo, e tão grande – super Colosso – de um só rosto, que não sendo ainda ninguém, se anuncia como uma onda de chumbo. Nós fomos descuidados, não plantámos os nossos jardins, não olhámos as nossas flores, não tratámos os nossos dias, não fomos o Ovo de Rodes, preferimos o Colosso. E ele que até era cego e não nos conhecia, fez-se real, é o nosso sol. É uma estrela fria e silenciosa como o gelo. Carés, o seu arquitecto, suicidou-se por falta de reconhecimento público, Deus suicidou-se por falta de reconhecimento nosso, nós, não reconhecemos os criadores, e, como tal, inventámos criativos que fazem das obras transfigurações, figurações… Os obreiros são “maçons” sacristãos são “sacristões” os Templos são côncavos, e a corrida ao ouro das Ordens é um mito contemporâneo.

Se não resolvermos em poucas décadas o gigante pustulento do Capitalismo agreste, não se erguerão mais estátuas, nem outras construções; será consumida a Terra e derrubado tudo à superfície – o caminho da Ilha – talvez como a de Rodes, a Utopia, perder-se-á para sempre. — Fatigado e gigante coração da Terra, espera mais um pouco….! — Nem tudo é agora de sal, nem todos desfazemos os nossos sonhos apenas com um olhar…não, nem todos! Por vezes são precisas forças tais que o aterro dos dias fica um sepulcro muito frio enquanto agora mesmo o Sol nasce, nasce grande, saúda o tempo. E por vezes a resistência dos materiais vence enfim. Não há mais segredos, nem mais estátuas. Uma Cidade nova pode nascer.

Temos ainda no tecido cerebral uma membrana que vê essa cidade de Cristal, aquela cuja energia se elevou e onde a matéria tem outras associações. Todos a contemplamos, e se todos a projectarmos com urgência não tarda nos encontramos lá. Vai ser um gosto voltar a vê-los.

16 Jul 2018