O Concerto Desconhecido

Max Bruch (1838-1920): Concerto para Violino e Orquestra no 3 em Ré menor, Op. 58

Max Bruch manteve um relacionamento constante com dois dos grandes violinistas da sua época, o húngaro Joseph Joachim e o espanhol Pablo de Sarasate. Joachim, uma estrela de grande influência no firmamento musical alemão, claramente respeitava-o, pois deu-lhe muitos conselhos e incentivo ao longo dos anos e ajudou-o a editar as partes a solo, até mesmo de obras destinadas ao seu rival Pablo de Sarasate. Foi para Joachim que Bruch compôs o Concerto para Violino e Orquestra nº 3 em Ré menor, Op. 58, trabalhando nele nos últimos meses da sua estadia em Breslau (hoje Wrocław na Polónia), cidade que deixou em Abril de 1890, antes de se mudar com a sua família para Berlim em Setembro do mesmo ano. Numa carta datada de 12 de Dezembro de 1890 ao seu editor Fritz Simrock, Bruch escreveu: “Voltei do meu descanso de Verão com, entre outras coisas, um Allegro de Concerto em Ré menor… e pensei em dedicá-lo a Joachim. Imediatamente antes da minha partida para a Rússia, estive com Joachim para analisar a obra com ele, e foi decidido expandir a peça para um concerto completo.”

Joachim executou os dois primeiros andamentos do Concerto na Hochschule für Musik em Berlim, onde leccionava, em Fevereiro de 1891. Bruch estava presente e pôde fazer ajustes, mas não houve tempo para ouvir o finale até toda a obra ser executada na Hochschule no dia 21 de Abril seguinte. Joachim fez a estreia em Düsseldorf no dia 31 de Maio e posteriormente tocou-a em Hamburgo, Berlim, Frankfurt, Estrasburgo, Breslau, Leipzig, Colónia e Londres. A obra foi publicada por Simrock com uma dedicatória a Joachim, apesar de uma rixa ridícula entre o editor e o violinista, que estava quase loucamente ciumento e injustamente suspeitou que a sua esposa Amalie estivesse a ter um caso com Simrock. Esse comportamento, que resultou no divórcio dos Joachim, provocou um distanciamento entre o violinista e Johannes Brahms e também fez com que a sua amizade com Bruch esfriasse durante algum tempo. O Concerto para Violino e Orquestra no 3 nunca alcançou a proeminência do Primeiro Concerto de Bruch, apesar de ser advogado tanto por Joachim como por Pablo de Sarasate.

Excepcionalmente, Bruch inicia o opulento primeiro andamento da obra, marcado Allegro energico, com um tutti orquestral e constrói o andamento na forma-sonata: o primeiro tema, como uma fanfarra, é seguido de forma clássica por um segundo tema lírico, e o violino solo, tendo entrado com um vistoso floreado, reapresenta essas ideias. O motivo da fanfarra é usado de forma bastante portentosa, até mesmo ameaçadora, no desenvolvimento, e o segundo tema oferece muitas oportunidades para o violino voar em arrebatamentos líricos antes do primeiro tema conduzir o andamento a um final dramático. No Inverno de 1890-91, Bruch acrescentou os dois andamentos extras que Joachim havia sugerido. O Adagio, inesperadamente em Si bemol maior, é um romance maravilhosamente simples: uma melodia de respiração longa é apresentada pelo solista e elaborada de encontro a um fundo orquestral tranquilo. No meio, há uma declaração orquestral particularmente adorável dessa melodia, que é então retomada pelo violino solo, e o solista termina o andamento silenciosamente na corda Mi.

O finale é um rondó com um tema principal lúdico, quase como uma canção folclórica: dois dos episódios intermediários são muito líricos, proporcionando o máximo contraste, e o solista é obrigado a executar algumas cordas duplas atmosféricas. A conclusão é muito satisfatória, sem ser de todo bombástica.

Sugestão de audição:
Max Bruch: Violin Concerto No. 3 in E minor, Op. 58
Jack Liebeck, violin, BBC Scottish Symphony Orchestra, Martin Brabbins – Hyperion Records, 2014

15 Dez 2020

O invulgar Segundo Concerto para violino

[dropcap]S[/dropcap]urpreendentemente, apesar da sua prolífica produção para o violino, Max Bruch não era de forma alguma um violinista com grandes dotes, o que é difícil de acreditar quando ouvimos o seu glorioso e sempre popular Concerto para Violino e Orquestra no 1. O seu segundo Concerto para Violino ficará sempre na sua sombra. Não obstante, o Concerto, estreado no já desaparecido Crystal Palace em Londres, em Novembro de 1877, com o violinista e compositor espanhol Pablo de Sarasate, a quem foi dedicado, como solista, é poderoso, expansivo e profundamente recompensador. Sarasate, que também estreou o primeiro Concerto para Violino de Bruch, foi também claramente a fonte de inspiração desta obra.

Considerando o número – e a qualidade – dos padrinhos-fadas que compareceram ao seu nascimento, o Concerto para Violino e Orquestra nº 2 em Ré menor, Op 44, de Max Bruch, deveria ter começado a sua “vida” da melhor maneira possível. Durante algum tempo, pareceu estar a segurar-se nas salas de concerto europeias, mas, como aconteceu com muitas das obras de Bruch, o seu ímpeto vacilou e, em seguida, praticamente morreu. A morte do seu principal defensor, Pablo de Sarasate, em 1908, selou o seu destino e tornou-se o reduto de alguns defensores determinados da obra, incluindo mais recentemente os famosos violinistas Jascha Heifetz e Itzhak Perlman.

Dependendo fortemente das habilidades musicais, sabedoria composicional e influência de Joseph Joachim, Bruch tinha, no final da década de 1870, um novo herói violinístico, Pablo de Sarasate. O virtuoso espanhol deixou gravações suficientes para que pudéssemos ouvir que personalidade envolvente possuía, expressa por meio de uma técnica de execução leve, arejada e deslumbrante – a própria antítese do semblante sério de Joachim. Após dirigir as apresentações de Sarasate do seu primeiro Concerto para Violino em Frankfurt e em Wiesbaden em 2 e 8 de Fevereiro de 1877, numa carta ao seu editor Simrock, Bruch descreveu o seu solista como “um violinista extraordinário e um homem encantador”, acrescentando: “Vou escrever algo para ele – isso é bastante certo.” Três semanas depois, escrevia a Simrock: “… as ideias principais já estão delineadas – produtos da inspiração que a sua [de Sarasate] execução indescritivelmente perfeita do primeiro concerto despertou em mim.” No início de Maio, o novo trabalho estava ‘virtualmente concluído’.

Em meados de Outubro de 1877, Bruch fez a sua primeira visita a Inglaterra, viajando com Sarasate, que tocou o Primeiro Concerto sob a sua batuta no Crystal Palace. No dia 4 de Novembro, os dois homens estavam de volta ao Crystal Palace para a estreia do Segundo Concerto, tocado a partir de manuscritos. O crítico do Sunday Times foi duro: “Herr Max Bruch, o compositor, é um daqueles homens que não podem contentar-se em seguir um exemplo – seja ele bom, mau ou indiferente – e o seu novo concerto mostra como ele despreza completamente os cânones da ‘forma’. A interpretação da obra pelo violinista espanhol foi inteligente e bem sustentada do início ao fim, mas isso não nos leva a ter uma opinião elevada sobre a composição.” Bruch fez revisões, como fez novamente depois dele e Sarasate fazerem a estreia em Berlim em Janeiro de 1878. Aconselhou-se com o violinista Robert Heckmann e, como tantas vezes antes, com Joachim, com quem se encontrou em Barmen e em Koblenz em Fevereiro. Disse a Simrock que o mestre húngaro tocou o concerto prima vista, “como o Diabo”, e que Joachim o achou mais fácil do que o primeiro concerto, enquanto Sarasate, a quem foi dedicado, pensava o contrário.

O musicólogo e historiador alemão Wilhelm Altmann revelou que Sarasate, que tinha uma imaginação fértil, havia dado a Bruch um cenário para o concerto, retratando o rescaldo de uma batalha nas Guerras Carlistas espanholas. Aparentemente, o primeiro andamento, um invulgar lento e dramático Adagio ma non troppo que abre de forma sombria e ameaçadora, representa um campo de batalha repleto de soldados mortos e moribundos. Uma jovem move-se no meio dessa carnificina, em busca do homem que ama, e uma marcha fúnebre acompanha uma procissão fúnebre. O andamento é na forma-sonata com dois temas principais, o primeiro bastante fluido, e o segundo mais dramático. Brahms foi contundente sobre a ideia de começar um concerto com um Adagio, embora mais tarde tenha modificado a sua opinião. O andamento central é um recitativo dramático no qual a orquestra comenta, quase como um coro, as frases do violino. Bruch talvez estivesse a pensar no tipo de cena operática que Louis Spohr empregou no seu concerto “Gesangsszene”. O Recitativo termina com uma passagem evocativa de trompa e conduz directamente ao finale, marcado Allegro molto, novamente na forma-sonata e aparentemente retratando uma acção de cavalaria: começa dando continuidade ao clima expectante do Recitativo, com batidas de tambor de cascos de cavalos e ritmos marciais, bem como alguma música mais maleável ​​e muitas passagens virtuosas para violino nas quais Sarasate se notabilizou.

 

Sugestão de audição:
Max Bruch: Violin Concerto no. 2 in D minor, Op. 44
Ingolf Turban, violin, Bamberger Symphoniker, Lior Shambadal – Claves, 1993

1 Dez 2020

O mais popular concerto para violino

[dropcap]O[/dropcap] compositor alemão Max Christian Friedrich Bruch, cujo centenário da morte se assinalou no passado dia 2 de Outubro, nasceu em 1838 em Colónia, filho de Wilhelmine Almenräder, uma cantora, e de August Carl Friedrich Bruch, um advogado e mais tarde oficial da polícia de Colónia. Bruch recebeu uma formação musical precoce com o compositor e pianista Ferdinand Hiller, a quem Robert Schumann dedicou o seu famoso Concerto para Piano e Orquestra em Lá menor. O compositor boémio e virtuoso do piano Ignaz Moscheles também reconheceu a aptidão do jovem Bruch, que aos nove anos escreveu a sua primeira composição, uma canção para o aniversário da sua mãe. A partir de então, a música passou a ser a sua paixão e os seus estudos foram entusiasticamente apoiados pelos seus pais. Escreveu muitas obras iniciais menores, incluindo motetes, configurações de salmos, peças para piano, sonatas para violino, um quarteto de cordas e até obras orquestrais, e o prelúdio de uma ópera, Scherz, List und Rache.

Poucas dessas primeiras obras sobreviveram, e o paradeiro da maioria das suas composições sobreviventes é desconhecido.

Bruch teve uma longa carreira como professor, regente e compositor, movendo-se entre vários postos musicais na Alemanha: Mannheim (1862-1864), Koblenz (1865-1867), Sondershausen (1867-1870), Berlim (1870-1872) e Bona, onde residiu de 1873 a 1878, trabalhando como professor particular. No auge da sua carreira, passou três temporadas como regente da Liverpool Philharmonic Society (1880-83), em Londres.

Ensinou composição na Berlin Hochschule für Musik de 1890 até à sua reforma em 1910. Bruch casou-se com Clara Tuczek, uma cantora que tinha conhecido numa digressão a Berlim em 1881. A sua filha, Margaretha, nasceu em Liverpool em 1882. Alunos de destaque incluíram a pianista, compositora e escritora alemã Clara Mathilda Faisst (1872-1948).

As obras complexas e bem estruturadas de Bruch na tradição musical romântica alemã colocaram-no no campo do classicismo romântico exemplificado por Johannes Brahms, ao invés da “Nova Música” de Franz Liszt e Richard Wagner. Na sua época, era conhecido principalmente como um compositor coral e, para seu desgosto, muitas vezes era ofuscado pelo seu amigo Brahms, que era mais popular e amplamente considerado.

Max Bruch encarnou absolutamente o período Romântico da música clássica na sua obra. Cada uma de suas ideias musicais é como uma definição de dicionário daquilo que significava ser um compositor romântico – extraordinário, na verdade, dado que viveu até a idade notavelmente madura de oitenta e dois anos e ainda compunha música ao lado de compositores como Schoenberg e Bartók.

Hoje em dia, como durante a vida de Max Bruch, o seu Concerto para Violino e Orquestra nº 1 em Sol menor, op. 26 é um dos concertos para violino românticos mais populares e o mais popular do repertório alemão.

Nesta obra, Bruch usa várias técnicas do Concerto para Violino em Mi menor de Felix Mendelssohn, incluindo a ligação dos andamentos, bem como a omissão da exposição orquestral de abertura clássica e outros dispositivos estruturais formais conservadores de concertos anteriores. Apesar dessas alterações ao estilo romântico convencional, Bruch foi frequentemente considerado um compositor conservador.

O Concerto foi composto entre 1864 e 1866. A primeira versão foi interpretada pelo violinista Otto von Königslöw em Coblenz, no dia 24 de Abril de 1866, sob a direcção do próprio Bruch. A versão final, para a qual Bruch obteve a ajuda do famoso violinista Joseph Joachim, a quem acabou por dedicar a obra, foi estreada por este último no dia 5 de Janeiro de 1868, em Bremen, sob a batuta de Karl Reinthaler. O Concerto é a peça mais conhecida de Bruch e a sua popularidade eclipsou outras obras do compositor, os seus outros concertos para violino e a sua Fantasia Escocesa.

O primeiro andamento é incomum por ser um Vorspiel, um prelúdio do segundo andamento e está directamente ligado a ele. A peça começa lentamente, com a melodia primeiro tomada pelas flautas, tornando-se então o violino solo audível com uma curta cadência. Isso repete-se, servindo como uma introdução à parte principal do andamento, que contém um primeiro tema forte e um segundo tema muito melódico e geralmente mais lento. O andamento termina como começou, com as duas cadências curtas mais virtuosísticas do que antes, e o tutti final da orquestra flui para o segundo andamento, ligado por uma única nota grave dos primeiros violinos.

O segundo andamento, Adagio, é frequentemente admirado pela sua melodia e geralmente é considerado o coração do concerto. Os temas, apresentados pelo violino, são sublinhados por uma parte da orquestra em constante movimento, mantendo o andamento vivo e ajudando-o a fluir de uma parte para a seguinte.

O terceiro andamento, Finale: Allegro energico, abre com uma introdução orquestral intensa, porém tranquila, que cede à declaração do solista do tema energético brilhantes em cordas duplas. É muito parecido com uma dança que se move a um ritmo confortavelmente rápido e enérgico. O segundo tema é um belo exemplo de lirismo romântico, uma melodia mais lenta que interrompe o andamento várias vezes, antes do tema da dança retornar com os seus fogos de artifício. A peça termina com um grande accelerando, levando a um final ardente que fica mais agudo à medida que fica mais rápido e mais ruidoso e, eventualmente, termina com dois acordes curtos, mas grandiosos.

Sugestão de audição:
Max Bruch: Violin Concerto no. 1 in G minor, Op. 26
Kyung-Wha Chung, violin, London Philharmonic Orchestra, Klaus Tennstedt – EMI Classics, 1990
23 Nov 2020

A derradeira obra incompleta

[dropcap]D[/dropcap]urante os últimos anos da sua vida, Béla Bartók viveu frugalmente num apartamento minúsculo no Upper West Side de Manhattan. Mas dificilmente sozinho ou negligenciado, como comentaristas com inclinações românticas querem fazer crer. Teve a companhia da sua esposa, a pianista Ditta Pásztory-Bartók, e teve trabalho, ou seja, encomendas de alguns pesos pesados da música. Se também pudesse ter tido saúde, poderia ter vivido para ver a aclamação que a sua música receberia no final dos anos 50, para não falar da quase adoração que inspira hoje, quando o seu nome está ligado aos de Stravinsky e Schoenberg, como um dos três gigantes invioláveis da música moderna.

Quando Bartók faleceu em Setembro de 1945, deixou um concerto para viola parcialmente concluído, encomendado pelo famoso violista escocês William Primrose. Embora não exista uma versão definitiva da obra, este concerto tornou-se indiscutivelmente o concerto para viola mais executado no mundo. Após a morte de Bartók, a sua família pediu ao amigo do compositor, o violista, violinista e compositor húngaro Tibor Serly, que examinasse os esboços do concerto e o preparasse para publicação. Serly levou anos para montar os esboços numa peça completa. Em 1949, Primrose finalmente revelou a obra numa apresentação de estreia com a Orquestra Sinfónica de Minneapolis. Durante quase meio século, a versão de Serly gozou de grande popularidade entre a comunidade de viola, mesmo enfrentando acusações de inautenticidade. Na década de 1990, surgiram várias revisões e, em 1995, o filho do compositor, Peter Bartók, divulgou uma revisão e um fac-símile do manuscrito original, abrindo caminho para um debate intensificado sobre a autenticidade das múltiplas versões. Este debate continua enquanto violistas e estudiosos de Bartók procuram a versão definitiva desta obra final do maior compositor da Hungria.

O Concerto para Viola e Orquestra, Sz 120, uma das últimas obras compostas por Bartók, foi encomendado por Primrose no Inverno de 1944, que sabia que o compositor produziria uma obra desafiante para ele executar. A obra viria apenas a ser estreada no dia 2 de Dezembro de 1949, pela Minneapolis Symphony Orchestra, sob a direcção do maestro Antal Doráti, aluno de Bartók, com Primrose como solista.

O concerto, que apresenta um forte cunho autobiográfico, tem três andamentos, e Bartók afirma numa carta datada de 5 de Agosto de 1945 que o conceito geral é “um Allegro sério, um Scherzo, um andamento lento (bastante curto) e um finale que começa Allegretto e desenvolve o andamento para um Allegro molto. Cada andamento, ou pelo menos 3 deles, (será) precedido por uma (curta) introdução recorrente (principalmente um solo para viola), uma espécie de ritornello.” O primeiro andamento foi composto na forma-sonata livre. O segundo andamento lento é significativamente mais curto e termina com um andamento scherzo muito curto que é um attacca directamente no terceiro andamento.

O primeiro e o terceiro andamentos do concerto contêm uma frase que lembra a melodia escocesa “Gin a Body Meet a Body, Colmin ‘Thro’ the Rye”, provavelmente em homenagem às origens escocesas de Primrose.

A obra começa com um solo de viola acompanhada por leves batidas rítmicas. A aceleração do solo, como se fosse uma cadência, revela os primeiros treze compassos como uma introdução, após a qual o tema propriamente dito se faz ouvir… O segundo sujeito é um tema fantasticamente cromático e contrapontístico, sem paralelo em qualquer outra música de Bartók. As escalas sobem, descem e entrelaçam-se. No entanto… o efeito real é de uma calma repousante.

Um breve interlúdio, Lento parlando, precede o segundo andamento… trazendo à mente a improvisação de um chantre… Um motivo do fagote solo liga-o ao segundo andamento propriamente dito. A expressiva simplicidade desta música é determinada pela forma-canção ternária ABA… Bartók conseguiu aqui explorar todos os registos da viola… No final, o motivo do primeiro andamento é ouvido novamente, acelerando para uma cadência que leva, sem pausa, a uma introdução allegreto ao terceiro andamento.

Em contraste com o que precedeu, o finale é uma dança alegre, em forma rondo… mais romena do que húngara no que diz respeito ao carácter. A viola solo move-se a um ritmo sem fôlego, tornando-se ligeiramente mais lenta com a melodia folclórica do trio… A partir daqui, as formações de escala cromática ascendente e descendente lembram um uso semelhante da cromática no segundo tema do primeiro andamento. Um fortissimo tutti de quatro compassos, seguido por uma passagem em escala ascendente para a viola … conduz o Concerto a um final de cortar a respiração.

 

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Viola Concerto, Sz. 120
Yehudi Menuhin, viola, Philarmonia Orchestra, Antal Dorati – Warner Classics, 1967

16 Nov 2020

As Danças Folclóricas Romenas

[dropcap]A[/dropcap]pós um hiato de dois anos na composição devido à sua luta contra a depressão causada pela Primeira Guerra Mundial, bem como a algumas decepções na sua vida profissional, Béla Bartók começou a compor novamente em 1915. E não é surpresa que uma das suas primeiras composições desse período seja a suíte intitulada Danças Folclóricas Romenas (originalmente intitulada Danças Folclóricas Romenas da Hungria) composta para piano solo e posteriormente orquestrada para pequeno agrupamento pelo compositor em 1917, e que se tornou uma das composições mais populares do compositor. Entre 1909 e 1914, Bartók fez várias viagens à região da Transilvânia, na época na Hungria, mas que em 1920 passou a fazer parte da Roménia, onde registou e transcreveu a música local. Descobriu que a música folclórica dessa região era muito mais rica em variedade do que a do resto da Hungria. Os ritmos, os timbres e as diferentes combinações de instrumentos locais como violino, guitarra, flauta camponesa e gaita de foles provaram ser bastante estimulantes na sua busca de elementos novos e emocionantes para o compositor introduzir na música séria do século XX. No decurso das suas exaustivas viagens pela Europa de Leste, Bartók compilou uma enorme colecção de melodias populares que em 1918 incluía nada mais nada menos que 2700 danças e canções húngaras, 3500 romenas e 3000 eslovacas.

Bartók identificou três formas pelas quais a música folclórica pode servir de base à música séria. No primeira, o compositor usa melodias folclóricas autênticas com a adição de acompanhamento e, possivelmente, uma introdução e uma conclusão. A segunda é aquela em que o compositor inventa a sua própria melodia imitando uma canção folclórica. A terceira é quando absorve a essência da música folclórica de tal forma que ela se torna parte integrante da sua linguagem composicional sem uma conexão autoritariamente perceptível com a tradição folclórica. Das três formas, as Danças Folclóricas Romenas são claramente baseadas no primeira. Ao arranjar as melodias folclóricas que colecionou na Transilvânia, Bartók preservou o seu tom e estrutura rítmica enquanto introduziu uma linguagem harmónica rica no acompanhamento. No entanto, foi mais livre na escolha do ritmo, pois algumas das danças rápidas tornou ainda mais rápidas, e algumas das melodias mais lentas tornou ainda mais lentas, enfatizando o caráter individual de cada uma.

A melodia da primeira dança, intitulada “Dança do Pau”, em ritmo moderado, provém de dois violinistas ciganos que Bartók registou numa aldeia da região. É seguida pela relativamente rápida “Dança da Faixa”, que originalmente o compositor ouviu tocada numa flauta camponesa. A terceira dança, “No Mesmo Lugar”, embora também originalmente executada numa flauta camponesa, é muito mais lenta e de espírito sombrio, com um carácter mais meridional, balcânico ou mesmo do Médio Oriente, enfatizado pelo intervalo de segunda aumentada. A quarta dança, “Dança de Bucsum”, é em compasso ternário de ¾, ao contrário das restantes danças que são principalmente em compasso binário. Bartók deu-lhe uma qualidade suave, quase como um minueto e um andamento mais lento, em nítido contraste com a melodia folclórica original do violino, bastante viva e enérgica. Aqui novamente ouvimos a segunda aumentada, o que sugere a influência de lugares a sul da Roménia. A quinta dança, intitulada “Polaca Romena”, alterna entre os compassos de 2/4 e 3/4 e é bastante exuberante, assim como a última dança, intitulada “Maruntel” (“Dança Rápida”). Bartók enfatizou o seu carácter de dança, fornecendo um acompanhamento energético com a mão esquerda, preservando a qualidade de violino da animada melodia ornamentada.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Romanian Folk Dances, Sz. 56
Zoltán Kocsis, piano (Works for Piano, Vol. 1) – Philips, 1992

9 Nov 2020

A encomenda de Yehudi Menuhin

[dropcap]N[/dropcap]os seus últimos anos de vida, depois de ter emigrado para os Estados Unidos e de desempenhar brevemente o cargo de professor nas universidades de Columbia e Harvard, Béla Bartók sofreu de problemas de saúde e de pobreza crescentes que as condições de exílio em tempo de guerra pouco ou nada podiam fazer para aliviar. O compositor faleceu em 1945 em circunstâncias difíceis, deixando um novo Concerto para Viola incompleto e o Terceiro Concerto para Piano quase concluído. Os anos na América, quaisquer que fossem as dificuldades que suscitaram, também deram origem a outras composições importantes, incluindo o Concerto para Orquestra, encomendado pela Fundação Koussevitzky, uma Sonata para Violino Solo para o famoso violinista Yehudi Menuhin, considerado um dos maiores violinistas do séc. XX e, no ano anterior à sua saída da Hungria, Contrastes, para o violinista húngaro Joseph Szigeti e o clarinetista de jazz norte americano Benny Goodman, conhecido como o “rei” do swing.

A Sonata para Violino Solo, em quatro andamentos, foi encomendada a Bartók por Yehudi Menuhin em Novembro de 1943, a quem foi dedicada e que fez a sua primeira apresentação em Nova Iorque no dia 26 de Novembro de 1944. Foi composta em Nova Iorque e em Ashville, na Carolina do Norte, onde Bartók se submeteu a tratamentos para a leucemia, e concluída em Março de 1944. É um trabalho tremendamente desafiador, exigindo muito do intérprete e do ouvinte.

O primeiro andamento, marcado Tempo di ciaccona, é essencialmente um andamento na forma-sonata, com algo do carácter de uma chacona – ou seja que utiliza a forma musical baseada na variação de uma pequena progressão harmónica repetida -, mas não a sua forma. O acorde de abertura pode sugerir a Sonata em Sol menor de Bach para violino solo, embora o que se segue seja muito diferente, com a sua exploração de intervalos geralmente associados à música folclórica húngara e exploração das possibilidades variadas do instrumento.

O segundo andamento, Fuga, começa com uma fuga de quatro vozes numa melodia pulsante em staccato mas não é uma fuga estrita, pois o sujeito sofre modificações e episódios introduzem novos materiais.

O terceiro andamento, Melodia, começa com uma melodia lírica, enunciada isoladamente e em todos os diferentes registos do instrumento. Prossegue em sextas, oitavas e décimas, acompanhado por trilos e tremolos.

O último andamento, Presto, alterna entre uma passagem muito silenciosa, rápida e semelhante a um abelhão, tocada em surdina, e uma melodia alegre. Três temas contrastantes aparecem ao longo deste andamento, os quais reaparecem todos na coda final.

A Sonata apresenta muitas dificuldades aos violinistas e usa toda a gama de técnicas de violino: várias notas tocadas simultaneamente (cordas duplas múltiplas), harmonias artificiais, pizzicato para a mão esquerda executado simultaneamente com uma melodia tocada com o arco e grandes saltos entre as notas.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Sonata for Violin Solo, Sz. 117
Gidon Kremer, violin – EMI Classics, 2009
2 Nov 2020

A Sonata para Dois Pianos e Percussão

[dropcap]A[/dropcap] Sonata para Dois Pianos e Percussão, Sz. 110, de Béla Bartók, composta em 1937, ainda na Hungria, foi estreada por Bartók e pela sua segunda esposa, Ditta Pásztory-Bartók, com os percussionistas Fritz Schiesser e Philipp Rühlig, no concerto de aniversário da Sociedade Internacional de Música Contemporânea (ISCM), realizado no dia 16 de Janeiro de 1938 em Basel, na Suíça, no qual recebeu críticas entusiastas. Bartók e a sua esposa também tocaram as partes de piano na estreia americana que teve lugar na Câmara Municipal de Nova Iorque em 1940, com os percussionistas Saul Goodman e Henry Deneke, já depois do compositor emigrar para os Estados Unidos. Desde então, tornou-se uma das obras mais executadas de Bartók.

A partitura requer quatro intérpretes, dois pianistas e dois percussionistas, que tocam sete instrumentos entre eles: timbales, bombo, címbalo, triângulo, tambor de parada, tam-tam e xilofone. Na partitura publicada, o compositor fornece instruções altamente detalhadas para os percussionistas, estipulando, por exemplo, qual parte de um prato suspenso deve ser batido e com que tipo de baqueta. Também fornece instruções precisas para a configuração da plataforma dos quatro jogadores e os seus instrumentos.

O primeiro andamento da Sonata, marcado Assai lento – Allegro molto, é uma versão modificada da forma-sonata tradicional. Existem secções claramente delineadas – introdução, exposição, desenvolvimento, recapitulação e coda – mas Bartók evita as relações habituais entre tonalidades, começando o andamento em Fá sustenido e terminando-o em Dó Maior, com excursões em várias tonalidades inesperadas entre elas. Essa relação estrutural de trítono não é invulgar em Bartók; pode ser encontrada em muitas de suas outras composições, incluindo no primeiro andamento da sua conhecida obra, Música para Cordas, Percussão e Celesta. O ritmo desse andamento varia dentro de um compasso geral de 9/8. O andamento também é atípico da forma-sonata clássica, pois constitui metade do tempo de execução de toda a obra.

O segundo andamento, marcado Lento, ma non troppo, apresenta a forma ternária A-B-A clássica do andamento intermédio e é um exemplo do idioma da conhecida “música nocturna” de Bartók.

O terceiro andamento, marcado Allegro non troppo, é uma dança semelhante a um rondó, começando e terminando em Dó Maior. Os pianos apresentam o andamento, seguidos do xilofone. No final da obra, as últimas notas dos pianos desvanecem-se pouco a pouco, há um dueto conclusivo para tambor de parada e címbalo, e a sonata termina extremamente tranquilamente.

Em 1940, por sugestão do seu editor e agente, Hans Heinsheimer, então responsável pela conhecida editora Boosey & Hawkes em Nova Iorque, Bartók orquestrou a Sonata para Dois Pianos e Percussão, como Concerto para Dois Pianos, Percussão e Orquestra, Sz. 110. As partes para os quatro solistas permaneceram essencialmente inalteradas. A estreia mundial do Concerto foi dada no Royal Albert Hall, em Londres, num concerto da Royal Philharmonic Society realizado no dia 14 de Novembro de 1942, com os percussionistas Ernest Gillegin e Frederick Bradshaw, o então marido e mulher da equipa de piano formada por Louis Kentner e Ilona Kabos, e pela London Philharmonic Orchestra, dirigida por Sir Adrian Boult. O compositor e Ditta Pásztory-Bartók foram solistas de piano numa apresentação da obra em Nova Iorque em Janeiro de 1943, com a Filarmónica de Nova Iorque sob a direcção de Fritz Reiner. Esta foi a última aparição pública de Bartók como executante.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Sonata for Two Pianos and Percussion, Sz. 110
Ditta Pásztory-Bartók, Béla Bartók, Harry J. Baker, Edward J. Rubsan – Naxos, 2000
26 Out 2020

A Encomenda de Paul Sacher

[dropcap]A[/dropcap] obra Música para Cordas, Percussão e Celesta, Sz. 106, composta por Béla Bartók aos 53 anos em 1936, por encomenda do maestro e patrono suíço da música nova, Paul Sacher, para celebrar o 10o aniversário da Basler Kammerorchester, é uma das mais conhecidas do compositor húngaro.

Como o título indica, a obra foi escrita para instrumentos de cordas (violinos, violas, violoncelos, contrabaixos e harpa), instrumentos de percussão (xilofone, caixa, címbalos, tam-tam, bombo e tímbales) e celesta, instrumento que não desempenha um papel tão importante como o título da obra deixa transparecer. O conjunto também inclui um piano, que pode ser classificado como um instrumento de percussão ou de cordas. Bartók divide as cordas em dois grupos que indica devem ser colocados antifonalmente em lados opostos do palco, e faz uso de efeitos antifonais particularmente no segundo e quarto andamentos, criando uma das obras mais espantosas e que provoca mais calafrios algumas vez escritas.

O primeiro andamento (Andante tranquillo), uma fuga apresentada pelas violas de ambos os grupos de cordas, que se desenvolve gradualmente, começa com um murmúrio velado de vozes inconstantes nas cordas em surdina, que crescem em número com uma regularidade persistente e assustadoramente imparável.

Qual é a fonte dessa música diabólica? As divagações cromáticas sugerem Wagner e o seu Tristão, que preludia Schönberg. Mas existem outros antecedentes, e estes incluem Strauss, Stravinsky, Debussy, Ravel e, crucialmente, a música folclórica da Hungria natal de Bartók e dos seus arredores. Foi este último grande corpo musical, pesquisado durante anos por Bartók, que se tornou a força omnipresente da sua criatividade, cujos elementos distintivos deram ao seu trabalho uma individualidade tão inconfundível para o ouvido quanto uma fotografia bem desenvolvida é para o olho: ritmos que batem insistentemente ou que são surpreendentemente irregulares; modos e combinações de escala exóticas; melodias severamente simples, cuja ascensão e queda resultam de padrões de fala; direcção, frequentemente energia bárbara e, em contraste, acalmias maravilhosamente provocantes; um amálgama de harmonias triádicas simples e dissonâncias ácidas. De todos estes elementos surgiu a linguagem engenhosa e inovadora de Bartók. O material do primeiro andamento pode ser visto como a base para os andamentos posteriores, e o tema da fuga reaparece em diferentes disfarces em pontos ao longo da peça.

O segundo andamento (Allegro), escrito na forma-sonata, irrompe num drama rodopiante de vozes conversando. A divisão das cordas de Bartók em dois grupos, colocados em lados opostos do palco com a percussão no meio, abre a porta de uma autêntica magia antifonal. Ouvem-se glissandi nos tímbales e uma “música de perseguição” rítmica estimulantemente tensa e que parece prenunciar West Side Story de Bernstein. Esta música é derivada de uma breve peça da colecção a solo para teclados Mikrokosmos de Bartók, intitulada “A Piada de Aldeia”.

O terceiro andamento (Adagio) leva-nos ao mundo misterioso e atmosférico da famosa “música nocturna” de Bartók. Ouvimos o zumbido estranho e nocturno da natureza, o canto distante dos sapos e o murmúrio abafado de um milhão de insectos zumbindo num campo solitário e iluminado pelas estrelas. O tema do primeiro andamento ressurge brevemente, o que só faz aumentar a nossa enorme consideração pela inventividade de Bartók.

O finale (Allegro molto) explode numa dança folclórica vibrante e descontroladamente alegre. Especificamente, ouvimos a frivolidade irregular e desigual do ritmo folclórico búlgaro. Nos minutos finais, há um retorno triunfante do tema da fuga de abertura do primeiro andamento.

A obra foi estreada em Basel, na Suíça, no dia 21 de Janeiro de 1937 pela orquestra de câmara dirigida por Sacher, e foi publicada pela Universal Edition no mesmo ano.

A sua popularidade é demonstrada pela utilização de temas em bandas sonoras de filmes como por exemplo o andamento Adagio no filme The Shine de Stanley Kubrick, de 1980, e na música popular, assim como na literatura, sobretudo norte-americana.

 

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Music for Strings, Percussion and Celesta, Sz. 106
Berlin Philharmonic, Herbert von Karajan – Warner Classics, 1961
19 Out 2020

Perpetuum mobile

[dropcap]E[/dropcap]ntre 1926 e 1939, ainda na União Soviética, Béla Bartók compôs 153 peças progressivas para piano, em seis volumes, uma colecção famosa intitulada Mikrokosmos, organizada por ordem de dificuldade e destinada principalmente ao estudante de piano. Mikrokosmos, Sz. 107, publicada em 1940, é um dos marcos no repertório pedagógico do piano mas, no entanto, é muito mais do que um manual de piano “clássico”. As peças envolvem não apenas os aspectos técnicos da execução do instrumento, mas também os fundamentos da composição – como em “Ostinato”, “Variações livres” e “Imitação e inversão”, técnica composicional e ideias programáticas como em “Do diário de uma mosca” ou a famosa “Seis danças em ritmo búlgaro”, peças que formam a conclusão apaixonada desta obra única.

As peças progridem de estudos para iniciantes muito fáceis e simples a exibições técnicas avançadas muito difíceis, que são hoje em dia usadas na pedagogia moderna de piano. Segundo Bartók, a obra “surge como uma síntese de todos os problemas musicais e técnicos que foram tratados e em alguns casos apenas parcialmente resolvidos nas obras para piano anteriores “. Os Volumes 1 e 2 são dedicados ao seu filho, Peter, enquanto os Volumes 5 e 6 são concebidos como peças de concerto executáveis ​​profissionalmente.

Bartók indicou que essas peças também poderiam ser tocadas noutros instrumentos; a cravista Huguette Dreyfus, por exemplo, gravou peças dos Volumes 3 a 6 num cravo.

Este trabalho está em linha com outras obras didácticas de compositores pedagógicos como Pyotr Ilyich Tchaikovsky, Dmitri Kabalevsky e Sergei Prokofiev. Algumas peças são homenagens directas a teclistas, incluindo Robert Schumann, Johann Sebastian Bach e François Couperin. Outras são inspiradas na música folclórica, são estudos de ritmo ou de técnica pianística. No prefácio, o próprio Béla Bartók recomenda que os alunos pianistas não se contentem em aprender o instrumento tocando apenas as peças de seus Mikrokosmos, mas sugere também abordar os famosos Estudos de Carl Czerny, ou o Pequeno Livro de Anna Magdalena Bach, de Johann Sebastian Bach. Assim, a colecção educativa de Bartók não deve ser considerada como um método de piano, mas sim como uma colecção complementar às peças técnicas tradicionais.

Em 1940, pouco antes de emigrar para os Estados Unidos, a fim de aumentar o repertório que podia tocar com a sua mulher, Ditta Pásztory-Bartók, o compositor arranjou sete das peças de Mikrokosmos para dois pianos, intitulando-as Sete Peças de Mikrokosmos. Perpetuum Mobile , do Volume 5 de Mikrokosmos, e o número três do conjunto, é uma das obras mais exigentes da colecção, usando a peça anterior, Estudos em Notas Duplas, como trampolim de inspiração, principalmente nos seus aspectos rítmicos. No entanto, há trabalhos ainda mais difíceis à frente no Volume 6, o último livro de Mikrokosmos.

Perpetuum Mobile abre com um ritmo motriz que é a fonte do material temático. Motórico e implacável, adquire maior intensidade na subida e torna-se mais calmo à medida que desce no teclado. A música repete-se e incha, contrai-se e fica mais suave, sempre, porém, parecendo inquieta e nervosa.

 

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Perpetuum mobile, de Mikrokosmos, Sz. 107
3 Pianos, Bernardo Sassetti, Mário Laginha, Pedro Burmester – Sony, 2007

12 Out 2020

O popular Concerto para Orquestra

[dropcap]E[/dropcap]m 1940, já durante a Segunda Guerra Mundial, em virtude da ascensão do nazismo na Hungria, Béla Bartók decidiu abandonar o seu país e emigrar para os Estados Unidos, estabelecendo-se em Nova Iorque. No entanto, o compositor decepcionou-se com a vida norte-americana. Havia pouco interesse pela sua obra e as suas apresentações, nas quais a sua segunda mulher, Ditta Pásztory, também participava, deram pouco retorno financeiro. No entanto, ajudado por amigos, Bartók prosseguiu a sua carreira de compositor. Já nessa altura sofria da doença que viria a vitimá-lo em 1945, aos 64 anos, a leucemia.

O Concerto para Orquestra, Sz. 116, uma das suas últimas obras, composta em 1943, é uma obra de síntese e de superação. Nela, temas e procedimentos composicionais inspirados em tradições populares e na música erudita convivem, de forma orgânica, num tecido composicional exuberante. A obra, pela sua riqueza de atmosferas, de contrastes e, particularmente, pela sua força e vitalidade, não deixa entrever as provações e o sofrimento pelos quais passava o compositor.

Apesar disso, o Concerto dá mostras de transcendência diante das adversidades, como podemos depreender dos comentários do próprio compositor, em nota de programa, na qual ressalta o percurso dos cinco andamentos. Para Bartók, a obra, apesar do espírito extrovertido do segundo andamento, “apresentava uma transição gradual da severidade do primeiro andamento” e da “lúgubre canção de morte do terceiro” para a “afirmação de vida” que marca o andamento conclusivo.

O Concerto para Orquestra, em cinco andamentos, é uma das obras mais conhecidas e populares de Bartók. Deve o seu nome ao facto de um instrumento, ou um grupo deles, frequentemente se opor, como solista, à orquestra. Esta composição de Bartók é talvez a mais conhecida das obras que levam o contraditório título de Concerto para Orquestra, em contraste com a forma convencional do concerto, que apresenta um instrumento solista e acompanhamento orquestral. Bartók referiu que chamou a esta peça concerto em vez de sinfonia devido à forma como cada secção de instrumentos é tratada de forma solista e virtuosa. O trabalho combina elementos da música erudita ocidental e da música folclórica, especialmente húngara, e afasta-se da tonalidade tradicional, muitas vezes combinando modos tradicionais e escalas não convencionais.

Nesta obra, o andamento central, Elegia, é precedido e seguido por dois andamentos curtos, em modo de scherzos, que são, na verdade, interlúdios dentro do conjunto da obra, que tem uma estrutura essencialmente sinfónica.

O primeiro andamento, Introduzione. Andante non troppo – Allegro vivace, começa com uma introdução lenta e misteriosa que parece preludiar muitas das ideias que surgirão mais tarde. A introdução dá lugar a um allegro com numerosas passagens fugadas. Está estruturado na forma-sonata.
O segundo andamento, Giuoco delle coppie. Allegretto scherzando, consiste em cinco seções, em cada uma das quais há um par de instrumentos tocando em conjunto. Em cada uma dessas passagens, o intervalo entre os dois instrumentos é diferente: uma sexta entre fagotes, uma terceira entre oboés, uma sétima entre clarinetes, uma quinta entre flautas e uma segundo entre trompetes com surdina. Depois de um coral a cargo da secção de metais, a música dos pares reaparece.
O terceiro é outro andamento lento, marcado Elegia. Andante non troppo e é típico da chamada música nocturna de Bartók. A apaixonada secção central é baseada num tema de ar húngaro extraído do primeiro andamento.

O quarto andamento, Intermezzo interrotto. Allegretto, consiste numa melodia que flui com mudanças de compasso, misturada com um tema que parodia a marcha da Sétima Sinfonia de Shostakovich. O tema é interrompido por glissandos nos trombones e instrumentos de sopro.

O quinto andamento, Finale. Pesante – Presto, também é escrito na forma-sonata. A sua música é caracterizada pelo virtuosismo e pela presença de contraponto, com secções fugadas. Começa com uma música brilhante com ares de dança, com interlúdios suaves a modo de contraste e passagens fugadas baseadas num tema apresentado pelos trompetes.

O trabalho foi encomendado pela Fundação Koussevitzky, dirigida pelo maestro russo, então radicado nos Estados Unidos, Serge Koussevitzky. A obra foi estreada no dia 1º de dezembro de 1944 no Symphony Hall de Boston, pela Boston Symphony Orchestra sob a direção de Koussevitzky, e foi um sucesso imediato. Bartók reviu-a logo depois, alongando o último andamento. O seu sucesso animou Bartók, que recebeu outras encomendas, mas infelizmente não pôde apreciá-la por muito tempo, pois viria a falecer dez meses após a estreia.

Sugestão de audição:
Béla Bartók: Concerto for Orchestra, Sz. 116
The Philadelphia Orchestra, Christoph Eschencbach – Ondine, 2005
5 Out 2020

Os impressionantes quartetos de cordas

[dropcap]H[/dropcap]á 75 anos, no dia 27 de Setembro de 1945, menos de três semanas após o dia oficial da rendição formal do Japão, 2 de Setembro, que marcou o final da Segunda Grande Guerra, falecia em Nova Iorque o compositor, pianista, etnomusicólogo, e professor húngaro Béla Bartók, considerado um dos mais notáveis compositores do séc. XX. As suas obras principais têm um sabor notoriamente húngaro e incluem peças orquestrais, quartetos de cordas, peças para piano solo, várias obras para o palco, uma cantata e vários arranjos de canções populares para voz e piano.

Béla Bartók, cujo nome na forma húngara é Bartók Béla, nasceu no dia 25 de Março de 1881 em Nagyszentmiklós, na Áustria-Hungria, hoje Sânnicolau Mare, na Roménia. Bartók passou a infância e a juventude em várias cidades do interior da Hungria, estudando piano com a mãe e posteriormente com uma sucessão de professores. Começou a compor pequenas peças de dança aos nove anos, e dois anos depois tocou em público pela primeira vez, incluindo uma composição sua.

Seguindo o exemplo de outro eminente compositor húngaro, Ernö Dohnányi, Bartók realizou os seus estudos profissionais em Budapeste, na Academia Real Húngara de Música, em vez de estudar em Viena, o centro musical da Europa por excelência. Desenvolveu-se rapidamente como pianista, embora menos como compositor, mas a descoberta em 1902 da música de Richard Strauss estimulou o seu entusiasmo pela composição. Ao mesmo tempo, um espírito de nacionalismo optimista varria a Hungria, inspirado por Ferenc Kossuth e pelo seu Partido da Independência. Como outros membros da geração de Bartók demonstraram nas ruas, o compositor, então com 22 anos, escreveu um poema sinfónico, Kossuth, retratando num estilo que lembra Strauss, embora com um toque húngaro, a vida do grande patriota Lajos Kossuth, pai de Ferenc, que liderou a revolução de 1848-49. Apesar do escândalo na primeira apresentação, ocasionado por uma distorção do hino nacional austríaco, a obra foi recebida com entusiasmo.

Pouco depois de Bartók terminar os seus estudos em 1903, ele e o também compositor húngaro Zoltán Kodály, com o qual viria a colaborar extensivamente, descobriram que o que consideravam música folclórica húngara e utilizavam para as suas composições era, em vez disso, música cigana. Um vasto repositório de música camponesa húngara autêntica tornou-se posteriormente conhecido pela pesquisa dos dois compositores. A colecção inicial, que os levou aos cantos mais remotos da Hungria, teve início com a intenção de revitalizar a música húngara. Ambos não apenas transcreveram muitas canções folclóricas para piano e outros media, mas também incorporaram na sua música original os elementos melódicos, rítmicos e texturais da música camponesa. Fundamentalmente, o próprio trabalho de Bartók foi inundado pelo espírito popular.

Bartók foi nomeado para o corpo docente da Academia Real de Música em 1907 e manteve esse cargo até 1934, quando renunciou para se tornar membro activo da Academia das Ciências. Passava as férias a recolher material folclórico, que depois analisava e classificava, e depressa começou a publicar artigos e monografias. Ao mesmo tempo, expandia o catálogo das suas composições, com muitas obras novas para piano, um número substancial para orquestra e o início de uma série de seis quartetos de cordas que constituiria uma das suas realizações mais impressionantes. O seu primeiro quarteto numerado, Op. 7, composto em 1909, mostra já alguns traços de influência folclórica, mas nos restantes essa influência é totalmente assimilada e omnipresente. Os quartetos põem em paralelo e iluminam o desenvolvimento estilístico de Bartók: no segundo quarteto (1915–17), elementos berberes (Amazigh) reflectem a viagem de recolha do compositor no Norte de África; na terceiro (1927) e no quarto (1928) há um uso mais intensivo da dissonância; e no quinto (1934) e no sexto (1939) há uma reafirmação da tonalidade tradicional.

Ano interessante, 1909, em que o Terceiro Concerto para Piano de Sergei Rachmaninoff, a ópera Elektra dc Richard Strauss, a Nona Sinfonia e Das Lied von der Erde, de Gustav Mahler, Klavierstücke, Op. 11 e a ópera Erwartung de Arnold Schoenberg, e os primeiros quartetos de cordas de Béla Bartók e Zoltán Kodály foram escritos e/ ou estreados. Entre as conclusões que podem ser tiradas deste breve catálogo estão que 1909 foi um ano de começos estilísticos, com a atonalidade de Schoenberg e as inovações folclóricas dos húngaros, e o fim de uma era, misturada com uma forte dose de tradição a ser homenageada, através de Rachmaninoff.

O Bartók de 1909 é recordado pela primeira mulher, nascida Marta Ziegler, com quem era então recém-casado: “Compôs principalmente à noite. Durante o dia, estava ocupado a transcrever e a organizar as suas colecções de canções folclóricas gravadas em cilindros de cera… para publicação ”. Temos também o testemunho de Hugo Leichentritt, que mais tarde viria a ser um académico musical internacionalmente respeitado, que encontrou “Bartók, um jovem compositor e pianista de Budapeste” em Berlim, e que tocou para ele as Bagatelles, Op. 6, compostas em 1908, “um conjunto de peças para piano com as harmonias mais estranhas que já haviam chegado ao seu ouvido. Não davam a impressão de um requinte polido, mas de um sentimento instintivo primitivo, rústico, forte e instintivo… Esse primeiro e breve encontro com a música de Bartók revelou a sua característica nacional básica, originada no seu solo húngaro nativo. Todos naquela época tinham uma noção clara da música húngara, derivada das rapsódias de Liszt e das danças de Brahms.

No entanto, a música húngara de Bartók era muito diferente desses modelos bem conhecidos. Diferente porque Bartók cavou muito mais fundo do que o hungarianismo pop e a música cigana para encontrar o elemento nativo. Já em 1904, ele e Kodály, se haviam convencido de que a “verdadeira” música húngara não se encontrava nos cafés ou nas salas de concerto de Budapeste, mas no campo que eles frequentemente visitaram durante os anos seguintes. Recolher, registar, catalogar e, por fim, publicar os sons das pessoas. O estilo húngaro de base popular inicial de Bartók é exemplificado nas Bagatelles, Op. 6 e no Primeiro Quarteto.

O estudioso e biógrafo de Bartók, Halsey Stevens, observa que “a liberdade contrapontística característica do tratamento de Bartók do quarteto de cordas, a extrema plasticidade com que as linhas individuais giram, mudam, combinam e se opõem” já são perceptíveis no Primeiro Quarteto. Além disso, “cada jogador é considerado um indivíduo, com o seu próprio fio de tecido; esta autonomia traz uma riqueza textural comparável aos últimos quartetos de Beethoven…”

Sugestão de audição:
Béla Bartók: The String Quartets
Guarnieri Quartet – RCA Red Seal, 1995

30 Set 2020

A Primeira Sinfonia

[dropcap]A[/dropcap] Sinfonia N.o 1, Op. 14 de Yorgo Sicilianos, composta em 1956 e tecnicamente muito similar ao seu Concerto para Orquestra, Op. 12, pertence ao segundo período criativo do compositor, que durou cerca de 25 anos, caracterizado pela busca e experimentação das tendências musicais contemporâneas, como o dodecafonismo, o serialismo, as técnicas pós-serialistas, e a música electrónica.

Outras obras do jovem compositor tinham sido apresentadas anteriormente, a partir de 1948, e tinham sido recebidas favoravelmente pela crítica, que via em Sicilianos um compositor promissor que podia desempenhar um papel de liderança na música grega. Esta atitude favorável permaneceu inalterada quando o Concerto para Orquestra foi apresentado, embora alguns críticos tivessem questionado a possibilidade de combinar a técnica dos doze tons e desenvolvimentos recentes em geral, com a necessidade de criar uma música grega no contexto da Escola Nacional Grega, ou de acordo com os princípios do realismo socialista. Contudo, os críticos que nos anos seguintes se tornariam nos defensores da avant garde, saudaram este desenvolvimento como necessário para o futuro da música grega, como referiu na época o musicólogo grego Fivos Anoyanakis: “O Sr. Sicilianos, com o seu Concerto para Orquestra, transmite uma mensagem nova: o esforço de combinar a música grega com meios de expressão musicais europeus contemporâneos. Este é um esforço difícil e árduo, por vezes mesmo ingrato, que constitui mesmo assim uma exigência essencial. Esta é uma necessidade irreversível para a nova geração dos nossos compositores, que ardem com o desejo de renovação.”

Enquanto frequentava as aulas de Vincent Perischetti e de Peter Mennin na Juilliard School em Nova Iorque, entre 1955 e 1956, Sicilianos conheceu o colega grego, o maestro, pianista e compositor Dimitri Mitropoulos, na altura director musical da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque. Mitropoulos concedeu-lhe o privilégio de assistir aos ensaios da orquestra, nos quais Sicilianos refere ter aprendido muito sobre várias obras e sobre orquestração. Mitropoulos acompanhou o progresso de composição da sua sinfonia, que Sicilianos viria a dedicar-lhe. A obra foi inspirada na peça The Great God Brown, de 1926, do dramaturgo americano galardoado com o Prémio Nobel da Literatura, Eugene O’Neill, notada pelo uso da máscara heróica do teatro grego antigo. Sicilianos pode ter visto a peça durante a sua permanência nos EUA. A recepção da crítica dividiu-se, mas a obra foi unanimemente considerada ecléctica, mas, de qualquer forma, não como uma composição avant garde. Ao contrário, após a sua primeira apresentação na Grécia no mesmo ano, em Novembro, pela Orquestra Estatal Grega liderada por Andreas Paridis, a Primeira Sinfonia foi recebida mais ou menos da mesma forma que o Concerto para Orquestra, isto é, como uma obra que acompanhou os desenvolvimentos, na altura, recentes, e que rompeu laços com a Escola Nacional Grega tradicional. A obra tinha sido estreada em Março de 1959 em Nova Iorque, pela Orquestra Filarmónica de Nova Iorque, sob a direcção de Dimitri Mitropoulos.

Ao longo da sua carreira, Yorgo Sicilianos recebeu distinções importantes. Em 1962 ganhou o terceiro prémio no Concurso Internacional de Quarteto de Cordas de Liège com o seu Quarteto de Cordas N.o 3, Op. 1, e as suas obras foram escolhidas duas vezes para representar a Grécia no Festival da Sociedade Internacional de Música Contemporânea (Stasimon B, Op. 25, Madrid, 1965 e Perspectivas, Op. 26, Praga, 1967). Também foi homenageado pela sua contribuição para a música com as seguintes medalhas e prémios: Cavaliere “al merito della Republica Italiana” (Roma, 1962), Chevalier des Arts (Paris, 1990), Prémio Herder (Viena, 1991) e o Prémio Eirini G. Papaioannou da Academia de Atenas (1994). Finalmente, em 1999, recebeu um Doutoramento Honoris Causa pela Universidade de Atenas.

Sugestão de audição:
Yorgo Sicilianos: Symphony No. 1, Op. 14
New York Philharmonic, Dimitri Mitropoulos – Lyra, 1991

21 Set 2020

O Concerto dodecafónico

[dropcap]O[/dropcap] compositor grego Yorgo Sicilianos (1920-2005), cujo centenário do nascimento se assinalou no passado dia 29 de Agosto, foi uma das figuras mais importantes do modernismo musical na Grécia. Nascido em Atenas, Sicilianos estudou teoria e composição com Kostas Sfakianakis, Marios Varvoglis e George Sklavos; de 1951 a 1953 prosseguiu os estudos na Academia de Santa Cecília, em Roma, com Ildebrando Pizzetti, recebendo um diploma em Composição em 1953. Enquanto viveu na Itália conheceu a música de Béla Bartók, que desempenhou um papel decisivo na sua decisão de se voltar para os idiomas musicais contemporâneos, e dos compositores da Segunda Escola Vienense, que influenciaram o seu desenvolvimento posterior. Depois de deixar a Itália, frequentou o curso de composição de Tony Aubin no Conservatoire National em Paris (1953-54) e as aulas de Walter Piston na Universidade de Harvard, Boris Blacher no Tanglewood Institute e Vincent Perischetti na Juilliard School de Nova Iorque (1955–56). Em Nova Iorque, Sicilianos conheceu o colega grego, o famoso maestro, pianista e compositor Dimitri Mitropoulos, que mais tarde viria a estrear, em Março de 1958, a sua Primeira Sinfonia, Op. 14, composta em 1956, com a Filarmónica de Nova Iorque.

Em 1956, Sicilianos regressou definitivamente à Grécia. Naquela época, foi um dos primeiros compositores gregos a seguir as tendências modernistas na música. Iniciou uma produção que no total consiste em 63 obras e abrange todos os géneros: música sinfónica, música de câmara, música de piano, ciclos de canções, ópera, ballet, música incidental e muito mais. Paralelamente ao seu trabalho como compositor, Sicilianos foi um participante activo na vida musical grega, desempenhando numerosos cargos em instituições gregas ligadas à música, públicas e privadas, como a Associação Grega de Música Contemporânea, a Ópera Nacional da Grécia, a Rádio Televisão Grega, entre outras.

O trabalho de Sicilianos pode ser dividido em três períodos. O primeiro período, durante o qual seguiu as expressões tonais e modais, inclui obras que escreveu até 1953, ano em que terminou os estudos na Itália, quando ainda acreditava que o futuro da música grega residia “no ponto onde o canto bizantino se cruza com a Canção Folclórica Grega”.

O segundo período, caracterizado pela busca e experimentação das tendências musicais contemporâneas (técnica dodecafónica, serialismo, técnicas pós-serialistas, música electrónica), e que durou cerca de 25 anos, começou com o Concerto para Orquestra, Op. 12, composto em 1954, no qual Sicilianos utilizou pela primeira vez a técnica dodecafónica. Em termos de técnica a obra mostra a influência da Segunda Escola Vienense e de Béla Bartók através do uso da variação em desenvolvimento (principalmente no 1o andamento), do método dos 12 tons (principalmente no 3o andamento) e da “música nocturna” Bartokiana (3o andamento). Os quatro andamentos da obra são escritos nas formas sonata, scherzo, ABA e rondo, respectivamente. Em resultado, em grande parte, o Concerto permanece num contexto tradicional, embora tenha sido a obra através da qual Sicilianos tenha quebrado os laços com a Escola Nacional Grega e adoptado idiomas modernistas. O Concerto para Orquestra foi estreado em Novembro de 1954 pela Orquestra Estatal de Atenas, liderada por Andreas Paridis.

Sugestão de audição:
Yorgo Sicilianos: Concerto for Orchestra, Op. 12
Symphony Orchestra of Bulgaria, Alkis Panayotopoulos – NAR Classical, 1998
15 Set 2020

Derradeiro e único

[dropcap]G[/dropcap]abriel Fauré é legitimamente considerado o compositor francês mais avançado da sua geração. O seu estilo musical altamente personalizado, reflectido em melodias modais cheias de alma e numa linguagem harmónica colorida, influenciou bastante as gerações de compositores subsequentes. Acima de tudo, Fauré era um professor venerado e um administrador proactivo em nome da música. Tornou-se professor de composição no Conservatório de Paris em 1896, tendo como alunos, entre outros, Maurice Ravel, Georges Enescu e Nadia Boulanger. E quando foi nomeado director do Conservatório em 1905, reformou ardentemente o currículo dessa instituição musical de maior prestígio na França. Durante grande parte da carreira composicional de Fauré, a música para e com o piano ocupou o centro do palco.

Para a sua composição final – o Quarteto de Cordas em Mi menor, Op. 121, o único quarteto de cordas que compôs, concluído em 1924, pouco tempo antes de falecer com 79 anos, o compositor afastou-se do seu instrumento favorito, o piano, e, em vez disso, escreveu música para o género prototípico de agrupamento da Música Clássica, quarteto de cordas. Ravel tinha-lhe dedicado o seu Quarteto de Cordas em 1903 e ele e outros incitaram-no a compor o seu próprio quarteto; Fauré declinou alegando que era muito difícil. Quando finalmente se decidiu a compô-lo, fê-lo com receio. A obra foi composta em Annecy-le-Vieux, em Paris e em Divonne-les-Bains entre Setembro de 1923 e Setembro de 1924. “Iniciei a composição de um quarteto de cordas, sem piano”, Fauré escreveu à sua mulher, que se encontrava em Paris, a partir de Annecy. “Este é um género tornado particularmente famoso por Beethoven, e por isso quem não seja Beethoven tem pavor de o fazer”.

O Allegro de abertura proporciona um início tranquilo e contemplativo banhado na linguagem melódica e harmónica tipicamente etérea de Fauré. Um diálogo musical tranquilo entre o primeiro violino e o violoncelo domina grande parte deste andamento, senão toda a composição. Breves intensificações da linguagem musical à parte, com o violoncelo incitando a conversa musical, este andamento nunca se desvia de um estado de emotividade contida. A estética musical contemplativa introduzida no primeiro andamento é ainda mais ampliada no lento Andante, já que Fauré fornece um coro instrumental de lamento. Na Allegro conclusivo, que combina as funções de scherzo e finale, o violoncelo canta uma melodia insistente, acompanhada por cordas superiores em pizzicato. Na verdade, o acompanhamento de pizzicato fornece o pulso musical a grande parte do andamento, permitindo apenas uma explosão emocional singular nos compassos finais da peça.

A obra tem sido descrita como uma meditação íntima sobre as últimas coisas, e uma obra extraordinária, independentemente do ponto de vista, etérea e de outro mundo com temas que parecem ser constantemente ser puxados “em direcção ao céu”. O quarteto foi estreado após a morte de Fauré, pois o compositor declinou uma oferta deste ser executado em privado para si nos últimos dias, pois a sua audição tinha-se deteriorado ao ponto dos sons musicais soarem horrivelmente distorcidos aos seus ouvidos.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: String Quartet in E minor, Op. 121
Leipziger Streichquartet – Musikproduktion Dabringhaus und Grimm, 2007

25 Ago 2020

Os Nocturnos: poesia, lirismo e estilo refinado

[dropcap]G[/dropcap]abriel Fauré compôs em muitos géneros, incluindo canções, música de câmara, orquestral e coral. As suas composições para piano, escritas entre os anos 60 do século XIX e os anos 20 do século XX, incluem algumas das suas melhores obras. Os nocturnos, em conjunto com as barcarolas, são geralmente considerados como as maiores obras para piano do compositor. Fauré admirava muito a música de Chopin, e gostava de compor em formas e padrões estabelecidos pelo compositor polaco. O crítico musical inglês Richard Morrison observa que os nocturnos de Fauré seguem o modelo de Chopin, contrastando secções exteriores serenas com episódios centrais mais espirituosos e turbulentos. O filho de Fauré, Philippe, comentou que os nocturnos do seu pai “não são necessariamente baseados em rêveries ou em emoções inspiradas pela noite. São peças líricas, geralmente apaixonadas, por vezes angustiadas ou totalmente elegíacas.”

Com a sua poesia, o seu lirismo apaixonado e íntimo, o seu estilo refinado que gradualmente revela intensidades ocultas, os treze Nocturnos de Gabriel Fauré são o grupo mais significativo de obras na sua produção para piano solo. Compostos durante um período de quarenta e seis anos (entre 1875 e 1821), testemunham a notável evolução estilística do compositor. De uma forma de expressão enraizada no romantismo, a uma estética totalmente alinhada com a modernidade do século XX, pode-se dizer que Fauré moldou a sua personalidade musical como um escultor. Os seus treze Nocturnos não são todos de igual importância, mas como um todo a sua diversidade e desenvolvimento oferecem um panorama perfeito da sua arte.

O musicólogo francês Jean-Michel Nectoux classifica o primeiro nocturno, o Nocturno para Piano No 1 em Mi bemol menor, Op. 33/1, composto c. de 1875, como um dos melhores trabalhos iniciais do compositor. É dedicado, como a famosa canção de Fauré “Après un rêve”, à sua amiga e mecenas Marguerite Baugnies. O crítico musical inglês Richard Morrison considera a peça “enclausurada e elegíaca”. Embora publicada como a Op. 33/1 do compositor em 1883, foi escrita consideravelmente mais cedo. O trabalho contém muitos traços distintivos do estilo de Fauré, incluindo “ritmos ondulantes, sincopação do acompanhamento de encontro à melodia e texturas em camadas já estão em evidência.

O sexto nocturno, o Nocturno para Piano No 6 em Ré bemol Maior, Op. 63, datado de 1894, dedicado a Eugène d’Eichthal, é amplamente considerado um dos melhores da série. O famoso pianista francês Alfred Cortot referiu a propósito da obra: “Existem poucas páginas em toda a música comparáveis ​​a estas”. Morrison considera-a “uma das mais ricas e eloquentes de todas as obras para piano de Fauré”. A pianista e escritora Nancy Bricard chama-lhe “uma das as obras mais apaixonadas e comoventes da literatura para piano.” Fauré escreveu-a após uma pausa de seis anos na composição para piano. Aaron Copland escreveu que foi com este trabalho que Fauré emergiu totalmente da sombra de Chopin, e referiu sobre a peça: “A respiração e a dignidade da melodia de abertura, a inquieta secção em Dó sustenido menor que se segue (com as peculiares harmonias sincopadas tão frequentemente e tão bem usadas por Fauré), a graciosa fluidez da terceira ideia: todos estes elementos são levados a um clímax tempestuoso na secção curta de desenvolvimento; então, depois de uma pausa, vem o retorno da consoladora primeira página”.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: 13 Nocturnes
Jean-Philippe Collard (piano) – EMI, 1987

18 Ago 2020

O primeiro quinteto com piano

O Quinteto Opus 89 de Gabriel Fauré tem uma imagem enigmática, destacando-se de entre as obras do compositor publicadas pelo velho Gustav Schirmer em Nova Iorque, em 1924, o ano derradeiro do compositor, em parte graças à improvável acção do jovem compositor Aaron Copland, então a viver na Europa.

 

[dropcap]O[/dropcap]Quinteto Opus 89 de Gabriel Fauré tem uma imagem enigmática, destacando-se de entre as obras do compositor publicadas pelo velho Gustav Schirmer em Nova Iorque, em 1924, o ano derradeiro do compositor, em parte graças à improvável acção do jovem compositor Aaron Copland, então a viver na Europa.

O Primeiro Quinteto surgiu em 1906. Durante muito tempo, os comentadores supuseram que, por ter surgido perto da sua nomeação como professor no Conservatório de Paris, a sua criação deve ter sido apressada e atormentada por distracções, e alguns usaram isto para alimentar os preconceitos contra a obra. Mas, como o professor Robert Orledge mostra no seu distinto estudo sobre Fauré (Eulenberg, 1979/1983), a gestação tinha sido longa e problemática. Um caderno de anotações sobrevivente contém ideias usadas no Finale, juntamente com esboços para o Requiem, Op. 48, indicando que as tentativas de composição do Quinteto datam de tão cedo quanto 1887. Em 1891, Fauré considerava a adição de uma segunda parte de violino a um terceiro quarteto de piano projectado, e nesta fase reproduziu esboços de um ‘Quinteto com Piano, Opus 60’ com o Ysaÿe Quartet (Eugène Ysaÿe tornar-se-ia o dedicatário da Opus 89). O trabalho intermitente no Quinteto prosseguiu até 1894, mas depois cessou até 1903. Um grande esforço ocorreu no final de 1904, durante o qual o compositor se referiu numa carta a “este animal de um Quinteto”. A peça foi finalmente concluída no final de 1905. A estreia, no dia 23 de Março de 1906 em Bruxelas, envolvendo o Quarteto Ysaÿe, foi ensaiada pela primeira vez apenas um dia antes, devido ao estilo de vida e aos “métodos” caóticos de Ysaÿe, um fato bastante triste a juntar à já difícil génese da obra.

O tema de abertura do primeiro andamento do Quinteto com Piano No 1 em Ré menor, Op. 89, molto moderato, tipifica uma leveza distintamente arrebatada, alcançada em várias ocasiões por Fauré. À luz do caderno de 1887, podemos ser recordados do andamento ‘In Paradisum’ do Requiem. A tonalidade inicial inclina-se predominantemente para Fá Maior, conquistando a nota tónica somente quando esta gera uma cadência sombria. A característica suavidade de progressão é aparente, assim como o é alguma relação harmónica entre material secundário e o terceiro e o quarto andamentos do Segundo Quinteto com Piano, Opus 115. O tom é por vezes austero, e por outras melancólico, com algum grau de ambos na conclusão atenuada em Ré Maior.

Uma introspecção melancólica prevalece durante o andamento lento, Adagio, realizada em parte por intervalos descendentes proeminentes do tom e semitom e por clímaxes melismáticos de curta duração que desaparecem com uma tristeza peculiar. Um novo tema a cerca de um terço do caminho, apresentando uma escala decrescente de quatro notas seguida por uma quinta descendente, mostra claramente a importância dos recursos expressivos de modalidade linear de Fauré. Longe de ser um caso escrito à pressa, este andamento – especialmente na sua conclusão – causou-lhe dificuldades prolongadas.

O Finale, Allegro moderato, abre em estilo quase de “divertissement” apologético, como se hesitante em se tornar um scherzo ou passar-lhe por cima. Talvez isto seja importante, já que se sabe que Fauré se adaptou ao formato de três andamentos em Agosto de 1905. Novamente, a densidade das cordas é a força motriz e, embora o piano assuma por vezes igual importância melódica, nunca o faz com um efeito retórico grandioso. A música é rica em contraponto livre, mas quase totalmente desprovida de notas aumentadas, ligaduras ou desvios da acentuação do down beat. O relativo “músculo” pianístico da conclusão surge como uma surpresa – ou, talvez, um aceno irónico do que poderia ter sido.

O efeito compósito da Opus 89 é de uma melancolia estranhamente interior. Na década de 1880, Fauré tinha experimentado tonturas, fortes dores de cabeça e depressão, aparentemente recorrências da sua infância. Estas podem estar ou não relacionadas com a morte do seu pai em 1885 com quem teve um relacionamento difícil e reservado em criança. Da mesma forma, os seus problemas dos anos de 1880 podem ter pressagiado dificuldades auditivas posteriores; e estas começaram em 1902, pouco antes de voltar ao quinteto para o ataque definitivo. Qualquer que seja a verdade, e apesar do reconhecimento cansado do compositor de que parecia repetir-se incessantemente, os problemas desse trabalho negligenciado merecem ser vistos – ainda que especulativamente – como criativamente importantes e conscientes, não desatentamente perfunctórios ou desmotivados.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Piano Quintet No. 1 in D minor, Op. 89
Cristina Ortiz (piano), Fine Arts Quartet – NAXOS, 2009

11 Ago 2020

Um requiem “de embalar”

[dropcap]Q[/dropcap]uando Gabriel Fauré se sentou para escrever a obra a que chamou Petit Requiem em 1887, não pôde deixar de considerar os requiens de três dos mais ilustres compositores do século XIX: Hector Berlioz (1837), Giuseppe Verdi (1874) e Johannes Brahms (1868). Dois deles – os de Berlioz e Verdi – são de enorme escala e possuem um ímpeto dramático esmagador. O mais suave dos três, o Deutsches Requiem de Brahms, composto na sequência da morte da sua mãe, é um pária, evitando completamente os textos litúrgicos latinos com as suas imagens do inferno e de condenação eterna, concentrando-se mais nas noções de libertação do sofrimento e da vida eterna.

A abordagem de Fauré é algo híbrida, extraindo livremente textos da Missa de Requiem e de outras liturgias, de acordo com a sua própria estética. Numa entrevista em 1902, o compositor disse que o seu objectivo era “desviar-se do caminho estabelecido depois de passar anos a acompanhar funerais! Estava farto deles.

Queria fazer algo diferente.” Referiu ainda o seguinte: “Diz-se que o meu Requiem não expressa o medo da morte e há quem lhe tenha chamado ‘uma canção de embalar’ da morte. Pois bem, é assim que eu vejo a morte: como uma feliz libertação, uma aspiração a uma felicidade superior, em vez de uma penosa experiência.”

Determinados desgostos pessoais influíram na composição da obra; Fauré iniciou-a após a morte do seu pai e, antes de a terminar, a sua mãe também faleceu. Assim, o Requiem pode ser visto como uma expressão da tragédia pessoal de Fauré escrita na sequência da morte dos seus pais.

A versão original de Fauré, de 1888, foi orquestrada para um coro de cerca de 40 cantores, acompanhado por uma pequena orquestra e órgão. O uso de cordas graves e a ausência de metais visou claramente enfatizar a natureza suave e reconfortante da obra. Ao preparar a partitura para publicação em 1893, o compositor fez várias revisões, acrescentando parte do Offertoire litúrgico, e o Libera me, que tinha iniciado vários anos antes como uma obra separada para barítono solo. Acrescentou também partes para dois fagotes, quatro trompas e dois trompetes. No final do século, o editor de Fauré convenceu-o a expandir a orquestração ainda mais para incluir uma orquestra completa. O compositor concordou e, assim, produziu uma terceira versão, publicada em 1901, que foi popular durante grande parte do séc. XX. Contudo, nos anos 70 e 80 desse século, vários estudiosos de Fauré, em conjunto com o compositor e maestro inglês John Rutter, trabalharam para reconstruir a versão original da orquestração de Fauré de 1893, versão considerada por muitos a mais próxima da intenção original do compositor, embora nunca tivesse renunciado à versão maior para orquestra completa, que dizia ser apropriada para certas ocasiões de concerto.

Uma das missas de requiem mais populares, o Requiem em Ré menor, Op. 48 de Gabriel Faureé foi escrito entre 1886 e 1888 e executado pela primeira vez, ainda que apenas em parte, no funeral do arquitecto Joseph Lesoufaché na Église de la Madeleine, no início de 1888 e, em Maio desse ano, já em concerto. Ao escrever esta obra notavelmente inovadora, Fauré ajustou a tradicional ordem litúrgica omitindo a Sequence (que representa o Dies irae e o Rex tremendae) e acrescentando In Paradisum; desaparece, pois, o apocalíptico horror da ira de Deus, e há ao contrário uma serena e definitiva visão confortável do céu. Das sete secções que a compõem ( Introit et Kyrie/ Offertoire/ Sanctus/ Pie Jesu/ Agnus Dei et Lux Aeterna/ Libera Me/ e In Paradisum), o pristino solo de soprano Pie Jesu, o Agnus Dei e In Paradisum emergem como as mais gloriosas, plenas de melodias ricas e emotivas, para além do Introit et Kyrie, da poderosa ária de barítono do Offertoire “Hostias et preces tibi”, e do Sanctus.

Para muitos conhecedores da música, Fauré identifica-se quase exclusivamente com esta obra, que se converteu para muitos na quintessência do género romántico. Este Requiem, elogiado por muitos outros compositores, em especial por Camille Saint-Saëns, que o considerava divino, e também reconhecido como uma fonte de inspiração para o Requiem de Maurice Duruflé, foi executado no funeral do próprio Fauré em 1924.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Requiem in D minor, Op. 48
Sylvia McNair (soprano), Thomas Allen (baritone), Academy of St. Martin in the Fields, Sir Neville Marriner – Decca, 2012

4 Ago 2020

Primeira sonata para violino

[dropcap]E[/dropcap]m 1872, Camille Saint-Saëns, ex-professor de piano de Gabriel Fauré, apresentou o jovem compositor à grande meio-soprano Pauline Viardot-Garcia e à sua família e salão musical alargados. Fauré dedicou várias das suas canções a essa influente doyenne, apaixonou-se pela sua filha Marianne (que romperia o seu noivado após três meses) e dedicou a sua primeira sonata para violino ao filho, o violinista e compositor Paul Viardot.

Foi Marie Tayau, no entanto, uma jovem estrela em ascensão e líder de um quarteto de cordas pioneiro constituído apenas por mulheres, que estreou a obra em Janeiro de 1877, com Fauré ao piano. “A sonata teve mais sucesso esta noite do que eu jamais poderia ter desejado”, escreveu Fauré a um amigo, e Saint-Saëns referiu, a propósito da obra, que sentia a tristeza que as mães sentem ao verem que os seus filhos já cresceram e que não precisam mais delas!… No entanto Saint-Saëns tinha mais a dizer: “Nesta sonata, encontramos tudo para tentar um gourmet: novas formas, excelentes modulações, cores incomuns e o uso de ritmos inesperados”, escreveu. “E uma magia flutua acima de tudo, abrangendo todo o trabalho, fazendo com que a multidão de ouvintes comuns aceite a audácia inimaginável como algo bastante normal. Com este trabalho, Monsieur Fauré ocupa o seu lugar entre os mestres.”

Essa magia é bastante aparente em momentos como a transição da secção de desenvolvimento para a recapitulação arrebatadora no andamento de abertura, Allegro molto. Essa é uma célere mas melodiosa forma-sonata, abrindo com crescente entusiasmo apenas para o piano solo nos primeiros 22 compassos. A sua frescura lírica é subtilmente sustentada por um dar e receber contrapontístico, e a sua doçura expressiva por uma técnica musculada. O segundo andamento, Andante, é uma comovente e insistentemente oscilante barcarolle, que faz um uso arrebatador de contraponto na maneira como os dois temas inter-relacionados se entrelaçam. O animado Scherzo, marcado Allegro vivo, uma espécie de brilhante hoedown francês, diverte-se tanto em sonoridade quanto em enredo rítmico e inspiração estrutural. Pontuado ligeira e nitidamente, muda de compasso e tonalidade com a audácia maníaca que Saint-Saëns assinalou. O finale, Allegro quasi presto, vai além da consumação e da adição com verve e vigor. Também bastante rápido, agita-se encantadoramente num mundo sobretudo muito suave, atingido por alguns fulgores estrondosos; “Dolce”, “sempre dolce” e “dolcissimo” parecem ser as marcações padrão de Fauré.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Violin Sonata No. 1 in E minor, Op. 13
Itazkh Perlman (violin), Emanuel Ax (piano) – Deutsche Grammophon, 2015

28 Jul 2020

O segundo quarteto com piano

[dropcap]P[/dropcap]ouco se sabe sobre a história do Segundo Quarteto com Piano de Gabriel Fauré. Foi provavelmente composto durante os anos de 1885/86, logo após o compositor ter sido premiado com o “Prix Chartier” da Académie des Beaux Arts em 1885, por várias obras de câmara, entre as quais se incluía o Primeiro Quarteto com Piano, estreado em 1880. O Segundo Quarteto com Piano parece ter sido escrito porque Fauré estava interessado nas possibilidades do meio quarteto com piano. O estudioso de Fauré, Jean-Michel Nectoux, comenta que a escolha desta forma pouco usual mostrava o desejo do compositor explorar novos caminhos e ser independente. Nectoux acrescenta que havia ainda a vantagem de que o repertório clássico existente continha muito poucos quartetos com piano de primeira água à excepção dos de Mozart.

O Segundo Quarteto é, sem dúvida, um dos pontos altos da sua produção de câmara e é difícil entender a razão pela qual este trabalho soberbamente lavrado e melodicamente generoso nunca conseguiu alcançar a popularidade do Primeiro Quarteto. Como na sua Segunda Sonata para Violino, Op. 108, os temas do primeiro andamento surgem inesperadamente de várias formas nos andamentos posteriores, mas o uso de referências cruzadas temáticas por Fauré é mais subtil, e menos melodramático do que nas chamadas obras cíclicas de Franz Liszt ou César Franck. A obra, dedicada ao maestro Hans von Bülow, foi estreada no dia 22 de Janeiro de 1887, na Société Nationale de Musique, por Guillaume Remy no violino, Louis van Waefelghem na viola, Jules Delsart no violoncelo e o compositor ao piano, e foi publicada pouco depois da estreia.

O primeiro andamento do Quarteto com Piano No 2 em Sol menor, Op. 45, Allegro molto moderato, começa com uma melodia ardente tocada pelas cordas em uníssono, de cujos contornos derivam muitos temas subsequentes. Em termos formais gerais, esse andamento assemelha-se ao Allegro de abertura do Primeiro Quarteto, mas aqui Fauré confere um peso maior à coda, que contém algum dos seus mais deslumbrantes sidesteps harmónicos.

Os dois andamentos centrais estão em completo contraste: um invulgarmente violento Scherzo em Dó menor com um ofegante tema de piano sincopado é precedido por um sereno Adagio. A suave figura ondulante de piano que abre o andamento lento foi aparentemente inspirada pela recordação dos sinos que soavam à noitinha na vila de Cadirac, que Fauré ouvia frequentemente em criança.

Paixão e violência são novamente consentidas no finale, marcado Allegro molto. A energia inexorável deste andamento é bastante distinta de alguma outra obra de Fauré: até o finale do Primeiro Quarteto consegue ter algumas pausas ocasionais para reflexão. Por incrível que pareça, Fauré consegue manter algo em reserva para a coda: um crescendo electrizante, culminando em uma reafirmação maciça più mosso do segundo tema em Sol Maior. Os compassos finais são pura alegria.

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Piano Quartet No. 2 in G minor, Op. 45
Emanuel Ax (piano), Isaac Stern (violin), Jaime Laredo (viola), Yo-Yo Ma (cello) – SONY Classical, 1993

21 Jul 2020

Aprés un rêve

[dropcap]G[/dropcap]abriel Urbain Fauré, nascido em Pamiers, na comuna de Ariège, no dia 12 de Maio de 1845, há pouco mais de 175 anos, foi um dos mais proeminentes compositores franceses da sua geração, para além de organista, pianista e professor. O seu estilo musical influenciou numerosos compositores do século XX. De entre os seus trabalhos, destacam-se, de entre mais de 100 canções, Après un rêve e Clair de lune, a obra sinfónica Pavane e o Requiem, para além dos nocturnos para piano. Embora as suas composições mais conhecidas e acessíveis sejam as primeiras, Fauré compôs as suas obras mais reconhecidas e turbulentas – que contrastam com o charme das primeiras composições, nos últimos anos de vida, num estilo mais complexo de harmonia e melodia.

Fauré nasceu no seio de uma família nobre mas com poucas ligações à música. O seu talento começou a revelar-se ainda em pequeno e, aos nove anos de idade, foi enviado para a École de Musique Classique et Religieuse (mais conhecida por École Niedermeyer) em Paris, onde recebeu formação como organista de igreja e mestre-de-coro. Após a morte de Niedermeyer, um dos seus professores foi Camille Saint-Saëns, que se tornaria seu grande amigo. Depois de terminar os estudos, em 1865, trabalhou como organista e professor, sobrando-lhe pouco tempo para a composição. Quando começou a ser bem-sucedido, já com alguma idade, no cargo de organista da Igreja de la Madeleine e de director do Conservatório de Paris, ficou ainda com menos tempo para compor mas, nas férias de Verão retirava-se para o campo para se concentrar nas suas composições. Nos últimos anos de vida, pese embora uma crescente surdez e outros problemas de saúde, Fauré foi reconhecido em França como o principal compositor da sua época. Em 1922, já completamente surdo, recebeu uma homenagem nacional sem precedentes, na Sorbonne, prestada pelo Presidente da República, na qual participaram os mais ilustres artistas franceses da época. Fora de França, a música de Fauré levou décadas a ser aceite, excepto na Grã-Bretanha, onde teve muitos admiradores ainda em vida.

A sua música tem sido descrita como uma ponte de ligação entre o romantismo e o modernismo, surgido no último quartel do século XIX. Quando Fauré nasceu, Chopin ainda compunha e, quando morreu, começava-se a ouvir jazz e a música atonal da Segunda Escola de Viena. O Grove Dictionary of Music and Musicians, que o descreve como o compositor mais avançado da sua geração em França, salienta que as suas inovações harmónicas e melódicas influenciaram o ensino de música a muitas gerações. Fauré faleceu em Paris no dia 4 de Novembro de 1924.

As Trois mélodies, Op. 7 de Gabriel Fauré são um conjunto de canções para voz e piano constituído por Après un rêve (Op. 7, n.º 1), uma das obras vocais mais populares e belas de Fauré, Hymne (Op. 7, n.º 2) e Barcarolle (Op. 7, n.º 3). As canções foram escritas entre 1870 e 1878 mas não foram concebidas como um conjunto; o número de opus 7 foi-lhes imposto de maneira retrospectiva na década de 1890, quase 20 anos depois da sua primeira publicação.

Après un rêve (publicada em 1877) descreve o sonho de um voo romântico com um amante, longe da Terra e “em direcção à luz”. Contudo, ao acordar para a verdade o sonhador anseia voltar à “noite misteriosa” e à estática falsidade do seu sonho. O texto do poema é uma adaptação livre para francês de Romain Bussine de um poema anónimo em italiano. ​A cantilena de Fauré é uma cornucópia de abundância melódica: a música desenvolve-se organicamente do princípio ao fim, cada frase conduzindo inevitavelmente à seguinte, um florescimento sem fim, por sua vez suportado por harmonias inevitáveis, mas o toque popular de Fauré disfarça a maior das subtilezas. A versão mais conhecida desta canção é para violoncelo e piano, arranjada por Pablo Casals.

Hymne adapta o texto de um poema de Charles Baudelaire. O significado do texto de Hymne é vago para aqueles que não estão familiarizados com o tema recorrente de Baudelaire de um paradoxo: a espiritualidade do sensual e a sensualidade do que é santificado. A adaptação de Fauré do texto centra-se subtilmente nesta ideia. Esta peça, como Après un rêve, mantém um ambiente etéreo.

O texto da terceira peça do conjunto, Barcarolle, é de Marc Monnier. A peça está escrita na forma de barcarola usando um animado compasso de 6/8 . Através da canção, a figura rítmica, que consiste numa colcheia unida a um terno de semicolcheias, seguido de outra colcheia, é passada entre a voz e o piano. ​

 

Sugestão de audição:
Gabriel Fauré: Trois mélodies, Op. 7
Janet Baker (mezzo-soprano), Geoffrey Parsons (piano) – Hyperion, 1990

7 Jul 2020

Memória de um local dilecto

[dropcap]T[/dropcap]chaikovsky compôs a obra Souvenir d’un lieu cher (Memória de um local dilecto), Op. 42, para violino e piano, entre Março e Maio de 1878. O primeiro andamento, Méditation, foi composto em Março desse ano em Clarens, na Suíça, onde Tchaikovsky também escreveu o seu Concerto para Violino, crê-se a pedido do seu aluno e possivelmente apaixonado, Iosif Kotek. Originalmente, era para ser o andamento lento do concerto, mas o compositor pô-lo de parte, compondo em seu lugar uma Canzonetta.

No dia 16 de Maio, regressado à Rússia, começou a trabalhar numa obra em três partes para violino e piano, a única vez que compôs para essa combinação de instrumentos. No dia 25 de Maio, Tchaikovsky partiu para Brailovo, a casa de campo da sua mecenas Nadezhda von Meck, onde concluiu a obra no dia 31 de Maio.

Para o primeiro andamento, usou a Méditation descartada, reorquestrada para violino e piano. As duas peças (a Méditation e a Canzonetta), são bem da mesma veia melódica, dessa elegia por vezes simples no seu enunciado mas profundamente pungente na sua finalidade expressiva. Os restantes andamentos, Scherzo e Mélodie, foram compostos após Tchaikovsky ter terminado o Álbum para Crianças em Maio de 1878. O Scherzo tem a aparência rítmica de uma tarantela, na qual a vitalidade rítmica ofegante lembra tudo o que Tchaikovsky deve a Schumann: uma mesma angústia febril, um mesmo sentido de evocações fantásticas.

Mas a parte central do Scherzo constitui um contraste notável e é um Tchaikovsky mais mundano que aí surge, com uma melodia docilmente dançante que poderia ter saído de qualquer cena de um ballet. No finale, Mélodie, o compositor renuncia à bravura habitual dos andamentos conclusivos, substituindo-a por uma serenidade melodiosa que, após a densidade emocional dos andamentos precedentes, traz um bem-vindo raio de luz.

O compositor, ao deixar Brailovo, deixou o manuscrito original da obra ao encarregado da propriedade, Marcel, para ser entregue a Nadezhda von Meck, em sinal de gratidão. Numa carta à sua mecenas, escreve:

“Deixei as minhas peças, dedicadas a Brailovo, a Marcel para lhas entregar… Na minha opinião, a primeira é a melhor, mas foi a que me deu mais trabalho. Ao entregá-las a Marcel, fui acometido de uma melancolia indescritível, que permaneceu em mim até este momento; os lilases ainda em flor, a relva ainda por cortar e as roseiras apenas a começarem a florir!” Na mesma carta, o compositor pediu a Nadezhda von Meck que providenciasse uma cópia da obra, a qual foi feita por Władysław Pachulski, um membro da casa von Meck, e enviada a Tchaikovsky em Setembro desse ano. Enviou então a cópia ao seu editor, Pyotr Jurgenson, que publicou as obras em Maio de 1879, como Op. 42, tendo Tchaikovsky declarado na ocasião “estar extremamente encantado com a edição”. Em 1880, Méditation foi publicada separadamente, e tornou-se desde então conhecida como uma peça independente. Scherzo e Mélodie foram publicados em Abril de 1884. Em 1896 Jurgeson publicou a obra completa num arranjo para violino e orquestra de Alexander Glazunov, e nesta forma tornou-se talvez mais conhecida do que na sua forma original para violino e piano. Em 1908, foi lançada uma nova edição das peças para violino e piano, editada por Leopold Auer.

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Souvenir d’un lieu cher, Op. 42
Julia Fischer (violino), Yakov Kreizberg (piano) – Pentatone, 2016
30 Jun 2020

A Abertura Solene

[dropcap]A[/dropcap] Abertura Solene Para o Ano de 1812 em Mi bemol Maior, Op. 49, conhecida por Abertura 1812, de Tchaikovsky, tornou-se uma das obra mais populares do compositor, em conjunto com os seus ballets O Quebra-nozes, A Bela Adormecida e Lago dos Cisnes. A abertura comemora o fracasso da invasão francesa da Rússia em 1812 e a subsequente devastação do “Grande Armée” de Napoleão. De carácter altamente nacionalista, é também conhecida pela sua sequência de tiros de canhão que é, em alguns concertos ao ar livre, executada com canhões verdadeiros.

Foi encomendada a Tchaikovsky pelo director de concertos da Sociedade Imperial Russa e amigo e mentor do compositor, Nicolai Rubinstein, tendo em mente os 25 anos da coroação do Czar Alexandre II, em 1881, e a abertura da Exposição Universal das Artes e Indústrias em Moscovo, em 1882. A abertura da Exposição coincidiria também com a consagração de uma nova catedral cristã ortodoxa, a Catedral de Cristo Salvador, mandada erigir pelo Imperador Alexandre I para comemorar o fracasso da invasão, em honra dos soldados russos mortos, situada a algumas centenas de metros a sul do Kremlin, e que levou mais de 40 anos a construir. A catedral, que ostentava um sino gigante de 24 toneladas, seria apenas inaugurada no dia 26 de Maio de 1883, com a coroação do Imperador Alexandre III, sendo dinamitada em 1931 por ordem de Stalin, por ser um símbolo do Czarismo, para dar lugar ao colossal Palácio dos Sovietes, que iria albergar o Soviete Supremo da URSS, o maior edifício do mundo, mas cuja construção não chegaria a ser concluída, devido à invasão alemã em 1941. A igreja foi reconstruída a seguir à dissolução da União Soviética, entre 1995 e 2000, à semelhança da original.

Embora não apreciasse particularmente este tipo de encomenda, como confessou numa carta à sua patrona Nadezhda von Meck, Tchaikovsky aceitou-a e começou a trabalhar no projecto em Outubro de 1890, concluindo-o em seis semanas.

Napoleão era um general temido e o exército francês era considerado imbatível. Em 1812, a França invadiu a Rússia na tentativa de forçar Alexandre I a entrar no delicado sistema de alianças de Napoleão e, mais especificamente, aderir ao Bloqueio Continental. Todavia, a Campanha da Rússia terminou na retirada do exército francês. Complicações da campanha, como por exemplo o alongamento das linhas de suprimento e a presença de um exército imperial russo cada vez maior e melhor preparado, resultaram na destruição do exército, que de 600.000 homens, foi reduzido a 40.000. Alguns russos consideraram mesmo que houvera uma ‘intervenção divina’ a favor da Rússia.

A Abertura 1812 começa com um coro inspirado no hino Deus ajude o vosso povo, da Igreja Ortodoxa Russa e baseia-se no antagonismo entre a vitória francesa inicial e a posterior revanche russa, contrapondo o hino da Rússia e o hino da França. Este país é musicalmente representado pelo tema de La Marseillaise, hino da Revolução Francesa. A vitória russa posterior, no mês seguinte, é representada por um diminueto do hino czarista Deus Salve o Czar e é seguido pelo sonoro troar de canhões. A obra inclui ainda fragmentos do folclore russo e temas religiosos.

Após a Revolução dos sovietes e a consequente extinção do hino czarista, a abertura sofreu modificações, sendo o tema original substituído pelo coro final da ópera Ivan Susanin, de Mikhail Glinka, cujo nome original é “A Vida pelo Czar”, modificação também realizada por ordem do regime soviético.

Na sua forma completa, a peça é executada por coro, orquestra sinfónica e banda militar com o auxílio de peças de artilharia e carrilhão. Em execuções em salas fechadas, costuma-se substituir os canhões por tímpanos (tambores), a fim de se obter um efeito semelhante ao do disparo das peças.

A abertura foi estreada em Moscovo no dia 20 de Agosto de 1882, dirigida por Ippolit Al’tani debaixo de uma tenda levantada perto da inacabada Catedral de Cristo Salvador.

Tchaikovsky em pessoa dirigiu a obra na cerimónia de consagração do Carnegie Hall em Nova Iorque, uma das primeiras vezes que um compositor europeu importante visitou os Estados Unidos. Curiosamente, tornou-se também um acompanhamento frequente de exibições de fogo-de-artifício no Dia da Independência dos Estados Unidos.

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: 1812 Overture in E-flat minor, Op. 49
Ochestra of the Mariinsky Theatre, Valery Gergiev – Mariinsky, 2009
23 Jun 2020

O “Souvenir de Florença”

[dropcap]O[/dropcap] Sexteto de Cordas em Ré menor “Souvenir de Florence”, Op. 70  de Tchaikovsky, orquestrado para 2 violinos, 2 violas, e 2 violoncelos, foi composto no Verão de 1890, em resposta à sua nomeação como Membro Honorário da Sociedade de Música de Câmara de S. Petersburgo. A obra, na forma tradicional em quatro andamentos, foi intitulada “Souvenir de Florence” devido ao facto de o compositor ter esboçado um dos seus temas principais quando esteve em Florença no início de 1890, por um período de três meses, onde compôs a ópera Rainha de Espadas. O trabalho decorreu célere, e seis semanas após regressar a S. Petersburgo, a ópera estava terminada. “Sinto-me terrivelmente, tremendamente cansado!!” escreveu Tchaikovsky ao seu primo “e de que preciso agora para voltar ao normal? De me divertir, de fazer uma farra? Nem pensar! Vou começar imediatamente a trabalhar numa obra de grandes dimensões, mas completamente diferente; um sexteto de cordas.”

A composição de “Souvenir de Florence” não foi fácil. Numa carta ao seu irmão Modest, Tchaikovsky confessa: “Componho com um esforço incrível, não pela falta de ideias, mas pela novidade da forma. Devem existir seis partes independentes e ao mesmo tempo homogéneas”. Escreve ainda ao seu amigo Alexander Ziloti: “Sinto-me constantemente como se estivesse na verdade a escrever para orquestra e apenas a arranjar [a obra] de novo para seis instrumentos de cordas”. Talvez Tchaikovsky nunca tenha resolvido este problema. Os intérpretes da obra hoje ainda enfrentam as exigências contraditórias de uma abordagem orquestral ou solista; no entanto, este facto encoraja-os a adoptarem um estilo virtuoso que ajudou a colocar o Sexteto entre as obras mais populares no repertório de música de câmara.

A obra, dedicada à sua patrona Nadezhda bon Meck, foi esboçada em menos de duas semanas e orquestrada integralmente em 11 dias adicionais, tendo sido estreada em privado em S. Petersburgo no dia 7 de Dezembro de 1890, mas nem o compositor nem os músicos que estavam presentes ficaram inteiramente satisfeitos com a partitura. Após a primeira apresentação pública três dias mais tarde, na Sociedade de Música de Câmara de São Petersburgo, Tchaikovsky resolveu pô-la de lado. Um ano mais tarde, entre Dezembro de 1891 e Janeiro de 1892, reviu a obra, alterando sobretudo o terceiro e quarto andamentos, antes da segunda estreia que ocorreu no dia 6 de Dezembro de 1892, na Sociedade Musical Imperial Russa em S. Petersburgo, sob a direcção do violinista, maestro e compositor húngaro Leopold Auer.

Toda a obra tem um cariz preponderantemente russo. O primeiro andamento, Allegro con spirito, concebido em 1887 pouco depois de Tchaikovsky ter concluído a sua ópera A Feiticeira, apresenta uma textura rica e transpira intrepidez e entusiasmo. Escrito na forma sonata e sem introdução, inicia-se com o tema principal, bastante vigoroso embora melódico, em Ré menor, contrastado mais tarde por um segundo tema, na tonalidade dominante de Lá Maior, muito mais calmo, possivelmente a única melodia na obra cuja leveza apresenta um lirismo italiano, procedendo então para o desenvolvimento e recapitulação, que termina com uma coda rápida.

O andamento lento, Adagio cantabile e con moto, em Ré Maior, abre com uma versão lenta do tema principal do primeiro andamento, que evolui para uma melodia elegante e romântica inicialmente tocada pelo violino com acompanhamento de pizicatto antes de ser tomada pelo violoncelo. Na sequência de uma interrupção por um interlúdio para todos os instrumentos, o tema regressa para uma repetição da primeira secção.

Os últimos dois andamentos, Allegro moderato e Allegro con brio e vivace, com as suas melodias e ritmos distintamente russos e folclóricos, contrastam grandemente com os anteriores, sobretudo o trio do terceiro andamento que nos lembra que Tchaikovsky tinha as danças de O Quebra-Nozes na cabeça, e foi a secção central fugato do finale que levou o compositor a admitir: “É terrível quão radiante estou com a minha própria obra…”.

 

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: String Sextet in D minor, Op. 70
Yuri Bashmet (violin), Valentin Berlinsky (cello), Dominant Quartet – Artservice, 2004

16 Jun 2020

A “Grande Sonata”

[dropcap]T[/dropcap]chaikovsky compôs a Grande Sonata para Piano em Sol Maior, Op. 37 em 1878. Embora inicialmente recebida com grande aclamação da critica, foi com grande esforço que a sonata manteve uma posição sólida no repertório moderno. Não obstante, a obra, dedicada ao pianista virtuoso alemão Karl Klindworth, é reconhecida como uma das obras-primas do compositor.

A sonata foi composta em Clarens, na Suíça, e em Kamenka, na Ucrânia, entre Março e Abril de 1878, na mesma altura do Concerto para Violino em Ré Maior. Em cartas dirigidas ao seu irmão mais novo Anatolli, e à sua patrona Nadezhda von Meck, Tchaikovsky queixou-se das dificuldades que enfrentou ao escrever a sonata: “Estou a trabalhar numa sonata para piano… e a sua composição não está a ser fácil… trabalhei sem sucesso, com pouco progresso… tenho que voltar a forçar-me a trabalhar, sem muito entusiasmo e não percebo porquê, apesar de tantas circunstâncias favoráveis, não estou com disposição para o trabalho… tenho que extrair a custo de mim próprio ideias fracas e débeis, e ruminar sobre cada compasso. Mas vou insistir e esperar que a inspiração surja subitamente.” Nadezhda von Meck, mulher de negócios russa e patrona das artes, é hoje mais conhecida pela sua relação artística com Tchaikovsky, apoiando-o financeiramente durante 13 anos, para que o compositor pudesse dedicar-se à composição a tempo inteiro, tendo no entanto estipulado que jamais se poderiam encontrar. Tchaikovsky dedicou-lhe a sua Quarta Sinfonia. Von Meck apoiou também vários outros músicos, incluindo Nikolai Rubinstein e Claude Debussy.

Quando o amigo de Tchaikovsky, o violinista Iosif Kotek, chegou a Clarens, os esforços do compositor depressa se concentraram no Concerto para Violino e o trabalho na sonata foi interrompido. Tchaikovsky retomou-o em meados de Abril, já em Kamenka, e completou a obra antes do final do mês. Foi estreada num concerto na Sociedade Musical Russa pelo seu amigo e pianista Nikolai Rubinstein, para grande regozijo de compositor: “A Sonata foi tocada com uma perfeição tão inatingível que não poderia ter ficado na sala para escutar algo mais, por isso abandonei-a completamente extasiado.”

A obra foi mais tarde novamente executada por Rubinstein e recebeu elogios da crítica, sendo publicada por Pyotr Jurgenson em 1879. Em quatro andamentos, tem um carácter distintamente sinfónico. Estruturalmente, os andamentos são ligados pelo “Grande Tema” apresentado no primeiro andamento, embora expresso numa variedade de contextos. O primeiro andamento está escrito na forma-sonata comum, e o compositor usa uma gama de técnicas para imitar as cores orquestrais. Os temas apresentados são indubitavelmente russos, mas a observância da tradição musical ocidental é ainda prevalecente.

O segundo andamento é um melancólico Andante que dá credibilidade ao talento natural de Tchaikovsky para o lirismo. É consideravelmente mais longo que os andamentos que o precedem.

O terceiro andamento é um Scherzo breve e com ritmo acelerado, e pressagia algumas das técnicas usadas mais tarde por Sergei Rachmaninoff e Alexander Scriabin, principalmente na sua direcção melódica.
O quarto e último andamento é um galopante Allegro muito mais característico do estilo musical de Tchaikovsky. Após secções difíceis a sonata encerra com uma exuberante coda.

 

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Grand Piano Sonata in G Major, Op. 37
Sviatoslav Richter (piano) – Naxos, 2012

9 Jun 2020