O “triplo concerto”

[dropcap]T[/dropcap]chaikovsky compôs o seu segundo concerto para piano, muito menos conhecido que o primeiro, entre Outubro de 1879 e Abril de 1880. Muitos anos antes, o compositor, que era um sinfonista, havia dito ao seu amigo e também compositor e crítico musical russo Hermann Laroche, que nunca escreveria um concerto para piano, porque não podia tolerar o som de piano e orquestra juntos.

Embora Tchaikovsky tenha resolvido isso muito bem no Primeiro Concerto para Piano, intercalou cada vez mais passagens para o solista, do tipo cadência, nos andamentos dos seus trabalhos posteriores para piano e orquestra.

Por outro lado, o facto do pianista Nikolai Rubinstein, após as suas duras críticas iniciais ao primeiro concerto, ter feito as pazes com o compositor, aprendendo e executando a obra, aumentou bastante a sua popularidade. Tchaikovsky sentiu-se compelido a retribuir e começou a compor um novo concerto para piano, enquanto passava um período com a sua irmã em Kamenka, na Rússia. Nessa ocasião, escreveu o seguinte à sua patrona, a mulher de negócios russa Nadezhda von Meck: “Quero dedicar (o novo trabalho) a NG Rubinstein em reconhecimento pela sua magnífica apresentação do meu Primeiro Concerto e da minha Sonata, que me deixou em êxtase total”.

A escrita foi rápida. Em Março de 1880 Tchaikovsky já havia concluído e orquestrado o concerto. Ainda assim, estava preocupado com a reacção de Rubinstein, escrevendo novamente a von Meck: “Tremo só de pensar nas críticas que posso ouvir novamente de Nikolai Grigoryevich, a quem este concerto é dedicado.

Ainda assim, mesmo que ele critique mais uma vez mas o apresente de maneira brilhante, como ao Primeiro Concerto, não me importarei, mas seria bom que, nesta ocasião, o período entre a crítica e a apresentação fosse menor”.

Tchaikovsky preocupou-se em vão. A reacção de Rubinstein foi, desta vez, compreensivelmente cautelosa. Sugeriu com tacto que talvez a parte solo fosse episódica, muito envolvida em diálogo com a orquestra em vez de ficar em primeiro plano, mas acrescentando: “… como eu digo tudo isto mal tendo tocado o concerto de uma vez, talvez esteja errado.” Tchaikovsky rejeitou as críticas de Rubinstein, mas sem qualquer rancor, e dedicou-lhe a obra. Rubinstein insistiu na estreia para se redimir das duras críticas feitas ao primeiro concerto, mas estava destinado a nunca o tocar, pois faleceu em Março de 1881 e a obra nunca alcançou grande popularidade.

Nos concertos para piano de Tchaikovsky, frequentemente o piano não é solista mas apenas mais um instrumento. Isto pode ouvir-se claramente no segundo andamento do Segundo Concerto para Piano, que contém solos proeminentes para violino e violoncelo, tornando-o um concerto para trio de piano e orquestra, brevemente, embora a edição de Alexander Siloti, seu aluno e tio de Rachmaninoff, outrora popular, tenha suprimido grandes secções, incluindo esses solos. Siloti propôs inicialmente uma série de mudanças na partitura, mas Tchaikovsky resistiu a essas ideias. Mas à medida que o tempo avançava, concordou com algumas. No entanto, a versão que Siloti publicou em 1897, quatro anos após a morte de Tchaikovsky, incluía cortes e transposições com os quais Tchaikovsky havia discordado fortemente. No entanto, essa versão tornou-se a versão padrão por muitos anos. Felizmente que as duas versões chegaram até nós.

O Concerto para Piano e Orquestra n.º 2 em Sol Maior, op. 44 foi, assim, estreado em Nova Iorque no dia 12 de Novembro de 1881, com Theodore Thomas a dirigir a New York Philharmonic e Madeline Schiller ao piano. A estreia na Rússia ocorreu em Moscovo em Maio de 1882, dirigida por Anton Rubinstein com o aluno de Tchaikovsky, Sergei Taneyev, ao piano. Tchaikovsky também escreveu um arranjo da obra para dois pianos entre Janeiro e Fevereiro de 1880.

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Piano Concerto No. 2 in G Major, Op. 44
Boris Berezovsky (piano), Sinfonia Varsovia, Alexander Verdenikov – Mirare, 2013

2 Jun 2020

“Música que fedia ao ouvido”

[dropcap]O[/dropcap] Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior, Op. 35 de Pyotr Ilyich Tchaikovsky é um dos concertos para violino mais populares, e também considerado um dos mais difíceis para o instrumento. A obra foi escrita em Março de 1878 em Clarens, um local de férias na margem do Lago Genebra, na Suíça, onde Tchaikovsky foi recuperar-se de uma depressão causada pelo seu desastroso matrimónio de seis semanas com a sua ex-aluna Antonina Miliukova, que inclusive o levou a uma tentativa de suicídio. Aí concluiu a sua Sinfonia nº 4 e a sua ópera Eugene Oneguin. Em Clarens, Tchaikovsky recebeu a visita do seu antigo aluno de composição, violinista e possivelmente amante Iósif Kotek. Os dois tocavam obras para violino e piano juntos, o que pôde ser o catalisador para a composição do concerto.

Consta que uma das obras que Kotek lhe levou foi a Sinfonia española de Édouard Lalo, que o inspirou a criá-lo. Tchaikovsky não era violinista e foi assessorado por Kotek na composição da parte solista. Fez rápidos progressos, esboçando a obra em 11 dias e terminando-a ao fim de um mês, embora o andamento central tenha sido completamente revisto, pois Kotek e o irmão mais novo de Tchaikovsky, Modest, consideraram-no fraco.

Kotek não tinha ainda prestígio suficiente para estrear a obra, pelo que Tchaikovsky inicialmente ofereceu a estreia ao seu amigo Leopold Auer e concordou dedicá-la ao violinista. No entanto, Auer recusou, argumentando que a obra era intocável, por ser demasiado difícil, o que feriu profundamente o compositor, e a estreia planeada para Março de 1879 foi adiada sine dia. Alguns anos antes, o seu amigo e colega Nikolái Rubinstein tinha também recusado estrear o seu Concerto para Piano n.º 1. Passaram-se dois anos e, um dia, o editor de Tchaikovsky informou-o que um jovem violinista, Adolf Brodsky, tinha aprendido o concerto e persuadido o maestro Hans Richter e a Filarmónica de Viena a tocá-lo em concerto. Tchaikovsky alterou a dedicatória para Auer e o concerto foi estreado no dia 4 de Dezembro de 1881, em Viena, na Áustria, mas pouco ensaiado e pobremente acompanhado. A reacção da crítica foi mista, e a obra certamente não foi recebida como a obra-prima que é considerada hoje. O influente crítico alemão Eduard Hanslick, presente na estreia, considerou-o “longo e pretensioso” e escreveu que não supunha que pudesse haver música que “fedia ao ouvido.” Tchaikovsky nunca ultrapassou esta crítica.

O Concerto para Violino e Orquestra em Ré Maior, Op. 35 de Tchaikovsky possui três andamentos. O primeiro (Allegro moderato) inicia-se com uma breve introdução da orquestra, seguida por um pequeno trecho em que o violino toca a solo, preparando a entrada do tema principal (Moderato assai). O violino apresenta os temas em passagens extremamente virtuosísticas, ficando a orquestra encarregada de reapresentá-los logo a seguir. Já para o fim do andamento, o violino inicia uma longa e virtuosa cadência, escrita pelo compositor.

Logo a seguir, numa passagem extremamente suave nas cordas, a flauta anuncia o tema principal. Tem início a reexposição temática, que conduz à explosão do tutti final.

O segundo andamento, uma Canzonetta (Andante), inicia-se com um belo coral apresentado pelas madeiras. Este coral não apenas prepara a entrada do solista como conclui o andamento criando, assim, uma moldura onde solista e orquestra travam um belíssimo diálogo musical.

O finale (Allegro vivacissimo) deve ser atacado logo após o segundo andamento, sem intervalo. Com temas eslavos e um jogo constante de acelerar e desacelerar, o terceiro andamento parece uma festa cigana onde o violino toca como se estivesse a improvisar o tempo todo. Este andamento incomodou profundamente Hanslick. Para ele, a maneira directa com que Tchaikovsky cria a atmosfera festiva cigana era obscena e incivilizada: “quando se escuta esta música é possível ver uma série de rostos selvagens, ouvir o seu linguajar bárbaro e sentir o cheiro de álcool”. Talvez para ele, e para os vienenses da época, isto fizesse sentido. Mas não é mais que uma música divina e encantadora, com um sabor exótico de um mundo distante.

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Violin Concerto in D Major, Op. 35
Vadim Repin (violin), Kirov Orchestra, Valery Gergiev – Virgin Classics, 2003

26 Mai 2020

A sinfonia “patética”

[dropcap]U[/dropcap]ma das obras mais conhecidas do compositor russo do período romântico Pyotr Tchaikovsky é a Sinfonia no 6 em Si menor, Op. 74, a sua última sinfonia, composta entre Fevereiro e Agosto de 1893. Foi também a sua última obra publicada ainda em vida e a última que o compositor dirigiu. A estreia ocorreu em São Petersburgo, no dia 28 de Outubro de 1893, uns escassos dias antes da sua morte, de causas até hoje não comprovadas. A sinfonia é dedicada ao seu sobrinho Vladimir “Bob” Davydov.

As circunstâncias que a envolvem e as próprias características da composição – quase sempre sombria com explosões de fúria e de grande lirismo, atribuem-lhe um significado quase autobiográfico. Os poucos factos que se conhecem e que podem ajudar na procura de uma verdade mais factual, ainda que porventura menos romântica, são relativamente escassos. Sabe-se que o compositor a intitulou “pathétique”, apesar de ter sido aparentemente sobre proposta do seu irmão Modest. Tchaikovsky queria dar com esta indicação a noção de que esta era uma obra para ser ouvida “com o coração”, uma obra que pretendia desencadear emoções fortes.

O primeiro andamento (Adagio–Allegro non troppo), em Si Menor, começa com um adagio e é uma verdadeira montanha russa de emoções, cheia de tensão, com passagens sombrias lentas, outras igualmente sombrias mas rápidas que formam um conjunto notável com duas belíssimas melodias, sobretudo o segundo tema do desenvolvimento.

O segundo andamento (Allegro com grazia), em Ré Maior, apresenta uma extraordinária melodia que contrasta com o primeiro andamento e que serve de contraponto à tensão exercida. É um andamento de tom relativamente alegre, mas que nunca deixa a sensação do destino que se pode abater a qualquer instante. Acalma mas não o suficiente para nos tranquilizar completamente.

O terceiro andamento (Allegro molto vivace), em Sol Maior, é uma espécie de marcha, sem no entanto ser verdadeiramente triunfante, tal como o segundo andamento poderia ser uma alegre valsa sem nunca realmente o ser, nem pelo tempo, que não é exactamente o de uma valsa, nem pelo espírito. Dir-se-ia que Tchaikovsky, nestes dois andamentos, procura transmitir-nos metaforicamente a instabilidade, o frágil equilíbrio em que repousa a nossa felicidade e o todo poderoso destino ao qual nos abandonamos. Aliás, este andamento acaba de tal forma que faz parecer que a sinfonia terminou.

O quarto andamento (Finale. Adagio lamentoso), em Si Menor, retoma assim, novamente, o tom lúgubre do primeiro, anunciando a vitória do implacável destino.

É claramente uma sinfonia que admite múltiplas leituras. Uns autores estudam-na do ponto de vista de uma válvula de escape da homossexualidade reprimida de Tchaikovsky. Ao que parece, o compositor tinha uma relação platónica nada menos que com o seu sobrinho “Bob”, o dedicatário da sinfonia. A sensualidade que a sinfonia desprende é interpretada como uma sublimação desse amor proibido. A ninguém escapa que a sinfonia trata o tema do destino. A obra parece alimentar a ideia de que, de alguma maneira, quem sabe na nossa ingenuidade, podemos desafiar, até apostar, com o destino. Oscilamos entre uma compreensão clara do nosso destino, como nos temas do desespero do quarto andamento, até ao optimismo cego, como na marcha do terceiro andamento, passando por uma profunda compaixão pela nossa condição, como no tema da consolação do último andamento.

Com a Sexta, Tchaikovsky cria uma nova forma para a sinfonia, numa das mais audaciosas e ousadas jogadas musicais do séc. XIX. O lento e lúgubre finale vira de pernas para o ar todo o paradigma sinfónico, e muda com uma penada a possibilidade do que uma sinfonia deveria ser: em vez de terminar num tom jubiloso e de alegria, a Sexta Sinfonia termina com uma dor pessoal, privada e íntima.

Tchaikovsky estava mais que satisfeito e confiante com esta sinfonia – mas, como era tantas vezes e com tanta crueldade o caso, a recepção crítica que recebeu foi decididamente abafada. Descrita por alguns como a sua despedida da vida, na realidade nunca saberemos exactamente o que inspirou a obra. No entanto, podemos ter a certeza de que se trata de uma das criações mais adoradas do compositor, sem o exemplo da qual muitos compositores que se lhe seguiram, como Mahler, Shostakovich, Sibelius e muitos outros, não poderiam ter composto as sinfonias que compuseram.

 

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Symphony No. 6 in B minor, Op. 74
Russian National Orchestra, Mikhail Pletnev – Virgin Classics, 1991

19 Mai 2020

Concerto para Piano e Orquestra no 1 em Si bemol menor, Op. 23

[dropcap]N[/dropcap]o dia 7 de Maio assinala-se o 180o aniversário do nascimento do compositor russo do período romântico Pyotr Ilyitch Tchaikovsky.

Nascido em 1840 em São Petersburgo e embora musicalmente precoce, Tchaikovsky foi educado para uma carreira na administração pública. Na sua juventude, as oportunidades de desenvolver uma carreira musical na Rússia eram escassas, não existindo educação pública nessa área. Assim que surgiu uma chance para esse tipo de formação, Tchaikovsky ingressou no então novo Conservatório de São Petersburgo, onde se formou em 1865. A formação que recebeu nessa instituição, orientada para o estilo musical do Ocidente, destacou-o dos compositores do movimento nacionalista da época, cujos principais representantes eram os compositores do Grupo dos Cinco, composto por Balakirev, Borodin, Cui, Mussorgsky e Rimsky-Korsakov. A sua formação levou-o a reconciliar o que aprendera com as tradições musicais nativas de seu país, às quais havia sido exposto desde a infância. Dessa reconciliação, forjou um estilo musical pessoal, mas inconfundivelmente russo, uma tarefa particularmente desafiadora, visto que os princípios que governavam a melodia, a harmonia e outros fundamentos da música tradicional russa, diferiam grandemente daqueles que governavam a música da Europa Ocidental, aparentemente negando o possível uso da música russa em composições ocidentais em larga escala ou a formação de um estilo híbrido. Além disso, a cultura russa exibia uma personalidade dividida, com os seus elementos nativos e importados distanciando-se cada vez mais desde a época de Pedro, o Grande, e isso resultara em incertezas, no seio da intelligentsia russa, a respeito da identidade nacional do país. Essa ambiguidade teve importantes reflexos na carreira de Tchaikovsky e levou a uma série de conflitos pessoais que prejudicaram a sua autoconfiança.

No entanto, Tchaikovsky foi o primeiro compositor russo a conquistar fama internacionalmente e a sua carreira foi impulsionada pelas suas actuações como regente convidado em países da Europa e nos Estados Unidos, o que levou a que fosse homenageado pelo Imperador Alexandre III da Rússia, em 1884, recebendo uma pensão vitalícia. Apesar dos seus muitos sucessos musicais, a vida de Tchaikovsky foi pontuada por crises pessoais e pela depressão. Factores que contribuíram para isso incluem também a sua separação precoce da sua mãe, seguida da morte prematura desta; a morte do seu amigo e colega Nikolai Rubinstein; o seu desastroso casamento; e o colapso do único relacionamento duradouro de sua vida adulta, que foi a sua associação de treze anos com a sua patrona, a rica viúva Nadejda von Mekk. A sua homossexualidade, que manteve em sigilo e temia causasse danos à reputação dos seus amigos e família, tradicionalmente tem sido considerada um factor importante. A morte súbita de Tchaikovsky, aos 53 anos, é geralmente atribuída à cólera, mas existe um debate em curso sobre se essa foi de facto a causa da sua morte, e se esta foi acidental ou auto-infligida.

Inicialmente, as opiniões da crítica a respeito da música de Tchaikovsky foram contraditórias. Embora desde cedo tivesse encontrado apoiantes, parte da crítica russa considerava a sua música insuficientemente representativa dos valores musicais nativos do seu país, e expressava a suspeita de que os europeus a apreciavam por conta dos seus elementos ocidentais. Num aparente reforço disso, críticos europeus elogiaram-no por oferecer uma música mais substantiva do que a das correntes exóticas russas, e afirmaram que ele transcendera os estereótipos da música clássica do seu país. Outros, como o americano Harold C. Schonberg, consideraram a sua música “desprovida de pensamentos elevados”, e desmereceram os seus trabalhos por não seguirem estritamente os princípios musicais ocidentais. Apesar dessa ambiguidade inicial, a percepção da crítica a respeito de sua obra melhorou gradualmente, sobretudo após a sua morte. Além disso, a música de Tchaikovsky encontrou duradoura popularidade junto ao público, permanecendo um dos compositores mais frequentemente executados. As suas obras mais conhecidas incluem os ballets O Lago dos Cisnes, O Quebra-Nozes e A Bela Adormecida; a Abertura 1812 e a abertura-fantasia Romeu e Julieta; os seus concertos para piano e orquestra e para violino e orquestra; as suas quarta, quinta e sexta sinfonias; a sua Marcha Eslava; e as suas óperas Yevgeny Onegin e A Dama de Espadas.

O Concerto para Piano e Orquestra nº 1 em Si bemol menor, op. 23, foi escrito entre Novembro de 1874 e Fevereiro de 1875, e foi revisto pela primeira vez em 1879 e pela segunda vez em Dezembro de 1888. A versão original teve a sua estreia em Boston, nos EUA, no dia 25 de Outubro de 1875, regida por Benjamin Johnson Lang, com Hans von Bülow ao piano, a quem Tchaikovsky dedicou o concerto.

Os atroadoramente triunfantes acordes de abertura deste poderoso concerto estão entre os mais famosos em toda a música clássica. No entanto, quando foram compostos, não foram de forma alguma universalmente apreciados. Quando Tchaikovsky os tocou para o seu amigo Nicolai Rubinstein, este declarou que eram “triviais e vulgares”. Todos os três andamentos deste profundamente expressivo concerto são sublimemente românticos. O expansivo e arrebatador andamento de abertura é aparatoso; o andamento intermédio, entretanto, apresenta melodias sentimentais e uma bela interação entre solista e orquestra; e o excitante finale é um electrizante estremecimento do princípio ao fim.

Cerca de 80 anos após Tchaikovsky ter esboçado as suas ideias iniciais para o seu primeiro concerto para piano e orquestra, este tornou-se a primeira obra de música clássica a vender um milhão de discos quando, em 1958, o pianista americano Van Cliburn, vencedor da primeira edição do Concurso Tchaikovsky em Moscovo, em plena Guerra Fria, deslumbrou o mundo com a sua apaixonante gravação da obra.

Sugestão de audição:
Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Piano Concerto No. 1 in B minor, Op. 23
Van Cliburn (piano), RCA Victor Symphony Orchestra, Kirill Kondrashin – RCA Victor, 1993

5 Mai 2020

Que destino?

[dropcap]A[/dropcap] Quinta Sinfonia de Ludwig van Beethoven é uma das composições mais populares e mais conhecidas em todo o repertório da música erudita europeia, além de ser uma das sinfonias mais executadas hoje em dia. Trata-se da primeira sinfonia de Beethoven composta em tonalidade menor, o que só voltaria a acontecer em 1824 com a Sinfonia n.º 9, em Ré menor op. 125. A Sinfonia n.º 5 em Dó menor é ainda hoje considerada um “monumento” da criação artística. O escritor e crítico musical E. T. A. Hoffmann descreveu-a como “uma das obras mais importantes de todos os tempos”.

Beethoven fixou-se em Viena, a capital austríaca, em 1792. Em 2 de Abril de 1800, a sua Sinfonia nº 1 em Dó maior, Op. 21 é estreada nessa cidade. Porém, no ano seguinte, o compositor confessa aos amigos que não está satisfeito com o que tinha composto até então, e que tinha decidido seguir “um novo caminho”.

Finalmente, entre 1802 e 1804, começa a trilhar esse ambicionado caminho, com a apresentação da Sinfonia nº 3 em Mi bemol Maior, Op. 55, intitulada “Heróica”, em 1805, uma obra sem precedentes na história da música sinfónica, e que marca o início do período Romântico na história da música. Os anos seguintes à “Heróica” foram de extraordinária fertilidade criativa, e viram surgir numerosas obras-primas: a Sonata para Piano nº 21 em Dó maior, Op. 53, intitulada Waldstein, entre 1803 e 1804; a Sonata para Piano nº 23 em Fá menor, Op. 57, intitulada Appassionata, entre 1804 e 1805; o Concerto para Piano nº 4 em Sol Maior, Op. 58, em 1806; os Três Quartetos de Cordas, Op. 59, intitulados Razumovsky, em 1806; a Sinfonia nº 4 em Si bemol Maior, Op. 60, também em 1806; o Concerto para Violino em Ré Maior, Op. 61, entre 1806 e 1807; e a Sinfonia nº 5 em Dó Menor, Op. 67, entre 1807 e 1808.

A Quinta Sinfonia teve um largo processo de maturação. Os primeiros esboços datam de 1804, após a conclusão da Terceira Sinfonia. No entanto, Beethoven interrompeu o seu trabalho na Quinta para trabalhar noutras composições, nomeadamente as citadas e ainda na Missa em Dó Maior. A preparação final da obra foi levada em paralelo com a Sexta Sinfonia, que foram estreadas no mesmo concerto. Quando Beethoven a compôs já estava a chegar aos 40 anos e a sua vida pessoal estava marcada pela angústia que lhe causava o aumento da sua surdez mas, apesar disso, tinha entrado num processo imparável de “fúria criativa”. A Europa estava decisivamente marcada pelas guerras napoleónicas, a agitação política na Áustria e a ocupação de Viena pelas tropas de Napoleão em 1805.

A obra passou à história como “Sinfonia do Destino”, começando com o distintivo motivo de quatro notas ‘curto-curto-curto-longo’ (ta-ta-ta-taa), repetido duas vezes. Este título deve-se ao secretário e biógrafo de Beethoven, Anton Schindler. Segundo Schindler, quando perguntou ao compositor pelas quatro contundentes notas do início da Quinta Sinfonia, Beethoven respondeu: “Assim toca o destino à porta”. Jens Dufner, musicólogo do Arquivo Beethoven de Bona, no entanto, não dá demasiada credibilidade às palavras de Schindler. “Anton Schindler é uma figura duvidosa”, refere. “Embora tenha sido uma testemunha directa do que se pode tomar como sério, apresentou a sua relação com Beethoven de maneira diferente da que realmente era. Com o passar do tempo foi-se esforçando por fazer parecer que tinha uma relação muito estreita com o compositor e foi adornando os seus relatos com acontecimentos inexistentes”, assegura Dufner. Ao contrário da Quinta, a Sexta Sinfonia, sim, tem um título dado pelo próprio compositor. Em 1809, Beethoven comunica ao seu editor que o título da Sinfonia em Fá Maior é “Sinfonia  Pastoral”. Isto é algo que está bem documentado”, diz Dufner, “o que não sucede com a Quinta e o suposto título do destino”.

A obra foi estreada no dia 22 de Dezembro de 1808 no Theater an der Wien, num monumental concerto de quatro horas que consistia exclusivamente em estreias de Beethoven, e que foi dirigido pelo próprio compositor.​ As duas sinfonias apareceram no programa numeradas ao contrário da ordem pela qual as conhecemos hoje: a Sexta foi a primeira e a Quinta apareceu na segunda metade.

Os quatro andamentos da Sinfonia caracterizam-se pela homogeneidade orquestral, sendo, ao mesmo tempo, um exemplo de alternância: o primeiro andamento, revelando grande tensão, denunciada pelas cordas e elevada a um dramatismo extremo; o segundo andamento revela solenidade, numa marcha fúnebre que se eleva pela sua emoção e beleza; o terceiro andamento, uma crispação; o quarto andamento expressa triunfo e magnificência.

A sinfonia depressa adquiriu a condição de peça central no repertório. Como emblema da música clássica, foi tocada nos concertos inaugurais da Orquestra Filarmónica de Nova Iorque no dia 7 de Dezembro  de 1842, e no da Orquestra Sinfónica Nacional dos Estados Unidos no dia 2 de Novembro de 1931. Na América Latina, o concerto inaugural da Orquestra Sinfónica Nacional do Peru em 1938, no Teatro Municipal de Lima, incluiu esta obra. Marcando um ponto de ruptura tanto pelo seu impacto técnico como emocional, a Quinta tem tido uma grande influência nos compositores e críticos musicais, e inspirou a obra de compositores tais como Johannes Brahms, Piotr Ilyich Tchaikovsky, Anton Bruckner, Gustav Mahler e Hector Berlioz. A Quinta permanece junto à Terceira e Nona sinfonias como a obra mais revolucionária de Beethoven.

Sugestão de audição:
Ludwig van Beethoven: Symphony No. 5 in C minor, Op. 67
Berliner Philharmoniker, Herbert von Karajan – Deutsche Grammophon, 1993
28 Abr 2020

Optimismo musical puro

[dropcap]C[/dropcap]omemora-se este ano o 250o aniversário do nascimento de Ludwig van Beethoven, o génio musical alemão e um dos pilares da música ocidental, nascido em Bona, mas que viveu a maior parte da vida em Viena. Em 2016, o governo alemão declarou o compositor um “assunto de importância nacional”. A intenção foi realizar diversos tipos de preparações para comemorar os 250 anos do seu nascimento. O aniversário começou oficialmente no dia 16 de Dezembro de 2019, data que recorda a sua chegada ao mundo em 1770. Desde essa data e até ao dia 17 de Dezembro de 2020, Bona (cidade natal do músico) e o resto da Alemanha, organizam vários projectos comemorativos: concertos, exposições, projectos cinematográficos, conferências e eventos, que culminarão com um concerto no edifício do parlamento, em Bona. Muitos outros países comemoram também este aniversário. Em Macau, a Orquestra de Macau, ao longo da sua temporada 2019-2020, dedica concertos ao compositor, incluindo os cinco concertos para piano pelo pianista austríaco Rudolf Buchbinder, no encerramento da mesma, entre outras obras.

Uma das obras mais emblemáticas de Beethoven, a Sinfonia No 7 em Lá Maior, Op. 92, em quatro andamentos, foi composta ao longo de sete meses entre 1811 e 1812, enquanto o compositor tentava melhorar a sua saúde na cidade termal boémia de Teplice. A obra foi dedicada ao Conde Moritz von Fries. A obra foi estreada e dirigida pelo próprio Beethoven no dia 8 de Dezembro de 1813 em Viena, num concerto de caridade para os soldados feridos na Batalha de Hanau, nas Guerras Napoleónicas. O programa incluiu também a obra patriótica de Beethoven Wellington’s Victory, exaltando a vitória dos ingleses sobre a França de Napoleão. O concertino da orquestra foi Ignaz Schuppanzigh, amigo de Beethoven, e o agrupamento incluiu alguns dos melhores músicos da época: o violinista Louis Spohr, os compositores e pianistas Johann Nepomuk Hummel, Giacomo Meyerbeer e Ignaz Moscheles, Antonio Salieri como maestro assistente, o fagotista Anton Romberg e o virtuoso italiano de contrabaixo Domenico Dragonetti, assim como o guitarrista italiano virtuoso Mauro Giuliani, que tocou violoncelo. A obra foi muito bem recebida e, na estreia, Beethoven terá mesmo dito que esta era uma das suas melhores obras. O segundo andamento, Allegretto, foi o andamento mais popular e teve que ser repetido. A popularidade imediata do Allegretto resultou na sua execução frequente separado da sinfonia completa. Após a estreia, os amigos de Beethoven organizaram rapidamente a repetição do concerto, que ocorreria 3 vezes nas 10 semanas seguintes, pela qual Beethoven foi aliviado das suas dificuldades financeiras.

Descrita por Wagner como “a apoteose da dança”, a Sinfonia começa com uma introdução grave e sombria, a mais longa das introduções de Beethoven e, até agora, da história da sinfonia, antes de passar a uma música cineticamente energizada, que caracteriza toda a obra. A introdução prevê as jornadas harmónicas que surgem no resto da Sinfonia, assim como o corpo principal do andamento prediz as suas obsessões rítmicas, e a surpreendente e ousada coda. O Allegretto que se segue – o trabalho não tem nenhum andamento realmente lento – possui a beleza solene de uma marcha fúnebre, intensificada por contraponto. O Scherzo é incrivelmente rápido, destacando o aspecto da dança ainda mais, com uma secção Trio muito mais lenta. Beethoven reverte algumas das surpresas dinâmicas para as secções repetidas e faz brincadeiras adicionais com a orquestração, incluindo uma fuga. Também muito rápido, o finale – Allegro con brio capta a impetuosidade iniciada no primeiro andamento e transforma-a numa loucura ofegante, mas cheia de alegria e prazer da vida, terminando com uma coda que espelha a besta agressiva que fecha o primeiro andamento.

 

Sugestão de audição:
Ludwig van Beethoven: Symphony No. 7 in A Major, Op. 92
Berliner Philharmoniker, Herbert von Karajan – DG, 1996
21 Abr 2020

O deslumbramento

[dropcap]S[/dropcap]amuel Barber foi um compositor interessado em levar a música culta a franjas mais amplas da população. Ao contrário dos seus contemporâneos, não se preocupou demasiado com as técnicas musicais de vanguarda da época. A sua linguagem é expressiva e lírica e baseia-se no sistema tonal de finais do século XIX, embora tenha incorporado alguns elementos como o cromatismo e a ambiguidade tonal a partir da década de 1940. Tão-pouco prestou especial atenção a elementos da cultura musical norte-americana como o folk ou o jazz, tão empregues por outros compositores norte-americanos como Aaron Copland ou Marc Blitzstein. Apenas em algumas das suas obras, como Excursions ou Knoxville: Summer of 1915, encontramos ritmos populares americanos como o blues.

A produção de Barber abarca praticamente todos os géneros, embora o seu grande interesse pela voz humana o tenha levado a escrever numerosas obras vocais baseadas em textos de escritores como James Joyce, James Stephens, Emily Dickinson ou Rainer Maaria Rilke. O seu ciclo de canções Despite and Still, op. 41, dedicado à magnífica soprano Leontyne Price, caracteriza-se pelas suas frequentes alusões à solidão e à nostalgia do amor perdido, através de harmonias ricas em cromatismos e dissonâncias. Uma das principais características da música de Barber é o uso de grandes linhas melódicas, patente na perfeição do seu célebre Adagio for Strings, composto em 1936. Nas suas obras orquestrais costuma atribuir as partes solistas aos instrumentos de sopro de madeira, para além de utilizar frequentemente uma linguagem contrapontística de grande fluidez e uma orquestração de grande colorido, como é o caso do seu concerto para piano. Este é o trabalho que melhor transmite o brilho, o carisma, a energia, a invenção, o grande coração e o deslumbramento de Barber. É uma peça extraordinária, fogosa, dramática, às vezes requintadamente adorável e completamente emocionante. Também é incrivelmente difícil de tocar, tendo sido gravada apenas algumas vezes, mais impressionantemente (duas vezes) pelo pianista a quem foi dedicada, John Browning.

O Concerto para Piano e Orquestra, Op. 38, de Samuel Barber foi encomendado pela editora musical G. Schirmer Inc., de Nova Iorque, em honra do centenário da sua fundação. A estreia teve lugar no dia 24 de Setembro de 1962, nas festividades de inauguração do Philharmonic Hall, actualmente David Geffen Hall, a primeira sala construída no Lincoln Center for the Performing Arts em Manhattan, com John Browning como solista com a Boston Symphony Orchestra dirigida por Erich Leinsdorf.

Barber começou a trabalhar no concerto em Março de 1960. John Browning foi o solista pretendido desde o início e o concerto foi escrito com a sua técnica de teclado específica em mente. Os dois primeiros andamentos foram concluídos antes do final de 1960, mas o último andamento não seria terminado senão 15 dias antes da estreia mundial. De acordo com Browning (nas notas principais da sua gravação do Concerto para a RCA Victor em 1991 com a St. Louis Symphony), a versão inicial da parte do piano do terceiro andamento era impossível de executar; Barber resistiu em refazer a parte do piano até o pianista Vladimir Horowitz a rever e considerá-la também impossível de tocar at full tempo. O trabalho foi recebido com grande aclamação da crítica, com Barber a ganhar o seu segundo Prémio Pulitzer em 1963 e o Music Critics Circle Award em 1964.

O primeiro andamento do concerto, Allegro appassionato, é puro Barber, ou seja, romântico americano. Inicia-se com uma grande cadência para piano que apresenta três temas – “o primeiro declamatório, o segundo e o terceiro rítmicos”, foi como Barber os descreveu, antes da orquestra entrar com a melodia principal do concerto, inquiridora e melancólica, que leva tudo à sua frente. Através deste andamento, piano e orquestra são essencialmente antagonistas, vangloriando-se à vez e raramente partilhando materiais. Através de inversão, retroversão e variações em contraponto destas melodias (que irão aparecer nos andamentos subsequentes) Barber desenrola todo o andamento. O segundo andamento, Canzone: Moderato, baseia-se principalmente numa melodia doce mas triste e é muito mais suave que o primeiro. Este andamento foi transcrito e expandido de uma Elegia para flauta e piano, composta em 1959 pelo flautista Manfred Ibel. Foi publicada em 1962, como Canzone (Elegy), Op. 38a. O terceiro andamento, Allegro molto, é composto num compasso furioso de 5/8, com um esmagador ostinato que confere à peça um som um tanto diabólico. Faz uso abundante dos metais, e é movido pela recapitulação de um breve tema motívico, dando ao andamento uma forma de rondo modificada.

 


Sugestão de audição:
Samuel Barber: Piano Concerto, Op. 38
John Borwning, piano, The Cleveland Orchestra, George Szell – Columbia, 1964

14 Abr 2020

Uma obra diabólica quase esquecida

[dropcap]E[/dropcap]m Janeiro de 1945, ainda antes do final da II Guerra Mundial, Samuel Barber, que desde 1942 servia na força aérea norte-americana, foi contratado por John Nicholas Brown, violoncelista amador e administrador da Boston Symphony Orchestra. para escrever um concerto para violoncelo para Raya Garbousova, uma violoncelista russa expatriada. Serge Koussevitzky, o grande maestro da Boston Symphony, arquitectou o projecto e providenciou que o compositor fosse dispensado do serviço militar para escrever o trabalho para a sua 20ª temporada como director musical da orquestra. A partitura é dedicada a John e Anne Brown. Barber, antes de começar o trabalho, pediu a Garbousova que tocasse o seu repertório e poder entender o seu estilo de execução e os recursos do seu instrumento, o Stradivarius Davidov (que seria mais tarde propriedade de Jacqueline du Pré e actualmente de Yo-Yo Ma). O Concerto para Violoncelo e Orquestra em Lá menor, Op. 22, concluído nos finais de 1945, foi o segundo dos seus três concertos (sendo o primeiro o Concerto para Violino e o terceiro o Concerto para Piano) e é possivelmente um dos trabalhos mais exigentes tecnicamente no repertório do instrumento. Garbousova estreou-o com a Boston Symphony Orchestra no Boston Symphony Hall, no dia 5 de Abril de 1946, a que se seguiram apresentações em Nova Iorque na Academia de Música de Brooklyn, em 12 e 13 de Abril, sem grande êxito, obtendo finalmente a obra grande sucesso no Carnegie Hall em 1946, recebendo o 5th New York Music Critics’ Circle Award em 1947 como “excepcional entre as composições orquestrais executadas pela primeira vez [no Carnegie Hall] durante a temporada de concertos” .

Raya Garbousova, que estava no auge da sua carreira quando a peça foi escrita, tocou o concerto extensivamente, mas depois de se aposentar, a obra caiu em desuso devido às suas exigências técnicas extremas. Barber, que havia feito várias alterações ao trabalho entre 1947 até à sua publicação em 1950, a maior parte no Allegro de abertura, pretendia, mais tarde na sua vida, modificar a parte do violoncelo, esperando incentivar mais violoncelistas a executar a peça, mas a sua doença prolongada impediu-o.

Várias gravações recentes aumentaram o interesse pela obra, incluindo a de Yo-Yo Ma, do violoncelista suíço Christian Poltéra e a de Christine Lamprea, vencedora recente do Sphinx Prize 2018, nos EUA.

Lírico e expressivo, o concerto é escrito tradicionalmente em três andamentos – Allegro moderato, Andante sostenuto, e Molto allegro e appassionato (rápido, lento, rápido), com cordas duplas extremamente difíceis e várias cadências eloquentes. A peça requer uma técnica segura e um autodomínio dramático. O concerto para violoncelo foi o último dos trabalhos instrumentais de Barber a conter aquele brilho entusiasmado de confiança e serenidade do compositor; a sonata para piano e o concerto para piano são obras muito boas, mas o seu apelo depende mais do virtuosismo vistoso – apropriado para as suas formas, é claro, mas não exactamente o verdadeiro Samuel Barber, que reapareceu na ópera, onde o seu lirismo inato correspondia melhor às expectativas do público, e em outros trabalhos vocais como Knoxville: Summer of 1915 e Andromache’s Farewell.

 

Sugestão de audição:
Samuel Barber: Cello Concerto, Op. 22
Victor Simon, cello, Moscow Radio Symphony Orchestra, Gennady Rozhdestvensky – Cascade, 2007

7 Abr 2020

A obra mais íntima

[dropcap]A[/dropcap]ssociar Samuel Barber exclusivamente ao seu famoso Adagio for Strings, Op. 11 é ignorar tantas outras composições suas. Em The Lovers, Op. 43, o grande compositor americano musica tão magistralmente excertos do ciclo poético Vinte Poemas de Amor e uma Canção de Desespero do poeta chileno Pablo Neruda (1904-1973), que eleva a sensualidade e a poesia do texto a novas alturas. A poesia de Neruda é amplamente considerada como alguma da poesia mais romântica alguma vez escrita, embora o seu erotismo permaneça controverso.

Em 1971, no auge do período serialista da música clássica norte-americana, Barber aceitou uma encomenda do Girard Bank of Philadelphia de uma grande composição. Essa instituição financeira adoptou um programa pelo qual esperava contribuir “construtivamente para aspectos socialmente orientados e culturais da comunidade e da nação”. Parece que Barber se havia recuperado da sua depressão anterior após o fracasso que foi a estreia da sua ópera Antony and Cleopatra. O compositor tinha recusado uma encomenda monumental de Eugene Ormandy apenas dois anos antes. No entanto, criou uma peça maravilhosa para a comissão do Girard Bank, a sua última grande obra, composta por um prelúdio e nove andamentos que traçam a progressão de um caso de amor desde o começo alegre até ao fim doloroso. A oratória The Lovers, Op. 43 foi escrita para barítono solo, coro misto de 200 vozes e orquestra completa. A facto do texto ser considerado bastante erótico, juntamente com a associação de Neruda com o Partido Comunista, fez com que a obra fosse criticada pelos funcionários do Girard Bank. Barber respondeu da seguinte forma: “Meu Deus! Não há love affairs em Filadélfia?”

O compositor trabalhou diligentemente em meados de 1971 na composição de The Lovers, certamente o seu trabalho mais íntimo. A maior parte da peça foi composta em Capricorn, local onde vivia na época. De facto, um canto de pássaro ouvido aí inspirou o motivo de abertura do Prelúdio, que atravessa todo o trabalho. O compositor levou dois meses para compor a música e dois meses para orquestrar a peça. The Lovers foi estreada em 22 de Setembro de 1971 pela Philadelphia Orchestra, o barítono finlandês Tom Krause e o Temple University Chorus, dirigidos por Robert Page. Barber, sempre duvidando, enviou um amigo para a plateia no intervalo para julgar as suas reacções. Mas o público, juntamente com a crítica musical, apreciou muito o trabalho.

Barber compôs The Lovers no seu estilo mais pessoal e lírico. Devido ao erotismo sem rodeios das letras assim como à extrema dificuldade das partes corais e orquestrais, a obra raramente é executada. A escrita vocal é baseada nos ideais do Lied Romântico Alemão. O Prelude, apenas para orquestra, abre com o motivo de três notas da chamada de pássaro na flauta. De seguida, um tema sensual é apresentado. A música cada vez mais dramática, leva ao primeiro andamento, “Body of a Woman” (Corpo de uma mulher). O solo de barítono entra no início desta música apressada. Essa emoção reflecte a antecipação presente no início de um caso de amor. “Lithe Girl, Brown Girl” é o título do segundo andamento, principalmente para vozes masculinas e orquestra. O próximo andamento, “In the Hot Depth of this Summer” (Na profundidade quente deste Verão), é para vozes femininas e orquestra. O coro e a orquestra completos são usados ​​em “Close your Eyes” (Fecha os olhos), o quarto andamento. O caso de amor cresce através desses andamentos e atinge o seu auge no quinto andamento, “The Fortunate Isles” (As Ilhas Afortunadas). O relacionamento começa a desfaz-se no sexto andamento, “Sometimes” (Às vezes), no qual o solo de barítono retorna e, no oitavo andamento, “Tonite I Can Write” (Hoje à Noite Eu Posso Escrever), os amantes são separados.

Sugestão de audição:
Samuel Barber: The Lovers, for baritone, chorus and orchestra, Op. 43
Dale Duesing, baritone, The Chicago Symphony Orchestra & Chorus, Andrew Schenck (World Premiere Recording) – Koch International Classics, 1991

31 Mar 2020

Um pianista de jazz lendário

[dropcap]O[/dropcap] pianista de jazz americano McCoy Tyner faleceu no passado dia 6 de Março, aos 81 anos de idade.

Na conta de Facebook do músico, a sua família escreve: “É com pesar que anunciamos a morte da lenda do jazz, Alfred ‘McCoy’ Tyner”. McCoy era um músico inspirado que dedicou a sua vida à sua arte, à família e à espiritualidade. A música e o legado [de McCoy Tyner] continuarão a inspirar os seus seguidores e os talentos futuros”, conclui a mensagem.

McCoy Tyner nasceu em 1938 em Filadélfia, no estado da Pensilvânia, e começou a estudar piano aos treze anos. Era filho de um homem que trabalhava numa fabricante de cremes e que também cantava na igreja e de uma mulher que trabalhava numa loja de produtos de beleza. Aos 17 anos, o músico, que por essa altura começara há um ano a tocar profissionalmente em bandas de rhythm-and-blues, converteu-se ao Islão.

Iniciou a sua carreira em orquestras da cidade natal, durante a década de 1950, altura em que se iniciou com músicos como o trompetista Kenney Dorhan, o saxofonista Jackie McLean e o baterista Max Roach. O seu percurso ganhou fôlego quando conheceu o lendário saxofonista John Coltrane, em 1956, que considerou determinante na sua carreira.

Desempenhar um papel de suporte para uma força da natureza é um desafio difícil em qualquer forma musical e nos meandros da improvisação de jazz ainda mais. McCoy Tyner respondeu a esse desafio quando, no início dos anos 1960, com apenas 21 anos, iniciou uma parceria com John Coltrane, o génio da improvisação. McCoy Tyner passou apenas cinco anos como membro integrante da formação de Coltrane, um conterrâneo seu, também nascido em Filadélfia, em conjunto com o contrabaixista Jimmy Garrison e o baterista Elvin Jones. Ainda assim, foi absolutamente decisivo no som de alguns dos discos mais importantes da carreira de Coltrane, editados nos primeiros cinco anos dessa década (e também alguns postumamente), como por exemplo “My Favorite Things” (editado em 1961), “Impressions” (1963) ou “A Love Supreme” (editado em Janeiro de 1965), além de diversos álbuns clássicos gravados ao vivo. É também o pianista de “Both Directions At Once: The Lost Album”, o álbum perdido de John Coltrane, que se manteve inédito durante 55 anos, até à publicação, em 2018.

Depois das aventuras musicais ao lado de John Coltrane, McCoy Tyner lançou-se a solo e gravou álbuns como “The Real McCoy” (1967), “Time For Tyner e Expansions” (ambos de 1968). Na década de 1970, o pianista prosseguiu na senda da edição regular de álbuns e de actuações, já não na editora Impulse!, a que esteve contratualmente ligado no início dos anos 1960, nem na Blue Note Records, na qual editou mais álbuns durante a segunda metade dos anos 60, mas na discográfica Milestone. Tyner continuou a gravar discos até aos anos 2000. O pianista participou ainda em álbuns de músicos e compositores como o guitarrista e cantor George Benson, o baterista Art Blakey, o trompetista e vocalista Donald Byrd, o saxofonista Lou Donaldson, o trompetista Freddie Hubbard e os saxofonistas Wayne Shorter, Joe Henderson e Hank Mobley, entre vários outros.

McCoy Tyner fez ainda parte de formações como o Jazztet, com o trompetista Art Farmer, o saxofonista Benny Golson e o trombonista Curtis Fuller, e firmou uma carreira como líder e solista, tendo trabalhado com músicos como os trompetistas Freddie Hubbard, Donald Byrd e Lee Morgan, os saxofonistas Sonny Rollins, Eric Dolphy, Stanley Turrentine, Hank Mobley e Wayne Shorter, o contrabaixista Ron Carter e o baterista Al Foster, entre outros.

Gravou para editoras de referência como a Blue Note, Atlantic, Milestone e Impulse!, deixando álbuns que marcaram o jazz e as suas expressões, ao longo de mais de 50 anos, como “Inception” (1962), “Nights of Ballads and Blues” (1963) e “Tender Moments” (1967). “Sahara” e “Song for My Lady” (1972) assinalam o seu reaparecimento na década de 1970. “Enlightenment” (1973), gravado no Festival de Jazz de Montreux, inclui “Walk Spirit, Talk Spirit”, uma das suas mais conhecidas composições. Sucederam-se então discos como “Looking Out” (1982), “It’s About Time” (1985), “Things Ain’t What They Used to Be” (1989), “Manhattan Moods” (1993), “Prelude and Sonata” (1994), “Autumn Mood” (1997), “McCoy Tyner & the Latin All-Stars” (1999).

Considerado por toda a crítica um dos pianistas mais influentes da história do jazz, Tyner não gostava de falar sobre a sua expressão, considerando-a fruto de aprendizagem e experiência de vida, como disse em diversas entrevistas.

Nos últimos anos, destacam-se ainda “McCoy Tyner Plays John Coltrane” (2001), “Suddenly” (2002) e “Illuminations” (2004) que se juntaram aos mais de 70 álbuns que editou em nome próprio, desde o início da década de 1960, que lhe valeram dezenas de prémios, entre os quais cinco Grammys e dezenas distinções, como um doutoramento ‘honoris causa’, no Berklee College of Music, no Massachusetts.

Na notícia a propósito da sua morte, o The New York Times considera-o uma das referências maiores da história do jazz, a par de outros pianistas como “Bill Evans, Herbie Hancock, Chick Corea e apenas alguns outros, poucos”.

“É impossível expressar como McCoy era importante, foi e sempre será importante para a música”, escreve a Blue Note, na sua página na Internet. E acrescenta: “A imensidão de beleza que deu ao mundo é simplesmente impressionante (…), e a sua influência nos pianistas de jazz que surgiram nos últimos 60 anos não tem fim”. “Que descanse em paz, um dos maiores de todos os tempos”, conclui a Blue Note.

24 Mar 2020

O poderosamente espiritual Adagio de Barber

[dropcap]S[/dropcap]amuel Barber, que tinha frequentado o reputado Curtis Institute of Music de Filadélfia entre 1924 e 1932, sabia que o Curtis String Quartet, formado em 1932, estava a planear uma digressão europeia nos últimos meses de 1936, e projectou escrever um quarteto para o agrupamento tocar em Itália. O compositor tinha passado um ano a estudar na Academia Americana em Roma, depois de receber o cobiçado “Prix de Rome” na Primavera de 1935. Graças a uma extensão do seu Pulitzer Fellowship, pôde permanecer na Europa durante o Verão e Outono de 1936, instalando-se numa pequena casa de campo em St. Wolfgang, na Áustria, com o seu companheiro, o também compositor Gian Carlo Menotti. Foi aqui que a maior parte do quarteto foi composto, durante a sua reclusão de cinco meses na pequena localidade suíça. Barber, no entanto, não concluiria a peça a tempo da digressão do Curtis Quartet. Assim, após ter terminado o quarteto, este foi estreado, numa versão provisória, pelo Pro Arte Quartet, no dia 14 de Dezembro de 1936, na Academia Americana sediada na Villa Aurelia em Roma. A versão final só seria estreada no dia 28 de Maio de 1943, pelo Budapest Quartet, na Library of Congress em Washington, D.C.

O Quarteto de Cordas em Si menor, Op. 11, o primeiro e único quarteto de cordas de Barber, não terminou da forma que o compositor pretendia, pois o segundo andamento eventualmente ofuscou toda a obra quando o transcreveu para orquestra de cordas com o título Adagio for Strings, por sugestão do famigerado maestro Arturo Toscanini, com quem tinha travado conhecimento em 1936, em Roma. Além disso, o projecto do último andamento nunca se concretizou realmente, e a peça como um todo ficou marcada como um veículo para dar vida ao Adagio. O primeiro andamento tem mérito, no entanto, na medida em que mostra Barber a experimentar um estilo um pouco afastado do seu idioma hiper-melódico habitual. O trabalho final tem dois andamentos. O primeiro, Molto allegro e appassionato, está estruturado na forma-sonata livre. Reminiscente de Beethoven e diferente, em termos de retórica, da maioria das obras de Barber, é estruturado em torno de motivos rítmicos, em lugar de se basear numa melodia central carregada de emoções. O segundo andamento, Molto adagio; molto allegro, começa com uma das melodias mais famosas da história, a lenta e sensível cantilena que se tornou, na versão para orquestra de cordas, o Adagio for Strings. A segunda metade do andamento, Molto allegro (originalmente destinado a ser o último) é uma recapitulação bastante desinteressante e superficial do material do primeiro andamento.

O poderosamente espiritual Adagio for Strings é familiar à maior parte dos ouvintes, mesmo que não sejam capazes de o identificar. A obra, que incorpora sentimentos de profunda perda e dor, nasceu no caos de um continente à beira do apocalipse. O Adagio, estreado no dia 5 de Novembro de 1938 pela NBC Symphony Orchestra sob a batuta de Arturo Toscanini no Studio 8H no Rockefeller Center em Nova Iorque, perante uma audiência seleccionada, estabeleceu uma posição firme na consciência americana como a personificação musical do luto colectivo. Foi tocado nos funerais de Franklin Roosevelt, Albert Einstein e Grace Kelly. Três dias após o assassinato de John F. Kennedy, Jackie Kennedy organizou a sua execução numa sala vazia pela National Symphony Orchestra em sua homenagem; uma gravação desta actuação foi lançada nas estações de rádio e televisão, que a adoptaram como um hino não oficial de luto durante as semanas subsequentes. A obra foi também tocada por orquestras em todo o mundo na sequência das tragédias do 11 de Setembro . Oliver Stone usou-o como tema de seu filme de referência, “Platoon”. O seu poder reside na sua simplicidade e profundidade de sentimento e há poucas obras que tenham um acesso tão directo às emoções das pessoas.

Sugestão de audição:
Samuel Barber: Adagio for Strings
Los Angeles Philharmonic Orchestra, Leonard Bernstein – Deutsche Grammophon, 1993

17 Mar 2020

O “Concerto da Sapone”

[dropcap]S[/dropcap]amuel Osmond Barber, nascido no dia 9 de Março de 1910 e considerado um menino prodígio, começou a tocar piano aos seis anos e a compor aos sete. Frequentou o Curtis Institute of Music de Filadélfia (1924-1932), onde estudou piano com Isabelle Vengerova, canto com Emilio de Gogorza e composição com Rosario Scalero. Alguns colegas destacados no Curtis foram os compositores Leonard Bernstein e Gian Carlo Menotti, sendo Menotti quem realizou o libreto da ópera mais famosa de Barber, Vanessa, estreada em 1958 no Metropolitan Opera House de Nova Iorque. Em 1935, Barber recebeu o prémio Pulitzer estudantil e o prémio da Academia Americana en Roma. Nesse mesmo ano ingressou na Academia Americana das Artes e das Letras.

Durante o Inverno de 1938-1939, Samuel Fels – patrão dos sabonetes Fels-Naptha de Filadélfia, mecenas e administrador do Curtis Institute of Music – e a sua mulher, Jennie, resolvem contratar Barber para compor uma obra para o seu protegido, o violinista-prodígio Iso Briselli. O compositor e os patronos tinham-se conhecido por intermédio de Gama Gilbert, violinista e crítico de música que, pelo seu entusiasmo pela música de Barber e pela sua longa amizade, se tornou o intermediário natural desta encomenda. Em Maio de 1939, Barber, Briselli e os Fels encontraram-se e iniciam as negociações da nova obra, incluindo a duração, número de andamentos e crucialmente, o preço e os direitos de exclusividade para Briselli. Barber pede 1000 dólares mas Fels responde que por esse preço a obra terá que ser mais longa que originalmente discutido, e foi acordado que Barber comporia uma obra em três andamentos que ficaria pronta em Outubro de 1939, para Briselli estrear com a Orquestra de Filadélfia em Janeiro de 1940, ficando o violinista com os direitos exclusivos de execução da obra durante um ano.

Barber recebe um adiantamento de 500 dólares e parte para Sils-Maria, na Suíça, no Verão de 39, para começar o trabalho. Os seus planos foram, no entanto, interrompidos em Agosto, quando todos os americanos foram convidados a deixar a Europa, vendo-se obrigado a planear o seu regresso a Filadélfia.

Após algumas peripécias ligadas ao seu companheiro Gian Carlo Menotti, Barber deixa a Europa a bordo de um navio holandês e chega aos Estados Unidos, completando os dois primeiros andamentos no retiro familiar em Pocono Lake Preserve, na Pensilvânia, enviando-os a Briselli em meados de Outubro.

É aqui que a versão antiga dos eventos difere do que se sabe agora que aconteceu, graças à nova correspondência desenterrada entre Fels, Barber e o professor de violino e formador de Briselli, Albert Meiff.

A versão antiga diz que Briselli achou que os dois primeiros andamentos não eram suficientemente virtuosos, e que os rejeitou por serem fáceis demais, solicitando que o final excepcional fosse mais “brilhante”. Quando Barber concluiu o finale, aparentemente este foi condenado pelo violinista como não executável! Agora sabe-se que esta foi uma abreviação conveniente para uma série muito mais complicada de conversas, visões e opiniões. Afinal parece que Briselli gostou realmente dos dois primeiros andamentos quando os recebeu, embora tenha encorajado Barber a considerar um finale mais virtuoso, e que foi Albert Meiff que se intrometeu na nova composição, declarando o trabalho de Barber como “longe das exigências de um violinista moderno” e necessitando de uma “operação cirúrgica” por “um especialista”. Além disso, Meiff acreditava que se o violinista prosseguisse com a execução prejudicaria a sua reputação e futura carreira, e que ele próprio deveria reescrever a parte do violino. Também sugeriu que deveria aconselhar Barber sobre o andamento final. Quando Barber concluiu o finale no final de Novembro, Meiff teria já minado com sucesso o compositor preante Briselli e Fels. Permanecem questões sobre o que o professor de violino esperava obter com as suas ultrajantes afirmações críticas. No entanto as suas sugestões nunca foram consideradas por Barber, mas Meiff conseguiu o que queria, já que Briselli não estreou o concerto como planeado em Janeiro de 1940, embora tenha mantido o acordo original com Fels e não ofereceu o concerto a outro violinista até à cláusula de exclusividade de Briselli expirar, ocorrendo apenas a estreia em 1941, no dia 7 de Fevereiro, pelo violinista Albert Spalding e a Orquestra da Filadélfia dirigida por Eugene Ormandy, sendo posteriormente revisto pelo compositor entre 1948-49 e a versão final estreada em Janeiro de 1949 por Ruth Posselt e a Orquestra Sinfónica de Boston sob a direcção de Serge Koussevitsky e publicada no mesmo ano pelo editor Schirmer. Por seu lado, Fels não pediu a Barber o reembolso dos 500 dólares, e o compositor e Briselli continuaram amigos até ao final das suas vidas. Barber chamava ao concerto “Concerto da Sapone”, o concerto do sabão! A obra está entre as mais tocadas e gravadas do século XX.

Sugestão de audição:
Samuel Barber: Violin Concerto No. 1, Op. 14
Gil Shaham, violin, London Symphony Orchestra, André Previn – Deutsche Grammophon, 1993

10 Mar 2020

O "Concerto da Sapone"

[dropcap]S[/dropcap]amuel Osmond Barber, nascido no dia 9 de Março de 1910 e considerado um menino prodígio, começou a tocar piano aos seis anos e a compor aos sete. Frequentou o Curtis Institute of Music de Filadélfia (1924-1932), onde estudou piano com Isabelle Vengerova, canto com Emilio de Gogorza e composição com Rosario Scalero. Alguns colegas destacados no Curtis foram os compositores Leonard Bernstein e Gian Carlo Menotti, sendo Menotti quem realizou o libreto da ópera mais famosa de Barber, Vanessa, estreada em 1958 no Metropolitan Opera House de Nova Iorque. Em 1935, Barber recebeu o prémio Pulitzer estudantil e o prémio da Academia Americana en Roma. Nesse mesmo ano ingressou na Academia Americana das Artes e das Letras.
Durante o Inverno de 1938-1939, Samuel Fels – patrão dos sabonetes Fels-Naptha de Filadélfia, mecenas e administrador do Curtis Institute of Music – e a sua mulher, Jennie, resolvem contratar Barber para compor uma obra para o seu protegido, o violinista-prodígio Iso Briselli. O compositor e os patronos tinham-se conhecido por intermédio de Gama Gilbert, violinista e crítico de música que, pelo seu entusiasmo pela música de Barber e pela sua longa amizade, se tornou o intermediário natural desta encomenda. Em Maio de 1939, Barber, Briselli e os Fels encontraram-se e iniciam as negociações da nova obra, incluindo a duração, número de andamentos e crucialmente, o preço e os direitos de exclusividade para Briselli. Barber pede 1000 dólares mas Fels responde que por esse preço a obra terá que ser mais longa que originalmente discutido, e foi acordado que Barber comporia uma obra em três andamentos que ficaria pronta em Outubro de 1939, para Briselli estrear com a Orquestra de Filadélfia em Janeiro de 1940, ficando o violinista com os direitos exclusivos de execução da obra durante um ano.
Barber recebe um adiantamento de 500 dólares e parte para Sils-Maria, na Suíça, no Verão de 39, para começar o trabalho. Os seus planos foram, no entanto, interrompidos em Agosto, quando todos os americanos foram convidados a deixar a Europa, vendo-se obrigado a planear o seu regresso a Filadélfia.
Após algumas peripécias ligadas ao seu companheiro Gian Carlo Menotti, Barber deixa a Europa a bordo de um navio holandês e chega aos Estados Unidos, completando os dois primeiros andamentos no retiro familiar em Pocono Lake Preserve, na Pensilvânia, enviando-os a Briselli em meados de Outubro.
É aqui que a versão antiga dos eventos difere do que se sabe agora que aconteceu, graças à nova correspondência desenterrada entre Fels, Barber e o professor de violino e formador de Briselli, Albert Meiff.
A versão antiga diz que Briselli achou que os dois primeiros andamentos não eram suficientemente virtuosos, e que os rejeitou por serem fáceis demais, solicitando que o final excepcional fosse mais “brilhante”. Quando Barber concluiu o finale, aparentemente este foi condenado pelo violinista como não executável! Agora sabe-se que esta foi uma abreviação conveniente para uma série muito mais complicada de conversas, visões e opiniões. Afinal parece que Briselli gostou realmente dos dois primeiros andamentos quando os recebeu, embora tenha encorajado Barber a considerar um finale mais virtuoso, e que foi Albert Meiff que se intrometeu na nova composição, declarando o trabalho de Barber como “longe das exigências de um violinista moderno” e necessitando de uma “operação cirúrgica” por “um especialista”. Além disso, Meiff acreditava que se o violinista prosseguisse com a execução prejudicaria a sua reputação e futura carreira, e que ele próprio deveria reescrever a parte do violino. Também sugeriu que deveria aconselhar Barber sobre o andamento final. Quando Barber concluiu o finale no final de Novembro, Meiff teria já minado com sucesso o compositor preante Briselli e Fels. Permanecem questões sobre o que o professor de violino esperava obter com as suas ultrajantes afirmações críticas. No entanto as suas sugestões nunca foram consideradas por Barber, mas Meiff conseguiu o que queria, já que Briselli não estreou o concerto como planeado em Janeiro de 1940, embora tenha mantido o acordo original com Fels e não ofereceu o concerto a outro violinista até à cláusula de exclusividade de Briselli expirar, ocorrendo apenas a estreia em 1941, no dia 7 de Fevereiro, pelo violinista Albert Spalding e a Orquestra da Filadélfia dirigida por Eugene Ormandy, sendo posteriormente revisto pelo compositor entre 1948-49 e a versão final estreada em Janeiro de 1949 por Ruth Posselt e a Orquestra Sinfónica de Boston sob a direcção de Serge Koussevitsky e publicada no mesmo ano pelo editor Schirmer. Por seu lado, Fels não pediu a Barber o reembolso dos 500 dólares, e o compositor e Briselli continuaram amigos até ao final das suas vidas. Barber chamava ao concerto “Concerto da Sapone”, o concerto do sabão! A obra está entre as mais tocadas e gravadas do século XX.
Sugestão de audição:
Samuel Barber: Violin Concerto No. 1, Op. 14
Gil Shaham, violin, London Symphony Orchestra, André Previn – Deutsche Grammophon, 1993

10 Mar 2020

200 anos de Vieuxtemps

[dropcap]H[/dropcap]enri Vieuxtemps passou os dois últimos anos da sua vida em Mustapha, na Argélia, para onde se tinha mudado em 1879, e onde estavam instalados a sua irmã e cunhado, dando continuidade ao seu trabalho criativo, e compondo, pese embora frustrado pela sua incapacidade de tocar o que escrevia, os seus dois últimos concertos para violino,: o Concerto para Violino n.º 6 em Sol Maior, Op. 47 e, logo a seguir, o Concerto para Violino n.º 7 em Lá menor, Op. 49. A decisão de se instalar na Argélia prendeu-se com o facto da primeira apoplexia que sofreu em Setembro de 1873, em Bruxelas, que paralisou o seu braço direito, ter comprometido o seu cargo de professor no Conservatório dessa cidade, que seria assumido por Henryk Wieniawski em 1875, tendo o compositor perdido qualquer esperança de retomar a sua carreira em Bruxelas. Vieuxtemps mudou-se então para Paris, continuando a compor e conseguindo voltar a tocar música de câmara em privado, mas as suas tentativas de voltar a dar aulas no Conservatório dessa cidade não deram resultado.

O Concerto para Violino Nº 6 em Sol maior, Op. 47, e o Concerto para Violino em Sol menor, Op. 49, foram ambos compostos no último ano da vida de Vieuxtemps, que atribuiu grande importância às obras, apesar de não ter conseguido fazer as revisões finais que poderiam ter sido possíveis caso tivesse conseguido ouvir a prometida interpretação do seu compatriota e aluno Eugène Ysaÿe. Dedicou o sexto concerto à violinista checa Wilhelmine Normand-Neruda e o sétimo a Jeno Hubay, ambos contando-se entre os seus visitantes na Argélia. O primeiro dos dois faz uso de uma forma incomum de quatro andamentos. Começa com um andamento em forma-sonata integral, com uma exposição para a orquestra e para o solista, este último encarregado do material lírico esperado. O segundo andamento é um suave Pastorale, seguido de um intermezzo, no qual o ritmo siciliano característico é dado ao solista num compasso composto de 12/8, enquanto a orquestra toca num simples compasso quaternário, uma experiência invulgar em ritmos contrastantes. O concerto termina com um Rondo final, sendo a sua encantadora melodia principal quase como algo do repertório operático leve.

O sétimo concerto para violino, composto entre 1879 e 1881, o ano da morte do compositor, faz exigências ligeiramente maiores de virtuosismo que o sexto. O primeiro andamento, apresentado brevemente pela orquestra, oferece os dois temas na tradicional forma-sonata, que retornam em recapitulação em Mi menor e Lá maior, respectivamente, levando a uma coda brilhante. O andamento lento, intitulado Melancolie, é em Lá menor. Conduz a um andamento final com um tema de Tarantella de abertura, seguido de um tema de implicação espanhola, ecoado no seu acompanhamento orquestral.

Vieuxtemps permaneceu um compositor activo quase até à sua morte, que ocorreu no dia 6 de Junho de 1881. O seu corpo foi transladado para a Bélgica onde foi recebido como um herói nacional e enterrado em Verviers, a sua cidade natal. Foi sem dúvida um dos maiores violinistas do seu tempo, combinando um comando técnico soberbo com uma compreensão musical muito profunda. Pode ser visto como o representante da escola franco-belga de violinistas, o sucessor de De Beriot, enquanto aqueles que foram ensinados por ele ou estiveram sob a sua influência directa incluem Eugène Ysaÿe, Jeno Hubay e Leopold Auer.

Sugestão de audição:
Henri Vieuxtemps: Violin Concerto No. 6/ Violin Concerto No. 7
Misha Keylin, violin, Slovak Radio Symphony Orchestra, Andrew Mogrelia – Naxos, 2004

3 Mar 2020

O favorito de Vieuxtemps

Henri Vieuxtemps (1820-1881): Concerto para Violino e Orquestra N.o 4 em Ré menor, Op. 31

 

Henri François Vieuxtemps, talvez o maior representante da escola violinística franco-belga, e cujo bicentenário se assinalou no passado dia 17, compôs sete concertos para violino, entre várias outras obras para o instrumento.  

O favorito de Vieuxtemps de entre os seus sete concertos era o quarto, que compôs e estreou durante a sua estadia na corte imperial russa em São Petersburgo, na qualidade de violinista do czar Nicolau I e dos Teatros Imperiais, entre 1846 e 1852. O Concerto para Violino N.° 4 em Ré menor, Op. 31, um trabalho heróico e de escala substancial, foi descrito por Berlioz – que talvez o comparasse com o seu próprio Harold em Itália para viola e orquestra – como uma sinfonia com solo de violino. De facto, a escrita de Vieuxtemps para a orquestra é tão segura e engenhosa e, às vezes, tão imaginativa quanto o tratamento do violino, embora não haja dúvida de que o instrumento solo continua a ser o actor principal do drama.

A escrita orquestral da obra é sensível e faz um uso particularmente bom das madeiras. Mas, além da introdução substancial e de várias passagens tutti, o violinista é claramente o centro das atenções. O primeiro andamento, Andante, começa com uma introdução tranquila e quase mística na forma de um coral que aumenta gradualmente de velocidade, volume e intensidade, com os metais e os timbales a proporcionar peso adicional. À medida que tudo isto se esbate, uma figura em turbilhão descendente nas cordas sugere água a fluir na obscuridade. O solista entra finalmente com uma frase declamatória, tocando notas em cordas duplas, mas que quase imediatamente se funde em material mais lírico, mas ainda ardente. Este material recitativo parece uma segunda introdução, mas é de facto a substância temática principal do andamento. Uma cadência longa e tempestuosa acaba por se render a uma passagem orquestral severa que, por sua vez, se funde numa nota de trompa sustida e que serve como uma ponte para o segundo andamento. Este, Adagio religioso, inicia-se com um coral tocado pelas madeiras; o violino entra sem demora, trilando serenamente acima da orquestra e cantando uma oração longa e ardente que gradualmente se eleva a um estado de êxtase. Quando a música se acalma, arpejos de harpa adornam outra passagem de trilos de violino. Alguns ouvintes contemporâneos podem achar inibidora ​​a bonita religiosidade deste andamento, mas o sentimentalismo religioso foi um elemento importante de muita música franco-belga de meados do século XIX, e este andamento lento de Vieuxtemps é um exemplo importante do estilo.

O breve Scherzo, marcado Vivace, e que pode ser omitido segundo indicação do compositor, traz um bem-vindo ímpeto ao concerto e tem muito em comum com as vibrantes e assertivas obras de violino de Saint-Saëns. A secção central trio do andamento abranda e alonga-se com um grandioso e abrangente apoio orquestral ao fraseado palpitante e feliz do violino. Após a reprise do scherzo, uma coda cintilante conduz este brilhante andamento à sua conclusão.

No início do Finale marziale, cordas e madeiras revisitam o material do início do concerto, proporcionando ao solista um muito merecido descanso. Desta feita, a introdução Andante é sucinta e a orquestra completa apresenta sem demora uma marcha festiva, lembrando novamente o estilo de Saint-Saëns. O solista entra finalmente, primeiro com um recitativo e depois com a melodia principal da marcha. Passagens rápidas e pungentes de cordas duplas impedem o andamento de cair na pomposidade; a certo ponto, o violino toca uma melodia ardente e decididamente não militar. Mais à frente, o solista confere até à melodia da marcha um tratamento notavelmente lírico. Mais para o final do andamento, a música entra no modo maior e o concerto termina em impetuosa bravura.

25 Fev 2020

Vieuxtemps: o Paganini belga

[dropcap]H[/dropcap]enri François Vieuxtemps, nascido em Verviers no dia 17 de Fevereiro de 1820 e cujo bicentenário se assinalou ontem, foi talvez o maior representante da escola violinística franco-belga.

Criado num ambiente familiar impregnado de música, recebe as suas primeiras lições do seu pai, violinista aficionado e construtor de violinos, prosseguindo os estudos com um conterrâneo do seu progenitor, Lecloux-Dejonc, que aponta nele grandes qualidades. Em 1826, com apenas seis anos, inicia a sua carreira concertística com o Concerto para Violino e Orquestra n.º 5 de Jacques Rode. Em 1827 dá o seu o primeiro concerto em Bruxelas, travando conhecimento com o violinista e compositor Charles-Auguste de Bériot, que acede a admiti-lo nas suas classes do Conservatório de Paris. Vieuxtemps muda-se para a capital francesa em 1829. No entanto, o casamento de Bériot com a cantora lírica Maria Malibran e a sua partida de Paris em digressão de concertos, levam Vieuxtemps a regressar a Bruxelas, onde alterna os estudos com uma importante actividade concertística pelo seu país e pela França, Alemanha, Itália e Estados Unidos, colaborando em especial com a eminente meio-soprano Pauline Viardot, irmã de Malibran. Numa digressão pela Alemanha em 1833, com apenas treze anos, conhece e torna-se amigo de Louis Spohr e Robert Schumann, que o compara o jovem virtuoso a Nicollò Paganini.

Durante a década seguinte visita várias cidades europeias, impressionando com o seu virtuosismo não apenas o público, mas também compositores famosos como Hector Berlioz e o próprio Paganini, com quem trava conhecimento na sua estreia londrina em 1834. Com aspirações a tornar-se também compositor e tendo já tido lições com o reputado Simon Sechter em Viena, passa o Inverno de 1835-36 a estudar composição com Anton Reicha em Paris, datando a sua primeira composição de 1836: o Concerto para Violino n.º 2 em Fá sustenido menor, Op. 19. A sua juventude e o seu virtuosismo criam-lhe uma fama lendária. Entre os seus compositores mais admirados encontra-se Beethoven, de quem se converte em intérprete favorito do seu Concerto para Violino, Op. 61.

Em 1837 e 1839 realiza digressões na Rússia, onde adquire uma grande reputação. Durante a segunda digressão escreve o Concerto para Violino n.º 1 em Mi Maior, Op. 10, estreado em Paris em 1841 com o aplauso de Wagner e Berlioz. Em 1843 e 1844, efectua a primeira digressão de concertos nos Estados Unidos, compondo para a ocasião Souvenirs d’Amérique, Op. 17.

Na sequência da digressão americana, segue-se uma tournée pela Alemanha, onde Vieuxtemps comporia uma nova obra, o Concerto para Violino n.º 3 em Lá Maior, Op. 25, muito influenciado pelo seu amado Concerto para Violino de Beethoven. Em 1844 casa-se com a pianista vienense Josephine Eder, e entre 1846 e 1852 estabelece-se na Rússia como violinista da corte, violinista solista dos Teatros Imperiais de São Petersburgo e professor do conservatório desta cidade. Ali compõe, para além de muitas outras obras, um dos seus concertos mais conhecidos, o Concerto para Violino n.º 4 em Ré menor, Op. 31, descrito por Berlioz como “uma sinfonia para violino”. Apesar de ter assinado um contrato de seis anos com a corte russa, foi-lhe permitido dar concertos fora desse país durante as suas férias anuais, continuando a actuar em toda a Europa.

Vieuxtemps regressa à sua Bélgica natal em 1852 e permanece em Bruxelas até 1854, quando se muda para Dreieichenhain, perto de Frankfurt, onde permaneceria por mais de dez anos. A sua segunda digressão aos Estados Unidos teve lugar em 1858, onde actuou 75 vezes em menos de três meses! Em 1858, o seu amigo Hubert Léonard e professor do Conservatório de Bruxelas encomenda-lhe uma obra para ser utilizada num concurso de violino da instituição. Entre 1858 e 1859 Vieuxtemps compõe o Concerto para Violino n.º 5 em Lá menor “Grétry”, Op. 37, obra de grande sensibilidade e tom romântico. O concerto foi expressamente concebido para testar as capacidades de alunos muito avançados do instrumento, mas manteve-se no repertório por mérito próprio e provavelmente ultrapassa o Quarto Concerto em popularidade. Devido a uma situação política cada vez mais difícil, deixou a sua casa em Dreieichenhain em 1866 e estabeleceu-se em Paris. A sua mulher Josephine morreu de cólera em 1868, o que o levou a fazer uma longa pausa na sua intensa agenda de concertos.

Embarcou na sua terceira digressão pelos Estados Unidos em 1870, influenciado a aceitá-la em parte pelo início da Guerra Franco-Prussiana. Durante essa tournée, actuou 121 vezes em meio ano. Em 1871, depois de ter recusado duas vezes cargos de ensino, aceitou finalmente uma cátedra no Conservatório de Bruxelas. Os seus alunos mais famosos foram Eugène Ysaÿe e Jenö Hubay. Em Setembro de 1873, enquanto se encontrava em França num concerto de caridade para ajudar vítimas da Guerra Franco-Prussiana, sofreu uma apoplexia e perdeu o uso do braço direito, tendo ido morar para Paris com a sua filha e genro, voltando gradualmente a compor e até a tocar, embora não publicamente. Após uma tentativa abortada de voltar às aulas no Conservatório, resolveu mudar-se com a sua irmã para Mustapha, na Argélia, onde o marido desta residia. Ai dá continuidade ao seu trabalho criativo e compõe os seus dois últimos concertos: o Concerto para Violino n.º 6 em Sol Maior, Op. 47 dedicado à violinista Wilhelmine Normand-Neruda e, logo a seguir, o Concerto para Violino n.º 7 em Lá menor, Op. 49, dedicado a Hubay que o visita na Argélia. Permaneceu um compositor ativo quase até ao dia da sua morte, no dia 6 de Junho de 1881. O seu corpo foi transladado para a Bélgica onde Vieuxtemps foi recebido como um herói nacional e enterrado em Verviers, a sua cidade natal.

Sugestão de audição:
Vieuxtemps: Violin Concerto No. 5
Viktoria Mullova, violin, Academy of St. Martin in the Fields, Sir Neville Marriner – Philips, 1989

18 Fev 2020

O divertissement de Ravel

[dropcap]Q[/dropcap]uando Maurice Ravel começou a planear o Concerto para Piano e Orquestra em Sol Maior em 1928, estava no auge da sua carreira, sendo a sua música o centro das atenções em numerosos festivais e celebrações, incluindo estas um doutoramento honorário pela Universidade de Oxford. Ravel decidiu que queria escrever um concerto para ele próprio interpretar numa digressão mundial de concertos planeada, e em 1929, pôs mãos à obra, tarefa no entanto interrompida pelo encomenda do pianista austríaco Paul Wittgenstein do Concerto para a Mão Esquerda. O compositor trabalhou furiosamente nos dois anos que se seguiram na composição simultânea dos dois concertos enquanto honrava compromissos de direcção e gravação. O Concerto em Sol Maior foi eventualmente concluído em 1931, mas devido à sua já delicada saúde, a estreia foi confiada à pianista a quem a obra foi dedicada, Marguerite Long, sob a direcção de Ravel, que teve lugar na Salle Pleyel, em Paris, no dia 14 de Janeiro de 1932, com a Orquestra Lamoureux, e que constituiu um sucesso imediato. O Concerto para a Mão Esquerda tinha sido estreado em Viena no dia 5 de Janeiro do mesmo ano. Os planos de Ravel de fazer uma digressão mundial com o Concerto em Sol Maior nunca se concretizaram, embora o compositor tivesse dirigido várias apresentações em vinte cidades europeias com Marguerite Long – a última em Novembro de 1933 – antes da sua saúde o ter levado a abandonar os palcos completamente.

Entre as últimas obras completas de Ravel, o concerto sintetiza muitos dos seus traços mais característicos: sonoridades orquestrais sumptuosas, jazz, música espanhola, e a elegância oitocentista. O efeito geral do concerto é de uma obra impressionista com bastante impacto, uma das melhores de Ravel. Concebendo a obra com um divertissement, Ravel enquadrou este concerto de acordo com o plano clássico tradicional rápido-lento-rápido no qual o Allegramente de abertura delineia a forma-sonata, o segundo andamento apresenta um interlúdio pensativo, enquanto o finale explosivo borbulha de virtuosismo exuberante. De acordo com a máxima de Ravel “complexo mas não complicado”, a obra exibe novas texturas de cor tanto para a orquestra como para o pianista, combinado os dois numa pareceria equilibrada.

A obra foi profundamente influenciada por expressões e harmonias de jazz, que na época eram muito populares em Paris e nos Estados Unidos, onde Ravel tinha viajado em digressão de recitais, observando estar surpreso que tão poucos americanos fossem influenciados por este género.

O primeiro andamento, marcado Allegramente, inicia-se subitamente com o som de um chicote. O solista ao piano apresenta imediatamente o enérgico tema de abertura através de uma série de arpejos floridos no registo agudo, interrompido por um tema sonhador de blues, inspirado no jazz, o primeiro solo de piano.

Segue-se uma secção jazzy que recorda as viagens do compositor pelos Estados Unidos, incluindo no entanto algumas breves citações de Rachmaninov e de um dos temas do primeiro quadro do ballet Petrushka de Stravinsky. Estas duas secções lentas representam o âmago expressivo do andamento e são o foco de uma série de efeitos tímbricos inovadores, imbuídos de coloração bitonal, tanto na orquestra como no piano.

Tanto o primeiro como o último andamento (Allegramente e Presto) estão bastante imbuídos de excitantes melodias ao estilo do jazz, embora conservando elementos clássicos. O primeiro andamento é uma peça fluida e vivaz com harmonias que recordam as futuras de Aaron Copland; para logo finalizar numa estrondosa coda em modo frigio, que caracteriza Ravel em muitas obras e que o vinculam de uma maneira especial com a música popular espanhola.

O formoso e contemplativo segundo andamento em Mi Maior (Adagio assai) mostra o Impressionismo típico de Ravel, iniciando-se com uma extensa melodia lírica no piano solo que, de acordo com Ravel, foi inspirada no Larghetto do Quinteto para Clarinete de Mozart. Enganador na sua simplicidade, pois as cadências estão entre as mais difíceis do repertório, este nostálgico tema é apropriado pelas madeiras, com um extenso solo de corne inglês que toca fluidas linhas de fusas, durante o qual o solista ao piano toma um papel secundário de acompanhamento.

O incrivelmente rápido finale, marcado Presto, é um catalogo de virtuosismo para solista e orquestra, que emprega muitas melodias equilibradas e ligeiras combinadas com outras mais poderosas e ritmos percurssivos que a tornam uma experiência arriscada de tocar.

Sugestão de audição:
Ravel: Piano Concerto in G/ Rachmaninov: Piano Concerto No. 4
Arturo Benedetti Michelangeli, piano, Philharmonia Orchestra, Ettore Gracis – EMI, 1958
12 Fev 2020

Carrilhões de Mafra voltam a tocar

[dropcap]O[/dropcap]s carrilhões do Palácio Nacional de Mafra voltaram a tocar no passado sábado, 1 de Fevereiro, quase 20 anos depois de se terem sido remetidos ao silêncio. O concerto inaugural, ao qual assistiram milhares de pessoas, teve lugar no domingo, dia 2, com a bênção dos sinos e os carrilhonistas Abel Chaves e Liesbeth Janssens a interpretarem As Quatro Estações de Vivaldi e uma obra original da autoria de Abel Chaves.

No dia 1, o programa relativo à inauguração do restauro dos sinos e carrilhões do Palácio Nacional de Mafra incluiu recitais sobre a herança da família Gato, os compositores ao serviço da Coroa nos séculos XVIII e XIX, obras originais compostas para carrilhão, e arranjos para carrilhão de música barroca. Os recitais — pelos carrilhonistas Francisco Gato, Abel Chaves, Luc Rombousts, Ana Elias, Frank Deleu, Koen Van Assche, Marie-Madeleine Crickboom — iniciaram-se às 10h e prolongaram-se até às 16h30.

Ainda no primeiro dia realizaram-se duas palestras, uma das quais sobre a herança de Willem Witlockx (que, com Nicolas Levache, foi fundidor dos dois carrilhões) por Luc Rombouts, musicólogo e carrilhonista belga.

No segundo dia decorreram também palestras: a encomenda dos dois carrilhões para o Real Paço de Mafra teve a intervenção de Isabel Iglésias; o técnico da Direcção-Geral do Património Cultural Luís Marreiros apresentou a empreitada de reabilitação dos carrilhões e torres sineiras; João Soeiro de Carvalho, professor do Departamento de Ciências Musicais da Universidade Novade Lisboa, fez a sua intervenção sobre o complexo sineiro de Mafra; e o estudo acústico dos carrilhões esteve com Vincent Debut, investigador do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa. O concerto inaugural realizou-se às 16h.

O Palácio Nacional de Mafra vai manter um programa de concertos de carrilhões ao longo do ano, com a participação de carrilhonistas de todo o mundo, que está a ser ultimado, para ser anunciado. Apesar de as obras de restauro englobarem os dois carrilhões, só o da torre sul vai ficar a funcionar.Depois do restauro dos seis órgãos históricos, inaugurado em 2010, a reabilitação dos carrilhões — que já não tocavam desde 2001 — e dos sinos “vem reforçar uma das singularidades do palácio” e a sua monumentalidade, ao ter o maior conjunto sineiro, a nível mundial, e seis órgãos históricos a tocarem em conjunto, únicos no mundo, afirmou o director do palácio, Mário Pereira.

A inauguração do restauro antecede a instalação do Museu Nacional da Música no Palácio Nacional de Mafra, que foi apresentado pela ministra da Cultura, Graça Fonseca, como um dos “investimentos prioritários” do Governo de Portugal para 2020, no âmbito da reabilitação do património cultural. A intervenção de restauro do maior conjunto sineiro do mundo, orçada em 1,7 milhões de euros, começou no Verão de 2018, depois de ter sido dado o visto do Tribunal de Contas para a assinatura do contrato de consignação com o empreiteiro, a empresa Augusto de Oliveira Ferreira Lda., de Braga, e de, nesse Inverno, terem sido adoptadas interdições de circulação no local, por sinos e carrilhões ameaçarem cair com o mau tempo. O concurso público tinha sido lançado em Novembro de 2015. O Governo reconheceu na altura a “urgente necessidade de proceder à reabilitação” dos sinos e carrilhões, “face ao avançado estado de degradação” e aos “riscos de segurança, não só para o património em si, como para os utentes do imóvel e transeuntes da via pública”. O financiamento suplementar oriundo do Turismo de Portugal permitiu ainda pôr em funcionamento os sinos das horas.

Os sinos, alguns a pesarem 12 toneladas, estavam presos por andaimes desde 2004, para garantir a sua segurança: as estruturas de suporte, em madeira, encontravam-se apodrecidas. Na altura, os carrilhões de Mafra foram classificados como um dos “Sete sítios mais ameaçados na Europa”, pelo movimento de salvaguarda do património Europa Nostra.

Os dois carrilhões e os 119 sinos, repartidos por sinos das horas, da liturgia e dos carrilhões, constituem o maior conjunto sineiro do mundo, constituindo, a par dos seis órgãos históricos e da biblioteca, o património mais importante do Palácio Nacional de Mafra, classificado como Património Cultural Mundial da UNESCO em Julho de 2019.

4 Fev 2020

O Debussy sublime de Michelangeli

[dropcap]A[/dropcap]s gravações do lendário e enigmático pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli (1920-1995), cujo centenário do nascimento se assinalou no passado dia 5 de Janeiro, dos Préludes pour piano, L. 117 e L. 123 do compositor impressionista francês Claude Debussy para a editora Deutsche Grammophon, realizadas nos anos 70 e 80 do séc. XX e consideradas das mais surpreendentes do pianista, foram aclamadas na época como revolucionárias, magistrais e unicamente emocionantes, tendo-se os encómios repetido em cada relançamento subsequente. O som destas gravações, prístino e cristalino, foi remasterizado com tal fidelidade que o piano parece ser mais real que a maior parte dos pianos reais. O domínio de Michelangeli é completo: cada nuance soa na sua interpretação. As cores são transparentes e brilhantes, mas iridescentes e luminosas. A concepção de Michelangeli possui o alcance e a escala de poesia épica, sendo cada Prelúdio a sua própria ode. A sua execução é superior e, apesar da paixão que confere à sua interpretação, é a música que ressoa no Debussy de Michelangeli. Estas gravações, raramente fora do catálogo desde o seu lançamento em 1978, alcançaram um estatuto de culto. O refinado colorido de teclado e a lucidez textual penetrante de Michelangeli são extraordinários e durante muitos anos, a interpretação de Michelangeli desta música superior foi considerada aquela “au delà de ceci il n’y a aucun autre”.

Os dois livros dos Préludes pour piano de Claude Debussy foram compostos entre 1909 e 1913. O primeiro livro, mais concretamente, entre Dezembro de 1909 e Fevereiro de 1910; e o segundo, dos últimos meses de1912 até Abril de 1913. Ambos contêm doze prelúdios cada. Em conjunto com En blanc et noir e com os seus doze Études, todos compostos em 1915, os vinte e quatro Préludes pour piano de Debussy marcaram definitivamente o pensamento pianístico do compositor. Debussy escolheu o nome dos seus prelúdios, composições muito livres, em honra aos Prelúdios de Frédéric Chopin e nunca teve a intenção nem o desejo de reunir todas estas peças numa mesma série, pois considerava cada uma delas como uma obra aparte. Um dos aspectos que os diferenciam dos prelúdios do compositor polaco é que não seguem nenhuma ordem cromática; mais, Debussy nem sequer utilizou cinco tonalidades.

Embora estes Préludes sejam considerados um dos pináculos da música impressionista, devem ser vistos como um convite à viagem e ao sonho mais do que como uma pintura descritiva.

Debussy teve o cuidado de indicar os títulos dos seus prelúdios apenas no final de cada peça, entre parêntesis e depois de reticências, de maneira a que o intérprete pudesse descobrir as suas próprias impressões sem estar condicionado pelas suas ideias iniciais. Esses títulos foram escolhidos para criar associações de imagens ou de sensações. Alguns, contudo, são bastante ambíguos: Voiles, por exemplo, pode interpretar-se no masculino e no feminino.

A atmosfera das peças varia enormemente, desde a profunda calma de La cathédrale engloutie ao virtuosismo sem limites de Ce qu’a vu le vent d’ouest; ou desde a misteriosa Brouillards à explosividade de Feux d’artifice. Os dois prelúdios mais conhecidos destas duas séries pertencem ambos ao primeiro livro: La fille aux cheveux de lin é uma breve mas no entanto harmonicamente complexa expressão de beleza. La cathédrale engloutie alude à lenda da cidade submersa de Ys, cuja catedral se elevava por cima da superfície uma vez por dia para recordar a glória da cidade perdida para logo a seguir fundir-se de novo nas águas.

Debussy conseguiu um fiel reflexo da história, pois poderia dizer-se que se ouvem os cânticos dos monges e o campanário da catedral. Foram feitas numerosas orquestrações dos vários prelúdios , a maior parte de La fille aux cheveux de lin e La cathédrale engloutie.

 

Sugestão de audição:
Arturo Benedettti Michelangeli Plays Debussy
Arturo Benedetti Michelangeli, piano – Deutsche Grammophon, 1995

21 Jan 2020

Michelangeli “Il grande”

[dropcap]P[/dropcap]oucos pianistas provocaram maior reverência e controvérsia que Arturo Benedetti Michelangeli: reverência pela sua perfeição cristalina, e controvérsia por interpretações que podiam ir do arrepiante ao sublime. O pianista italiano que foi aclamado por muitos críticos e músicos como um dos artistas supremos do teclado do seu tempo, teria feito 100 anos no passado dia 5 de Janeiro. Os críticos dividiam-se sobre o seu trabalho, mas o seu comando técnico supremo do piano é um aspecto indisputável da sua arte. Era um homem bem constituído cujos longos braços e mãos grandes estavam tanto à vontade a segurar o volante do seu Ferrari (foi três vezes concorrente na famosa corrida de automóveis Mille Miglia) como a domesticar o teclado do seu Steinway de concerto que insistia em levar consigo em digressão.

Nascido numa pequena povoação perto de Brescia, Arturo Benedetti Michelangeli começa a estudar violino aos três anos de idade com o seu pai, prosseguindo os estudos de música no Instituto Venturi, em Brescia.

Aos 10 anos, entra para o Conservatório Verdi, em Milão, onde se diploma em piano aos 13 anos. Em 1938, aos 18 anos, inicia a sua carreira internacional ao participar no Festival Internacional Isaÿe em Bruxelas, no qual se classifica em sétimo lugar e do qual foi vencedor o célebre pianista russo Emil Gilels. Um ano depois, alcança o primeiro lugar na primeira edição do Concurso Internacional de Execução Musical de Genebra (piano), no qual foi aclamado como “um novo Liszt” pelo pianista Alfred Cortot, presidente do júri, do qual fazia também parte o pianista Ignacy Paderewski, que viria a apoiar Michelangeli no início da sua carreira.

Durante a II Guerra Mundial, Michelangeli serviu o país como piloto na Força Aérea Italiana, sendo capturado pelos alemães para o final da guerra, que, declarou mais tarde, lhe vergastaram as mãos e braços quando descobriram que era pianista. Após o conflito, ensinou no Conservatório Martini em Bolonha e o ensino permaneceria uma parte essencial do seu trabalho. Em 1949, foi escolhido como pianista oficial dos eventos comemorativos dos 100 anos da morte de Chopin, que tiveram lugar em Varsóvia.

Tornou-se conhecido pelo seu ensino pouco convencional e lendário, nas suas famosas Academias Internacionais que leccionava no belo Schloss Paschbach, em Eppan, no Tirol do sul, em Itália. Os seus melhores alunos eram convidados a frequentar estas academias gratuitamente, mas segundo as regras e horários restritos de Michelangeli. Dois alunos que reverenciaram o seu trabalho foram Maurizio Pollini e Martha Argerich. A actual Academia de Piano Eppan inspira-se na tradição das famosas master classes realizadas por Michelangeli em Eppan, nos anos 50. Nesse período ensinava no Conservatório em Bolzano mas vivia em Eppan, no referido castelo, onde ainda é possível admirar o seu piano. A sua generosidade para com os jovens artistas era muito conhecida. A Academia de Piano Eppan segue esta tradição. Seis jovens pianistas são convidados para uma master class exclusiva e a dar aí concertos ao serão. Um dos participantes recebe o Prémio Arturo Benedetti Michelangeli (no valor de €5.000) atribuído pela Cidade de Eppan.

De aparência aristocrática e quase Lisztiana, Michelangeli aparecia em palco com aspecto cadavérico e sepulcral. A sua execução, frequentemente controversa, não pertencia a nenhuma escola a não ser a sua. O seu estilo, individual e possivelmente perverso em alguns aspectos, era directo, mas contido, caloroso mas frio. A sua técnica, que podia ocasionalmente ser imaculada, era não apenas fruto de um prodigioso talento, mas também de um trabalho árduo. Costumava dizer aos seus alunos que para tocar piano “tem que se trabalhar até nos doerem os braços e as costas todos. A música é um direito para os que o merecem.” Palavras exigentes de um homem que as seguia.

Conhecido pelo seu perfeccionismo, seriedade de estilo e obsessão por pianos impecavelmente regulados e afinados, Michelangeli foi um pianista de muitos recitais cancelados à última da hora, para desespero dos seus managers, e que reputadamente não gostava de dar concertos. Era um conhecedor da mecânica do piano e insistia que os seus instrumentos de concerto estivessem em perfeitas condições. Este artista inigualável destacou-se principalmente como grande intérprete de Debussy e Ravel; e em Beethoven, Chopin, Schumann e Brahms soube igualmente mostrar o seu imenso talento. Era conhecido também pela sua hipocondria, pelas suas superstições e por passar noites inteiras acordado, estudando piano. O seu último recital, com um programa inteiramente dedicado a Debussy, realizou-se em Hamburgo, no dia 7 de Maio de 1993. Arturo Benedetti Michelangeli faleceu em Lugano, no dia 12 de Junho de 1995, na sequência de uma crise cardíaca e encontra-se sepultado em Pura, na Suíça.

Sugestão de audição:
Claude Debussy: Préludes – Volume 1
Arturo Benedetti Michelangeli, piano – Deutsche Grammophon, 1984

14 Jan 2020

O Quebra-nozes

[dropcap]O[/dropcap] ballet em dois actos O Quebra-nozes, Op. 71, com música do compositor russo Piotr Ilyitch Tchaikovsky e originalmente coreografado por Marius Petipa e Lev Ivanov, estreou no dia 18 de Dezembro de 1892 no Teatro Mariinski, em São Petersburgo, então capital da Rússia imperial. Devido à sua temática, o ballet é tradicionalmente encenado na época natalícia.

Embora a produção original do ballet não tenha sido um sucesso, a partitura de Tchaikovsky tornou-se uma das suas composições mais famosas e O Quebra-nozes desfruta de enorme popularidade desde o final dos anos 60 do séc. XX, sendo agora produzido por numerosas companhias de bailado, principalmente durante a temporada de Natal, especialmente na América do Norte. As principais companhias americanas de bailado geram cerca de 40% de sua receita anual de bilhetes com apresentações da obra. A partitura do ballet tem também sido usada em várias adaptações cinematográficas da história de Hoffmann. Tchaikovsky extraiu ainda do ballet uma suite, com três andamentos e a duração de 20 minutos, que teve enorme sucesso.

Na sequência do êxito do ballet A Bela Adormecida, também com música de Tchaikovsky, em 1890, Ivan Vsevolozhsky, director dos Teatros Imperiais Russos, encomendou ao compositor um programa duplo constituído por uma ópera e um ballet. A ópera viria a ser Iolanta. Para o ballet, Tchaikovsky iria trabalhar em conjunto com Marius Petipa, com quem tinha colaborado em A Bela Adormecida. O material que Petipa escolheu baseia-se na versão de Alexandre Dumas, intitulada “A História de um Quebra-nozes”, do conto infantil O Quebra-nozes e o Rei dos Ratos de E. T. A. Hoffmann. A trama da história de Hoffmann (e adaptação de Dumas) foi grandemente simplificada para o ballet de dois actos.

Petipa deu instruções extremamente detalhadas para a composição de cada número, ao pormenor do andamento e do número de compassos, mas adoeceu antes dos ensaios, o que fez com que Ivanov, seu assistente, tivesse um papel mais decisivo na coreografia. Ivanov terá realçado as cenas do reino do açúcar no segundo acto. Criando um nó de ansiedade e antecipação do futuro, conduziu o conteúdo lírico da música como uma história acerca do destino das personagens e uma reflexão poética sobre o espírito natalício. A conclusão da obra foi interrompida por algum tempo quando Tchaikovsky visitou os EUA durante 25 dias para dirigir os concertos de abertura do Carnegie Hall, em Nova Iorque. Também compôs partes da obra em Rouen, em França.

Trata-se de uma história em que a fantasia e a magia, típicas do romantismo, contam as aventuras de um quebra-nozes de aparência humana, vestido de soldado, mas que tem as pernas e a cabeça de tamanho desmesurado.

No Acto 1, é véspera de Natal e a família Stahlbaum está-se a preparar para a festa anual. Os pequenos Clara e Fritz aguardam ansiosamente a chegada da sua família e amigos.

À medida que os convidados começam a aparecer, a festa ganha vida com muita dança e a excitação aumenta. Chega um convidado misterioso que, com o seu fato escuro, assusta Fritz, mas não Clara, que sabe que é o padrinho Drosselmeyer, fabricante de brinquedos. A festa prossegue, mas é novamente interrompida quando Drosselmeyer revela às crianças que lhes trouxe presentes. As raparigas recebem bonecas de porcelana e os rapazes cornetas. Fritz recebe um bonito tambor, mas Clara recebe o melhor presente de todos, um quebra-nozes. Fritz fica com ciúmes e arranca-lhe o boneco de madeira das mãos, atirando-o para os outros rapazes, acabando por se partir. As lágrimas de Clara só secam quando o seu tio conserta o boneco, com um gesto de magia. A festa termina e Clara deixa o seu Quebra-nozes ao lado da árvore de Natal antes de ir para a cama numa cama improvisada, mas acaba por adormecer debaixo da árvore com ele nos braços. Sem ser visto, Drosselmeyer permanece para trás e lança a sua magia…

Ao bater da meia-noite, Clara acorda e depara-se com um cenário assustador. A sala e os brinquedos parecem ter crescido; será que ela está a encolher? Do nada surgem grandes ratos fardados de soldados, liderados pelo Rei Rato, que começam a cercar a sala enquanto os brinquedos e a árvore de Natal ganham vida. O Quebra-nozes, que também ganhou vida, reúne a sua infantaria e cavalaria de brinquedo. Uma grande batalha acontece. Quando o Rei Rato está prestes a dominar e a vencer o Quebra-Nozes, Clara distrai-o, atirando-lhe a sua pantufa e atingindo-o em cheio na cabeça, permitindo assim que o Quebra-nozes desfira o golpe vencedor. Os exército de ratos retira rapidamente o seu rei do campo de batalha. Carla, dominada pelo momento, cai na cama que tinha sido do Quebra-nozes. Então, a cama transforma-se num trenó mágico. Mais uma vez Drosselmeyer invoca a sua magia e o Quebra-Nozes transforma-se num belo príncipe, que sobe para o trenó e, flutuando cada vez mais alto, os conduz através de uma floresta coberta de neve, onde os flocos de neve se transformam em donzelas dançantes. Após a viagem pela floresta de neve, Clara e o príncipe chegam ao seu destino, o maravilhoso Reino dos Doces, iniciando-se o Acto 2.

Clara e o Príncipe são recebidos pela Fada Açucarada a quem Clara conta a história da batalha. Em homenagem à bravura de Clara e ao heroísmo do Quebra-nozes, a Fada dá uma grande festa no Castelo dos Doces. Todos dançam em sua homenagem – lindas princesas árabes, cossacos russos, bailarinos franceses e até flores exóticas. Clara começa logo a dançar e só pára para testemunhar a mais bela de todas as danças, pela Fada Açucarada e o seu Cavaleiro. As danças terminam e todos se vêm despedir do príncipe e de Clara. Clara acorda na manhã seguinte debaixo da árvore de Natal com o quebra-nozes de madeira ainda nos braços. Poderá tudo não ter passado de apenas um sonho? Ou foi a magia do Natal?

Sugestão de audição:
The Nutcracker (Complete ballet)
Berliner Philharmoniker, Semyon Bychkov – Decca, 1987

31 Dez 2019

Os Concertos para Violoncelo

[dropcap]O[/dropcap] compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, cujos 60 anos da morte se assinalaram no passado dia 17 de Novembro, é descrito como “a figura criativa mais significativa do Século XX na música clássica brasileira”, tornando-se o compositor sul-americano mais conhecido de todos os tempos. Autor prolífico, escreveu numerosas obras orquestrais, de câmara, instrumentais e vocais, totalizando mais de 2000 até sua morte, em 1959. Villa-Lobos teve como primeiro e dilecto instrumento o violoncelo, compondo várias obras para o mesmo, entre as quais dois concertos.

Se o seu Primeiro Concerto para violoncelo, o Grande Concerto No 1, Op. 50 não se parece muito com outros trabalhos seus conhecidos, é porque se trata de uma das suas primeiras composições – provavelmente a sua primeira tentativa reconhecida de compor para orquestra –, e porque, em 1913, ainda não tinha desenvolvido um estilo distinto. A imaturidade do compositor é patente tanto no seu manejo inconstante da forma, como no material pouco digno de memória. A obra partilha influências francesas e brasileiras, patentes nas suas longas linhas líricas para o violoncelo derivadas de melodias populares brasileiras, enquanto a orquestração reflecte a influência de Debussy, ainda vivo quando Villa-Lobos deu os toques finais neste concerto. A estreia ocorreu no dia 10 de Maio de 1919 no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, sendo solista o violoncelista Newton Pádua, sob a direcção do compositor.

Felizmente, o Segundo Concerto, composto no Rio de Janeiro em 1953, é muito superior como obra – agora na veia mais madura do compositor e com uma reminiscência interessante no segundo andamento da suite Bachianas brasileiras nº 5, especialmente quando a extensa cantilena do violoncelo é acompanhada por uma figuração rápida em pizzicato. O Concerto para Violoncelo e Orquestra, N° 2, W 516 foi composto por encomenda do violoncelista, também brasileiro, Aldo Parisot. Foi estreado por Parisot com a New York Philharmonic, sob a direcção de Walter Hendl, no dia 5 de Fevereiro de 1955. O suporte harmónico e o som orquestral lembram a abordagem mais rigorosa e eficaz de Hindemith, um atributo que não é certamente encontrado com frequência em Villa-Lobos. Embora o compositor não cite directamente nenhuns temas populares neste Concerto, a música soa definitivamente brasileira, com elementos e ritmos de dança folclóricos a permear a partitura. O uso de fontes brasileiras é visto como um tributo ao seu compatriota, Aldo Parisot, a quem a obra foi dedicada. Alguns desses elementos foram tirados da música do Nordeste do Brasil (como os padrões rítmicos do “desafio” e do “berimbau”), uma região cuja expressão popular foi muito admirada e estudada por Villa-Lobos. Não por coincidência, Parisot é também originário do Nordeste e desta forma o compositor tencionou provavelmente capturar as suas raízes nativas.

Sugestão de audição:

Heitor Villa-Lobos: Cello Concertos Nos. 1 & 2
Antonio Meneses (violoncelo), Orquesta Sinfónica de Galicia, Victor Pablo Pérez – Naïve, 1999

17 Dez 2019

Bachianas brasileiras: os Concertos de Brandeburgo

[dropcap]O[/dropcap] compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos, cujos 60 anos da morte se assinalaram no passado dia 17 de Novembro, é autor de um catálogo de proporções colossais, com cerca de duas mil composições que abarcam todos os géneros, sendo a figura essencial da música clássica brasileira.

Filho de mãe indígena, recebeu as suas primeiras lições de música do seu pai, violoncelista aficionado. O violoncelo, precisamente, ia ser o seu primeiro e dilecto instrumento; mais tarde aprendeu a tocar piano e vários instrumentos de sopro. Formado musicalmente à margem das instituições e dos conservatórios oficiais, foram determinantes as viagens que realizou ao interior do Brasil a partir de 1906, em que conheceu os cantos tradicionais dos índios da selva amazónica, que exerceriam uma influência decisiva na formação do seu estilo, caracterizado por uma absoluta originalidade formal e harmónica, livre das convenções do nacionalismo mais académico, mas no qual a recriação, mais do que a alusão directa de melodias e ritmos indígenas, ocupa um lugar preferencial.

Em 1915 deu-se a conhecer, não sem polémica, num concerto celebrado no Rio de Janeiro e integrado todo ele pelas suas próprias composições, cuja novidade chocou com o conservadorismo do público assistente.

Uma bolsa concedida em 1923 pelo governo brasileiro permitiu-lhe financiar a sua formação em Paris. Ao regressar ao Brasil, exerceu o ensino em centros distintos, enquanto a sua música conquistava reconhecimento nacional e internacional.

Da sua abundante produção sobressaem as nove Bachianas brasileiras (1932-1944), nas quais Villa-Lobos se propôs sintetizar o contraponto de Johann Sebastian Bach com as melodias populares da sua pátria, a quinta das quais conquistou merecida fama.

As Bachianas brasileiras foram compostas entre 1930 e 1945. O conjunto de suites, escrito para formações diversas de instrumentos e vozes, funde material folclórico brasileiro (em especial a música sertaneja) e as formas pré-clássicas ao estilo de Johann Sebastian Bach, tencionando o compositor construir uma versão brasileira dos Concertos de Brandeburgo do compositor alemão. Representam não apenas uma fusão da música popular brasileira, por um lado, e o estilo de Bach, por outro, como uma tentativa de adaptar livremente uma série de procedimentos harmónicos e contrapontisticos barrocos à música brasileira. Esta homenagem a Bach também foi feita por compositores contemporâneos como Igor Stravinsky.

As Bachianas brasileiras resumem a preocupação do compositor com o seu antecessor barroco – que ele considerava “um mediador entre todas as raças” – e compreendem uma série amplamente abrangente de nove suites. A palavra “suite” é especialmente adequada aqui, pois em cada uma Villa-Lobos alude à terminologia das suites instrumentais barrocas de Bach nos títulos compostos que dá à maioria dos andamentos: a primeira parte do título evoca o mundo de Bach (Prelúdio, Ária, Fuga, etc.), enquanto a segunda sugere um contexto brasileiro (como em Embolada, Modinha, Ponteio, Martelo, etc.).

Algumas das Bachianas são para forças de câmara (a No 4 foi escrita para piano solo, mas depois orquestrada), enquanto outras exigem uma grande orquestra. A No 5, a mais conhecida da série, composta para oito violoncelos (o instrumento de Villa-Lobos) e soprano, usa tanto o canto falado como o vocalizo. Os seus dois andamentos foram compostos, respectivamente, em 1938 e 1945. O primeiro, Aria (Cantilena), de enorme beleza e lirismo, evoca o carácter melodioso requintado de um andamento lento de Bach, ao tecer a entoação da soprano no conjunto de violoncelos que tocam em compasso de 5/4. A sua secção central incorpora a sensibilidade da música folclórica no andamento usando um poema da escritora brasileira Ruth Valadares Corrêa (também uma soprano, que cantou a estreia mundial da ária). O poema é uma ode à suave ascensão da lua de encontro ao “firmamento sonolento e belo”. Dança (Martelo) é o título do segundo andamento (“martelado”), referindo-se à persistência do ritmo caracteristicamente brasileiro da “embolada”, observa o compositor. O poema de Manuel Bandeira aborda um pássaro cujo “canto vem das profundezas da floresta, como uma brisa que amacia o coração”.

Sugestão de audição:
Heitor Villa-Lobos: Bachianas brasileiras No 5
Victoria de los Ángeles (soprano), Orchestre Nationale de la Radiodiffusion Française, Heitor Villa-Lobos – Warner Classics, 1958

3 Dez 2019

Inaugurado restauro da Sala D. João IV do Palácio da Ajuda

[dropcap]F[/dropcap]oi inaugurada no passado dia 9 de Novembro a Sala D. João IV no Palácio Nacional da Ajuda (PNA), após 18 meses de obras no valor de 260.587 euros, patrocinadas pela Fundação Millennium BCP. A cerimónia foi presidida por Marcelo Rebelo de Sousa, na qual usaram também da palavra, antes do Presidente da República Portuguesa, o Director do PNA, José Alberto Ribeiro, a Directora-geral do Património Cultural, Paula Silva, o Presidente da Fundação Millennium BCP, António Monteiro, e a Ministra da Cultura, Graça Fonseca.

O restauro devolveu a autenticidade integral a uma sala do tempo do Rei D. João VI (1767-1826), uma das maiores do ex-palácio real, com 170m2, situada no piso nobre do edifício, uma das “salas de aparato” onde se realizavam diferentes cerimónias. Totalmente revestida a pintura, a das paredes é atribuída ao “pintor do rei”, José da Cunha Taborda (1766-1836), enquanto a do tecto é da autoria do famoso pintor Domingos Sequeira (1768-1837). Ambas as pinturas foram executadas, com toda a probabilidade, em 1823. Taborda, na parede poente, retrata o “Acto do Juramento Solene de D. João IV”, ocorrido a 15 de Dezembro de 1640 e, nas restantes, coloca uma atenta assistência, constituída pela pequena nobreza, burguesia e povo. A obra de Sequeira para o tecto reproduz a “Alegoria da Justiça e da Concórdia”, tela pintada em Roma, em 1794. No centro, o artista pintou a Justiça e a Sabedoria abraçadas, tendo por perto um génio exibindo uma cadeia quebrada. À direita, a Pátria e o Génio Tutelar do Reino repelem duas criaturas maléficas.

Para o director do PNA, José Alberto Ribeiro, é evidente a associação que se pretendeu fazer entre a libertação e restauração da Pátria em 1640, levada a cabo por João IV, e a acção igualmente libertadora de D. João VI, cerca de século e meio depois, mas agora em relação aos franceses. As tropas francesas invadiram Portugal entre 1807 e 1811, quando foram repelidas por um exército luso-inglês. Na opinião de José Alberto Ribeiro, a pintura de Domingos Sequeira visa “relevar os méritos da Dinastia [de Bragança] evocando o [seu] iniciador e representante ao tempo da construção do palácio real; e a ideia da libertação, da quebra da cadeia opressora, está sempre na base do nascer de uma nova era para Portugal”.

O Palácio da Ajuda foi residência régia até 1910, tendo sido sua última ocupante a rainha D. Maria Pia de Sabóia (1847-1911), avó de D. Manuel II (1889-1932), último rei de Portugal. A soberana foi também quem mais se empenhou na decoração do palácio e a quem se devem as suas colecções de arte e as grandes encomendas de pratas.

A construção do Palácio da Ajuda, situado no alto da colina da Ajuda e com uma soberba vista sobre o Tejo, iniciou-se em 1796, por ordem do Príncipe D. João (futuro rei D. João VI). Depois do terramoto de 1755, a família real tinha-se mudado para a zona da Ajuda, onde os terrenos eram mais seguros, habitando o Paço Real, um edifício em madeira, também conhecido como Barraca Real. Em 1794, um incêndio acidental destruiu esta habitação e surgiu a necessidade de construir novos aposentos reais, desta vez edificados em pedra e cal. O projecto barroco original foi iniciado por Manuel Caetano de Sousa, arquitecto das Obras Públicas. Posteriormente, e depois de uma paragem de 5 anos, a grandiosa obra é retomada pelos arquitectos Francisco Xavier Fabri e José da Costa e Silva, com um novo projecto de inspiração neoclássica, contando com a ajuda de outros artistas, nacionais e internacionais.

O que se vê hoje não representa o ambicioso projecto inicial, que contemplava a construção de um dos maiores palácios da Europa, com jardins a perder de vista. A obra não se concretizou porque a família real partiu para o Brasil, em 1807, devido às invasões francesas, e ficaria mesmo inacabada.

O Palácio, recorde-se, encontra-se a sofrer profundas obras de requalificação, tendo por objectivo concluir a fachada poente do edifico, um projecto do arquitecto João Carlos Santos, ala do imóvel que nunca foi acabada e que acolherá o Museu da Jóias da Coroa. É nessa ala que vai ficar instalada a Exposição Permanente do Tesouro Real, com milhares de jóias da coroa portuguesa e tesouros da Casa Real. O museu vai ter ainda objectos de prata e elementos decorativos, documentos e peças de iconografia. O investimento total é de cerca de 21 milhões de euros e está a ser financiado pelo Ministério da Cultura, Associação do Turismo de Lisboa e pelos fundos da taxa turística cobrada na cidade. Mais de 200 anos depois, o Palácio Nacional da Ajuda vai, assim, finalmente ficar completo. Prevê-se que as obras que começaram em Fevereiro deste ano irão terminar em 2020.

26 Nov 2019