O Viajante do Tempo

[dropcap style=’circle’]P[/dropcap]edido o café e um bom bocado, dispunha o livro e o caderno e abria o computador quando o tipo da mesa ao lado me abordou: É o senhor, não é? Se for para pagar dívidas, estou no Alasca, respondi. O que escreve no Savana, voltou ele. Ah, ok, ya. Desculpe meter-me consigo, mas sou um viajante do futuro, e tenho quinze minutos para lhe contar… Um viajante do futuro, atalhei, desconfiado. Sim, nasci no ano 2237; no ano de 2125 foi inventada a máquina do tempo. Eu vim prevenir sobre os seus perigos. Se só tem mesmo quinze minutos, tem toda a minha atenção… E pensava, pode ser que este doido dê crónica.

Que data é a de hoje?, e apontava o jornal. Diz, aqui, dia 23 de agosto. Daqui a 3 dias, a 26 de agosto na Alemanha, na cidade de Chemnitz, cerca de 1000 neo-nazis percorrerão as ruas da cidade, declarando caça a imigrantes e refugiados e atacando quem não pareça suficientemente alemão. O levantamento de mil neo-nazis descarados, a céu aberto, só numa cidade da Alemanha, escarneci, não está a pedir demais? Se acontecer, prova que venho do futuro. Olhei o tipo, era negro, não podia estar por dentro do conluio neo-nazi. Está bem, anui eu, matutando, Estás doido e não vou contrariar-te. Continuou ele: será a primeira de mil manifestações pela Europa toda, o que trará a violência e o caos. As redes sociais ajudarão a semear o caos. E como lutar contra isso, perguntei? Só pela educação, continuou. Embora os instigadores venham do futuro. Como é, indaguei intrigado.

Um pigarro precedeu a revelação: No futuro é tudo mecanizado e as pessoas vivem entediadas e então organizam expedições turísticas ao passado para voltarem a sentir-se no fulcro das emoções. E as agências turísticas das viagens no tempo organizam estes eventos, aproveitando-se da insatisfação e da ignorância dos jovens da época que visitam. Manipulam-nos. Continue, pedi, num nervoso piscar de olhos. Todos os jovens precisam de acreditar em desígnios superiores, em lendas, em mitologias, se essa tendência mitificadora não for compensada pela educação geram-se monstros; só pelo conhecimento profundo do horror que essas mitologias causaram na história dos povos é que combatemos o lado insano da irracionalidade. Compreendo e concordo, redargui, resolvendo testar-lhe a cultura: A linguagem intoxica-nos porque nos faz ceder ao seu gosto para o estereotipo, é a sua doença – e quando repetimos as fórmulas e referências que nos enganam fundamos os mitos. Já o dizia o velho Roland Barthes: vivemos uma guerra de linguagens e o mito é um produto da naturalização do signo. O que traduzido por miúdos é querer fazer passar uma situação história (e por isso transformável) por uma situação natural (como se fosse uma lei perene e irrevogável), por exemplo: o mito que sustenta a discriminação arbitrária entre os géneros com a ideia de que o homem seja superior à mulher, ou aquele que liga a terra aos laços de sangue. Cortou-me a palavra: O Barthes, é um dos fundadores do que chamamos a Arqueologia das Ilusões, mas não seja professoral, não temos tempo.

Diga, então. O assunto é sério, continuou. E só o reforço da educação impedirá o caos. Mesmo viajar no tempo deu vazão a toda a pornografia moral, muitos viajam para conhecer a Helena de Tróia nua, ou a Cleópatra. Marco António era um dos nossos. Ah, boquiabri a boca. Há mais casos de ingerência do futuro no passado, indaguei? A revolução de outubro de 1917 foi organizada por uma das nossas agências de turismo. Então isto está tudo fodido, reagi eu, incrédulo. Ainda não, mas está quase.

E aqui, em África, diga-me: Mondlane veio do futuro? Quer saber de mais, mas se os antigos libertadores acabam em tiranos é porque não tiveram uma educação para a democracia e querem impedir o que se faça nesse sentido – tornaram-se iguais aos seus opressores. As falcatruas são mais possíveis com massas ignaras. Não há futuro para África, perguntei aflito? Talvez, se as mulheres conseguirem tomar o comando das coisas, se não África vai para o cano, mergulhada em sangue, petróleo e cemitérios de elefantes… A mentalidade de confrontação dos movimentos de libertação entrincheirou-se numa cultura política autoritária que se baseia na afirmação de que os libertadores têm o direito de governar dentro de um novo projeto de elite, e assim capturam o estado, explicou, continuando, mas isto sequer é novo: desde a Revolução Francesa que é comum os libertadores transformaram-se em opressores, as vítimas em perpetradores. Olhe Ortega, na Nicarágua. Os novos regimes tornam-se o inimigo íntimo… O despotismo é, com o futebol, o mais aclamado desporto de massas. Há solução para o homem, perguntei aflito.

Suspendeu a fala e o olhar; levantou-se, abrupto, Desculpe, tenho de ir. Antes de eu dizer Vai água!, retirou-se. Seria um cyborg, ficou-me a dúvida.

O resto vocês sabem, em 26 de Agosto mil skinheads e neonazis invadiram a cidade de Chemnitz. Que dizer sobre isto? Foi para o galheiro o cliché de que o europeu é um mártir da racionalidade. Somos bárbaros, iguais a todos. É um estúpido frenesim, vivido à vez. Aliás, o movimento artístico mais duradouro e influente no século XX foi o Surrealismo e preconizava o cultivo da “irracionalidade” e do onirismo; todo o cinema e a publicidade – dois baluartes da modernidade ocidental – vivem do desejo, que é uma festa dos sentidos, da inteligência subordinada às formas do sentir; em todo o ocidente é confrangedora a atracção pueril por filmes de zombies, de vampiros e de horror da mais descabelada e sangrenta irracionalidade. Só a face das falácias dos mitos – invariavelmente, de inspiração política – separam as culturas.

Com o retorno do fascismo teremos de voltar a enxergar as modalidades sadias das funestas, na onda de irracionalidade que promete sufragar-nos. Para que consigamos surfar e safar-nos da época autoritária e sombria que em tempos globais se adivinha.

30 Ago 2018

SAILING TO BYZANTIUM

«Este país não é para velhos»
W.B. Yeats

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omeça assim o poema de Yeats que nos leva a Bizâncio, e reforçando ainda a ideia que um “velho não é coisa de valor” afirmações que só os poetas fazem, pois que o dizer nas suas fórmulas verbais, literárias, orais, têm outros signos, vastos sinais. Nem sempre as formulações que dão expressão às suas temáticas são eufemísticas, metafóricas, antes pelo contrário, muitas tendem para um desassombro que esclarece e ilumina. Os títulos de muitas coisas que andam pelo mundo foram aos poetas beber, retiram tanta coisa, que seria bom fixar a titularidade do mundo como o retalho de dizeres poéticos, creio que grande parte da Humanidade não se apercebe dessa fonte, como talvez nem saiba que tal fonte exista. Creio que na atoarda dos «Poetas Mortos» muito escapou de Walt Whitman, os capitães, esses, são todos de Abril, e pelo mundo fora, velhos marinheiros, os poetas, uns seres estranhos cujo destino é o saneamento ou a gruta. Relapsos. Mas, e sem desprestígio para outros «o que fica os poetas o fundam» (Holderlin).

Lembrei-me deste poema a partir de uma situação bem concreta, espontânea e natural, um fim de tarde de sexta-feira bela de Estio, aquelas tardes em que se combinam coisas com amigos, como seja, ir jantar, os amigos como bem se sabe não são novos, para isso temos agora os nossos filhos, e, realidade vasta, quem nunca os teve: claro, nós precisamos esbracejar, estar entre comensais, beber, louvar a talvez ainda longa vida que nos resta, mas, eis senão quando, a ideia seria uma “coisa” ligeira”: fustigada por um dia duro, aquele “ligeiro” pareceu-me de um mau gosto inexplicável, e retorqui; «LÁ ESTÃO OS VELHOS COM A MANIA DA DIETA» chá e torradas, em jeito de interjeição, e sem me dar conta estava no caminho de Bizâncio. O que se passou de seguida é digno de nomear para sempre este poema, pois que fui atravessada de espadas grosseiras de indignação não consentida deixando a descoberto a tristeza da juventude que se arrasta. Ou de uma ideia dela (sem querer, e de forma absoluta, que cada um usa o seu radicalismo junto às esferas onde se encontra, que ser moderado perante a indigência é verdadeiramente o mais antipoético que existe. Desapareci num ápice).

– Essas gerações moribundas – diz então Yeats – estas gerações moribundas – digo eu agora, são sempre um espectáculo atroz, são-no ainda mais na interpretação de uma factualidade que se rejeita como o mais duro dos anátemas, que ele, há coisas bem piores que nos chamam, sem uma devida rectificação indignada, e essas sim, foram construídas em tempo defeituoso face à dignidade do ser. O óbvio não deve ser revelado. Daí a rede de disfarces, de dislexia social, de juízos de valor, de cinismo vário, de supremacia infecta que cada um a si se dá, absolutamente patéticas. O que se pode dizer, e o que não se deve dizer, assaltou as consciências como um ladrão, roubou toda a via poética por onde a saúde mental há-de passar, e contaminou de conceitos os frágeis sentidos das gentes. Um poeta será agora a deidade esquecida no meio desta mecânica paralítica cujo desígnio seria iludir os factos. E quando olhamos ao redor cresceu o cinismo, a descrença, a vontade de superar a máscara, infiltrados em dispositivos automáticos vê-se um mundo que resvala para a paralisia de si mesmo. Está a ser um falhanço humano este estertor do tempo comum, e por isso, outro Homem se avizinha no horizonte, outra “máquina” outra fórmula.

Pois que faz tempo que ser velho foi um distintivo, uma receita de saber e fértil consciência. Protectores e mestres, eles davam início ao mais nobre da caminhada da vida, sem sobressaltos, vergonha, ou insubmissão, mas com orgulho, nobreza e respeito. Aliás, notava-se-lhes nas vestes, nas barbas, nos semblantes, nas sábias expressões que nos davam caminhos que todos precisávamos saber. Um ancião era respeitado pelas suas comunidades, e muitos, venerados como os signos vivos do entendimento. Eram os nossos Avós. Que tinham a mesma idade dos velhos de hoje, ou seja, das gentes que agora somos. Aliás, entendo que o magro entendimento da cultura poética agudizou de vez a antipatia pelos seus fazedores, e, para tanto, para que ela morra de vez, arranjaram-se versejadores sem qualidade que lhe roubaram o epíteto que pertence a um certo fogo, que também, e rodeado disto, aos poucos se apagou.

Quando o esclarecimento é óbvio e tem o assombro das justas designações, caímos vazios num mundo sem expressão, e, não há nada mais insipiente do que a coerência equilibrista de um auto representante de uma matéria que a sua própria vida não domina ” devorai este meu coração; doente de desejo, atado a um animal agonizante, ele não sabe o que é; juntai-me ao artifício da eternidade.” Transcender esta desdita, este ultraje, esta vileza, deveria levar-nos a ter o caminho mais justo, a via mais limpa, o ajuste mais certo, mas são sempre eles a pagar o preço da sua capacidade em ligar o todo e o denunciar nas esferas exactas. E, como bem sabemos, os povos são rebanhos amestrados, as pessoas coisas que passam, mas os poetas, são aqueles que ficam. E não ficam aqui. O seu exemplo fica em todos. Aqui, nunca mais.

Da natureza liberto, jamais de natural coisa
Retomarei minha forma, meu corpo.
Mas formas outras como as do ourives grego.
Em ouro forja e esmalta em ouro.
Para que o sonolento Imperador não adormeça.

Vivemos tempos patéticos. E na moldura da necessidade e do bem-estar, se dissipou então o caminho dourado para Bizâncio.

 

30 Ago 2018

A voz do vidro

Público, 14 Agosto

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo resistir ao estilhaçar de ironias causado pela notícia da queda de um visitante na escultura de Anish Kapoor, Descida para o Limbo (foto na página de Filipe Braga)? «Serralves está a acompanhar a situação clínica do visitante italiano, com cerca de 60 anos, que sofreu ferimentos quando caiu naquela escultura.» Podia a frase pertencer a conto do (tão meu) Mário-Henrique Leiria. O círculo negro no chão cumpre a sua função de perturbar com enganadora maneira o chão que pisamos. O escultor explora o vazio e procura pelos meios ao seu alcance mexer com a nossa percepção, em busca de outros lados, espaços negativos, chama-lhes. Não têm que ser físicas as armadilhas da arte, mas em servindo para alguma coisa, além da salvação do artista, há-de ser esta de se meter nos interstícios das coisas, ampliando-as. Ou encolhendo-as ao mínimo de uma noção. Limbo é um subúrbio do céu, construído para abrigar aqueles, justos e crianças, que não foram baptizados. Na teologia católica, segundo Borges, ramo da literatura fantástica.

Facebook, nenhures, 16 Agosto

Voz assim não se calará nunca. Por efeito de contiguidade, dei por mim a pensar que escultura poderia Kapoor imaginar a partir de Aretha Franklin (1942-2018). Orgânicos corredores vermelhos facilitando à superfície deambulações pelas vísceras? A sua voz explorou os côncavos do amor e do sofrimento, o sagrado e o profano, de modos, a um tempo, dilacerantes e prazerosos. Por inteiro, testemunhou um tempo, ou melhor: tempos, que foi capaz de eternizar fundindo-os em áspero diamante. Cai-lhe como vestido brilhante o nome de Lady Soul, ainda por cima baptismo de momentos iniciais. A máquina de produzir simbólico que são os Estados Unidos da América tocou o meu céptico coração com a sua participação vibrante na tomada de posse do presidente Obama. Por causa das coisas, as minhas horas procurarão um qualquer Spirit in the Dark. Aprenderei a dançar com as sombras? «Sure I know I can, I can borrow a smoke/ Why I can sit here all night and tell jokers some jokes/ But who’s gonna to laugh, / Who’s gonna laugh at my broken heart, heart.» Lá estou eu, Drinking Again.

Horta Seca, Lisboa, 17 Agosto

Esqueçamos por ora o momento primordial da escolha. Um editor realiza-se na preparação da obra, retirando do processo grande gozo e não menor ensinamento. Andamos a desenhar uma colecção para acolher os clássicos em duas vertentes, uma de traduções e outra de ensaios. A abordagem gráfica do Miguel [Macedo] pareceu-nos a melhor, para acrescentar um grão de sal ao conservadorismo que se pede. Quisemos descomplicar ao máximo a vida ao leitor, colocando cada expediente ao serviço do texto, que só por si será rico em excepções e notas. Cada detalhe da construção do livro suscita riquíssimo debate.

Não por acaso, e depois de tanto tardar, começamos com As Constituições Perdidas de Aristóteles, na tradução do mano António [de Castro Caeiro]. Uma micro enciclopédia sobre o mundo antigo, que se desdobra também em livro de viagens, carregado de momentos entre a luz e as trevas. «Aos Beócios, a divindade deu a seguinte resposta oracular: “domiciliem-se onde corvos brancos forem avistados”. Logo que viram as aves de Apolo, corvos brancos, pintados com giz por crianças inocentes, a voar em torno da baía de Págasa, ocuparam o local. Mais tarde, os Eólios expulsaram-nos dali e enviaram exilados para o mesmo local. Outros [interpretavam assim o oráculo, dizendo que era] porque o corvo é um animal sem vergonha e indica a proximidade do ocaso ao género humano. Aristóteles, por outro lado, diz que quando uma praga atacou, havendo muitos corvos, os homens capturavam-nos e depois de os terem purificado, punham-nos vivos em liberdade. E ordenavam à praga: “refugia-te nos corvos”». Assim nos fazemos crianças inocentes pintando de branco animais sem vergonha, dos que indicam ao humano a proximidade do ocaso.

Trindade, Lisboa, 20 Agosto

Casos há em que a preparação começa antes. Tive hoje primeiro mergulho em apneia no acervo de Tóssan, esse cometa das artes gráficas, além da escrita humorística e, afinal, um pouco mais, sobretudo contos e alguns poemas. São centenas de páginas, manuscritas na sua maior parte, generosamente disponibilizadas por amigos dilectos. Lição de humildade, este perceber que podemos ser reduzidos a meia dúzia de folhas conservadas pela amizade. O autor tinha planos para a papelada, tropeça-se em tentativas de arrumação, depuradas até ao singelo alinhamento que será a base das fases seguintes. Por ocasião de tais leituras, como que titubeantes, encontramos invariavelmente motivos de espanto. Veja-se este pequeno conto, que ilustra à transparência dias de tactear no nada.

«É preciso ter coragem para partir um vidro.
Nunca parti um vidro, mas sinto que é uma cobardia.
Tive sempre respeito pela limpidez de um vidro.
Tenho a impressão que os estilhaços se insinuariam na minha mágoa.
E depois o vidro tem voz. A voz do vidro é duma musicalidade fria, cortante. Não é só o grito emancipado, mas a multiplicação de gritos ao cair no chão, como se o primeiro protesto não fosse o suficiente.
E quando se pisam os estilhaços – é um longo lamento de rãs sem disciplina.
E depois o vidro quando quebra deixa uma cicatriz fosca cúbica que risca a noite ou o silêncio do dia.
Se o vidro não protestasse com violência, talvez as montras não fossem de vidro. A voz do vidro deve ser o guarda do próprio vidro. E quando tornasse a passar pelo lugar onde esteve o vidro, ainda por substituir, sentiria, quem sabe, os olhos doerem por não ver e a certificação do tacto gasta de tactear no nada.

Os estilhaços são o testemunho da agressão.»

Horta Seca, Lisboa, 15 Agosto

Pouco importa que seja este mês pulverizado, cheio de ausências brancas e brandas vontades. Tumultuosa ou plácida, a gestão corrente obriga-nos a trocar o essencial por um esmagador acessório. Há cobranças por fazer, pagamentos atrasados, gritos presos na garganta, impostos ameaçadores, formalidades por cumprir, direitos a pedir e outros a ceder, projectos a definir em papel, avaliações a ponderar, arrependimentos avulso, decisões tomadas e outras adiadas, impaciências por tolher, explicações que tardam, impressos a preencher, regras e mais regras de um negócio que me cheira ser dos mais estúpidos. O telefone, de súbito, cresce feito instrumento de tortura. Um único email estraga o dia por completo. Uma reunião que dura há semanas. E agora mesmo a suposta ajuda revelou-se obstáculo. Dia que se preze tem, pelo menos, uma crise, um buraco, quando não inferno, limbo.

29 Ago 2018

A rainha das faculdades

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]hesterton diz no primeiro capítulo da Ortodoxia que um homem sem imaginação é louco; que não é a ausência de racionalidade, mas o excesso, que torna os homens dementes. O nosso entendimento da loucura é normalmente inverso: mesmo sem pensar nisso, achamos que a loucura – pelo menos uma boa parte – resulta de um excesso imaginativo e de um défice de racionalidade. Chesterton argumenta precisamente o contrário. Para ele, a racionalidade em excesso corresponde, simbolicamente, à figura do círculo e da espiral, duas figuras ilimitadas (um homem pode caminhar para sempre sobre um trajecto em círculo e cair para sempre dentro de uma espiral) mas absolutamente finitas. Um homem que acredita ser Napoleão vive circularmente. Tudo o que está à sua volta está relacionado – ou relaciona-se imediatamente – com a sua forma específica de loucura. Tudo quanto aparece confirma aquilo em que acredita ou, no caso contrário, é interpretado como um sinal da grande cabala pela qual o querem destituir da sua crença e dos direitos que esta promete granjear. Está preso a uma ideia da qual não consegue abstrair-se e de que não se consegue distrair. Caminha em círculos. Se conseguisse imaginar outra coisa ou relaxar por momentos, aquela ilusão podia desabar e o véu que a caracteriza podia desaparecer. Mas este homem é escravo da racionalidade, na forma de uma ideia que tudo polariza e nada deixa de fora. Nem o caminho de saída.

Num texto chamado Advice to a Graduation, proferido no Canadá em 1964, para alunos finalistas do Royal Conservatory of Music, Glenn Gould diz “Devem tentar descobrir o grau de tolerância que têm às perguntas que fazem a vocês mesmos. Devem tentar perceber qual o ponto depois do qual a exploração criativa – perguntas que engrandecem a vossa visão do mundo – abrange mais do que aquilo que é tolerável e paralisa a imaginação, confrontando-a com demasiadas possibilidades, demasiada oportunidade especulativa. Encontrar esse ponto no qual as questões práticas do pensamento sistemático e as oportunidades especulativas do instinto criativo estão em equilíbrio é o mais difícil e importante empreendimento da vossa vida na música.” A imaginação, para Gould, não somente é indispensável à manutenção da normalidade como é a faculdade pela qual o instinto criativo organiza o espaço negativo que o rodeia em qualquer coisa que corresponderá, mais tarde, a um adquirido do pensamento sistemático. O sistema é uma ilhota frágil a partir da qual o homem mergulha para recolher algo que possa trazer para a sua ilha para torná-la mais vasta ou mais sólida. A imaginação é a faculdade do mergulho em apneia.

“a linha que divide o cérebro e a alma
é afectada de diversas formas através da
experiência –
alguns perdem completamente a mente e tornam-se apenas alma:
lunáticos.
alguns perdem toda a alma e tornam-se apenas mente:
intelectuais.
alguns perdem ambas e tornam-se:
aceites.”

Bukowski, no poema supracitado – Lifedance – parece indicar que a imaginação (neste caso, sob a regência da alma) é a única coisa pela qual um homem pode evitar tornar-se intelectual. Este intelectual de Bukowski não corresponde à noção positiva de produção de conhecimento mas a uma coisa exangue, repetitiva e impermeável à novidade e à mudança. Algo ao modo do louco de Chesterton, mas socialmente sancionado, logo, mais perigoso.

Há um lado em mim, muito racional, ao qual o romantismo das afirmações grandiosas acerca da imaginação e das suas virtudes lhe faz comichão cínica. Talvez seja o adulto que tenta amordaçar a criança que teima em espernear ainda. Mas quando olho para o mundo em meu redor – e tenho evitado fazê-lo, por razões a que nenhum de nós é alheio – penso que a única possibilidade que se nos apresenta, enquanto espécie, é a de imaginar uma saída. Porque duvido que a encontremos se apenas nos limitarmos a procurá-la.

28 Ago 2018

Poemas de Li Bai

 

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]primeira vez que tive contacto com Li Bai remonta ao ano de 1992, com a tradução de António de Graça Abreu dos poemas deste poeta da Dinastia Tang. Seguiram-se outras traduções ou versões que fui encontrando, aqui e ali. Mais tarde, em 2001, nos três meses que passei por Macau, o contacto com o poeta Yao Jing Ming – que tinha conhecido no ano anterior em Lisboa – motivou-me para aprofundar o conhecimento do poeta. Estive sempre ciente do enorme muro da língua chinesa e limitei-me às traduções de outros e alguns textos teóricos acerca do poeta. Assim, os poemas que aqui vou apresentar, são poemas que cruzam inúmeras traduções e, sempre que possível, esclarecimentos com pessoas chinesas. Não pretendo que os poemas sejam lidos como traduções, que não são, evidentemente, nem tão pouco assumo qualquer tipo de autoridade que não seja o do amor à poesia em geral e aos poemas de Li Bai – ou o que julgo serem os seus poemas – em particular. De resto, respeito o número de versos de cada poema e tento sempre que posso apresentá-los com a concisão que me é possível, exigência dos próprios originais.

 

Ao acordar bêbado num dia de Primavera

 

Se viver a vida não passa de um grande sonho,

Para quê desperdiçá-la em canseiras, preocupações?

Acendam-se os dias com um copo na mão!

Fiquemos deitados à sombra de uma árvore,

A dormir uma sesta no jardim

Acorde-se quando pousar um canto de pássaro sobre as flores!

Ao perguntar que dia é hoje,

Respondam-me que é Primavera, tempo dos papa-figos.

E suspiro, pois é isso mesmo que sinto!

Sirvo-me de mais vinho

E canto uma longa canção, à espera do luar.

Caído de mim abaixo, esqueço amizades, esqueço amores.

 

Para Du Fu, que vive ao sul na cidade de Shaqiu

 

Que vim fazer aqui,

Porque me pousam nos olhos as paredes da cidade de Shaqiu?

À sua entrada, os guardiões são árvores de barba branca.

Vejo o poderoso sol desmaiar na sonoridade fria do Outono.

O famoso vinho de Lu não me acende as faces,

As belas canções de Qi não derretem este coração gelado.

A falta que sinto de ti, como a corrente forte do grande rio Wen,

Arrasta tudo o que sou até ao sul.

28 Ago 2018

Amor de mulher

Uma vez mais, o amor desmembra-me o meu corpo, sacode-me, agridoce, inescapável, animal rastejante.
Sappho, fr. 130
Ἔρος δηὖτέ μ’ ὀ λυσιμέλης δόνει, γλυκύπικρον ἀμάχανον ὄρπετον.

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]lguém pode converter-se numa presença lancinante nas nossas vidas. Quando alguém nos acontece, transfigura o próprio sentido da nossa existência. O seu olhar prende-nos. Faz-nos deflagrar. Converte-nos para si. Transfigura em absoluto tudo. O fragmento de Sappho descreve a perturbante presença de uma rapariga nas existências daqueles que lhes são vulneráveis. Exprime o poder total do sortilégio de um olhar que incendeia.
Como é possível que um rosto se destaque da multidão de rostos que vemos todos os dias ao longo da nossa vida? Como é possível até que um rosto já familiar se destaque um dia das inumeráveis vezes que o vimos. Qual é a natureza desse destaque absoluto que se acende ao mesmo tempo que apaga todos os outros? De certeza que não resulta do apuramento objectivo e possível da beleza de uma rapariga como maior do que a de outra. O fotografo, o realizador, o pintor, o esteta, todos nós o fazemos de uma forma ou de outra.
Quando da profundidade abismal da vida, o rosto de alguém se revela de uma forma absoluta, esse alguém passa a tomar conta da minha vida até se confundir com ela. Tudo inunda. Interpõe-se entre mim e mundo inteiro. Parece impossível, mas o facto é que entre mim e o mundo inteiro impõe-se a sua presença terna e doce. Eu sou esse reino intermédio, esse absoluto “entre” mim e tudo— mas mesmo tudo— o resto. A beleza invade e contamina. Acorda o amor, deixa-me completamente vulnerável, absolutamente exposto, totalmente fragilizado, uma ferida viva, uma fractura exposta. Sappho diz que o amor nos chega com doçura, que é doce. A doçura é aqui uma metáfora do sonho. A minha vida parece que se torna num sonho, num sonho de amor.
Mas o contraditório do amor é que traz consigo também amargura. A amargura é uma indicação da morte. O rosto de uma rapariga pode ser e é, enquanto rosto do amor, demoníaco, amargura, uma metáfora da própria morte. Uma calamidade. O colapso. O rosto do amor ao olhar-me prende-me a si para sempre. Nunca mais esquecemos o seu olhar filtrante, feiticeiro, a insinuar-se e a impor a sua presença para todo o sempre. Nunca mais esquecemos as feições do amor, o corpo em que encarna, o toque mágico que primeiro dá à luz o meu e depois o ressuscita vezes sem conta de cada vez que o acaricia na noite da vida. Só tem o poder de dar à luz e ressuscitar o que simultaneamente tem o poder de adormecer e de matar. E é possível viver para todo o sempre na saudade lancinante e pungente de um amor. O rosto do amor pode nunca mais voltar a olhar-nos de frente. Não que raparigas e mais raparigas não nos olhem, não nos vejam, não nos digam algo. Mas o amor é um deus. E o seu olhar é absolutamente diferente. Pode acontecer que nos feche os olhos para sempre. Mas pode também acontecer que encarne noutro corpo, noutro rosto, pode ser que volte a incendiar-nos o coração. Apenas o seu abraço nos faz recuperar os sentidos, nos ressuscita à morte, ao degredo, ao exílio.
O amor desmembra o nosso corpo. Estraçalha-o. Mas tal não quer dizer que a comoção violenta da paixão o sacuda e faça estremecer ante a expectativa do prazer, oferecido pelo amor. A dimensão deste corpo não se esgota no espaço do seu tamanho. O corpo de que aqui se fala é a minha vida. É no corpo que toda a minha vida, de algum modo, se unifica. O meu corpo é em certo sentido todas as minhas percepções, todas as minhas memórias, todas as minhas expectativas, todos os meus sentimentos, todas as minhas emoções, todos os outros, todos os meus eus, todo o real, todo o possível e todo o imaginário. É a vida. É precisamente tudo isso que fica desmembrado. A presença de alguém na nossa vida pode provocar o colapso, o caos, deixar-nos na miséria. Mata-nos.
O amor é um animal selvagem que rasteja até nós. Aloja-se em nós e ocupa cada ponto do nosso corpo, toda a nossa vida. O seu poder de contaminação é absoluto. Basta um só olhar. O amor é essa situação de conflito permanente e absoluto: liberta e vincula, é doçura e amargura, refaz e desfaz, ressuscita e adormece, faz-nos sonhar e confronta-nos com a realidade pura e dura, dá à luz. Mas mata. Oscilamos assim entre a possibilidade de tudo poder ser e a possibilidade de nada poder ser, a impossibilidade de tudo.
Mas este meu amor por ti, maravilhoso, por toda tu: sardenta, ginja.
A possibilidade de tudo és tu.

A amargura é uma indicação da morte. O rosto de uma rapariga pode ser e é, enquanto rosto do amor, demoníaco, amargura, uma metáfora da própria morte. Uma calamidade. O colapso.

24 Ago 2018

Turbulento período na China

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]China confrontada desde 1850 com a Revolta dos Taiping (da inspiração cristã de um chinês e que durou até 1864), levou a meio com a II Guerra do Ópio (1856-60) entre as potências estrangeiras e o Governo Qing. Já em 1854, as forças invasoras apoiavam as do sétimo Imperador Qing, Xianfeng (Wen Zong, 1851-1861), contra os Taiping, que em 1856 se encontravam no máximo de poder militar. Sucesso a empurrar muitos grupos étnicos a seguir o exemplo, aparecendo novos corpos de combatentes por todo o país, mas começaram também as disputas entre os comandantes no interior dos Taiping e tal desconfiança levou a deserções.
Em 1858, o governo imperial viu-se seriamente embaraçado para reprimir a insurreição Taiping. “Quando Nankin já se achava em poder dos revoltosos e Shang-hai ameaçado da sua invasão, enviou o governo local, o táo-tai de Sahng-hai, os seus juncos de guerra para aquela cidade, acompanhados de treze lorchas mercantes pertencentes à praça de Macao, embarcações que lhe mereciam mais confiança que os seus navios; o resultado desta empresa foi o que era de esperar: os inúmeros juncos dos rebeldes, tripulados por alguns europeus e americanos, logo que avistaram a esquadra do governo, desceram o rio, e aquela retirou, evitando assim a sua destruição. Continuando o pânico em Shang-hai, comprou o táo-tai, quatro navios, uns ingleses, outros americanos, tripulando-os com marinheiros europeus, para o que teve de oferecer salários elevadíssimos. Achavam-se nesta ocasião fundeados defronte desta cidade, dois navios ingleses, com o representante da Grã-Bretanha em Hongkong, Sir G. Bonham, que se transportou, no Hermes, a Nankin, a fim de indagar em que disposições estavam os insurrectos a respeito dos europeus residentes em Shang-hai. Por seu turno, os insurrectos, pertencentes à sociedade secreta a , e já senhores de Shang hai, incorporaram entre os seus barcos, um navio europeu, o Glenlyon, que foi capturado por dois juncos pertencentes à esquadrilha imperial. Era de supor que os rebeldes, costumados às manobras dos navios indígenas, dificilmente evitariam a abordagem das embarcações do governo.”

Factura do auxílio não pedido

Os chineses consideram o catolicismo e o protestantismo, na China desde 1807, como diferentes religiões devido à diferença como traduzem conceitos bíblicos e a palavra Deus, percebendo haver entre ambas, uma profunda clivagem e rivalidade.
Com o fim da II Guerra do Ópio, desde 1860 chegavam em grande número à China padres cristãos protestantes trazendo uma forma mais competitiva de missionar, propiciando empregos nas firmas das potências estrangeiras e outros benefícios aos chineses convertidos ao Cristianismo. Privilégios a criarem grande ressentimento, traduzido mais tarde na destruição de igrejas, muitas construídas sem obedecer aos costumes e regras de geomância, por isso consideradas como criadoras de má energia. Mas patrocinaram também a ida para o estrangeiro de estudantes, aprender e adoptar o pensamento Ocidental e no regresso servirem de intérpretes. Foram enviados para a Europa e Estados Unidas da América, mas a burocracia e a confusão que grassava na dinastia Qing boicotou o processo, já sem interesse desses países cristãos pois contavam, para o estilo comercial de modernização, com as escolas dentro da China.
O apoio das forças estrangeiras ao Governo Qing desequilibrou, começando os Taiping a perder controlo das regiões. Segundo Marques Pereira, a 24 de Outubro de 1862 foi “tomada pela segunda vez aos rebeldes Tai-ping a cidade de Kah-ding, na província de Kiang-su, pelas tropas anglo-francesas, em número de 4550 combatentes.
Não é decerto uma página brilhante para a história das relações dos povos europeus com a China essa aliança de 1862 e 63, imposta ao governo imperial pelas tropas que ficaram da guerra de 1860, esperando o pagamento integral das indemnizações. O pretexto fora a princípio justo. Estando Shanghai e outros portos ameaçados com a temível proximidade da célebre insurreição, cujas hordas devastadores tão depressa se encarregaram de desmentir os intentos elevadamente políticos que primeiro lhe atribuíram, os aliados tomaram por motivo da intervenção a defesa dos portos abertos ao comércio estrangeiro. Como porém não bastava para conservar a importância comercial destas cidades, circunscrever a defesa aos subúrbios, e convinha para a fácil troca das mercadorias desafrontar os pontos próximos, oprimidos pela vizinhança dos rebeldes; – as forças europeias, animadas pelos pingues despojos de uma guerra fácil, foram pouco a pouco alargando a área do auxílio prestado aos imperiais, e todos os dias se preparava uma nova expedição a algum ponto mais distante do que o último que se vencera. Com escandalosa contradição do pretexto, deu-se então uma guerra singular, que só feria os inofensivos. Saqueavam-se quase inteiramente as cidades e povoações de onde eram expulsos os rebeldes, de sorte que os habitantes entregavam aos seus libertadores supostos o resto de fazenda que por ventura lhes ficara da invasão.” Em Maio de 1862, “presenciei (Marques Pereira) em Shanghai, durante cinco dias, a entrada dos despojos da primeira libertação de Kah-ding (vendidos em hasta pública, nos consulados inglês e francês); e contudo havia poucas semanas que os rebeldes tinham tomado essa cidade, sem lhe levarem mais do que o seu ânimo feroz e devastador. Assim foi que, em breve tempo, longe de ter mais seguro o seu comércio e prosperidade, Shanghai ficou solitária em um raio de dezenas de léguas. Pode dizer-se que, para essas povoações que desapareceram, o patrocínio dos aliados foi tão desastroso como a própria insurreição dos Taiping.”
No trono chinês encontrava-se já o Imperador Tongzhi (Mu Zong, 1862-1874), quando em 1863 a milícia Xiang de Hunan, criada pelo General Zheng Guofan, cercou Tianjin, na posse dos Taiping. Seis meses de cerco e a 1 de Junho de 1864, Hong Xiuquan doente, morreu. Em Agosto a milícia da província de Hunan dinamitou a muralha da cidade e após combates de rua, onde a morte se espalhou por Tianjin, saqueada e incendiada, voltou de novo esta para o Governo Qing. Refere Beatriz Basto da Silva, “Nos quinze anos (1850-1864) em que ocorreu a revolta dos T’ai-Pings, «Reino pacificado do céu», destruiu 600 vilas e cidades e deixou a China semelhante a um deserto, com perdas de milhões de vidas e prejuízos irreparáveis para as artes e literatura. Trata-se de um levantamento popular de descontentes, com uma conotação religiosa distorcida, pervertida.” Hong Xiuquan, um “anti-manchu, fortemente influenciado por valores ocidentais, subverteu o sudeste da China, de Cantão a Nanquim. O igualitarismo e a modernização social apresentaram-se contra os conservadores confucianos e os aristocratas.”
Pela imposição do auxílio não pedido, teve o Governo chinês de pagar as despesas das tropas europeias, até que lhes aprouve a elas retirar-se, em 1864, o que importou em mais de um milhão de patacas.

Destaque
Os chineses consideram o catolicismo e o protestantismo como diferentes religiões devido à diferença como traduzem conceitos bíblicos e a palavra Deus, percebendo haver entre ambas, uma profunda clivagem e rivalidade.

24 Ago 2018

O Complexo de Marco Polo

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omprei hoje na rua As Viagens de Marco Polo, que não relia há uma década. O que me recordou um conceito que criei para um artigo científico: o complexo de Marco Polo.
O Marco Polo, um aventureiro e navegador de Veneza, fez a mais espantosa viagem europeia do século XIII e viajou para o Oriente, tendo estado na China 20 anos. Foi tal a sua integração que foi embaixador do Imperador da china, gozando de prestígio e poder.
Regressado a Itália, com 41 anos, foi feito prisioneiro dos Genoveses, numa batalha. E na prisão encontrou o cronista Rustichello da Pisa, a quem relatou as suas viagens e os reinos do Oriente.
Só que o relato do veneziano era cru e de antemão jornalístico e destituído dos seres fabulosos, lendas e maravilhamentos que recheavam as crónicas da época. E Rustichello, para tornar o relato credível, acrescentou gordura “mitológica” ao que Marco Polo contara, fantasias comuns ao imaginário da época e que compusessem um certo “efeito de real”.
A esta necessidade de irreais para tornar um discurso verosímil é que eu chamei o Complexo de Marco Polo.
Sem adivinhar que no século XXI este modo patológico de ler a realidade se tornaria uma constante da paisagem política.
As fake news, na sua inversão da realidade, representam esta patologia investida de modo imperial.
O que evidentemente só acontece em períodos de mutação civilizacional, quando os valores antigos se diluem e os novos ainda não se firmaram.
Estado límbico em que assomam os oportunistas destituídos da qualidade maior dos verdadeiros líderes: a grandeza humana.
O poder tem muitos inquilinos, já a grandeza é habitada por poucos.
Grandeza: tinha-a o presidente Mujica do Uruguai, que podia ter comido, como os outros, no poleiro do poder e renunciou, optando por uma pobreza essencial, franciscana. Paradoxalmente pode assim ser generoso para com o seu povo, servindo-o e deixando-o melhor do que estava antes.
Também paradoxalmente, no cárcere, se apossou Mandela da sua nobreza. Em vez de alimentar o ressentimento e o ódio, Mandela adquiriu na relação com o seu carcereiro bóer as propriedades do perdão que o tornaram grande, porque aprendeu a pensar contra si mesmo e os primeiros impulsos.
No fim da vida apareceu uma biografia que lhe debotava a imagem; referia-se a um comportamento repreensível com as primeiras mulheres que amou, mas Mandela não usou do seu poder para abafar a revelação – que com certeza o incomodava – e com esse gesto quis demonstrar que mesmo os líderes são humanos e falíveis mas que o que importa é aquilo em que nos tornamos. Grandeza.
Grandeza teve Kofi Annan quando percebeu que a comunidade à qual tinha de dedicar a sua vida não era a ganense mas outra mais alargada, a da humanidade, e se tornou um líder da paz e um reconciliador que só falhou – como na Síria – quando não lhe deram os meios para isso. De resto, mesmo quando desautorizado, como na invasão do Iraque, era ele quem tinha razão.
E entre outras coisas deixou como legado o princípio da “responsabilidade de proteger”, o qual redefiniu durante algum tempo os rumos da diplomacia e da intervenção humanitária. Segundo esta ideia a opressão de um povo pelo seu governo é também uma ameaça à estabilidade dos outros países. Ideia de uma co-responsabilidade que, por egoísmo e cinismo da onda neo-liberal, infelizmente tem conhecido retrocessos.
Grandeza tinha Edward Said que mesmo confessando «ainda não fui capaz de compreender o que significa amar um país», dedicou décadas à causa palestiniana, embora sem ter abdicado um grama de espírito crítico.
Falta grandeza aos líderes políticos da actualidade – impreparados, falhos de energia, privilegiam os golpes de bastidores. A um bom adversário que os ajude a superarem-se e melhorar preferem não tê-lo; e confundem “maquilhagem” com comunicação.
Quando é assim é precisamente pela comunicação que tudo começa a patear. Como em Trump que já não comunica, agride e grunhe, à medida que lhe vão caindo as máscaras.
Que uma potencia mundial tenha como líder um homem que é um hipopótamo numa loja de loiças, de um capricho que só se conhece dos mais loucos dos Césares, seria da ordem do mistério não fora isso provar simplesmente que os povos não tiram lições da História, ou que pelo menos a experiencia humana só é reconhecida como tal se for incarnada – chegando através do exemplo alheio não é encarada devidamente dado que cada povo se julga portador de um destino de excepção.
Infere-se aqui outra norma atordoadora: cada país dispensa as lições da História e tem de passar pela provação do erro e de errar cega e voluntariamente, para se convencer a si mesmo de ter uma identidade que vale a pena, sacrificando tudo e todos. Cada povo cresce assim mais pelo bordo e a soma dos seus desastres do que como efeito de boas políticas de desenvolvimento. Há uma degradante atracção pela entropia na prática política quando se considera que uma má escolha é uma boa escolha apenas por ter sido uma escolha nossa.
Talvez porque o poder, violência física mesclada na violência simbólica, não sabe “unificar” senão enveredando pelo padrão da desordem. O dividir para reinar. Como é um padrão parece ser uma ortopedia racional: não é, é apenas o efeito do complexo de Marco Polo, que irrealiza de tal forma a realidade que até simula a verdade com uma mentira de grande aparato técnico.
Simultaneamente à perda de grandeza no universo da ética política, a este mergulho na insignificância que tudo relativiza no quotidiano, constatamos que o mal na sua suprema manifestação tradicional – o demoníaco – desapareceu. Ou é reificado, transformado em espectáculo, como na recente série televisiva Lucifer. Manifestação da loucura normal.
Entretanto, como dizia Popper é mais fácil falsear que verificar uma hipótese, para que não se quebrem as rotinas, o que Marco Polo aprendeu à sua custa quando viu na sua sombra um desvio de direcção.

 

23 Ago 2018

É a hora

 

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]Hora está próxima diz o Corão. O Dia do Juízo Final, o Último Dia, a Hora, cujo instante só a Deus pertence. Inspirados nas Escrituras judaico-cristãs e não sendo por ele revelado abertamente, sabiam esses povos que tinham de conquistar assim, Jerusalém. Mas nem só o Islão nos fornece a Hora como seu momento apocalíptico, e visto que o Livro, é um livro de poemas, não será de espantar que os poetas nas eras tomem o mote ao impositivo momento. E entramos no «Nevoeiro» esse culminar da Mensagem com o mesmo veredicto «É a Hora»! Fazendo mesmo do conjunto da Mensagem um hipertexto de cariz muito ao sabor das fortes correntes das conquistas em torno de Jerusalém. Dá-nos os suras, o poeta, tiradas da tradição oral como recitativos e postos a vibrar em poema escrito.
Há uma lenda que nos diz que Maomé dormindo ao lado da Caaba, teve uma visão: o Arcanjo Gabriel empreendeu com ele uma viagem rumo ao «Santuário Longínquo» onde encontrou Adão e Abraão bem como Moisés, José e Jesus, subindo depois aos Céus por uma escada, (talvez a mesma de Jacob). O Islão crê que o tal Santuário era nem mais nem menos que o Monte do Templo. Chama-se a esta passagem Viagem Nocturna. Na Mensagem – III Os Tempos – inicia com Noite: como bem sabemos o Islão não reconhece a Trindade, Deus é Uno, e não há intermediários, aqui aproxima-se mais do irmão judaico, e diz assim a Noite:” Senhor, os dois irmãos do nosso Nome/ o Poder e o Renome- Ambos se foram pelo mar da idade/ À tua eternidade; … Queremos ir buscá-los, desta vil, nossa prisão servil: / … A Deus as mãos alçamos/ mas deus não dá licença que partamos:” Quando em Meca tentaram matar o Profeta ele foi socorrido num oásis de tamareiras fundada por tribos judaicas, e parece que muita coisa sabe o Poeta e outras tantas sabia o Profeta, e que ao entenderem-se assim, nunca o vasto entendimento assim os viu.
Jerusalém está em Pessoa como um selo, sagra-o de modos vários, congela o saber erguido dos que buscam para si a História única, mas a interpretação não está nas nossas Naus. O trilho por onde passa a grande fonte vem de mais longe, exerce o teor solitário de quem faz a obra, de muitas leituras, e onde todas são possíveis, mas sendo Pessoa quem era, e sendo o Livro o que é, ambos se ramificam em esferas várias. Mas vamos encontrar mais tarde Maomé já em Medina com os clãs judaicos onde criou a primeira mesquita feita à imagem do Templo de Jerusalém fundando assim a primeira qibla orando ainda virado para ela e não para Meca, impondo a oração do fim do dia de sexta-feira e prolongando-a para o dia de Sábado, proibindo a carne de porco, instituindo a circuncisão; com as suas características específicas, o Islão sabe de onde veio. Com furor e muito mistério vão-se as coisas, mas os poetas, atentos como linces aos Templos que se erguem e tombam, sabem unir partes tão dissonantes como a amálgama daquilo que ficou refém nos interstícios das suas palavras.
Esperançadamente Sebastianista vamos encontrar a ânsia do Messias: Sebastião, uma delonga… uma saudade… e cruzam-se as tríades de só um semblante que olham agora para ele, e Gabriel mais uma vez entra nos sonhos: Sperai! Caí no areal e na hora adversa/ que Deus concede aos seus/ para o intervalo em que esteja a alma imersa/ em sonhos que são Deus. Adverte-nos ainda para o Império Europa: Grécia, Roma, Cristandade, Europa – os quatro se vão/ para onde vai toda a idade/ quem vem viver a verdade que morreu D. Sebastião? O supremo fanatismo muçulmano assentou sempre nessa máxima «É a Hora». Mas, e infinitamente mais poética, é o que nesta encerra outra: “estou preparado”.
Pessoa é uma água subterrânea no deserto, e nós temos de ter a sabedoria deles e abrir os furos que nos matem a sede e nos lavem dos olhos a poeira. Temos de seguir num longo caminho guiados por estrelas, mas atentos aos fluxos onde se constroem os oásis de tamareiras, a múltipla leitura é também o atalho do caminho dos Magos. E toda esta gente, Profeta, Poeta, Versão, Poema, Condição, Corão, são superfícies lustrosas por onde se insinuam coisas e se perde o reflexo nos fundos poços… Passada a fundura, entra-se em outros Jardins.
Portugal não é a terra prometida de ninguém ” Nem rei, nem lei, nem paz, nem guerra”. Quatro elementos essenciais, mas ( que ânsia distante perto chora?) um levante de sombras trazidas por tribos que ficaram por aqui e nunca se esqueceram que o sangue é como o chão do deserto, uma corrente sem fim. E se por um lado ele é Encoberto, é só porque tomou a forma de muitos outros, para ser, de um reino que sem a memória destes Templos feito de Horas, ainda seria um rochoso Jurássico, não sabendo mesmo assim como agradecer às sombras. Sabemos que Descobertos os matariam durante muita longa Cristandade, e que ela, era bem mais deles do que vossa, dado que estas histórias são de raiz comum.
Outra vez «É a Hora» e longe estamos dos Fatimidas, essa dinastia islâmica refinada: e nesta Hora lembrada, anunciada: “quando quererás voltar? Quando é o Rei? Quando é a Hora?” II Avisos-Mensagem-
-Não tarda meu bom poeta – e mais uma vez, a razão que se tem é invisível e de uma vida temos apenas algumas Horas de clarividência. No mais, tudo isto é Nevoeiro.

 

22 Ago 2018

Visto daqui, talvez seja Verão

 

Barraca, Lisboa, 30 Julho

[dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ircunstâncias do ofício, tinha atravessado concertos seus sem poder assentar ouvidos. A ideia é bela sem ser inculta, desmentindo o primeiro verso de Olavo Bilac no soneto que lhe serve de raiz. Para o vetusto senhor do clangor, a língua de Caetano e Camões, oriunda do vulgar (latim), abre-se como última flor: «a um tempo, esplendor e sepultura», «desconhecida e obscura», capaz de transmitir a tempestade e a ternura, «o gênio sem ventura e o amor sem brilho!» O André [Gago] foi de compor viagem pelas papilas gustativas desta nossa língua, às vezes materna, navegando nas primorosas ondas da percussão do Carlos Mil-Homens, do contrabaixo do João Penedo e da guitarra portuguesa do Pedro Dias. Mal seria se trocasse no alinhamento um ou outro verso, mas há por ali tanto «viço agreste», mão que agarra timão de leme, puxa cordame da vela, colhe manga e amanha peixe, como quem diz, «aroma de virgens selvas e de oceano largo», que a minha noite encheu-se de marés antes de escoar saciada. Anda por aí a passear discreta, est’ A Flor de Lácio, mas parece-me poderoso beijo de língua. E portanto, sensual-político.

Horta Seca, Lisboa, 6 Agosto

O mano António [Caeiro], que me sustém a vertigem com a altitude, entrega, com suprema alegria, versão final da tradução de Georg Trakl. Por momentos, tacteio na coincidência um sentido possível para o esfarelar destes dias expressionistas. Poderá este fazer (não lhe chamemos nunca trabalho) salvar-me? Assinalo as cores, os olhos e as mãos, antes de aspirar o cheiro detestável do hipoclorito de sódio nesta versão terceira de Melancolia. «Sombras azuladas. Oh!, os vossos olhos escuros,/ Que longamente me fixam, ao passar./ Acordes suaves de guitarra acompanham o Outono,/ No jardim, dissolvido em lixívia castanha./ As mãos das ninfas preparam a lugubridade séria/ Da morte. Lábios podres sugam leite de/ Peitos encarnados e na lixívia negra/ Deslizam os caracóis húmidos do filho do sol.»

Santa Bárbara, Lisboa, 11 Agosto

«“Liderados por Ademar e Manuel Fernandes, onze homens equipados vão irromper a galope, dispostos a tudo e convictos da sua superioridade. “A entrada em campo era especial”, conta António Oliveira. “Sabe que eu e o Meszaros éramos sempre os últimos desse pelotão, quase com dez metros de atraso face aos outros? Ficávamos no túnel a dar a última passa no cigarro. Eu puxava a última vez, atirava o cigarro para o túnel e sprintava para apanhar os outros. O Meszaros ainda fazia pior: chegou a levar o cigarro escondido na luva, chegava à baliza, dava uma última passa dissimulada e apagava o cigarro no poste!”» Não sou conhecedor do género, mas arrisco afirmar que faltam trabalhos como este: «Big Mal & Companhia – A Histórica Época de 1981-1982, em que o Sporting de Malcolm Allison Conquistou a Taça e o Campeonato» (ed. Planeta). O Gonçalo [Pereira Rosa] vem apurando um modus operandi com o qual já cometeu vários crimes de bem contar o jornalismo português. Precioso e raro como o oxigénio, mas igualmente ameaçado. Aplicou-o aqui e agora, em golpe que me deixou nocaute. Excelente investigação, entrevistas à quase totalidade dos intervenientes, exaustivas leituras, com a soma das partes aumentada pela potência do verbo. O primeiro capítulo, que lança a metáfora do estádio de Alvalade como ser vivo, é brilhante e dá o tom. Não se limita, o Gonçalo, aos episódios da época dramática, que acontecem para todos os gostos e alguns desgostos, antes aproveita o tempo e as suas contingências para a partir dele extrair, esculpindo, as personagens, as óbvias e as outras que nem tanto. Sinal, para mim, da organicidade que o Gonçalo soube emprestar ao volume está na vontade de ler as biografias do João Rocha ou do António Oliveira (são só os primeiros capítulos, e eu queria outra, ele sabe bem…) como o Eurico ou o Inácio se faziam à bola. A vida e a morte jogam-se nisto, no instante único, afinal sem importância para além do momento: quanto vale a jogada genial, a vitória esquecida, um jogador de eleição, o clube do coração? Filosofia de algibeira (a que cabe na mão): dependemos tanto de uns próximos e daqueles outros heróis míticos para sermos, afinal, o que acabamos por ter sido. Sem o perceber, até agora, e sem grandes vitórias no curriculum, Big Mal espelha o que gostaria de ir sendo: treinador de indisciplinadas vontades. Treinador, sim, mas dos anarquistas. Trago comigo um cigarro escondido na luva.

Horta Seca, Lisboa, 13 Agosto

Os dias do vórtice custam a percorrer. Anda, põe o pé adiante deste. Isso, inspira e agora solta. Nada muda sob o sol? Mas se próprio sol não queima do mesmo modo, dizes para ti. E expiras o estender da perna, o balanço do braço, deixando tombar o dito. Quebrar-se-á? Recebes, então do dilecto autor mensagem calorosa, incluindo poema que te explica a luz contida nas trevas de hoje, raiado de palavras, asco, saco, caso, casca, oca casa acesa. Segues em frente, ainda que poema não tenha direcção outra que a dos teus olhos. Obrigado, Henrique de nome feito linha de horizonte Manuel Bento Fialho, pelo zumbido. «Ao tentar escrever girassol/ ocorreu-me a imagem de uma gema/ a ser fermentada pela Terra:/ caule esguio na direcção do astro rei.// Podia dizer casa acesa por escritores japoneses,/ zumbindo como vespas em torno do tronco nu/ do homem que pensa/ enquanto observa duas osgas/ à procura de sombra/ numa tórrida tarde de Verão.// Se «o antónimo de flor é vento»,/ então para que servem moscas, melgas,/ mosquitos, formigas aladas,/ senão como alimento/ de aves desvairadas?// Asco, saco, caso, casca, oca casa acesa/ pela temperatura branca do pensamento./ Dias prolongados nas noites,/ noites repetidas nos dias,/ enquanto por detrás dos montes,/ espreitando dentre pinheiros mansos,/ uma lua cheia cresce na direcção dos nossos olhos.// E só então compreendemos/ os dois astros que temos no rosto,/ como na sua direcção tudo se levanta,/ e que todo o nosso corpo é um universo de planetas/ reduzíveis a picadas de insectos/ na terra acesa de uma casa que circula/ como o rosto de um girassol.»

Facebook, nenhures, 15 Agosto

Houve altura em que o Verão era isto, todas as direcções convergindo em dias indistintos da noite. Já viste que a colher de pedreiro é plana? E se a talocha fosse palco, quem a seguraria? Sonho plataforma, afinal talocha, para onde atirar e mexer os materiais com que os nossos autores se constroem. Encimada por esta La Nostra Feroce Volontà D’Amore, dos Pop Dell’Arte, vejam lá se esta playlist do mano Carlos [Guerreiro] não nos explica de que matéria se ergue um Verão, sem muros nem ameias: https://www.youtube.com/playlist?list=PLSNaRSIGOqBtuxVs2TMOC_Mdnth_pvFKG A gravidade não impedirá nunca o voo nem a dança. Reparem na riqueza das línguas, no malabarismo da palavra, no agudo ver ao longe, na disparidade de paisagens, na debandada dos estilos, na gargalhada e na tensão saltitando de mão dada, na convocatória dos corpos, no perfume de pensamento, na correspondência das melodias e absoluta liberdade do gosto. Somos ambos reinadios amantes da deriva, mas por junto, só podia ser dele (assim a pintura que ilustra esta página) este poema, que nos empurra em definitivo para a dispersão. Se isto não for a minha praia…

 

22 Ago 2018

Fechem tudo, caramba

[dropcap style=’circle’]F[/dropcap]echaram o Adamastor. A Câmara Municipal de Lisboa, a pretexto da “Requalificação do Jardim do Miradouro de Santa Catarina”, elenca objectivos como “melhor segurança” e “melhor ambiente urbano” para gradear o icónico miradouro de Lisboa. Por ora, a vedação é provisória, mas a Câmara assegura que pretende torná-la definitiva, para assim poder controlar o acesso ao espaço.

O Adamastor tem muitos problemas que não vêm de hoje. Falta de higiene – que as casas de banho públicas deficientemente cuidadas não resolvem –, excesso de vasilhame resultante das noites de festa no local, algum barulho, alguma confusão. Mas tem igualmente condições únicas e incríveis: é um espaço verdadeiramente democrático, onde convivem criaturas de esferas sociais e culturais inteiramente diversas, betos e amigos do djembê, turistas e moradores, miúdos de escola e velhos sequiosos de sol.

A pressa em resolver o “problema” do Adamastor não será alheia ao facto de ter sido implementado um hotel de cinco estrelas a poucos metros do Miradouro. No Booking.com, o Hotel é descrito do seguinte modo “Esta luxuosa propriedade beneficia de uma localização privilegiada, no centro histórico de Lisboa e oferece vista para o Rio Tejo. O Verride Palácio Santa Catarina disponibiliza quartos e suites elegantes, que combinam detalhes vintage com confortos modernos. A área do último piso do edifício proporciona vistas deslumbrantes de 360º para a cidade.”

Paula Marques, directora do Hotel, diz ao Público: “O problema são os traficantes aqui em volta. Ao longo da rua, com os clientes a virem para o hotel, são abordados esquina sim, esquina sim por traficantes. Não acho que a segurança seja uma questão, o problema é mesmo a abordagem insistente. Não é uma vez, são várias vezes.” Várias vezes, veja-se o topete destes traficantes.

O que está em causa no Adamastor é sintomático de um problema mais vasto. Lisboa é uma cidade excepcional por diversos motivos, mas um deles é precisamente a convivência transversal e relativamente pacífica de pessoas de diversas proveniências. Não é uma cidade guetizada, higienizada, falsa. No mesmo edifício podemos ter uma tasca frequentada pelos bêbedos profissionais do Caís do Sodré e uma gelataria gourmet. E uma coisa não choca com a outra porque as coisas foram acontecendo assim, organicamente. Como a vida. É esta ocorrência múltipla e desordenada de modos de vida diferentes que lhe dá um carisma único e irrepetível. Diria mesmo que é isto que as pessoas vêm ver. E é isto que o capitalismo, na sua vertente mais estúpida e incisiva, quer destruir.

Para quem não conhece Lisboa, para os departamentos de marketing das agências de viagem um pouco por todo o mundo, esta liberdade é inadmissível. Há que domar a vida pulsante da cidade e torná-la mais civilizada – a saber, plástica, artificial, redundante. Há que planear e executar a Lisboa que se pretende para o turista de classe média francês, para o abonado russo, para o chinês investidor. Porque Lisboa não pode ser só Lisboa, tem que ser um produto. Até isso acontecer, esta gente não vai descansar.

Já ouvimos ou presenciámos histórias semelhantes. Às vezes é uma cidade que vai acolher os jogos olímpicos e de onde os cães vadios desaparecem misteriosamente antes da cerimónia de abertura. Às vezes são os pobres que deixam de ser vistos. A cultura do empreendedorismo não admite sequer a existência visual daquilo que esta considera ser o fracasso. Tudo o que é vivo e livre tem que ser reconduzido à lógica do parque de diversões temático. Até que, de cidades inteiras, restem unicamente os edifícios – renovados e silenciosos – e uma mão-cheia de figurantes pagos para passar por locais.

21 Ago 2018

Poemas de Li Bai

 

Vento de Outono

[dropcap style=’circle’]É[/dropcap]no Outono que o vento corta

E o luar mais nos ilumina.

As folhas caem, desaparecem.

As gralhas desabam sobre os galhos, pressentem o medo.

Ainda pensamos um no outro, porque nos separámos?

Agora o amor que sinto envergonha-me.

Ao atravessarmos o portão do desencontro,

Cada um de nós enfrentou a sua própria miséria.

Sofremos muito o tempo todo e lembramo-nos disso.

Mesmo que fosse pouco, a dor não seria menos infinita.

Soubesse eu o quanto um coração pode errar,

E logo de início nunca teria te conhecido.

 

Bebo sozinho ao luar

Encurralado entre flores e um jarro de vinho,

Sem ajuda, bebo sozinho.

Estendo o copo e convido a Lua,

Formamos um trio com a minha sombra.

Embora a Lua não beba vinho

E a minha sombra só imite o que eu faço.

A altaneira Lua e a pobre sombra são camaradas.

Serei feliz nesta Primavera.

O luar sublinha as minhas canções

E a sombra abraça-me na dança.

Festejamos como velhos amigos.

Já bêbados, cada um segue para sua casa.

E é assim que quero viver, livre de sentimentos,

Até que nos voltemos a encontrar na Via Láctea.

21 Ago 2018

Kleines Konzert (um pequeno concerto)

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]m vermelho que onírico te abala—
Através das tuas mãos brilha o sol.
Tu sentes o teu coração enlouquecido com delícias
Preparar-se com calma para a acção.

Ao meio dia, fluem campos amarelos.
Dificilmente ouves ainda os grilos cantarem,
O movimento oscilante e duro das foices dos ceifeiros.
calam-se as florestas douradas na sua simplicidade.

No charco verde, a putrefacção abrasa.
Os peixes estão quietos. O hálito de Deus
Desperta a borbulhar suaves sons de corda.
A maré acena a convalescença aos leprosos.

O espírito de Dédalo paira acima de sombras azuis.
Há um aroma a leite nos ramos das aveleiras.
Ouve-se ainda durante muito tempo o violino do professor
E no pátio vazio o chiar das ratazanas.

No púcaro, junto ao papel de parede feíssimo
Florescem ainda mais frescas a cor das violetas.
Em altercação, morreram vozes sombrias,
Narciso morre nos em acordes finais das flautas.

Kleines Konzert

Ein Rot, das traumhaft dich erschüttert –
Durch deine Hände scheint die Sonne.
Du fühlst dein Herz verrückt vor Wonne
Sich still zu einer Tat bereiten.

In Mittag strömen gelbe Felder.
Kaum hörst du noch der Grillen Singen,
Der Mäher hartes Sensenschwingen.
Einfältig schweigen goldene Wälder.

Im grünen Tümpel glüht Verwesung.
Die Fische stehen still. Gottes Odem
Weckt sacht ein Saitenspiel im Brodem.
Aussätzigen winkt die Flut Genesung.

Geist Dädals schwebt in blauen Schatten,
Ein Duft von Milch in Haselzweigen.
Man hört noch lang den Lehrer geigen,
Im leeren Hof den Schrei der Ratten.

Im Krug an scheußlichen Tapeten
Blühn kühlere Violenfarben.
Im Hader dunkle Stimmen starben,
Narziß im Endakkord von Flöten.

20 Ago 2018

Fim do dia II

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]que sucede nesse hiato? Eu levo comigo o trabalho, não o deixo fora. Mas já não funciono bem. Por outro lado, embora estando já em casa, eu ainda não cheguei. A situação: ter acabado de chegar a casa ainda não abriu para o seu conteúdo. Essas horas podem custar a passar por causa de uma desocupação de mim, desinvestimento da actividade profissional, ou lá o que estivemos a fazer. Não se inaugura nenhuma outra situação. Não estou disponível para estar em casa. Não consigo estar em mim e não estou fora de mim. Aquilo que me levava nas horas foi interrompido. A minha maneira de estar ao serão é diferente da minha maneira de estar no trabalho, porque formalmente se tratam de duas maneiras de ser completamente diferentes. E nada muda se trabalharmos a partir de casa. Aí até podemos ver o contraste. Não que até essa hora estivéssemos numa divisão do gabinete e depois na sala de estar ou na cozinha. O que muda é a vivência concreta do tempo em duas situações completamente diferentes. A minha maneira de estar quando a trabalhar é diferente da minha maneira de estar quando acabei de trabalhar, quando me deixei ficar por ali, por ter acabado a hora do expediente. Agora, estou presente em salas com peças de mobiliário. Estou com outros conteúdos: estou como quem está na sua sala de estar, mas eu não consigo estar lá. Não há nada que me entusiasme. Eu estou desocupado e não sou eu na minha maneira habitual de trabalhar ou de estar interessado com o que estou a fazer: estou expropriado da maneira como habitualmente me encontro, guiado pelas tarefas, pelo exercício de competências, na situação em que se desenham problemas e programas de resolução e de solução. Na sala de estar eu estou sem fazer nada e nada me interessa. Nada me descansa, não consigo estar em sossego, nem ver nada, nem ouvir nada, procuro inventar tarefas e não consigo ocupar-me. Estou impropriamente em mim.

Mas só aparentemente e primária e o mais das vezes. É justamente o que se percebe pelo contraste entre o dia de trabalho proveitoso e que correu bem e o enclave que o separa do serão, da noite. Podemos interpretar que ao serão somos mais nós, porque não somos definidos por nada que façamos, não somos oficiais de um ofício, profissionais de uma determinada área. Somos como quem está na sala de estar, à espera. Convivemos com maples, sofás, mesas, cadeiras, quadros, televisões, aparelhagens de som, rádio, livros. Mas não fazemos nada disso. A situação em que nos encontramos é de impermeabilização. Não estamos em nós, estamos expropriados da maneira de ser da zona de conforto, a que estamos habituados. Aí pode falar-se de inautenticidade num determinado sentido, expropriação, de um vivermos de um modo inqualificável: quem sou eu enquanto me encontro na sala de estar, mas não estou. Há uma interpretação diferente para este modo de ser que não é o modo como eu me encontro nem o mais das vezes nem primariamente e que pode abrir à dimensão em que a autenticidade constitutiva de mim se faz sentir, pode interpelar-me.

17 Ago 2018

País em ruínas e a saque

 

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Ópio na China levou à Primeira Grande Guerra Mundial dos tempos modernos pois, a nossa primeira, a Grande Guerra (1914-18) ocorreu sobretudo na Europa e apenas com intuitos políticos e militares, sem visar no imediato o comércio.
Após a Primeira Guerra do Ópio (1839-42), quando em 1851 se sentou no trono da China o Imp. Xianfeng, no Sul, Hong Xiuquan fundou o Grande Reino da Paz Celestial (Taiping Tianguo) e iniciou a Revolta Taiping contra o governo Qing e os senhores feudais. Uma verdadeira Guerra Civil, trespassada a meio pela II Guerra do Ópio (1856-60).
Hong Xiuquan (1814-64) começou por se juntar a pequenas rebeliões contra os senhores locais e após contactos com missionários protestantes, que depois dessa I Guerra andavam já por toda a China, ao ler um livro que propagava a fé cristã, nele se sentiu inspirado. Intitulando-se o irmão mais novo de Cristo, em 1844 criou a organização religiosa “Bai Shang Di Hui” (Sociedade de Adoração de Deus), que propagava a igualdade e fraternidade entre as pessoas e sexos e opunha-se à opressão feita pelos demónios (oficiais, senhores da terra e o feudal imperador Qing), encontrando terreno fértil em 1850 na revolta dos agricultores da província de Guangxi, devido à grande fome que então ocorria.
Em Macau, “No Verão de 1850, o intérprete oficial, João Rodrigues Gonçalves, foi abordado por um chinês bem vestido, que com grande discrição e mistério lhe fez uma proposta: sendo o governador de Macau (Pedro Alexandrino da Cunha) conhecido como um homem justo e humanitário, oferecia-se-lhe o comando de muitos milhares de apoiantes chineses, fortes, bem armados e suficientemente preparados, para o propósito de tomar o império. Pedia-se-lhe que tomasse esse assunto em consideração e que fizesse o favor de dar uma resposta. O intérprete mandou embora o homem, bruscamente, tomando-o por um louco, um brincalhão ou um intriguista. Pouco depois deste estranho incidente, a Revolta dos Taiping estava em pleno auge; e foi então que o intérprete chegou ao significado da proposta.” Montalto de Jesus
Em 11 de Janeiro de 1851 Hong Xiuquan fundou o Grande Reino da Paz Celestial, estabelecendo um poder político e militar. Começava a Revolta Taiping, que rapidamente ganhava aderentes entre os camponeses e artesãos devido ao utópico ideal de uma sociedade que sem distinções, em comunhão compartilhava a terra, comida e dinheiro. Em Março de 1853, o exército Taiping entrava em Nanjing e matando os manchus, aí fez a capital do Grande Reino da Paz Celestial, com o nome de Tianjing. Durante um ano chegaram à capital delegações estrangeiras, como a britânica, francesa e americana, a fim de conseguirem um acordo com o novo governo revoltoso Taiping, para que este aceitasse os tratados assinados após a Guerra do Ópio. Mas tal não aconteceu e em meados de 1854, as forças estrangeiras invasoras juntavam-se às do Imperador contra os Taiping. Estes, de vitória em vitória, ocuparam inúmeras províncias e em 1856 estão no máximo do seu poder militar. As potências estrangeiras, percebendo poder aproveitar a guerra civil como uma nova grande oportunidade para aumentar ainda mais o conseguido com a I Guerra do Ópio, arranjaram um pretexto.

II Guerra do Ópio

Provocada quando a dinastia Qing estava a braços com a Revolta Taiping (1850-64), a Segunda Guerra do Ópio tem início em 1856 após um barco britânico, ao navegar nas águas territoriais chinesas, próximo de Tianjin, ser abordado pelos militares chineses. Pretexto para os ingleses e os franceses bombardearem Tianjin, obrigando a China a abrir mais um porto, a juntar aos cinco conquistados pela I Guerra do Ópio. Assim, pelo Tratado de Tientsin de 1858, Tianjin tornou-se um porto estrangeiro e o ópio na China legalizado, apesar de contrário ao querer dos governantes chineses.
Já no Sul da China, a lembrar a partida de Lord Saltoun a 30 de Janeiro de 1846 de Cantão para Inglaterra levando a soma de três milhões de patacas paga pelos chineses em resgate da mesma cidade, a “12 de Fevereiro de 1858 é tomada a cidade de Cantão e enviado prisioneiro a Calcuttá o comissário imperial Yeh; os embaixadores e ministros de Inglaterra, França, Rússia e Estados Unidos dirigem nesse dia cartas a Yu, primeiro secretário de estado em Pequim, mostrando a urgência de ser nomeado pelo imperador um plenipotenciário e de se dar começo, em Shang-hai, às negociações sobre os vários assuntos que nas mesmas cartas se mencionavam. No caso em que o comissário imperial não chegasse a Shang-hai até ao fim de Março seguinte, os embaixadores aliados anunciavam o intento de se transportarem a um lugar mais vizinho da capital, para mais directamente se corresponderem com os primeiros funcionários do governo. Foram portadores destas comunicações Laurence Oliphant e o visconde de Contades, que saíram de Cantão nessa mesma data (12 de Fevereiro de 1858), e as entregaram, no dia 26, na cidade de Su-chau (Suzhou), ao vice-rei da província de Kiang-su (Jiangsu), que as enviou a Pequim.” BO. Ainda em 1858, a Companhia Inglesa das Índias Orientais entregava o governo de todas as suas terras à Coroa Britânica.

Pequim ocupada

O Tratado de Tientsin tardava em chegar e em Junho de 1859, sob o pretexto de serem trocadas as rectificações dos tratados, vieram os ministros ingleses e franceses em navios de guerra até Dagu, tendo o governo Qing notificado que deveriam desembarcar em Beiting. Ignorada a ordem, estes, com o suporte de vasos de guerra dos EUA, bombardearam o forte de Dagu. A guarnição chinesa ripostou e causou 500 feridos e mortos. Para retaliar, em Julho de 1860 os britânicos e franceses enviaram para Dagu uma força de 16 mil homens, que desembarcaram no mês seguinte em Beitang e ocuparam Dagu e Tianjin. Em Setembro vão o caminho de Pequim, levando o Imperador Xianfeng a entregar a negociação de paz ao irmão, o Príncipe Gong, Yi Xin e com alguns dos seus oficiais foi para Rehe (actual Chengde, Hebei), onde irá falecer em Agosto de 1861.
Pequim, a capital da dinastia Qing, foi invadida em Setembro de 1860 por ingleses e franceses, liderados por Charles George Gordon, que destruíram o antigo Palácio Imperial de Verão (Yuan Ming Yuan) saqueando e queimando-o. Em Outubro, para pôr fim à II Guerra do Ópio, à China foi-lhe imposta a abertura de Tianjin como porto de comércio e a permissão dos trabalhadores chineses irem para o estrangeiro; – não mais do que legalizar o tráfico de culis. Como indemnização de guerra prescrita pelos tratados de Tientsin foi aumentada para os 8 milhões de taéis de prata a cada um dos países e à colónia britânica de Hong Kong veio acrescentar-se a península de Kowloon. Entre os católicos, aos missionários franceses da Propaganda Fide, que vinha substituindo o Padroado português, foi permitido comprar ou arrendar terra e construir o que desejassem.
Em Setembro de 1861, Shamian, em Guangzhou, tornou-se uma concessão anglo-francesa, como se apresentará ainda na visita de Camilo Pessanha a Cantão.

 

17 Ago 2018

Derivas na língua

09/08/18

[dropcap style≠’circle’]À[/dropcap] esquerda, na frente, as violetas, os violinos e os oboés; depois, acima, por detrás das violetas e dos violinos: a harpa, de viés, para que as cordas vibrem impelindo o ar na direcção do leitor. Atrás dos oboés: as trompas. Na frente, à direita: as flautas, os violoncelos, o contrabaixo. Atrás do violoncelista, na segunda fila: o fagote. Na terceira fila: o clarinete baixo e o contrafagote. Na quarta fila situam-se os trombones. Ao centro, à frente: o primeiro e o segundo corne; de ambos dos lados destes: à esquerda o piano de cauda sem tampo e, à direita, o baixo de tuba. Por trás do piano, de viés, o harmónium. E simetricamente, atrás da tuba: o órgão eléctrico. No fundo, ao centro, da esquerda para a direita: as precursões, as congas, a marimba. Ao corno di bassetto solista e aos dois clarinetes pendurei-os nos candelabros.

O catarro do violoncelista precede o silêncio absoluto.

Depois, eu, o maestro, à frente da orquestra, que amacio com a língua (bendito o dia em que lancetei o freio) os mais pilosos segredos da tua orquídea, ergo as batutas.

Inicia-se o concerto.

O leitor sorri, com a orelha encharcada.

11/08/18

Stockhausen, no livro de entrevistas com Mya Tannenbaum, fala da complexidade crescente da tarefa artesanal de compor e defende que o diálogo com um aprendiz, um assistente, pode ser útil para ambos. Depois refere os 4 assistentes que teve. E pergunta Mya: «Christ era, por assim dizer, o seu delfim. Que é feito dele?» Responde o músico: «Foi para mim um choque: reduziu-se a tocar como primeiro violetista na orquestra de música ligeira de Westdeutscher Rundfunk.»

Cheguei tarde aos (meus) mestres. Mas uma coisa aprendi com eles: não se pode ensinar aonde colocar os pés num terreno que não pareça minado, o risco é próprio e intransmissível. Do mesmo modo que ninguém consegue deslocar o lugar da sua morte, ninguém aproveita coisa alguma coisa ao tornar-se o velcro do seu mestre. Por isso diziam os budistas: se encontrares Buda, mata-o!

A escolha da música ligeira só traduz o tremendo susto que floresceu no caminho de Christ.

12/08/18

Ando insone. As palavras chegam-me como um coro fora de cena.

Durante décadas não reconhecia a depressão. Agora morde-me as canelas, enfia-se-me no sono, tem a odiosa gordura que acumulava o linóleo das mesas da minha infância. É um volume que insiste em ser carregado, sem conseguirmos corrigir o erro contínuo de avaliação da energia a despender, vítimas de um conceito mecânico de força.

Basta um homem para remover a grande pedra e empurrá-la colina acima, o mais difícil a acreditar em Sísifo é, num momento de distracção, não deixá-la rolar encosta abaixo.

Hoje até a insónia me parece um feixe dissipado, o cacto enterrado na duna pela tempestade de areia e que perdeu de vista a águia.

As esculturas gregas decapitadas, com o pénis cortado e as órbitas vazadas? Meia vida é assim, amorfa, conformada; sendo o fazer e o desfazer o domínio dos olhos que querem crer.

Paracelso disse tudo: a mente é quem faz ver os olhos.

E, entretanto, não fodemos tanto quanto seria desejável e o amor é sempre um carrinho de mão a equilibrar-se na corda do funambulo.

O acto criativo é que nos compensa, porque o que conta aí não é tanto produzir uma variante na bagagem preexistente como aderir ao processo originário da invenção. Aceder ao incriado, onde todas as possibilidades estão em aberto. E aí, num dia bom eu estendo telescopicamente o braço e apalpo as estrelas, sondo quais estão maduras (- aqui para nós, o rabo das estrelas é tão grande que se pode lá entrar como num celeiro). Diria o Rilke que não existe mais nobre ofício, porque não sou eu quem vai colher o fruto, eu só o testo e farejo.

Em dia assim chego a casa e o amor exorbita. É um puro acto de contaminação.

Em dia infértil, rezingo o suficiente para o próximo milénio, chego a casa e afio as facas na pedra que era do meu avô amolador, reajo por reflexos condicionados.

A incubação dos deuses teve também por fito acomodar-nos a algum modelo de constância. Porém, o corpo é uma espécie de arco que nos ejecta para vicissitudes realmente labirínticas. E o facto de nos empenharmos não garante automaticamente uma satisfação. Há lotarias para o sexo e outras para o amor, não é raro que coincidam, mas é inescapável que amiúde um é o estorvo do outro.

13/08/18

Excelente, a crónica do Paulo José Miranda sobre como o tempo se transforma quando se deixa de beber.

Como alcoólico sempre me penalizou que ao tempo lento da ebriedade se sucedesse a calcinação do tempo nas ressacas. Mas o meu prazer era físico, não psicológico, e, será uma das coisas que me atraía no álcool, há um certo cansaço que despoja.

Nunca estive sem beber o tempo suficiente para sentir a mudança. Mas quando cheguei a Moçambique senti fisicamente essa dilatação do tempo de que fala o Paulo – durante seis meses vivi, literalmente, noutra região do tempo.

Há realmente modulações do tempo e para as sentirmos não podemos cilindrar as suas hipóteses de serem percepcionadas. O álcool é uma antena ludibriadora e ao fim de algum tempo apodera-se do foco, sendo o mais pretexto para a sua anestésica litania. Pior, as intensidades anulam-se e confunde-se a exaltação na presença com a amizade.

Nos últimos anos aderi ao valor do não e do silêncio quando o álcool me chama. O que me permitiu disciplinar-me e recuperar o prazer de beber, embora o mais difícil tenha sido romper com toda uma mitologia incarnada.

O que é facto é que o álcool não acrescenta um grama de atenção ou qualquer microfone a catorze violinos que possamos ouvir ao natural. Apesar de termos acreditado nisso durante décadas, com as tripas. Afinal, ouvir o tempo manifestar-se nas coisas dobra-nos o tempo: triste é ter percebido isto tarde.

16 Ago 2018

Virgens ofendidas

Horta Seca, Lisboa, 25 Julho

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão se ofendam já. O editor funciona como filtro. E os pequenos moldam-se a coadores mínimos, de natas esfriadas no bom leite. (E mais não puxo pelo elástico da metáfora.) De súbito, supostas amizades desfazem-se com estrondo pela razão de que a obra, certamente prima, não foi lida nos prazos impostos pela ansiedade do autor. Não era amizade, apenas pó. Muita desfeita e desgosto tenho causado, na maior parte das vezes sem querer. Ganhei projectos para o resto dos meus dias, de tanto exagerar no voluntarismo. Sofro, claro, de mania das grandezas, tenho pernas mais pequenas que o passo, cultivo alheamento crónico da realidade, de tal modo que nem ao correio dou vazão. Adio a resposta, para ser concreto, para dizer um pouco mais que a obrigação, mas as urgências sobrepõem-se e, às tantas, já se fez ferida. Haverá forma de inventar organização que me livre do que não pedi, do que não vale a pena, do desapropriado e do incómodo. Nem assim, creio, conseguiria sorver a torrente de propostas que me esmagam a cada dia. Sofro com isso, mas não se compara às incompreensões de quem poderia oferecer, ao menos, o benefício da dúvida. Aceite-se. Até que algumas mensagens despeitadas chegam tintadas de verve.

Horta Seca, Lisboa, 10 Agosto

Vivemos, afinal, na idade das trevas. The Nation, título norte-americano com pergaminhos na cultura aceita publicar poema, pueril, diria eu, de Anders Carlson-Wee: «If you got hiv, say aids. If you a girl, / say you’re pregnant––nobody gonna lower/ themselves to listen for the kick. People/ passing fast. Splay your legs, cock a knee/ funny. It’s the littlest shames they’re likely/ to comprehend. Don’t say homeless, they know/ you is. What they don’t know is what opens/ a wallet, what stops em from counting/ what they drop. If you’re young say younger./ Old say older. If you’re crippled don’t/ flaunt it. Let em think they’re good enough/ Christians to notice. Don’t say you pray,/ say you sin. It’s about who they believe/ they is. You hardly even there.» Logo se levantou costumeira tempestade por ser branco a fingir voz grossa e negra era causa de excruciante pena. Vieram logo de bombeiro as editoras «lamentar a dor que causámos às muitas comunidades afetadas por este poema». E até o poeta se desculpou (https://www.nytimes.com/2018/08/01/arts/poem-nation-apology.html?action=click&module=RelatedLinks&pgtype=Article). Em nenhum lugar percebi outro argumento além da cor da experiência, que impedisse o desgraçado de sussurrar na voz poética o jargão da negritude. Só posso concordar com a opinião de Grace Shulman, ex-editora da secção de poesia da mesma revista: The Nation Magazine Betrays a Poet — and Itself (https://www.nytimes.com/2018/08/06/opinion/nation-poem-anders-carlson-wee.html?smid=fb-nytimes&smtyp=cur), até por terem «lived by Thomas Jefferson’s assertion that “error of opinion may be tolerated where reason is left free to combat it.”». Os debates do género infantilizaram-nos ao ponto de despercebermos o fundamental do acto literário. Ninguém poderá, doravante, permitir que a sua voz abandone a experiência concreta sem ofender comunidades. Eu, sendo gordo, terei que me ofender e lançar indignação de cada vez que o magricelas Valério [Romão] se atreva a alargar personagens. Não, não é apenas ridículo, cresce o perigo desta nova cultura, como lhe chama o alegre mal disposto, Roger Scruton (https://blogs.spectator.co.uk/2018/08/the-art-of-taking-offence/): «I was brought up to believe that you should never give offence if you can avoid it; the new culture tells us that you should always take offence if you can. There are now experts in the art of taking offence, indeed whole academic subjects, such as ‘gender studies’, devoted to it. You may not know in advance what offence consists in – politely opening a door for a member of the opposite sex? Thinking of her sex as ‘opposite’? Thinking in terms of ‘sex’ rather than ‘gender’? Using the wrong pronoun? Who knows. We have encountered a new kind of predatory censorship, a desire to take offence that patrols the world for opportunities without knowing in advance what will best supply its venom. As with the puritans of the 17th century, the need to humiliate and to punish precedes any concrete sense of why.» Punir antes de perceber porquê, se isto não são trevas…

Horta Seca, Lisboa, 12 Agosto

Soterrado pela passagem dos dias, entrevi e salvei da pilha de papéis «O Espião Acácio», leitura interrompida ainda mal começada, há meses, quando o Júlio [Moreira] me ofereceu este seu velho projecto, posto finalmente em cuidado álbum (na Turbina), com a ajuda da Margarida [Mesquita]. O Acácio (algures na página) vem lá das paisagens da infância e confesso agora o receio de magoar vetustas e exaltadas recordações. Em fuga do vórtice, apliquei-me com ligeireza semelhante à que imagino ter sido a do Relvas naqueles idos de 1970, à razão de duas páginas por semana na revista Tintin. Como se fosse traço único a percorrer o papel, sem o largar nem para respirar, as aventuras do espião partem da Primeira Grande Guerra para delirar pelos grandes espaços da política mundial e da ficção científica. Tudo varia e vareia entre momentos de especial cuidado e outros da maior soltura, buscando ora o contraste das manchas ora a leveza da linha. Não se procure aqui sentido outro que não o puro prazer, um humor insurrecional e ofensivo, como deve ser, e a mais anarquista das ligeirezas. O Relvas não foi nunca de grandes narrativas, mas de explosivos momentos e extraordinárias personagens. As orelhas de Acácio, como bem celebram as guardas do álbum (à maneira dos álbuns de Tintin), são moldura de galeria única e disparate de figuras. Que poderiam ter ido onde nunca a mão do homem pôs o pé.

Horta Seca, Lisboa, 15 Agosto

Várias das virtudes do livro acabam tornando-se maldições. Esta de ser objecto ascensional, que se ergue acima da sua materialidade, no qual se investem valores, transcendências e saberes fê-lo perder o seu corpo, comercial por exemplo. Não exagero no número, que chega à centena, de exemplares que a tradição manda oferecer a meia hierarquia das redacções, aos críticos em «actividade» e em pausa sabática, aos fazedores de opinião, individualidades variegadas e amigos, nossos e de mais não sei quem. Esmolamos em nome da esperança, quase sempre vã, de singela referência nos céus da opinião, brilho fátuo que ajude o pobre título a existir. Muito pior, prática comum e bastante reveladora, reside na inimaginável quantidade de pedidos diários, sim, a cada dia, oriundos dos mais (im)suspeitos lugares: blogues, sites, clubes e outros leitores com vontade de partilhar leituras; grupos das mais expeditas acções sociais a quererem usar o livro para fazer o bem. E o grau de obscenidade vai aumentando: professores universitários, garantindo que palavra sua de endosso desmultiplicará tão pequeno investimento; organizadores de festivais, bem pagos para isso, que cravam o mísero exemplar para o moderador da mesa na qual participa o autor, ou a novidade de um leitorado de português, portanto dependente do estado, com o argumento supimpa de termos livros perdidos nos armazéns. Devíamos, portanto, aproveitar este feriado da Assunção de Maria e celebrar a promoção do livro a modesta necessidade. Se quem precisa não compra, quem trocará festivais e futebol pela transcendência de umas páginas?

16 Ago 2018

O corpo digital

[dropcap style=’circle’]S[/dropcap]e há uma coisa que as redes sociais vieram inequivocamente provar é que não estávamos preparados para as redes sociais. A forma como a nossa identidade habita o espaço cibernético é assaz diferente daquela a que estamos acostumados. Por um lado, a nossa voz está “ali”. Mas é uma presença amputada, já que esta dispensa o corpo. E talvez a imortalidade tão almejada pelo humano desde sempre – sem qualquer noção das consequências que dela podem advir – acabe por ser isso mesmo: uma consciência desprovida de corpo, visto que o corpo, como toda a matéria, está exposto à degradação que o tempo provoca. Mais a mais, e mesmo que o corpo fosse incorruptível, subsistiria um problema de monta: se todos fôssemos imortais, o espaço disponível para nos albergar seria sempre limitado. As almas, mesmo que na versão digital, são muito mais económicas na área que ocupam.

Ora esta ausência de corpo é porventura o aspecto que melhor define a radicalidade das posições do sujeito digital. Não é raro vermos sujeitos, no Facebook – sujeitos que conhecemos pessoalmente e que prezamos pela capacidade de diálogo e pela moderação – demonstrarem uma extraordinária intolerância perante opiniões que não perfilham. Intolerância amiúde acompanhada de violência verbal. Esta síndrome Mr. Hyde cibernético, pela qual um sujeito cordial na vida quotidiana se transforma num arruaceiro digital radica fundamentalmente na ausência de corpo que é a marca de água da presença da identidade nas redes sociais. Do corpo e da forma como este condiciona e define a nossa relação com outrem.

De facto, não há consequências físicas para o excesso de tenacidade com que defendemos determinada posição. Não há olhares que se cruzam, não há os múltiplos indícios pelos quais o nosso substrato animal percebe imediatamente a fronteira da passagem do confronto verbal ao confronto físico. O sujeito que discute na internet não aposta o corpo nessa discussão. É apenas um tipo num quarto com um teclado sob os dedos e a possibilidade de transcender o constrangimento físico que advém de estar cara a cara com aquele com quem se discute. Pode crescer à vontade em volume e violência. Pode crescer infinitamente.

Esta ausência de consequências físicas dá azo aos comportamentos arruaceiros que vemos um pouco por todo o lado, desde as caixas de comentários dos jornais aos murais do Facebook. Como canta Sérgio Godinho “foi muita liberdade de uma só vez / e o rapaz está confuso”. Até a característica fundamental das redes sociais que podia prevenir este tipo de atitude – que é a memória infinita e infinitamente precisa que subjaz à internet – não é suficiente para condicionar e restringir o excesso. O sujeito conta – e bem – com a rapidez esmagadora dos conteúdos digitais a que estamos expostos. Dada ao particular confinamento do nosso foco de atenção, uma coisa rapidamente substitui outra no fluxo de consciência.

O que resta saber, em boa verdade, é se com o tempo conseguiremos crescer civilizacionalmente e sair deste wild west digital onde nos encontramos ou se, pelo contrário, a ausência de corpo e das consequências a que este está sujeito condicionará sempre a nossa presença cibernética. No melhor dos cenários, ultrapassaremos esta infância digital de algum modo. No pior, a violência virtual acabará por nos transformar e por transformar o modo como nos relacionamos com os outros “cá fora”. A despeito do corpo.

14 Ago 2018

Os factos são lendas – A mulher do padeiro, de Marcel Pagnol

[dropcap style=’circle’]I[/dropcap]nserido no ciclo “Os Padrinhos da Nouvelle Vague”, a Medeia Filmes está a passar alguns filmes que considera terem sido fundamentais para a geração posterior do cinema francês. Neste contexto, convidaram-me a assistir a um dos filmes e a escrever acerca dele. Deixo-vos aqui o texto que escrevi precisamente há uma semana acerca do filme de Marcel Pagnol, A Mulher do Padeiro.
Os factos são lendas. E isso fica muito claro neste filme. Se nos ativermos à história, ela é muito simples: numa aldeia do interior de França, a mulher de um padeiro, muito mais nova do que ele – ela poderia ser sua filha –, deixa-o por um homem mais novo e ele não faz mais pão. Mas isso é como a vida, se nos ativermos à história, ela é muito simples. O facto em si não existe, aquilo que aqui se designaria por facto – a mulher deixar o homem – não é visto da mesma maneia por nenhum dos intervenientes. Todos vêm e sentem diferentemente o facto. Isto é, o facto, de um ponto de vista objectivo, não é uma coisa palpável. A maior das divisões de ponto de vista é, evidentemente, aquela que opõe o padeiro Aimable a todos os outros. Aimable sente o acto da mulher por dentro, sente a perda – mais até do que a traição – enquanto todos os outros não sentem a perda, mas julgam o acto. E neste julgamento do acto as posições dividem-se, desde a pura chacota até ao medo, por parte do padre e da mulher mais beata da aldeia, que isso possa ser um mau exemplo. Mas pode-se querer continuar a dizer que o facto está lá, pois esses modos diferentes de olhar não fazem desaparecer o que aconteceu: a mulher do padeiro tê-lo deixado. Por outro lado, e em contradição com esta posição, aquilo a que se chama facto, aparece constantemente no filme como uma vivência diferente; e é esta vivência que dá forma ao acontecimento. De tal modo, que o próprio padeiro está continuamente a recusar que a mulher o tenha deixado, projectando diferentes possibilidades de acontecimento, como o ela ter ido visitar a mãe ou, mais tarde, o pastor ter enfeitiçado a mulher, por ser uma espécie de encarnação do diabo, pondo em causa junto do padre o livre arbítrio.
E tudo isto se passa numa contínua tensão entre o humor e a tragédia. Aliás, humor é já uma forma de tragédia, um entendimento profundo de algo que sob a capa aparente do riso esconde uma tristeza. Não podemos aqui deixar de nos lembrar de Pirandello acerca da diferença entre humor e comédia. Num texto teórico chamado Humorismo, Pirandelo escreve: “Vejo uma velha senhora, com os cabelos retintos, untada não se sabe de qual pomada horrível, e depois toda ela torpemente pintada e vestida de roupas juvenis. Ponho-me a rir. Advirto que aquela senhora é o contrário do que uma velha e respeitável senhora deveria ser. Assim posso, à primeira vista e superficialmente, deter-me nessa impressão cómica. O cómico é precisamente um advertimento do contrário. Mas se agora em mim intervém a reflexão e me sugere que aquela senhora não sente talvez nenhum prazer em vestir-se como um papagaio, mas que talvez sofra por isso e o faz somente porque se engana piamente e pensa que, assim vestida, escondendo assim as rugas e as cãs, consegue reter o amor do marido, muito mais moço do que ela, eis que já não posso mais rir disso como antes, porque precisamente a reflexão, trabalhando dentro de mim, me leva a ultrapassar aquela primeira advertência, ou antes, a entrar mais em seu interior: daquele primeiro advertimento do contrário ela me faz passar a esse sentimento do contrário. E aqui está toda a diferença entre o cómico e o humorístico.”
Não que não haja também comédia neste filme, porque há. Há cómico, em A Mulher do Padeiro, mas o tom contínuo e de fundo é o do humor, tal como Pirandello o define: um sentimento do contrário, isto é, o sentimento daquilo pelo qual Aimable está a passar, e que não é um facto. Pois o filme não trata de lendas, mas da vida humana. E nesta não há factos, mas vivências, afectações, modos como vibramos com o que acontece. E este modo de vibrar com o que acontece não é um facto. Ainda no mesmo livro de Pirandello, ele continua com o célebre exemplo de Marmeladov – o bêbado, pai de Sónia – na hospedaria a falar com Raskalnikov, em Crime e Castigo de Dostoiévski: “– Senhor, senhor! Ó senhor! Talvez, como os outros, julgais ridículo tudo isto: talvez eu vos aborreça, contando-vos estas estúpidas e miseráveis particularidades da minha vida doméstica; mas para mim não é ridículo, porque eu sinto tudo isto…” Precisamente! Ele sente tudo aquilo, tal como Aimable, em A Mulher do Padeiro. E esta diferença, a de sentir tudo aquilo, não é modal, é existencial. No humano tudo é sentido. E é este sentido que faz toda a diferença e simultaneamente confere significado ao que acontece. Os factos são lendas.

14 Ago 2018

Fim do dia I

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a Interrupção do fim do dia, eu não sou eu por contraste com o modo de me encontrar no exercício das minhas funções.
Entre o fim de cada dia trabalho e o início de outro dia, antes da hora do jantar, há tempo disponível para o que for. Essa hora de fim do dia, antes do jantar, se não houver nenhuma urgência, custa a passar. É um tempo de viragem. Estamos entregues a nós próprios. Temos de ocupar esse tempo. É um tempo de regresso a si, de desinvestimento da tarefa. Não é necessariamente um tempo de descontracção e de relaxamento. Podemos ter uma actividade que nos dê prazer, que preenche o tempo. Mas podemos também estar à espera da hora do jantar, ou das notícias, numa travessia do tempo difícil de fazer-se.
Aí há uma espécie de hiato de tempo. Quando não há nada agendado, temos de fazer tempo como quer que seja. Depois, há como que uma fluidez no caudal do tempo que nos leva nas horas. Já são dez horas. Não se percebe como se mergulhou no tempo e se foi fluindo das sete às dez, passando pelas horas dramáticas das sete às nove. A que é quer corresponde essa dificuldade do tempo que custa a passar? Há uma espécie de reserva do tempo a admitir-nos, uma entrada proibida, uma interdição e impermeabilização do tempo.
Não há nada que se consiga fazer: ouvir música, ver um programa na TV, passear, ler. Ficamos sem recursos para invadir e ocupar o tempo num instante. Não há sentido nem direcção ou orientação, para mergulharmos na corrente do tempo e sermos levados pelos conteúdos distribuídos sequencialmente no tempo, como tinha acontecido ao longo do dia, como acontece por vezes. A partir de determinada altura somos puxados por conteúdos que se organizam sequencialmente a partir da sua própria agenda. Se dávamos conta da impermeabilidade, da vedação do tempo, tal que não conseguíamos mergulhar nele para irmos na corrente, agora percebemos que mergulhamos e somos levados até às dez ou às onze.
Mas não é necessariamente de conteúdos o que aqui se trata. Pode perfeitamente haver uma acomodação da inércia do movimento que continua quando eu já parei, deixando sem conseguir aterrar na situação em que eu agora me encontro. Continuo ainda com os problemas do trabalho, programado para resolver questões que agora não são determinantes, estou ainda na sombra projectada pela situação do trabalho, ainda não desliguei. Levo comigo o dia todo. E por outro lado não consigo constituir outro horizonte de vivência, habituar-me à situação do serão, da saída do trabalho, de o ter largado. Faço tudo e mais alguma coisa e é como se houvesse um campo de forças que me repele.
Quando dou por mim a ser puxado numa sequência de tempo, não posso dizer verdadeiramente que é porque um conteúdo passou a ser interessante, quando os outros não eram. Pode ser o mesmo conteúdo ou os mesmos conteúdos que antes estavam já a actuar e que se tornaram interessantes. O que sucede é que os resquícios do dia útil acabam por ser lavados e há uma disponibilidade para programar o serão, ater-me aos conteúdos que aí estão e que são os que estavam: há o conteúdo Δ x, depois, y e z e constitui-se uma sequência temporal

 

10 Ago 2018

Portos da China e Japão abertos ao comércio

[dropcap style=’circle’]A[/dropcap]China, desde que perdera por via militar a I Guerra do Ópio, percebera ter sido tecnicamente suplantada pois ficara fora da intelectual inteligência do renascimento ocidental, sussurrada aos ouvidos do Imperador Kang Xi (1662-1722) quando ainda criança. Sinergia entre Ocidente e Oriente trazida pelos jesuítas para dentro do Palácio Imperial, onde entraram através da Matemática, Astronomia e relógios, e por oferendas como âmbar cinzento, brinquedos, rapé e quadros pintados em perspectiva. Por ordem do segundo Imperador Qing, em 1708 começaram a ser cartografadas todas as regiões do Império, colaborando os jesuítas nesse trabalho. Compilado em 1718, foi guardado num dos pavilhões imperiais e aí ficou; já os missionários, com o valioso e estratégico mapa da China, enviaram-no aos Superiores na Europa.
A manchu Dinastia Qing (1644-1911), a última das imperiais dinastias chinesas, a partir do quarto Imperador Qian Long (Gao Zong, 1735-1795) começou a entrar em decadência. Em 1781, a Companhia Inglesa das Índias Orientais sem nada para trocar de interesse com os chineses, começou a enviar ópio para a China. Com o sexto Imperador Dao Guang (Xuan Zong, 1821-1850) ocorreu a I Guerra do Ópio (1839-42), devido à recusa do governo imperial em aceitar essa droga, “levando as costas marítimas chinesas a serem fustigadas pelos canhões dos 38 navios de guerra, com 4 mil tropas britânicas que terminou com a assinatura do Tratado de Nanjing a bordo da nau inglesa Cornwallis a 29 de Agosto de 1842 (24.º dia da 7.ª lua do 22.º ano do Imperador Tao-kuang). Sir Henry Pottinger, por parte da Grã-Bretanha e o comissário imperial Ki-ing I-li-pu (Qiying) e Neu-kien, por parte da China, sendo as ratificações trocadas em Hong Kong a 26 de Junho do ano seguinte”, segundo Marques Pereira e nesse tratado “o Imperador da China ficou obrigado a pagar a soma de 21 milhões de patacas, a título de indemnizações da I Guerra do Ópio e outras, no prazo de três anos e quatro meses, contados desta data da assinatura, e outrossim a abrir inteiramente ao comércio estrangeiro os portos de Cantão, Amoy, Fuchau, Ningpo e Shanghai, admitindo neles cônsules e adoptando razoáveis tarifas de direitos. Foi pelo mesmo tratado confirmada a cessão da ilha de Hong Kong à Rainha Victoria e a seus herdeiros e sucessores, e aceitação da ocupação das ilhas de Chu-san e Ku-lang-su até à completa abertura dos portos mencionados e integral pagamento das indemnizações.”
Tamanha humilhação marcou a viragem da China Imperial para um semi-feudal e colonizado país. Após o Tratado de Nanjing, os britânicos controlavam o comércio marítimo da China e as outras potências Ocidentais, como a França, a Alemanha, a Rússia e os EUA, assistindo à fraqueza dos governantes chineses decidiram fazer pressão para obterem também privilégios, concessões e território. Os Estados Unidos em 1844 assinaram em Macau o Tratado de Wangxia, que concedeu os direitos dados aos ingleses e reduzia as taxas sobre os barcos americanos, podendo estes navegar nas águas interiores da China. Crimes cometidos por cidadãos americanos na China seriam apenas julgados por tribunais americanos, mesmo os relacionados com a morte de chineses por americanos.

Aceitação da civilização ocidental

O Japão (Nippon para os japoneses) mantivera-se fora do mundo desde 1639 devido aos Éditos de Isolamento que o Shogunato Tokugawa (1603-1867) sucessivamente foi proclamando, até que a 11 ou 12 de Fevereiro de 1854, o comodoro americano Mathew C. Perry regressou ao Japão com uma esquadra de sete navios para saber a resposta à carta do presidente Norte Americano Millard Fillmore (1850-1853), por ele aí deixada um ano antes, quando em 8 de Julho de 1853 na Baía de Yedo (Tóquio) aportara na primeira vez. Recebido a 14 de Fevereiro, exigia a abertura dos portos japoneses ao comércio americano. O shogun adiando a resposta, pois a corte imperial em Quioto era defensora da guerra para não deixar entrar as potências estrangeiras, logo recebeu a ameaça: . Tal levou em Março de 1854 o Presidente do Conselho dos Veteranos, Abe Masahiro a assinar o acordo com os americanos, onde o Japão abria portos ao comércio.
As reformas no Japão iniciaram-se com aquisições de armamento e navios de guerra, dando-se em 1855 a abertura com instrutores estrangeiros das escolas Naval e Militar. Em 1858, o governo shogunal assinava novos tratados, agora com a Holanda, Rússia, Inglaterra e França, e ao ser obrigado a abrir mais portos aos estrangeiros perdeu força interna para os partidários do imperador, começando o declínio do regime de shogunato, que vigorará até 1867.
Os estrangeiros, comerciantes e diplomatas, estabelecem-se no Japão e muitos jovens japoneses vão para a Europa e EUA estudar. Era aprender com o Ocidente, compreender os seus modelos para conseguir o melhor e negociar em pé de igualdade.
Desde 1603 a família Tokugawas detinha o poder e quando o shogun Iemochi morreu sucedeu-lhe Yoshinobu a 29 de Agosto de 1866. A 25 de Janeiro de 1867, “Os jornais e as cartas são unânimes em afirmar grandes reformas sociais no Japão, devidas sem dúvida às ideias progressistas do novo taicun (taiko, Grande Príncipe). Os nobres do império principiavam a usar trajes europeus e a empregarem carruagens em seu serviço. Todos os vapores que actualmente partem dos portos abertos ao comércio, conduzem japoneses para a Europa, que vão visitar a exposição de Paris, e muitos jovens enviados pelos seus parentes aos colégios de educação. Uma escola se ia abrir em Yokohama, dirigida por ingleses, para os filhos do país, à imitação da escola para o mesmo fim criada pelos franceses e estabelecida no distrito de Yokohama, conhecido pelo nome de Benten.
O governo (japonês) adoptou um figurino francês para fardar e equipar o seu exército, tendo engajado alguns instrutores franceses. O Dr. Maggowan, chegado àquele país, apresentou uma proposta para estabelecer um telégrafo eléctrico entre a capital do império e os portos abertos, excelentemente acolhida, com os trabalhos a começar para se fixar o fio eléctrico entre Yeddo e Yokohama e crendo ficar concluído ainda este ano. Afirma-se que já o novo Taicun dirigira aos ministros estrangeiros residentes, o convite para o irem visitar ao seu palácio em Osaka e supõem todos que nesta ocasião se tratará da grande questão pendente, a abertura do porto de Hiogo”, segundo Boletim do Governo de Macau e Timor, 1867.
Levadas a sério as ameaças americanas, com espelho na humilhação que a China passava, em 1868 o Japão colocou no poder com 15 anos de idade o Imperador Meiji e em galopante transformação radical se modernizou pela matriz ocidental de competição e guerra, até atingir um Império na Ásia

10 Ago 2018

O passeio – poema de Georg Trakl traduzido

O passeio

 

1

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á música a sussurrar no bosque à tardinha.

No milheiral, viram-se espantalhos de semblante sério.

Delicadamente, os sabugueiros espalham-se ao longo do caminho.

Uma casa cintila maravilhosamente e vaga.

 

No dourado, paira um aroma a tomilho.

Numa pedra, está um número sereno.

No prado, as crianças jogam à bola.

Depois, à tua frente, ganha corpo uma árvore para a contornares.

 

Tu sonhas: a irmã penteia o seu cabelo louro.

Um amigo distante escreve-te uma carta.

Um cilindro de feno voa tosco através do verde amarelado,

E, às vezes, tu pairas com leveza em suspenso e maravilhoso.

 

2

O tempo corre. Oh! doce Hélio!

Oh! Imagem doce e clara dos sapos nas poças.

Na areia, um Éden maravilhoso enterra-se.

Escrevedeiras baloiçam no regaço de um arbusto.

 

Um irmão morre-te num país encantado

E o seu olhar de aço contempla-te olhos nos olhos.

E no dourado ali, há uma fragrância de tomilho.

Uma criança inicia um fogo ao pé da aldeia.

 

Os amantes abrasam-se renovados em borboletas.

Oscilam serenamente em redor da pedra e do número.

Corvos esvoaçam à volta de uma refeição repugnante,

E a tua testa ferve por entre o verde suave.

 

No espinheiro, um animal selvagem morre ternamente.

Atrás de ti escorrega um dia claro da infância.

Cinzento é o vento que, volátil e vago,

Lava odores pútridos durante o crepúsculo.

 

3

Uma velha canção de embalar deixa-te angustiado.

À beira da estrada, piedosa, uma mulher amamenta um recém nascido.

Escutas como a sua fonte emana, a transformar os sonhos.

Do ramo de uma macieira, desce um som de consagração.

 

E pão e vinho são a doçura que vem do duro esforço.

As tuas mãos apalpam prateadas frutos.

Raquel morta anda pelos campos arados.

Com gestos de paz acena o verde.

 

Abençoados florescem os regaços das pobres criadas,

Que ali estão de pé junto à velha fonte a sonhar.

Solitárias seguem serenas os seus caminhos, em silêncio,

Na companhia das criaturas de Deus desprovidas de pecado.

 

Der Spaziergang[1]

 

1

Musik summt im Gehölz am Nachmittag.

Im Korn sich ernste Vogelscheuchen drehn.

Hollunderbüsche sacht am Weg verwehn;

Ein Haus zerflimmert wunderlich und vag.

In Goldnem schwebt ein Duft von Thymian,

Auf einem Stein steht eine heitere Zahl.

Auf einer Wiese spielen Kinder Ball,

Dann hebt ein Baum vor dir zu kreisen an.

Du träumst: die Schwester kämmt ihr blondes Haar,

Auch schreibt ein ferner Freund dir einen Brief.

Ein Schober flieht durchs Grau vergilbt und schief

Und manchmal schwebst du leicht und wunderbar.

 

2

Die Zeit verrinnt. O süßer Helios!

O Bild im Krötentümpel süß und klar;

Im Sand versinkt ein Eden wunderbar.

Goldammern wiegt ein Busch in seinem Schoß.

Ein Bruder stirbt dir in verwunschnem Land

Und stählern schaun dich deine Augen an.

In Goldnem dort ein Duft von Thymian.

Ein Knabe legt am Weiler einen Brand.

Die Liebenden in Faltern neu erglühn

Und schaukeln heiter hin um Stein und Zahl.

Aufflattern Krähen um ein ekles Mahl

Und deine Stirne tost durchs sanfte Grün.

Im Dornenstrauch verendet weich ein Wild.

Nachgleitet dir ein heller Kindertag,

Der graue Wind, der flatterhaft und vag

Verfallne Düfte durch die Dämmerung spült.

 

3

Ein altes Wiegenlied macht dich sehr bang.

Am Wegrand fromm ein Weib ihr Kindlein stillt.

Traumwandelnd hörst du wie ihr Bronnen quillt.

Aus Apfelzweigen fällt ein Weiheklang.

Und Brot und Wein sind süß von harten Mühn.

Nach Früchten tastet silbern deine Hand.

Die tote Rahel geht durchs Ackerland.

Mit friedlicher Geberde winkt das Grün.

Gesegnet auch blüht armer Mägde Schoß,

Die träumend dort am alten Brunnen stehn.

Einsame froh auf stillen Pfaden gehn

Mit Gottes Kreaturen sündelos.

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 26-27.

9 Ago 2018

A benzina de John Zorn

 

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma excelente jornalista portuguesa veio interrogar-me sobre a minha experiência de professor em Moçambique e agora publicou a reportagem – da qual gostei –, onde descreve a minha casa: «uma casa esvaziada mas com muitos livros».
Desconcerta-me o adjectivo: há quinze dias tivemos dificuldade em descobrir o buraco onde enfiar o piano da minha mulher, regressado a casa vinte anos depois. Não é inabitual que a percepção que o outro tem sobre nós nos surpreenda. Seja como for, ainda esta semana acrescentei trinta cds de John Zorn à minha discografia e uma casa com um piano e dois violinos (que são tocados, não são decoração), muitos livros, dois gatos, todas as sinfonias do Messiaen, do Lutoslawski, do Mahler, do Bruckner e do Beethoven, pode considerar-se esvaziada?
Parecerá uma casa de quem está de passagem, embora com milhares de livros e muita música? Na verdade, não temos carro, objectos decorativos, plasma.
Vou à estante, abro ao acaso um livro de Adam Zagajewski, e topo este poema: «BUSCA: Voltei à cidade/ onde fui menino/ e adolescente e um velho de trinta anos./ A cidade recebeu-me com indiferença,/ os megafones das suas ruas murmuravam:/ não ves que o fogo ainda arde?/ não ouves o estrépito das chamas?/ Vai-te./ Busca noutro lugar./ Busca./ Busca a verdadeira pátria.» Volto a arrumá-lo, por detrás de uma reprodução de Hokusai, olho em volta, e dou conta: o meu conforto resume-se a ter-me despojado de pátria.
Como Hannah, Arendt sou incapaz de amar uma pátria, só amo pessoas. A minha pátria está nas gargalhadas das filhas, no sorriso da minha mulher – um dos mais belos do mundo. E troco a pátria, qualquer, pela poesia do José Ángel Valente, do José Hierro, do Hugo Claus, do Mario Luzi, do Mark Strand, do Adonis, do Lezama Lima, do Milozs, de centenas de poetas que fui colecionando, na esperança de os reler, uma e outra e outra vez.
Sou despojado sim, sou mesmo um caso de estultícia-prima, o péssimo exemplo de alguém que emigra para ganhar metade do que recebia, em troca de ter agora o triplo do tempo para si. Para escrever, fruir a música, estudar arte e calafetar as lacunas.
Será arrogante declarar que me concentro mais no que importa desde que voluntariamente escolhi a “pobreza”? Que me consolei ao ler que o John Zorn, que vive numa casa austera, se sentiu libertar-se ao abdicar dos jornais, da televisão, e de inúmeras amizades laterais, para se focar no seu trabalho musical – e começa a ser um legado monstruoso. O problema é que não vejo como possa fazer-se de outra forma.
O Zorn. Tinha-o ouvido em Naked City e nos primeiros cds do projecto Masada, depois perdi-lhe o rasto, e agora, surpreendido por a Gulbenkian lhe dedicar uma semana à obra, resolvi ver o que apanhava no Youtube. É o que vos digo: já baixei trinta cds, preparo-me para baixar outros tantos; há cinco dias que obsessivamente leio sobre ele e lhe ouço a música.
Estou abismado, é para mim o maior poeta do século XXI. Entendendo a poesia como o que harmoniza momentaneamente o caos e desperta um padrão no informe, uma melodia que emerge de «um sentido para a existência que estava até aí fora do conceito» (Yves Bonnefoy), é um exercício que não precisa de residir na palavra. Além disso, se normalmente um autor é um rio, Zorn aparece como um inteiro sistema hidrográfico. O músico nova-iorquino interiorizou tudo sobre a energia e a tangibilidade da heteronomia e consegue escrever música para vários públicos, desenvolver plasticidades, texturas, ritmos e estilos distintíssimos, baralhar os géneros, mesclar o popular e o erudito, o jazz e o rock, o étnico e o contemporâneo, escrever música tonal, concreta, electrónica, atonal, integrar as dissonâncias e o ruído em harmonias mais amplas, ou cultivar esses géneros simultaneamente sem que se contaminem – é à vontade do freguês!
Que têm em comum Naked City, Bar Kokhba, Commedia DellArte ou Rimbaud, At the Gates of Paradise, Insurrection, Cobra ou Oo? Apenas o nome do autor e a sua inusitada destreza para demonstrar que o múltiplo e o sistema podem enriquecer-se mutuamente. Outra coisa liga a sua pluralidade: uma exorbitante capacidade conceptual que nunca perde de vista o visceral, os sentidos.
Quanto à inspiração literária – que evoca nos títulos – vai buscá-la aos autores que nunca perderam de vista o cosmos: William Blake, Rimbaud, René Daumal, os Gnósticos, por exemplo.

René Daumal, muito novo, intoxicava-se com benzina, para ver se a consciência desaparecia. John Zorn, que lança três, quatro, cinco cds ao ano, não precisa de benzina, “a sua consciência” (o ego) já se diluiu há muito na música que produz, em requintes transfronteiriços.
O que me magnetiza no poder total desta música é a facilidade com que dissolve todas as ideias feitas em que cresci. Pela sua complexidade – apesar de manter a espontaneidade intacta – pulveriza qualquer culto à juventude; é cada vez mais livre à medida que a idade apetrechou tecnicamente a impulsividade omnívora do seu autor: presume-se que será melhor quando Zorn tiver setenta e oitenta e por aí fora. O seu apetite para a serialização e o sistema não lhe inibem em nada a atenção que coloca no pormenor, no singular; o “rock’n roll”, nele, não lhe dispensa o rigor e a metafísica; o seu profundo espírito Dada, é concomitante de uma apreensão quase mística da música. Zorn cavalga todos os corcéis, simultaneamente, numa busca e curiosidade incessantes.
Esta capacidade para encarnar a pluralidade e a síntese não estará ao alcance de todos – Zorn está para a música como Cage para a divagação ou Eugenio Trías para a filosofia – mas acho-a extremamente cativante e inspiradora. A energia da sua música transporta-me. Uma casa vazia com muitas obras de Zorn faz o júbilo de Deus quando relaxa e o seu sistema arterial desenha o mais confortável sofá

 

9 Ago 2018

Nada é óbvio nem absoluto

 

 

Mymosa, Lisboa, 19 Julho

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão me lembro da última vez que almocei sozinho, gestos dos mais anti naturais da civilização. O desatino destes dias de apocalipse que piso a tanto obriga, daí o peso acrescido da mensagem que me trouxe à tona do aquário alheado em que mergulhei: Luis García Montero acaba de ser dado como novo director do Instituto Cervantes, substituindo o querido Juan Manuel Bonet, que não reencontrei durante o seu mandato. A ausência dos óculos fez com que o colocasse em uma qualquer short list do homónimo Prémio. Ambas as situações segregam estranheza, que os nossos autores não são de frequentar prémios, ou melhor, os prémios não os visitam a eles; e os corredores do poder estão em lados opostos da cidade. Ainda assim, a notícia alegra-me, pelo que conheço do afã polémico da figura, do modo como radica em Lorca uma ética, da sua paixão pela língua, do carinho por Portugal, da generosidade que testemunhei. Sendo apenas nomeação a um cargo, estou em crer que pode sair daqui algo de bom, assim como horizontes. Melhor: tenho a certeza, pois acredito no que salta do seu O Dogmatismo É A Pressa das Ideias: «Aqui junto das dunas e dos pinheiros,/ enquanto a tarde cai/ nesta hora ampla de beleza no céu/ e faço meu sem pressa/ o vermelho livre da luz,/ penso que sou o dono do minuto que falta/ para que o sol repouse sob o mar.// Essa é a minha razão, o meu património,/ depois de tanta margem/ e de tanto horizonte,/ ser o dono do último minuto,/ do minuto que falta para dizer que sim,/ para dizer que não,/ para chegar depois ao outro lado/ de tudo o que afirmo e do que nego.// Essa é a minha razão/ contra as frases feitas e a manhã,/ enquanto a tarde cai por amor à vida,/ e nada é óbvio nem absoluto,/ e a águia que desfaz os jornais/ arrasta as palavras como peixes de prata,/ como espuma de onda/ que sobe e se matiza/ dentro do coração.» Não fecha assim, antes afirmando «esse único dogma do abraço, minha única razão, meu património.» Partilhando esse dogma único, o do abraço, aqui segue um, com o devido atraso.

Horta Seca, Lisboa, 23 Julho

Circunstância do devir: de cada vez que cai relâmpago perto sinto-o na pele como frase de jazz, desmultiplicadora de inspiração e presságio. O nascimento do Jaime, filho da Liliana [Ribeiro] e do Paulo [Moura], marca nas constelações que pisamos tantos e tão díspares princípios de viagem que justificam este queimar da alegria. Os autores não são de papel, são árvores de tantos frutos. Por cada criança que nasce, vejo surgir, na voz, no olhar, um outro pai, uma distinta mãe, baralhando a posição do céu e da terra, dos ramos e das raízes.

Horta Seca, Lisboa, 25 Agosto

Nos últimos anos, quem se atreva a escrever, a publicar e a editar, está sujeito, ao abrigo da liberdade (talvez de imprensa), ao enxovalho de julgamentos e condenações sem sombra de contraditório. Eles afirmam-se jornalistas, mas confundem código deontológico com etiqueta masturbatória; eles dizem-se críticos, mas trocam a leitura aberta pela cegueira maldosa; eles julgam-se poetas, desde que cada verso se faça degrau para o altar supremo do culto em que oficiam, o único que assegura a única e mais verdade que a verdadeira poesia; eles são editores, mas que só arriscam o himalaia do cânone, aquele que congela para sempre o tempo e as opiniões sagradas dos mortos; eles são livreiros que criticam o capitalismo aberrante, sem que nada os impeça de especular com as raridades anti-sistema. Mimetizando outros tempos e outras figuras em versão serôdia e fora de prazo, celebram a «postura crítica», mas nisso agridem, fazem execráveis ataques de carácter, cometem sem pejo a ignorância mais profunda, riem do seu próprio fel, arrotam sound bites vendendo-os como pensamento. E há quem compre, claro. Gente até que devia saber mais. Não se lhes exija coerência. Estão tão acima moralmente de todos os outros, que nenhuma das regras detestadas por escrito se lhes aplica. Estão muito fora, muito além, muito apesar, muito contra, tudo e todos, mas não sei de nenhum que tenha estado preso ou passado fome. Detestam militantemente a alegria e a festa e o único prazer que se lhes conhece está em chafurdar no ódio. Por mim, levá-los-ei a sério quando doarem o corpo à ciência para que se estude o seu inegável contributo civilizacional: de tão puros, deixaram de cagar.

Curry Cabral, Lisboa, 27 Julho

Não sou supersticioso pela óbvia razão que dá tremendo azar. Tive e estimei gata preta, senhora de muitas sortes. Adoro a parte de baixo das escadas, mesmo quando não as subo. Parto espelhos e espalho sal com displicência e descuido. Celebro muito o treze, por razão tremendíssima, e acumulo bilhetes em que me sentam, por acaso, na sobredita cadeira. Partilho com poetas de envergadura este divertimento. Como interpretar agora o facto do meu velho pai aterrar, ao fim de deambulação de meses, em cama número 13?

Horta Seca, Lisboa, 28 Julho

Parece impossível mas couberam nas nossas duas modestíssimas salas os cinquenta e nove autores de Ilustração Portuguesa. O veterano Diniz [Conefrey] comentava há pouco o caminho, desde o Salão Lisboa e outras iniciativas semelhantes, vetustas de duas décadas: «o que andámos para aqui chegar». Alguns nomes mantêm-se em estimulante laboração, mas nada impressiona mais que a riqueza de estilos e linguagens e temas e projectos. Tal selva só se atravessa sabendo onde pôr os olhos. No último canto, mesmo junto à janela, a ordem alfabética arrumou aqui as peças assinadas por Tida Siuda, polaca a residir no Porto. A janela alargou-se, melhor escrevendo, tal a frescura dos seres-formas que por ali convivem (um deles algures na página, mas outros podem ser verificados aqui: https://tinasiuda.com/). A força poética toca-me, bem como a subtileza das suas cores. Despertam gestos e palavras muito para além do óbvio.

Horta Seca, Lisboa, 2 Agosto

Eis as palavras do poeta Montero chegando ao cargo com pressuposto radical, antes mesmo de irónico presupuesto, contra a desintegração ética da sociedade: o esforço de ser bom, ainda que seja, por ora, tão pouco sexy. «Esta mañana siento la voz de don Quijote, en una de sus famosas parrafadas en homenaje a la libertad, la poesía, la dignidad o el buen gobierno, advirtiéndome sobre la responsabilidad que asumo. Yo le contesto que en mi responsabilidad se abrazan a la vez la exigencia y la ilusión. A los 60 años de edad, cuando he vivido tantos momentos diferentes de la historia de España, agradezco la oportunidad que se me da de compartir en mi oficio una vocación cívica y un tiempo nuevo para la democracia española.
Empecemos por las primeras palabras, esas que según Elsa Morante hacen del arte una apuesta contra la desintegración ética de la sociedad. El mayor reto que tenemos, desde muy diferentes perspectivas, es el esfuerzo por ser buenos, en el buen sentido de la palabra bueno, frente a los que trabajan por crear un tiempo propicio al odio. Cito, como ya sabéis, a Antonio Machado y a Ángel González.»

 

8 Ago 2018