Fim do dia I

[dropcap style=’circle’]N[/dropcap]a Interrupção do fim do dia, eu não sou eu por contraste com o modo de me encontrar no exercício das minhas funções.
Entre o fim de cada dia trabalho e o início de outro dia, antes da hora do jantar, há tempo disponível para o que for. Essa hora de fim do dia, antes do jantar, se não houver nenhuma urgência, custa a passar. É um tempo de viragem. Estamos entregues a nós próprios. Temos de ocupar esse tempo. É um tempo de regresso a si, de desinvestimento da tarefa. Não é necessariamente um tempo de descontracção e de relaxamento. Podemos ter uma actividade que nos dê prazer, que preenche o tempo. Mas podemos também estar à espera da hora do jantar, ou das notícias, numa travessia do tempo difícil de fazer-se.
Aí há uma espécie de hiato de tempo. Quando não há nada agendado, temos de fazer tempo como quer que seja. Depois, há como que uma fluidez no caudal do tempo que nos leva nas horas. Já são dez horas. Não se percebe como se mergulhou no tempo e se foi fluindo das sete às dez, passando pelas horas dramáticas das sete às nove. A que é quer corresponde essa dificuldade do tempo que custa a passar? Há uma espécie de reserva do tempo a admitir-nos, uma entrada proibida, uma interdição e impermeabilização do tempo.
Não há nada que se consiga fazer: ouvir música, ver um programa na TV, passear, ler. Ficamos sem recursos para invadir e ocupar o tempo num instante. Não há sentido nem direcção ou orientação, para mergulharmos na corrente do tempo e sermos levados pelos conteúdos distribuídos sequencialmente no tempo, como tinha acontecido ao longo do dia, como acontece por vezes. A partir de determinada altura somos puxados por conteúdos que se organizam sequencialmente a partir da sua própria agenda. Se dávamos conta da impermeabilidade, da vedação do tempo, tal que não conseguíamos mergulhar nele para irmos na corrente, agora percebemos que mergulhamos e somos levados até às dez ou às onze.
Mas não é necessariamente de conteúdos o que aqui se trata. Pode perfeitamente haver uma acomodação da inércia do movimento que continua quando eu já parei, deixando sem conseguir aterrar na situação em que eu agora me encontro. Continuo ainda com os problemas do trabalho, programado para resolver questões que agora não são determinantes, estou ainda na sombra projectada pela situação do trabalho, ainda não desliguei. Levo comigo o dia todo. E por outro lado não consigo constituir outro horizonte de vivência, habituar-me à situação do serão, da saída do trabalho, de o ter largado. Faço tudo e mais alguma coisa e é como se houvesse um campo de forças que me repele.
Quando dou por mim a ser puxado numa sequência de tempo, não posso dizer verdadeiramente que é porque um conteúdo passou a ser interessante, quando os outros não eram. Pode ser o mesmo conteúdo ou os mesmos conteúdos que antes estavam já a actuar e que se tornaram interessantes. O que sucede é que os resquícios do dia útil acabam por ser lavados e há uma disponibilidade para programar o serão, ater-me aos conteúdos que aí estão e que são os que estavam: há o conteúdo Δ x, depois, y e z e constitui-se uma sequência temporal

 

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