A benzina de John Zorn

 

[dropcap style=’circle’]U[/dropcap]ma excelente jornalista portuguesa veio interrogar-me sobre a minha experiência de professor em Moçambique e agora publicou a reportagem – da qual gostei –, onde descreve a minha casa: «uma casa esvaziada mas com muitos livros».
Desconcerta-me o adjectivo: há quinze dias tivemos dificuldade em descobrir o buraco onde enfiar o piano da minha mulher, regressado a casa vinte anos depois. Não é inabitual que a percepção que o outro tem sobre nós nos surpreenda. Seja como for, ainda esta semana acrescentei trinta cds de John Zorn à minha discografia e uma casa com um piano e dois violinos (que são tocados, não são decoração), muitos livros, dois gatos, todas as sinfonias do Messiaen, do Lutoslawski, do Mahler, do Bruckner e do Beethoven, pode considerar-se esvaziada?
Parecerá uma casa de quem está de passagem, embora com milhares de livros e muita música? Na verdade, não temos carro, objectos decorativos, plasma.
Vou à estante, abro ao acaso um livro de Adam Zagajewski, e topo este poema: «BUSCA: Voltei à cidade/ onde fui menino/ e adolescente e um velho de trinta anos./ A cidade recebeu-me com indiferença,/ os megafones das suas ruas murmuravam:/ não ves que o fogo ainda arde?/ não ouves o estrépito das chamas?/ Vai-te./ Busca noutro lugar./ Busca./ Busca a verdadeira pátria.» Volto a arrumá-lo, por detrás de uma reprodução de Hokusai, olho em volta, e dou conta: o meu conforto resume-se a ter-me despojado de pátria.
Como Hannah, Arendt sou incapaz de amar uma pátria, só amo pessoas. A minha pátria está nas gargalhadas das filhas, no sorriso da minha mulher – um dos mais belos do mundo. E troco a pátria, qualquer, pela poesia do José Ángel Valente, do José Hierro, do Hugo Claus, do Mario Luzi, do Mark Strand, do Adonis, do Lezama Lima, do Milozs, de centenas de poetas que fui colecionando, na esperança de os reler, uma e outra e outra vez.
Sou despojado sim, sou mesmo um caso de estultícia-prima, o péssimo exemplo de alguém que emigra para ganhar metade do que recebia, em troca de ter agora o triplo do tempo para si. Para escrever, fruir a música, estudar arte e calafetar as lacunas.
Será arrogante declarar que me concentro mais no que importa desde que voluntariamente escolhi a “pobreza”? Que me consolei ao ler que o John Zorn, que vive numa casa austera, se sentiu libertar-se ao abdicar dos jornais, da televisão, e de inúmeras amizades laterais, para se focar no seu trabalho musical – e começa a ser um legado monstruoso. O problema é que não vejo como possa fazer-se de outra forma.
O Zorn. Tinha-o ouvido em Naked City e nos primeiros cds do projecto Masada, depois perdi-lhe o rasto, e agora, surpreendido por a Gulbenkian lhe dedicar uma semana à obra, resolvi ver o que apanhava no Youtube. É o que vos digo: já baixei trinta cds, preparo-me para baixar outros tantos; há cinco dias que obsessivamente leio sobre ele e lhe ouço a música.
Estou abismado, é para mim o maior poeta do século XXI. Entendendo a poesia como o que harmoniza momentaneamente o caos e desperta um padrão no informe, uma melodia que emerge de «um sentido para a existência que estava até aí fora do conceito» (Yves Bonnefoy), é um exercício que não precisa de residir na palavra. Além disso, se normalmente um autor é um rio, Zorn aparece como um inteiro sistema hidrográfico. O músico nova-iorquino interiorizou tudo sobre a energia e a tangibilidade da heteronomia e consegue escrever música para vários públicos, desenvolver plasticidades, texturas, ritmos e estilos distintíssimos, baralhar os géneros, mesclar o popular e o erudito, o jazz e o rock, o étnico e o contemporâneo, escrever música tonal, concreta, electrónica, atonal, integrar as dissonâncias e o ruído em harmonias mais amplas, ou cultivar esses géneros simultaneamente sem que se contaminem – é à vontade do freguês!
Que têm em comum Naked City, Bar Kokhba, Commedia DellArte ou Rimbaud, At the Gates of Paradise, Insurrection, Cobra ou Oo? Apenas o nome do autor e a sua inusitada destreza para demonstrar que o múltiplo e o sistema podem enriquecer-se mutuamente. Outra coisa liga a sua pluralidade: uma exorbitante capacidade conceptual que nunca perde de vista o visceral, os sentidos.
Quanto à inspiração literária – que evoca nos títulos – vai buscá-la aos autores que nunca perderam de vista o cosmos: William Blake, Rimbaud, René Daumal, os Gnósticos, por exemplo.

René Daumal, muito novo, intoxicava-se com benzina, para ver se a consciência desaparecia. John Zorn, que lança três, quatro, cinco cds ao ano, não precisa de benzina, “a sua consciência” (o ego) já se diluiu há muito na música que produz, em requintes transfronteiriços.
O que me magnetiza no poder total desta música é a facilidade com que dissolve todas as ideias feitas em que cresci. Pela sua complexidade – apesar de manter a espontaneidade intacta – pulveriza qualquer culto à juventude; é cada vez mais livre à medida que a idade apetrechou tecnicamente a impulsividade omnívora do seu autor: presume-se que será melhor quando Zorn tiver setenta e oitenta e por aí fora. O seu apetite para a serialização e o sistema não lhe inibem em nada a atenção que coloca no pormenor, no singular; o “rock’n roll”, nele, não lhe dispensa o rigor e a metafísica; o seu profundo espírito Dada, é concomitante de uma apreensão quase mística da música. Zorn cavalga todos os corcéis, simultaneamente, numa busca e curiosidade incessantes.
Esta capacidade para encarnar a pluralidade e a síntese não estará ao alcance de todos – Zorn está para a música como Cage para a divagação ou Eugenio Trías para a filosofia – mas acho-a extremamente cativante e inspiradora. A energia da sua música transporta-me. Uma casa vazia com muitas obras de Zorn faz o júbilo de Deus quando relaxa e o seu sistema arterial desenha o mais confortável sofá

 

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