António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDiário incerto [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]verbo ser. O mais universal poema da língua portuguesa: eu sou, tu és, ela, ele, isso é, nós somos, vós sois, elas, eles, essas coisas são. Solipsismo lírico diz o poeta. Rumo a sul. Há tantas coisas para fazer: máquinas de lavar. Levar a mãe ao médico. Uma palavra desconhecida que se vai ver ao dicionário. Um almoço quotidiano. E mais nada, mais nada. Lembro-me daqueles dias. Onde estão os amigos? Abrir um livro. Ter de escrever vezes sem fim. Quando não há que escrever, copia-se quem escreve. Uma música imitada mal na guitarra. Uma canção ecoa no vento de verão. Dia 9 Vejo-te descer uma rua. Tenho a certeza de que tenho: solipsismo lírico, sul, máquinas de lavar, médicos, palavras desconhecidas, almoços, dias, amigos, livros, fins, escrever. Há uma música que ecoa. É verão. Uma canção, talvez. Dia 8 Não ouço música há anos. Os dias passam com um problema linguístico. E, depois, vem a velhice. Vem a doença. Não se sabe o que fazer: ante a velhice nem a doença. “Agora, é que ela me deu”. É um sítio banal. Se calhar, uma porta de elevador. “Agora, é que ela me deu!”. “Ela” era a morte. Vamos ao rio. No rio, vemos Alcântara mergulhar no oceano. Bebemos uma água. Queres conversar. O teu melhor amigo está a ir-se. Choras. Olho para ti. Dia 7 Não queres comprimidos. “Se aparecer uma miúda que ames, casa com ela”. Não vias nada. Às vezes, uma matrícula. Dia 6 Aparecias-me atrás de mim. Acordavas três vezes durante a noite. Tomavas banho e escanhoavas-te. Perguntava-te por que razão. Voltavas para a cama. Ia resgatar-te vezes sem conta. E era o banho. Ensaboava-te. E o cabelo branco! Depois, dizias que não querias ir para o Hospital de INEM. Íamos de táxi. Dia 5 Passou muito tempo. Querias uma cerveja. Dei-te muitas cervejas. Bebias um golo. Querias ir até sul. E fomos. “Quando encontrares um amor, diz para vir”. “Não importa nada. Vais encontrar um amor.” A tortura da gota é tremenda. Não queremos ficar fechados num quarto estreito. Não podemos bater em ninguém nem fugir. “O avô ama-te”. Dia 4 Queria ser tudo: soviético. Fui alemão. Fui todas as nações. Cantei o nosso hino. Dizia: 10, 9, 8, 7, 6, 5. Onde estás? Pedias o Andy. Era atrás de mim. Vinhas de gravata. Íamos comprar o Público e o Diário de Notícias. Às vezes, Jogo. Se eu te perdia, atravessavas a Junqueira. Acenavas. “Estou aqui”! Dizia-te qualquer coisa como se tu me dissesses a mim. Regressávamos a casa ou o que era a casa. Dia 3 Já te mijavas todo. Não sabias onde era o Norte da tua cama. De manhã, dizias-me: “vamos, então.” Depois, perdeste-te. Só se perde quem se encontrou. Tinhas pena de não ter nem namorada, muito menos mulher. Os teus filhos adoram-te. Dia 2 Há uma rapariga que desce uma rua. Anos depois de teres morrido. Era, afinal, da mesma rua onde te prenderam. Tu que perdoaste quem te denunciou. Não foi aí que me declarei. Mas ela ficou tudo para mim. Não te vou explicar como ela é. É por pudor. Ela é linda. Mas sabias que seria assim. Ela tem um carácter indefectível. Ela desce uma rua com o “telefone portátil”, como dizias. Apoia tudo no lado esquerdo. Tem o braço direito livre. Sorri como ninguém. Faz-me lembrar a vida. Tu perdeste a tua. Eu gostava de ter a minha. Ela desce como ninguém. E, parece-me, encanto-me. Não há ninguém como esta miúda. Sabes: sou terno. Mas não importa. Talvez… Dia 1 Passaram-se muitos anos. Mas não a fome. Não, o amor. Se calhar, chego a tempo. E chego àquela criatura. Na rua onde vivemos em tempos diferentes, nos anos em que não podíamos ter-nos conhecido, em todo o tempo em que fomos sem sermos um com outro: esperávamos. E esperamos e esperamos. Não há nada que eu possa fazer. E eu amo-a. E ela ama-me. Seguimos o melhor que pudermos. Não morreste nem o pai dela. No céu, bebem um copo. Eu amo-a como ninguém.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA primeira festa dos portugueses de Shanghai [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]elas grandes potencialidades de trabalho e comércio, Shanghai atrai muita gente e não é de estranhar a rápida progressão da comunidade portuguesa proveniente de Macau a aqui se estabelecer, tornando-se a segunda mais numerosa da cidade. Segundo Jack Braga, “Para o fim do século XIX, havia comunidades portuguesas em todos os centros comerciais do Extremo Oriente. Muitos dos seus membros preferiam apregoar a cidadania britânica, por terem nascido em Hong Kong, mas têm sido, geralmente, classificados de portugueses, por motivo da sua ascendência, em vez da sua nacionalidade”. Shanghai em 1898 conta para cima de oitocentos portugueses, incluindo homens, senhoras e crianças, e como cônsul geral de Portugal continua o Sr. Joaquim Maria Travassos Valdez, que a 7 de Maio de 1897 resume as actividades a que se dedica a comunidade: . Já segundo Alfredo Gomes Dias, os membros da comunidade portuguesa de Xangai eram na sua maioria empregados de comércio, “os gooser que desempenhavam funções subalternas nas casas comerciais estrangeiras” nas concessões internacionais, assim como “os negociantes/proprietários (onde podem ser incluídos os compradores – mai-pan) e os funcionários a trabalhar no sistema financeiro”. Como segundo grupo mais numeroso os funcionários consulares e a trabalhar nas alfândegas e depois vinham os religiosos cristãos, protestantes e católicos, professores e o dos artistas. Seguiam-se os médicos e enfermeiros, assim como engenheiros e arquitectos e por fim os jornalistas e os ligados às actividades relacionadas com a navegação. Informações provenientes de Alfredo Gomes Dias e retiradas do livro, Diáspora Macaense – Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), Lisboa 2014. Para ter um retrato social dessa comunidade recomenda-se a leitura das páginas 374 e seguintes onde se referem os membros da elite. Comissão para os festejos A colónia portuguesa da cidade reúne-se no dia 27 de Fevereiro de 1898 no Club de Recreio, sob a presidência do Cônsul Sr. Joaquim Valdez para nomear uma comissão a fim de tratar dos festejos que se projectam fazer em Shanghai. Dá conta dessa reunião o jornal L’ Echo da Chine, que se publica nessa cidade e a 6 de Março o Echo Macaense faz também referência. O nosso Cônsul, “Em vista dum ofício recebido do Sr. Ministro Plenipotenciário, enviando o programa das festas que a comissão central em Lisboa propôs levar a efeito por ocasião da comemoração do quarto centenário do descobrimento do caminho para a Índia, envidou os nossos nacionais aqui residentes para uma assembleia pública a fim de nomear uma comissão para promover os festejos. A assembleia teve lugar ontem, às 5 1/2 da tarde, nas salas do Club Recreativo”. “Apesar do mau tempo que fazia, a sala estava cheia, e todos os que se achavam presentes estavam bem entusiasmados”. “Creio que não será fora de propósito dizer-lhe aqui, [refere o correspondente do Echo] que, se fizermos a festa, há-de ser a nossa primeira festa pública em Shanghai. Todas as outras nações já fizeram e continuam a fazer festas, logo que se ofereça qualquer ocasião, só nós ainda não fizemos coisa alguma, e isto devido talvez à nossa indiferença, frieza ou medo, e por causa disto deixamos correr tudo à revelia. Portanto, avante senhores! Não deixemos passar a ocasião e vamos mostrar que apreciamos e veneramos os nossos valentes antepassados.” Assim, nesse dia fica constituída a Comissão Executiva de Shanghai, composta pelo Presidente, Joaquim Maria Travassos Valdez, tendo como tesoureiro Francisco S. Oliveira e secretário o Sr. Hermenegildo A. Pereira. Os outros elementos são, Adelino Dinis, António J. Diniz, Chong Tsong-poo, Cheng Chi-pio, Fernando J. de Almeida, Filomeno V. da Fonseca, Francisco F. da Silva, Honorato Jorge, José F. Pereira, Lino F. Tavares, Luiz Barreto, Marcos de Souza e Luiz Adolfo Lubeck. Os nomeados irão reunir-se num destes dias para tratar dos preparativos dos festejos para comemorar o IV Centenário, cujo programa estará de acordo com a Régia Portaria de 9 de Abril de 1897 e formulado dentro dos limites da quantia subscrita pelos portugueses residentes de Shanghai. É consagrado à memória dos navegadores portugueses que, movidos pelo desejo de servirem a Deus e a Pátria, primeiramente descobriram as terras e mares de África, Ásia, América e Oceânia. Para esse grande jubileu contribuiu também o Conselho Municipal inglês com mil taéis, que em moeda portuguesa, segundo o câmbio oficial estabelecido para a pataca, correspondem a 888$890 réis. Visita real “O príncipe Henrique da Prússia, irmão do Imperador da Alemanha, chega a Shanghai no Domingo 17 de Abril de 1898, antes do meio-dia. Desde sábado de manhã já estava o Bund parcialmente coberto de gente a esperá-lo, mas infelizmente sua Alteza ficou detido lá fora, por um forte nevoeiro e só chegou no dia seguinte; feriado, e tendo já todos acabado de ouvir missa, muita gente teve a chance de ver sua alteza desembarcar e ir até ao consulado geral d’ Alemanha, onde se hospedou.” Nessa tarde, S. Exa. Kuei chiun, Governador da província de Kiang-su (Jiangsu), vem expressamente de Suchau (Suzhou) por ordem do seu governo para receber sua alteza, acompanhado do tesoureiro da mesma província e do tao-tao de Shanghae, vem cumprimentá-lo. Na segunda-feira, retribui a visita do governador Kuei-chiun e recebe as visitas do corpo consular e de mais gente. À noite, depois do jantar, assiste a um baile oferecido pelo governador Kuei-chiun no palácio dos negócios estrangeiros, com muita gente e deve ter custado muito dinheiro. “Ainda não se sabe ao certo quando é que sua alteza vai para Kiaochao (Qingdao), a nova colónia alemã, mas enquanto se demora por cá, entretém-se todos os dias com jantares, pic-nics, revista de tropas, etc.”, refere o Echo Macaense. “À imitação dos alemães em Kiaochao, o general russo manda afixar proclamações dizendo que a Rússia é amiga da China, que o aforamento de Port Arthur, [onde os russos já têm uma guarnição de quase oito mil homens de terra, as fortalezas estão armadas e uma esquadra de oito grandes barcos, entre couraçados e cruzadores, além dos inevitáveis torpedeiros, na entrada do porto e noutros lugares], têm por fim proteger a China de uma maneira duradoura, por isso que os habitantes devem ter toda a confiança na administração russa a fim de granjear paz e prosperidade. É possível que a Inglaterra também há-de vir com a mesma cantiga com respeito a Wei hai wei”, porto de Shandong, em frente a Port Arthur, onde em 1895 os japoneses destruíram a armada chinesa.
Valério Romão h | Artes, Letras e Ideias MancheteTodos os nomes [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] minha mãe foi perdendo nomes. Há cerca de vinte anos, quando teve que renovar o bilhete de identidade – agora cartão de cidadão –, perdeu um apelido: Pereira. De Maria José Pereira Romão, passou para Maria José Romão. Nem se deu conta. A minha irmã, no entanto, ao pedir-lhe o bilhete de identidade para tratar de uma burocracia qualquer é que notou: mãe, como é que perdeste um nome?, perguntou-lhe. A minha mãe não foi capaz de responder. Até hoje não sabe. Quanto mais velhos somos, mais vezes temos de renovar os documentos que atestam a nossa identidade ou nos permitem conduzir. Como se, em se aproximando a hora que o estado calcula ser o limite do nosso fôlego, tivéssemos de prestar provas de que ainda respiramos muito mais frequentemente para aplacar a desconfiança de quem vê na morte apenas mais uma possibilidade de fraude. A minha mãe, que já leva no alforje umas respeitáveis décadas, teve de renovar o cartão de cidadão há meia dúzia de anos. Maria José, ficou. Perdeu o apelido que recebera do meu pai no casamento de ambos. Como é que é possível, perguntei quando soube, isto não devia ser um processo automático? Tenho a ideia de que renovar o cartão de cidadão não consiste em soletrar os nomes que fazem um nome perante um burocrata meio surdo ou meio tolo, cabendo-lhe em desatenção ou dureza de ouvido a culpa da míngua onomástica. Não será igualmente uma questão de transporte ou de logística: os nomes que fazem um nome não estão depositados num armazém de onde são retirados quando um cidadão precisa de renovar um documento. “Ó Zé, foste tu que deixaste cair um Alves?”. “Nepia, eu hoje só me tem calhado Silvas e Pachecos. Vê se terá sido o Rogério”. ”Seja quem for, tem que vir buscar isto rápido, antes que apodreça”. Podia ser assim, explicava muita coisa e até seria divertido. Mas não é. Perder um apelido tem o seu quê de insólito, e é uma história perfeita para desbloquear uma conversa num jantar ou numa reunião, mas acarreta algumas consequências práticas sem qualquer piada. A minha mãe tem de fazer uma prova de vida anual perante o estado francês para continuar a receber uma pensão de reforma que lhe cabe pelos anos que o meu pai trabalhou em França (sempre me pareceu maravilhosa esta coisa da prova de vida, imagino uma fila de velhotes a respirar, à vez, para um espelhinho, sendo que aquele que não lograsse embaciá-lo seria declarado “tecnicamente morto” e inapto para os benefícios dependentes da prova). Já foi difícil explicar-lhes(?) da primeira vez que a minha mãe tinha perdido um nome. Inventámos um problema informático, uma certidão equívoca, uma funcionária desatenta. Os franceses, a contragosto, aceitaram. Desta feita, e com estatuto de infractores repetentes, a coisa complicou-se muito e precisámos de reunir um número considerável de depoimentos a atestar a vida da minha mãe e a nossa boa-fé. O estado – qualquer estado – desconfia da morte quando há descendentes envolvidos. Às vezes divirto-me a pensar que este processo pelo qual a minha mãe tem passado, involuntariamente, devia ser obrigatório. Um tipo nasceria com uma série de nomes que, à medida dos anos pesando sobre os ossos, iriam sendo retirados até ficarmos só com a primeira letra do primeiro nome. Depois era só esperar que a ceifeira reparasse em nós e saímos daqui tão limpinhos como quando entrámos.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasModesta proposta política [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] chega de bordados metafísicos, vamos à política. O senador Bernie Sanders, dos EUA, publicou um manifesto, no The Guardian. O objectivo é barrar a ascensão do eixo autoritário no planeta. Diz Sanders que os novos populistas compartilham ideais comuns como “a hostilidade às normas democráticas, antagonismo em relação à liberdade de imprensa, intolerância em relação às minorias étnicas e religiosas e a crença de que o governo deve beneficiar a si próprio e a interesses financeiros egoístas.” E contrapõe: “É hora de os democratas de todo o mundo, diz o Manifesto, formarem uma Internacional Progressista”. Então, terá de meter-se em questão a orgânica do sistema que permitiu a “profissionalização da política” e tornou a corrupção endémica. Há duas ideias fulcrais nos ensaios de Vladimir Safatle. A primeira: “O líder democrático é aquele que nos ensina como a contingência pode habitar o cerne do poder.” A segunda: “(…) devemos insistir em que a esquerda não pode permitir que desapareça do horizonte da acção uma exigência profunda de modernização política que vise à reforma, não apenas de instituições, mas do processo decisório e de partilha do poder. Ela não pode ser indiferente àqueles que exigem a criatividade política em direcção a uma democracia real”. A Esquerda tem sido indiferente, e isto não é inocente: é por compromisso. Hoje confundimos solicitações do mercado com informação e progresso com poder de consumo. Tudo nos fascina no consumo, sobretudo o aparato tecnológico. Até o Derrida acreditava na transformação tecnológica como um dos factores de aceleração política. Talvez, mas há um lado de sombra, inescamoteável, na tecnologia e antes que os algoritmos contornem a confiabilidade no eixo da política democrática, urge repensar o sistema democrático. É esta a modesta proposta, que reedito, porque não foi lida nem discutida. Talvez não seja digna de Swift, mas de criados e mordomos da política estamos fartos: 1. A detenção do poder será sempre contingente e rotativa. Cada movimento político ou instituição partidária terá direito a dois mandatos (três anos x dois) seguidos, embora de três em três anos haja eleições e um referendo; 2. Pelo referendo afere-se a confiança no governo e se o executivo necessita de mudança. Não é vinculativo mas corresponde a um cartão verde, amarelo ou vermelho. 3. Nas eleições, mediante a apresentação e discussão de programas (mais importantes neste caso do que quem personifica as ideias) apura-se quem terá o direito a ser oposição na legislatura seguinte; 4. Cada Partido deverá apresentar nas suas listas 30 % de independentes; 5. Quem ganhe o direito a ser oposição (o que implicaria um reforço qualitativo do trabalho dos partidos) subirá automaticamente ao poder daí a três anos, após o fim do mandato do poder cessante. 6. O parlamento nacional deve ser reduzido e funcionar, na prática, como um Conselho do Estado alargado. 7. Cada país organiza-se em regiões com os respectivos parlamentos. Este parlamento regional é composto por elementos dos partidos, mas reserva-se um terço dos lugares do hemiciclo a elementos espontâneos, ou representantes de outros movimentos e sensibilidades sociais, que queiram participar directamente na identificação dos problemas e na defesa dos interesses das suas regiões (- de modo a reflectir-se a ideia de que há questões que são indelegáveis); 8. O voto é obrigatório. 9. Emanará dos Parlamentos regionais a maioria dos pacotes legislativos, que serão regulamentados no Parlamento Nacional, tendo o Governo meras tarefas executivas, ou de regulação, dado poderem surgir conflitos de interesse entre regiões; 11. Cabe inteiramente ao Governo a orientação das políticas de caráter político-internacionais; estando, no entanto, as decisões mais graves sujeitas a referendo; 12. Sem burguesia não há democracia. Fala-se de uma burguesia ilustrada e produtiva. Pelo que, de força a garantir-se que o empenho sobre a qualidade técnica da educação seja maior do que a sua feição ideológica, cabe, por inerência ao partido da oposição a administração de duas pastas: o sector de Educação (será obrigatória desde a Primária a disciplina de Filosofia para Crianças) e o Ministério do Património Intangível. O que deve ser acompanhado de um pacto de regime que assegure um orçamento confortável para esses dois ministérios. 12. Não são permitidas as organizações de Juventude dos Partidos; 13. Será interdita a entrada na política activa aos cidadãos com menos de trinta anos e tal só poderá acontecer depois de dez anos de vida profissional activa e de se demonstrar que se atingiu certos patamares de competência ou o pleno da autonomia sócio-profissional; 14. Ninguém poderá estar no palanque da política activa mais do que um período de dez anos; podendo, a partir de então pode unicamente participar no concerto das opiniões, ou fazer parte de movimentos cívicos, mas sem ocupar lugares públicos; 15. Quem quiser entrar para a política activa terá de cumprir um ano em regime de voluntariado em qualquer parte do mundo; 16. O regime das tabelas salariais não pode, em todas as empresas, apresentar mais do que uma disparidade de um para cinco; 17. Dado que vivemos num mundo de recursos finitos e pós-mitos-do-progresso, onde até por ecologia política se deverá impor uma redistribuição as riquezas, a riqueza individual será permitida mas dentro do quadro de uma espécie de «economia-bonsai»; a partir de determinado nível a riqueza reverterá para a comunidade. Restaurará este modelo um equilíbrio entre Democracia e Participação Cívica, fazendo da dignidade da política um exercício menos dúbio e amortecendo as atracções pelos engodos do Poder? Talvez pelo menos iniba as profissionalizações na política. Muito para além da “arte do possível”, creio antes que só o impossível é desejável e acontece. Só o impossível tempera a dignidade do homem. É preciso desejar o impossível para que algo aconteça e a política passe a ser um exercício laico e não uma actividade dependente de uma predatória lógica religiosa. Consciente de que atirei o barro a uma parede que prefere o silêncio, passemos agora à sala e falemos de literatura.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasA tua voz ao volante Santa Bárbara, Lisboa, 11 Setembro [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra podia ser esquadro, ou fio-de-prumo, esta contendo em si a tensão e o peso, toque na parede, na pedra, concreto, matéria tão porosa sem o parecer, a outra evoca a abstração de uma contagem uma geometria recortada (na memória: Nove-filhos era o stor de geometria descritiva, a linha de terra empre suja) os anos contam-se, mas não valem certos minutos, não valem nem aquele tom ou a palavra dita no momento exacto navalha, de ponta de mola, de barbeiro, antes de ser pedaço de lâmina substituída porque não querias que fosse eu a desfazer-te a barba ferida, que ferida te fiz eu? sei das que me fizeste, mas não trarei freud, que rima com fraude, para o assunto menos kafka, que não será o caso. quantas cartas ao pai se escreveram já? quantos pais se perderam nas cartas nem me atrevo a releituras, afinal, como ele, nem sou assim tão literato ofereceu-me Os Três Mosqueteiros, edição de abrir páginas com lâmina os lombos a sobrarem barbados, espada que se ergue marcador de aventuras sonhos, sonhos fizeste-me sócio do Círculo de Leitores a troco da tabuada debitada, inútil de que serve, para que sirvo soube calcular impedâncias perdidas nas volutas do esquecimento, raízes quadradas rabiscadas matemática de corrida vieram Herculanos no ritmo das quinzenas ou assim o Bobo orgulhavas-te que os filhos não te tratassem por tu deste-me a escolher bicicleta ou máquina de escrever aprendi o gosto da tinta nos chocos, mas começaste pelas lulas não tantos as luas essa foi na casa das avenidas já não tão novas no ano da mana o preto de branco a piscar, perto do Sidónio de parede aquela lua fez-me sonhar em tocá-la nem em papel lá cheguei a revista foi, afinal, de treta, coisa fruste sem a solidez da matéria sem fios-de-prumo a desenhar verticais a madeira tocando a superfície, a tensão do fio vibrando ouves? vês? e o traço com trabalho há-de sustentar muro, parede trabalho, interstício nas férias dos outros o trabalho estava feito ética que nos justificava, fazer a preguiça era dos outros, os dos cafés somos éramos das obras, serventias sem outro jeito talvez tivesse, mas era a preguiça levava para as esquinas do sonho nem bola, apenas a rua a inventar com outros histórias mundos que podiam mudar, além de rodar tinhas casas por construir, desenho a caneta, ideias a rodar nos pneus do autocarro na noite que começaram com a égua anabela, a rodar em círculo nas histórias malandras, longe já e tão perto dos os pés na terra, na neve a fome, a tua, mítica, mitigada com o pão, pouco mais a minha, apenas do fiambre burguês, que a manteiga ainda era possível a poupança, em nome dos tempos difíceis, para confortar futuros, semeando sementes invariáveis de trabalho no hoje, na terra, na linha de terra titubeante, rasurada, horizonte líquido o cinto castigando desobediências sujas de lápis peças de lego contadas na lata, continente redondo de latão a sentir logo o tempo e a humidade a casa absorvia as águas das nuvens, na rua era melhor haveria de acontecer a preço de esforço a tua casa que querias de todos na rua passaram novelas e revoluções, carrinhos de esferas navalhas de tempo a passar nunca te dei a ver o filme sobre infância, oblíquo a frontalidade vem de outro norte, não serve nesta descida ou subida gostavas de histórias, fazias o passado acontecer ali quantas ruas de lisboa desenhavas as carreiras abriam a cidade que nem fruto figo laranja maçã brabo de esmolfe castanha cereja cada fruto seguido de espécie, que nada pode ser apenas isso os carvalhos desdobram-se em soutos, os pássaros poupam-se pelo cantar geometria de volante e esquadro e prumo (o fio-de-prumo utiliza a lei da gravidade para indicar que a posição de um elemento construtivo é realmente vertical. A corda suspensa com o peso que tem na sua parte inferior deverá ser vertical e perpendicular a qualquer outro plano de nível com o qual se cruze.) foste perpendicular aos planos que contigo se cruzaram pontapeaste o cão-polícia que te atacava contrariando a greve agrediste o outro que atazanou noite inteira, arrependeste-te gastaste as derradeiras energias em conflito com a autoridade as autoridades ajuda-me a levantar, vamos à gomes freire, o gnr que aviei, coitado, deitado de pé viste comboios a passar desafiando a tua fome em direcção à frente vizinha no sangue corriam desobediências ancestrais, antígonas da beira, ventos e águas da gardunha cidadãos livres, coluna vertebral fio-de-prumo perpendicular a outro plano de nível linha de terra irregular, tocada pelos pés descalços, madeira contra a matéria a definir a gravidade da história, que percorreste com o devido alheamento, olhos e dedos nos jornais, do fundão, que não abandonaste na proibição, orgulhosamente o orgulho é uma linha de terra ao alto o século era jornal antes de ser contagem a esquadro do tempo, longos lençóis que lembro o teu avô foi para o céu o avô da burra, o avô do farrusco foi o que não se diz neoplasia em escape o teu centro a explodir na lentidão a fugir do entendimento abrindo brancas buracos de escopro na matéria cinzenta quase indignado, barba por fazer tinhas medo da minha lâmina? perguntaste à enfermeira, se não me conhecia a mim, «o homem que fez o funeral ao Salazar» fi-lo aos quadradinhos não tinha jeito para nada o da leira, as batatas, a poda, coisas breves de puto, a vindima, mas com jeito sempre a sonhar, a lua, todo o dia a lua as palavras atiradas ao chão da boca agora na graça o avô da perna direita, invergável, propõe-me pacto de silêncio, inviolável não bebemos nada, pois não?, o de três bate no meu de ginginha, saudades de beber assim os segredos a bengala batendo nas pedras da calçada rimando com as águas descendo a serra em direcção ao milho lençóis do século as crónicas do drummond no jornal do fundão a noite inteira abrindo regos os fios aprendendo a electricidade que me levaria à lua que jamais me levarão à lua que nem quis saber conduzir olha freud, diz lá, antes do kafka, por que me queima o volante a velocidade não me amarga nem a preguiça a preguiça é incestuosa irmã da velocidade e o riso, o riso da mãe a mãe na tela da janela a ver destinos, a comentá-los o vento que penteia o quadro e a rua continua a descer o obama pulou de um contentamento só desadivinhando partidas os contentamos devem conter chegadas, talvez luas, toques no tronco e apertas-me a mão com um desespero que adivinhava final choraste lágrimas gotas de granito escorrendo resto de rosto sabias como perguntar à pedra o que ela podia ser, lias-lhe os veios, marcas da água, do tempo, verticalidades, ajeitava-la entre pernas e de maceta e escopro extraías bloco não de urgência uma verticalidade de enfrentar ventos o teu destino foi de pedra dobram sinos nas donas a dizer que a pedra era agora nuvem como só os sinos podem vi mais lágrimas, ouvi as palavras escândalo e ânimo e parede a fazerem-se promontórios na penha e na serra sussurram-me sem número de perfumados é a vida por acaso falando de morte, mas com raízes por momentos, a sós apesar da mana, a mão que apertaste tocou a madeira do caixão era carga eléctrica, cesta de balão, árvore ligada à terra (continua)
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasConcessões estrangeiras em Shanghai [dropcap style≠‘circle’]X[/dropcap]angai, como os portugueses escrevem o nome da cidade de Shanghai, é atravessada pelo Rio Huangpu e situa-se a meio da costa chinesa, banhada pelo Mar Leste da China (Oceano Pacífico), entre as baías do Yangtzé e de Hangzhou, na foz do Rio Qiantang. Porto que substituiu Yangzhou após a destruição do Grande Canal, durante a guerra entre o exército imperial Qing e os revoltosos Taiping, passando o transporte do arroz e sal a ser feito via marítima e ferroviária por Shanghai. Conquistavam assim os britânicos nesse porto a importância estratégica e comercial, que até então ainda não tinham conseguido fazer dele. “Nos tempos da dinastia Yuan (1276-1368) começou como centro de comércio com o exterior” e “em meados do século XVII, Xangai afirmou-se como uma cidade portuária e comercial, desenvolvendo algumas indústrias locais como, por exemplo, os têxteis de algodão”, segundo Alfredo Gomes Dias, “Em 1842, Xangai era já uma cidade comercialmente relevante, com uma população que rondava as 270 mil pessoas.” Ano em que Marques Pereira dá como a tomada de Shanghai pelas forças inglesas, a 19 de Junho. Com a assinatura do Tratado de Nanquim a 29 de Agosto de 1842, o Capitão de artilharia George Balfour a 8 de Novembro de 1843 estacionou um pequeno vapor britânico na margem do Rio Huangpu, com o objectivo de abrir a cidade e o seu porto ao mercado internacional. Em 1845 foi cedida uma pequena área de 56 hectares, expandida para 199 hectares em 1848, onde se instalou a comunidade britânica. Já em 1847, Charles de Montigny criara o primeiro consulado francês na zona onde viria a ser a Concessão Francesa. Governação de Xangai Sobre as concessões estrangeiras e o sistema de governação de Xangai recorremos às informações de Alfredo Gomes Dias, no seu livro Diáspora Macaense – Macau, Hong Kong, Xangai (1850-1952), Lisboa 2014, de onde retiro passagens e informações. “Até 1864, esta cidade conheceu a chegada dos representantes ocidentais e a ocupação das primeiras áreas do que passaram a ser as concessões estrangeiras britânica, americana e francesa. No domínio comercial, logo nestes primeiros anos, Xangai passou a liderar o comércio externo da China, ultrapassando [em 1850] a cidade de Cantão. Depois, na segunda fase que se prolongou até 1894, a cidade deu continuidade a este processo de afirmação no mundo urbano chinês, construindo uma intensa rede comercial que ligava as relações comerciais externas aos canais de comunicação com o mercado interno”. Ainda segundo Alfredo Gomes Dias, estava-se agora na terceira fase, com a cidade e o seu porto a constituírem-se como o verdadeiro centro económico da Ásia Oriental. Após 1895, devido à mão-de-obra barata os estrangeiros tornam-na num grande centro industrial. “Xangai, cidade governada por três poderes com características diferentes em três territórios dentro de uma só cidade”. A Concessão Internacional (CI) entregue a um poder autónomo, o Shanghai Municipal Council eleito pela elite económica dos proprietários estrangeiros, com um Doyen a presidir. A Concessão Francesa (CF), a ocupar o maior espaço da cidade, fora transformado numa “área residencial por excelência, encheu-se de restaurantes, cafés boutiques da moda, com a Avenue Joffre a apresentar-se como a mais elegante da Cidade, era um verdadeiro enclave colonial” entregue à administração do cônsul francês. A Cidade Chinesa, cuja origem remonta ao terceiro século a.n.E., no local murado do primitivo povoado de Shanghai, era gerida pelo poder mandarínico, segundo Alfredo Gomes Dias que diz, “Até 1900, a comunidade dos portugueses de Xangai manteve-se como a segunda comunidade mais numerosa da cidade, depois da britânica.” Novo porto de Woosung O olhar pelo que se passa na China é feito no Echo Macaense de 6 de Março de 1898 onde se refere o empréstimo de 16 milhões de libras, contraído pela China ao Hong Kong and Shanghai Bank e ao banco asiático alemão, garantido pela parte do rendimento das alfândegas chinesas que não está onerada e por uma parte do rendimento da taxa likin (lijin, imposto comercial cobrado nos meios de transporte). Um dos efeitos deste empréstimo foi fazer subir o preço das acções do Banco Hongkong and Shanghai, que estava a 173 por cento de prémio; deu um pulo para 183 a 186 por cento, e, sendo a prazo, chegou a 188 por cento. Um telegrama de Londres diz que a parte inglesa do empréstimo já foi coberta a 90%”. Refere este jornal que, “O empréstimo nacional que a China tentou levantar, na importância de 100 milhões de taéis, foi um verdadeiro fiasco. Diz o Daily News de Shanghai, que os príncipes e ministros de Tsung li-yamen só subscreveram 20 mil taéis. O povo chinês por enquanto não mostra nenhum entusiasmo. Há muitos capitais na China, mas os chineses não têm confiança no seu governo; não querem subscrever para empréstimo, nem para caminhos-de-ferro, porém se os ingleses se puserem à testa, ver-se-á a soma imensa de capitais e que há-de concorrer para tudo isto.” O mesmo jornal refere ter sido nomeado Governador de Kiaochao (Qingdao) o capitão alemão Truppel e ter este hospedado na sua residência o artista do Illustrated London News, Mr. Melton. Para se perceber tal cuidado das autoridades alemãs, basta ler ainda na mesma página que, “A Rússia, segundo diz Mr. Curzon, Ministro inglês, assegurou à Inglaterra que qualquer porto da China que ela ocupasse continuaria aberto para o comércio do mundo, com o que se procura acalmar a apreensão da Inglaterra que não quer que os seus interesses comerciais fiquem lesados e por isso, só há-de intervir quando houver perigo de se fecharem ao seu comércio os portos chineses ocupados por outras nações”. Em Abril de 1898, o porto de Woosung na entrada de Shanghai foi declarado aberto ao comércio, o que dispensará os grandes vapores de navegar no rio de Shanghai. As fortalezas que havia em Woosung vão ser desmanteladas e arrasadas para dar lugar à construção de concessões estrangeiras e os oficiais alemães que aí instruíam as tropas aquarteladas foram despedidas e as tropas licenciadas. A primeira linha-férrea a existir na China, fora construída por capital estrangeiro entre Shanghai e Woosung, sendo inaugurada a 30 de Junho de 1876. Logo desde o início sofreu muita contestação, acabando por encerrar em 1878, com todo o material deitado ao mar. Só vinte anos depois, em 1 de Setembro de 1898 abriu de novo o caminho-de-ferro entre Woosung e Xangai, fazendo o comboio quatro viagens, duas de manhã e duas à tarde, não circulando à noite. Para uma distância de 18 km o bilhete custava em primeira classe 80 avos, 60 em segunda e 30 avos em terceira classe e na volta outro tanto. Está planeada a sua extensão até Soochow (Suzhou) e Hangchou (Hangzhou). Fala-se já do desassossego que reina nas aldeias e cidades do vale de Yangtzé (Rio Longo, Changjiang); os habitantes vão-se armando preocupados de que alguma eventualidade grave está iminente. A China está a passar uma crise, não se sabe o que virá!”
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasEl duende [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]xperimentei no meu quase afogamento da semana transacta um estado prostrador de isolamento e de separação, instrumentos com que a morte pode actuar. Afinal, morre-se em comunhão ou contra ela: até a morte tem estas duas faces. Levei demasiado tempo a combater contra a água sem me lembrar de que a água nos sustém. A minha consciência estava dividida. Naquele momento, seria uma morte macaca por causa das sensações despoletadas que acrescentariam agonia e desespero aos últimos instantes, ou melhor: um estado de orfandade. Seria o contrário de morrer, por exemplo, numa trincheira, ao serviço de uma causa redentora, o que nos faz superar o medo e a eclosão da iminência, porque na verdade estamos fora de nós, envolvidos em algo que nos ultrapassa: aí «o corpo – como bem descreveu Ruy Belo – entra por engano morte»; ou de morrer mergulhado – a linguagem é tramada – num sentimento de unicidade, como o rio que penetra no mar, numa reminiscência que o exalta. Julgo ser disto que falam os místicos quando mencionam a importância da palavra Deus ser a última palavra. Julgo até que nomear Deus é outra forma de designar uma experiência que se localiza além das palavras e nos devolve a um estado de não-dualidade. Só que esta experiência é concreta, não tem nada de “metafísica”. A este sentimento de unicidade – como muita gente – já o experimentei. Algumas vezes nas aulas, ou numa por outra palestra, quando engreno na palavra e solta-se um fio discursivo que se conduz a si mesmo, num fluxo que ultrapassa as minhas capacidades expressivas. Aquela limpeza de raciocínio não é pauta que me pertença. Não me é habitual afluírem as palavras com o recorte, a nitidez, de quem lê um teletipo invisível, interior. Sou mais trapalhão, menos ordenado, menos inteligível. Contudo, nesse transe que me ocorre sulcar há um momento em que sou, à vez, actor, espectador e encenador, na medida em que observo os efeitos que a minha emprestada eloquência – num tempo dilatado, que não é o dos relógios – produz nos alunos. Quando sou transportado por esta inominada energia verbal, embora não seja propriamente o ‘autor’ do texto, controlo a cadência rítmica, a respiração das frases, a melodia. Os alunos ou a plateia reagem consoante as virtualidades do instrumento cognitivo, a sua capacidade de escuta, mas claramente naquele momento somos um, como num cardume ou orquestra – enovelados na espécie de inteligência não circunscrita que nos abarca. O mais surpreendente é que ao mesmo tempo que as palavras me conduzem me sinto um ponto atento aos meandros, às minudências da enunciação – não separado da experiência mas numa dobra da mesma. Inesperada aptidão e talvez similar à que Pere Gimferrer atribui ao poeta: ver o acto de ver, dobra na qual a consciência se reconhece a si mesma e as palavras se conciliam com o mundo que designam – em confluência. Será esta a experiência do self-remembering a que aludem certos mestres budistas? Sinto que aquele fluxo discursivo se resgata ali, e a si mesmo, do esquecimento, expondo a sua face inteira, a sua amplitude, e que ressoa em mim uma maravilhosa não-identidade; a qual me consente encarnar aquela presença a si-mesmo, sem me fundir nela. O que me surpreende nesta experiência não é tanto o fluido encadeamento dos conceitos como a sua liquidificação, a sensação de experimentar um pensamento pensante que transborda largamente a represa do pensamento pensado e se apresenta como a condição de possibilidade que emerge após o desaparecimento do sujeito que, paradoxalmente, incubou e expandiu. Será raro esse estado de não-dualidade. Nunca ouvi nenhum professor falar desta ocorrência e que sei comum ao que experimentam alguns actores durante a actuação. É como um despertar dentro da palavra e uma navegação no seu leito: basta seguir o ponto-da-vela, prenhe por uma lucidez diáfana. E nesse estado tudo parece a um tempo simples e novo, como a resposta que o bailarino Nijinsky deu à senhora que no bar do teatro lhe perguntou: «como é que faz? perdão? a maior parte das pessoas quando salta no ar vem imediatamente para baixo… porque hão-de vir logo para baixo… – replicou Nijinsky – demorem-se no ar um bocadinho, antes de descerem…». Agora leio no último e maravilhoso livro do John Berger, Confabulações, este naco sobre El Duende: «Os artistas de flamenco falam muitas vezes de el duende. O duende é uma qualidade, uma ressonância que torna uma actuação inesquecível. Ocorre quando um artista é possuído, habitado por uma força ou um conjunto de compulsões vindas do exterior de si mesmo. O duende é um fantasma do passado e é inesquecível porque visita o presente para se dirigir ao futuro. No ano de 1933, o espanhol Garcia Lorca proferiu uma palestra em Buenos Aires relativa à natureza do el duende. (…) “todas as artes”, declarou ele na sua palestra, “são capazes de duende, mas onde ele naturalmente encontra mais espaço é na música, na dança e na poesia declamada, uma vez que elas necessitam de um corpo vivo que as interprete, porque são formas que nascem e morrem de um modo perpétuo e elevam os seus contornos sobre um presente exacto. El duende actua sobre o corpo da bailarina como o vento sobre a areia”» Há um mundo em estado de dador: imagens à procura de um relator, pensamentos que buscam o seu pensador, ritmos que procuram o seu canal (as configurações do duende) e calha-nos ser o transporte para o tempo dessas ”doações” mas só o corpo as intercepta e traduz. Isso nota-se muito em quem recita: há quem só dê o conteúdo, aí captamos com a inteligência, e quem consiga o regresso do poema a um estado pré-verbal, que a performance do corpo, daquela voz, naquela expressividade, volta a fazer nascer. Aí emocionamo-nos e o contacto com o recitador levanta o vento sobre a areia: então “vemos” o que ouvimos.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPoemas de Li Bai [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] primeira vez que tive contacto com Li Bai remonta ao ano de 1992, com a tradução de António de Graça Abreu dos poemas deste poeta da Dinastia Tang. Seguiram-se outras traduções ou versões que fui encontrando, aqui e ali. Mais tarde, em 2001, nos três meses que passei por Macau, o contacto com o poeta Yao Jing Ming – que tinha conhecido no ano anterior em Lisboa – motivou-me para aprofundar o conhecimento do poeta. Estive sempre ciente do enorme muro da língua chinesa e limitei-me às traduções de outros e alguns textos teóricos acerca do poeta. Assim, os poemas que aqui vou apresentar, são poemas que cruzam inúmeras traduções e, sempre que possível, esclarecimentos com pessoas chinesas. Não pretendo que os poemas sejam lidos como traduções, que não são, evidentemente, nem tão pouco assumo qualquer tipo de autoridade que não seja o do amor à poesia em geral e aos poemas de Li Bai – ou o que julgo serem os seus poemas – em particular. De resto, respeito o número de versos de cada poema e tento sempre que posso apresentá-los com a concisão que me é possível, exigência dos próprios originais. TANTA ANGÚSTIA Tanta angústia que sinto Por não conseguir chegar à capital, a Chang’an. Os insectos tecem o Outono, cantando na margem dourada do lago, A geada transforma o frio em cor na minha esteira de bambu, A candeia ameaça apagar-se e acende ainda mais o que sinto. Afasto a cortina da lua, suspiro longamente em vão. A beleza floresce longe de mim, para além das nuvens. Por cima um céu infinito de noite escura E em baixo as águas verdes, inquietas. Um céu maior que o mundo, um caminho sem fim, a amargura espanca-me. Uma montanha intransponível impede-me de alcançar o sonho. Tanta angústia, ou essa coisa que sinto, Arruína qualquer coração. SOZINHO OLHANDO A MONTANHA Os pássaros levam as suas asas para longe E deixam no céu apenas uma nuvem, que também se afasta. Ficamos sós, a montanha e eu, Olhando-nos frente a frente neste sem fim.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSanto Antero [dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ça de Queiroz apelidava assim o seu amigo logo que o via chegar: – lá vem o santo Antero!- É talvez a mais bonita expressão encontrada para este homem tão singular, tão fraterno e atormentado, um louvor que os amigos reconheciam justo, e um distintivo para o poeta que era. Unidos se encontravam nas causas académicas e nas correntes ideológicas esta «Geração de 70» e a grande vanguarda das suas posições iria colidir com os ultra românticos, o denominado grupo «Do bom senso e do bom gosto» uma disputa conhecida por questão coimbrã. Mais tarde, também o Governo viria a proibir estas sessões de esclarecimento por parte destes intervenientes. Oliveira Martins fala de Antero com a mais comovente admiração, chegando ao ponto de descrever as lágrimas quentes que lhe vinham aos claros olhos em instantes de tormenta e aflição: descreve-nos um Antero impedido de mentir, de uma transparência e de um desassombro que ficamos por ele apaixonados. Ninguém se lembraria neste tempo descrever as lágrimas revoltosas de um amigo nem a sua incapacidade para a obscuridade, ninguém era capaz de semelhante amor. Que o amor entre os homens existe, sim, e não é por isso uma transsexualidade misógina, nem uma moda de casamentos, existe, e é realidade de homens excepcionais. Setembro traz Antero à nossa memória e com ele a peregrinação pela sua utopia, o emblema de um Socialismo Futuro, traz-nos a escada estreita, as lôbregas jornadas, o sonho oriental, traz-nos este budista cristão, um Budismo coroado de Helenismo, e uma bela interpretação do Nirvana na voz de um Ocidental se faz notar, por outro lado, raiava sempre aquele fogo redentor de um Cristianismo inaugural que viria a ser a dama da sua alma enlevada pelo aperfeiçoamento emocional. Traz-nos a sua morte. Antero suicida-se a 11 de Setembro de 1891, e o dia nefasto não será esquecido. Num assombro de lucidez e grave derrocada, um homem assim, de uma extrema Liberdade moral foi bem capaz de não suportar o desastre que é a imagem das almas estarrecidas perante tantos dolos, subserviências e misérias. O poeta venceu o homem, e uma vez mais, se fez matéria do seu próprio canto. A cisma dos suicidas não foi estranha aos dias que antecederam a sua morte, aquele cismar que denota grave instante, mas, aqui, nesta fronteira, sabem-no bem estes cismadores que não há nada que os defenda. Mais nada a ripostar. «As Causas da Decadência dos Povos Peninsulares» ilumina sempre de fresco a nossa memória, e fora escrita numa espécie de lampejo visionário às portas do século XX onde começaria a descida mais funda pela grave ofensa que foram as ditaduras ibéricas. O homem político, o artista, o pensador, o filósofo e o poeta, habitavam todos neste ser numa única condição. Transcendidas. Estava envolvido com a sua época por aquele lado que as épocas nunca entendem, e, quando o fazem, é sempre tarde demais. Que as eras e as épocas serão sempre motivo de grande estranheza para homens assim, os seus legados, sempre tão únicos, inesquecíveis, poderão no entanto servir de conforto para as suas comuns inibições. Dizia: «soframos, pois, com paciência as injustiças deste mundo, que, afinal, é mais ignorante do que mau, e, em suma, bastante infeliz por seus erros e ilusões, para que tenhamos por ele mais piedade do que ódio. Não é a ele que propriamente detestamos, mas a iniquidade que esta nele» Cartas. O seu inquestionável apostolado chamava a atenção para o problema derrapante do ódio. Não consentir jamais uma teia que conspire nas nossas veias tais venenos. Um grande humanista está sempre implicado em causas sociais, demora-se no seu longo amor Humano, cresce até não poder mais, e sente a impotência da marcha. Boémio, não lhe faltou a farra e os encontros com seres do seu estatuto moral, transformador, arrebatou muitos, e sozinho, ele não se lembra de mais nada. Está em transe! O dia não lhe surge redentor. Vestiu-se de preto, comprou uma arma, sentou-se num banco, colocou a pistola na boca, dispara, não morre, a dor trespassa-o, desfere o segundo, e Antero está morto. – Na mão de Deus, na sua mão direita repousou afinal seu coração.- Lembrar este momento é como unir os dedos em orações que não recordávamos e num relâmpago todas lembrar, tentar entender como a natureza reage e conspira ao redor, será vestirmo-nos de preto e pôr na boca laranjas amargas, depois, ficarmos nus e sem frutos diante do abismo. É aproximarmo-nos de alguém que de si não teve medo. Sangrar, Sagrar, ficar num chão, limpo, lavado. Mas, e ainda: Ergue-te, pois, soldado do Futuro E dos raios de luz do sonho puro, Sonhador, faze a espada de combate.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasMensagem (Botschaft) [dropcap]E[/dropcap]u tinha pensado de mim para mim que dias mais lindos Só aqueles poderiam ser chamados, quando nós, ao falar, Transformávamos a paisagem diante dos olhos num domínio Da nossa alma: quando nós, colina acima, Subíamos para o bosque na direcção da sombra, Aí, onde tudo nos envolvia como algo de já vivido, Pois, aí, nos prados distantes, nós encontrávamos, em sossego, o sonho das vidas passadas de criaturas jamais supostas. Encontrávamos aí vestígios do seu terem por lá andado e do seu beber E sobre o lago: uma conversa a deslizar Reflectia abóbadas mais fundas do que o céu. Eu tinha, então, pensado naqueles dias, E que a seguir a estas três coisas: ter saúde, Fruir do próprio corpo e da vida, E de pensamentos, asas de jovens águias, Apenas uma coisa conta: Estar na companhia de amigos. Assim, eu quero que tu venhas e comigo bebas Daquelas taças que são a minha herança, Adornado com folhagem e crianças aladas, E que comigo te sentes no muro do Jardim. Dois jovens estão de guarda no seu portão. Nas suas cabeças, com um olhar absorto e Meio desviado, há um destino monstruoso Que te olha para te empedernir: quero que te cales E olhes para a paisagem Que tu vês estender-se à tua frente; Pois, talvez, então, um verso teu me aconchegue Na solidão futura e que, de quando em quando, Uma lembrança tua se aninhe na sombra E que, ao cair da noite, a estrada entre as copas escuras role, E que caminhos sem sombra rolem e rolem para aí Como relâmpagos do ouro mais fino.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasÉ isto [dropcap style=’circle’]É[/dropcap]isto. Uma caixa fechada. O escândalo. O escândalo. Cheguei tarde. Não te conheci. Caixa fechada. Não há corpo. Toda a filosofia do ocidente o diz. O padre diz que não te conheceu. E conheceu-te. Tiveste filhos. Tiveste aspirações, desejos, amores. É isto. O escândalo. O escândalo. Seguimos em frente, João. Chegamos tarde. Cheguei tarde. Era uma feijoada. Era um jantar. A única a oportunidade. Era um dia de calor. Ficamos. Foste. É um escândalo. O escândalo. Seguimos em frente. A memória. A fé. A saudade. Seguimos em frente. Levaste gente sem número como o número dos grãos da areia. Foste ao litoral. Vieste ao interior. Tiveste filhos. Onde estás tu só com pele? Seguimos em frente. Numa aldeia próxima de Lisboa, com o cão negro de nome de presidente. Falamos de literatura. É preciso fazer. É preciso fazer. Livros são como hortas. E os teus filhos ficaram meus irmãos. E o teu filho é meu irmão. Cita o Evangelho. Voltarei. Voltarás. Não chorarei mais. A alegria é a esperança. Não faz mal. O amor é mesmo assim. Eras o meu pai. És o meu pai. Já não há nada. Nunca há nada sem ti. E eu entrego o coração. O meu coração é teu. Tenho mulher e filhos. Tenho-te a ti, meu amor. Tu segues o teu caminho. Eu perdi-te. Sei que o amor existe. E choro por ti. Tudo passa. Nada fica. Nada ficará. Eu encontro-te no teu corpo. Eu encontro-me no teu corpo. Eu encontro-te no teu corpo.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Tratado de Shimonoseki [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]o dia em que Camilo Pessanha preside à primeira mesa do júri examinador da instrução primária para a entrada no curso geral do Liceu de Macau, a 17 de Abril 1895 assina-se o Tratado de Shimonoseki entre o Japão e a dinastia Qing, referente à Guerra na Coreia. A dinastia Qing é obrigada a pagar 75,6 mil toneladas de prata, ceder o território chinês de Taiwan e a península de Liaodong aos japoneses, e abrir ao comércio estrangeiro Shashi, Chongqing, Suzhou e Hangzhou. No entanto, a Rússia, apoiada pela França e Alemanha, força o Japão a entregar a Península de Liaodong (no Nordeste da China, de onde provem a dinastia reinante manchu) ao Governo Qing, mas terá de pagar mais 11 mil toneladas de prata. Em Taiwan, os habitantes reagem mal à chegada das tropas japonesas à ilha em Maio de 1895, começando ferozes combates que em cinco meses fazem 30 mil baixas no exército inimigo, mas de nada vale e a resistência continuará até 1945. A construção pelo Japão de um império na Ásia fora encorajado pelos americanos, que cobiçavam Taiwan e em 1867 tinham sido expulsos pelos nativos Gaoshan após invadirem pelo Sudoeste a ilha, com o pretexto de a tripulação de um dos seus barcos ter sido atacada e morta. Em 1874, os americanos apoiaram a invasão japonesa de Taiwan, que com três mil soldados pouco conseguiu avançar devido à resistência das populações locais. No entanto, sobre a mediação dos EUA e dos britânicos, a dinastia Qing foi obrigada a pagar 18,9 toneladas em prata aos japoneses para estes daí saírem. Em 1884, foi a vez da França tentar invadir a ilha mas, também sofreu uma derrota às mãos dos locais. Um ano depois, Taiwan tornou-se uma província chinesa e agora, em 1895 passa para as mãos dos japoneses até ao fim da II Guerra Mundial. Os britânicos aproveitam e a 9 de Junho de 1898 arrendam território à China, tal o sufoco económico para pagar as indemnizações de guerra. A 1 de Julho começa “a concessão dos Novos Territórios por 99 anos de uma área dez vezes maior às anteriores juntas, Hong Kong e Kowloon, incluindo o resto da península e cerca de duzentas ilhotas”. O Tratado de Shimonoseki dá início a um novo estado de agressão à China pelas oito potências invasoras estrangeiras, Inglaterra, França, EUA, Rússia, Japão, Alemanha, Áustria e Itália, que esperam novas oportunidades para ganhar mais concessões na China, levando à completa miséria os chineses, que sem meios, têm de se entregar às mãos dos que os espoliam até nada haver e assim, partem para ir trabalhar nos projectos coloniais dos agressores. Muitos desses chineses são apanhados por redes e transformados em escravos. Encontros na Casa do Mandarim Tal como acontecera em 1856 em Xangai, os estrangeiros criaram concessões que foram aumentando à medida que chegavam outros países e assim entre 1895 a 1900 em Tianjin estabeleceram-se as zonas dos japoneses, belgas, italianos, austro-húngaros e alemães e num pulo a cidade cresceu imenso. Zheng Guan Ying (1842-1921), nascido no distrito de Xiangshan, fora agente nas companhias comerciais inglesas, mas após o golpe da crise económica em Xangai e a sua detenção e litígio em Hong Kong, vai residir para Macau em 1886. Na Casa do Mandarim dedicou-se a redigir Advertências em Tempos de Prosperidade (Sheng shi wei yan), marco na história da filosofia chinesa contemporânea, onde combina as suas vivências e as ideias de um fortalecer nacional. O pensador reformista do Movimento de Ocidentalização recebe Sun Yat Sen, a estudar Medicina em Hong Kong, nas viagens de e para a sua terra natal, Cuiheng, também em Xiangshan. Segundo Choi San diz: “vinha por Macau para trocar com Zheng Guan Ying ideias sobre a situação política e a aprendizagem do Ocidente. Desenvolver a produção agrícola transformando a agricultura com a avançada tecnologia científica do Ocidente e com os métodos administrativos capitalistas constituiu também uma questão que chamou a atenção de Sun Yat Sen. Por volta de 1891, o Dr. Sun Yat Sen escreveu um artigo comentando exclusivamente a agricultura. Após algumas alterações feitas por Zheng Guan Ying, este artigo foi incluído, sob o título de Nong gong (Sobre a Agricultura), no livro Advertências severas na época próspera. Nele, o Dr. Sun Yat Sen diz: “Após o Dr. Sun Yat Sen se formar pela Universidade de Hong Kong, vem para Macau como médico e em 1893 ajudou o amigo português Francisco Fernandes a criar a edição chinesa do jornal Echo Macaense (JingHaiCongbao). Segundo Segredos da Sobrevivência de Wu Zhiliang. Em 1894 Zheng Guan Ying escreveu “uma carta a Sheng Xuan Huai, mandarim pertencente à escola promotora do comércio exterior e negócios estrangeiros, pedindo-lhe que apresentasse Sun Yat Sen a Li Hong Zheng, chefe da escola promotora de comércio exterior e assuntos estrangeiros.” Na carta faz referência à aspiração e ambição de Sun Yat Sen no sentido de revigorar a agricultura chinesa. Do artigo Influência de Zheng Guan Ying Sobre Sun Yat Sen e Mao Tse Tung’ escrito por Choi San e publicado na Revista Cultura. Opiniões da situação Pela ajuda dos russos aos chineses e para garantirem a protecção do território contra as agressões estrangeiras é dado aos russos a concessão do caminho-de-ferro Transmanchúria, a partir de Harbin, Manchúria do Norte, linha aberta a 3 de Junho de 1896 entre a China e a Rússia. A 26 de Janeiro de 1897 é aprovado pelo Rei D. Carlos para ser rectificado, o Tratado de Comércio e Navegação assinados em Lisboa entre Portugal e o Japão. Já O Porvir de Maio de 1898 refere ser “curiosa e não deixa de ser algum tanto verdadeira a opinião que os franceses formam sobre a situação política no Extremo Oriente e, para amostra, aí vai isso, que eles dizem: Entretanto, ela recua visivelmente e circunscreve de mais em mais o terreno que proclama intangível. Comentando o caso, diz o nosso colega inglês: . É escusado esperar, porque a Inglaterra já apanhou também um óptimo quinhão da China, e não tem, portanto, necessidade de mostrar já a dentuça arreganhada, além do que, se a arreganhasse com a bondosa intenção de morder na China, seria requintada tolice, porque ela, a miséria, está-se assemelhando ao leão velho da fábula. Podem todos escoiceá-la que ela não reagirá. Quanto a arreganhar os dentes à Rússia, França e Alemanha, não seria a Inglaterra tola em tal fazer, porque quando pensasse em dar uma dentada em tais meninas, decerto apanharia em troco duas ou mais para o seu tabaco.” Será?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias“Salmo”, poema de Georg Trakl Salmo dedicado a Karl Kraus de Georg Trakl [dropcap]H[/dropcap]á uma luz que o vento extinguiu. Há uma taberna que um bêbado deixa à tarde. Há uma vinha queimada e negra com buracos cheios de aranhas. Há um espaço que foi caiado com leite. O louco morreu. Há uma ilha do mar do sul, para receber o deus Sol. Rufam os tambores. Os homens executam danças guerreiras. As mulheres meneiam as ancas entre trepadeiras e flores de fogo, quando canta o mar. Oh! o nosso paraíso perdido. As ninfas abandonaram as florestas douradas. O estranho vai a enterrar. Depois, cai uma chuva cintilante. O filho de Pã aparece na figura de um trabalhador da terra, que dorme ao meio dia sobre o asfalto escaldante. Há pequenas meninas num pátio com vestidinhos cheios de uma pobreza de partir o coração! Há quartos cheios de acordes e de sonatas. Há sombras que se abraçam à frente de um espelho cego. Às janelas do Hospital, aquecem-se convalescentes. Um barco branco a vapor sobe o canal com pestes sangrentas. A estranha irmã aparece de novo nos sonhos maus de alguém. Sossegadamente, no bosque de sabugueiros, ela brinca com as suas estrelas. O estudante, talvez um sósia, segue-a através da janela até desaparecer. Atrás dele jaz o seu irmão morto, ou então ele desce a velha escada de caracol. No escuro, as castanhas empalidecem o rosto de um jovem noviço. O jardim está ao anoitecer. No cruzamento esvoaçam os morcegos em redor. Os filhos do caseiro acabam de brincar e procuram o ouro do céu. Acordes finais de um quarteto. A pequena cega corre a tremer pela alameda, e mais tarde toca a sua sombra no muro frio, envolta por contos de fadas e lendas de santos. Há um barco vazio que desce o canal negro ao anoitecer. Na obscuridade do velho asilo decaem ruínas humanas. Os órfãos mortos jazem nos muros do jardim. De quartos cinzentos surgem anjos com asas sujas de lama. Vermes saem das suas pálpebras amarelecidas. A praça em frente da igreja é lúgubre e silenciosa, tal como nos dias da infância. Sobre pegadas prateadas deslizam vidas passadas E as sombras dos condenados descem até às águas pestilentas. Na sua sepultura o mágico branco brinca com as suas cobras. Silenciosamente sobre o calvário abrem-se os olhos dourados de Deus. Psalm Fassung Karl Kraus zugeeignet Es ist ein Licht, das der Wind ausgelöscht hat. Es ist ein Heidekrug, den am Nachmittag ein Betrunkener verläßt. Es ist ein Weinberg, verbrannt und schwarz mit Löchern voll Spinnen. Es ist ein Raum, den sie mit Milch getüncht haben. Der Wahnsinnige ist gestorben. Es ist eine Insel der Südsee, Den Sonnengott zu empfangen. Man rührt die Trommeln. Die Männer führen kriegerische Tänze auf. Die Frauen wiegen die Hüften in Schlinggewächsen und Feuerblumen, Wenn das Meer singt. O unser verlorenes Paradies. Die Nymphen haben die goldenen Wälder verlassen. Man begräbt den Fremden. Dann hebt ein Flimmerregen an. Der Sohn des Pan erscheint in Gestalt eines Erdarbeiters, Der den Mittag am glühenden Asphalt verschläft. Es sind kleine Mädchen in einem Hof in Kleidchen voll herzzerreißender Armut! Es sind Zimmer, erfüllt von Akkorden und Sonaten. Es sind Schatten, die sich vor einem erblindeten Spiegel umarmen. An den Fenstern des Spitals wärmen sich Genesende. Ein weißer Dampfer am Kanal trägt blutige Seuchen herauf. Die fremde Schwester erscheint wieder in jemands bösen Träumen. Ruhend im Haselgebüsch spielt sie mit seinen Sternen. Der Student, vielleicht ein Doppelgänger, schaut ihr lange vom Fenster nach. Hinter ihm steht sein toter Bruder, oder er geht die alte Wendeltreppe herab. Im Dunkel brauner Kastanien verblaßt die Gestalt des jungen Novizen. Der Garten ist im Abend. Im Kreuzgang flattern die Fledermäuse umher. Die Kinder des Hausmeisters hören zu spielen auf und suchen das Gold des Himmels. Endakkorde eines Quartetts. Die kleine Blinde läuft zitternd durch die Allee, Und später tastet ihr Schatten an kalten Mauern hin, umgeben von Märchen und heiligen Legenden. Es ist ein leeres Boot, das am Abend den schwarzen Kanal heruntertreibt. In der Düsternis des alten Asyls verfallen menschliche Ruinen. Die toten Waisen liegen an der Gartenmauer. Aus grauen Zimmern treten Engel mit kotgefleckten Flügeln. Würmer tropfen von ihren vergilbten Lidern. Der Platz vor der Kirche ist finster und schweigsam, wie in den Tagen der Kindheit. Auf silbernen Sohlen gleiten frühere Leben vorbei Und die Schatten der Verdammten steigen zu den seufzenden Wassern nieder. In seinem Grab spielt der weiße Magier mit seinen Schlangen. Schweigsam über der Schädelstätte öffnen sich Gottes goldene Augen.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO afogado mais formoso [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]ntem, 7 de Setembro, estive prestes a afogar-me na praia do Tofo, em Inhambane. Havia um fundão e muito vento e marés em redemoinho e nas minhas costas o meu amigo (que nada muito melhor que eu) foi ao fundo por duas vezes antes de desenvencilhar-se, enquanto eu patinava no turbilhão, sem quaisquer resultados à vista. Rapidamente fiquei ofegante; era batido por ondas desencontradas e já me faltava o fôlego para gritar. Piorou porque o tentáculo ácido de uma garrafa azul se enrolou no meu braço, lacerando-o; à sensação de que aquela massa de águas furibundas era superior às minhas forças juntou-se a dor e aí comecei a entrar em pânico. Sentia-me um idiota a apagar-se a trinta metros da praia. E vi a minha mulher a sair da água com a minha filha mais nova, ambas pálidas, mais magras do que me recordava, como se um susto as alfinetasse – percebi que se tinham safado a custo. Ainda lhes acenei, mas não me viram no âmago do meu inferno. Há um momento em que as perspectivas se invertem: o céu fica em baixo e a água em cima. E o peso daquela abóbada densa e líquida ameaça desabar sobre nós: é quando se deflagrou o sentimento de iminência. Aí sentimos o Opaco de que fala Michaux, a propósito da mãe a caminho da morte: a água deixa de ser fria, é apenas uma grande massa glacial, de algodão, que nos atravessa, poro a poro. Um cansaço geriátrico drenava o meu corpo, varrido pela inabalável densidade das águas. Num último assomo de espírito resolvi inverter de novo as perspectivas, pôr-me a boiar e deixar-me arrastar. O coração explodia-me no céu da boca quando o nadador-salvador veio pelas minhas costas, a reboque de uma prancha. Não o vi chegar, tomo-o agora por um anjo no sentido que lhe deu García Márquez: o anjo é a única criatura do universo que não tem consciência do seu acontecimento. A caminho da praia quase desfaleci por uma súbita baixa de tensão e ele teve de me segurar. Enfim, um descalabro que durou cinco minutos mas que nos faz perceber a fragilidade que nos tolera, a nossa profunda inaptidão. Escrevo no dia seguinte, oito; voltei a entrar na água sem vacilar, para depois recuar porque fiquei com palpitações cardíacas. Retirei-me para a esplanada, onde releio o Justine, de Durrell, e penso como seremos sempre estranhos à vida e não íntimos dela. E eis que tropeço nesta passagem lancinante: «a indiferença das forças naturais para com o mundo da Arte – uma indiferença que eu começo a partilhar. No final de contas, que interesse tem para Melissa uma bonita metáfora, quando se encontra agora profundamente enterrada, como uma múmia, na areia tépida e sombria do negro estuário?» Acode-me então o belíssimo conto do Garcia Márquez O Afogado Mais Formoso do Mundo. Conta-se nele que, num dia luminoso, se avistou um afogado no mar, do alto da falésia onde se incrusta a aldeia. Os homens desceram até à praia para recuperar das águas o infortunado. Está tão coberto de algas, musgos, lapas, escamas e restos de conchas, que é irreconhecível. E a aldeia manda emissários às aldeias próximas para sondar se alguém desapareceu por lá. Ninguém reclama o corpo. Resolvem limpá-lo, querem ver-lhe os traços antes de lhe darem um enterro condigno. Quando o seu rosto aparece a nu, é uma visão que espanta. É claramente o afogado mais formoso do mundo. É tão formoso que resolvem mudar as genealogias na aldeia para cada família ficar ligada àquele antepassado, porque todos querem fazer parte do lampejo da sua memória. Até isso me seria roubado, no meu afogamento. Não me coube tal formosura. Nem como afogados há direitos que possamos reclamar, tudo depende das circunstâncias. Para Dostoievski que só a beleza salvaria o mundo. Não sei se ele tem razão. Mas no meu caso funciona – depois de algo tremendo que me tenha acontecido costumo recuperar por via de algo que porte uma significação especial, por um fogacho de beleza. Talvez por isso, enquanto lia Durrell, desceu sobre mim este poema, que dedico aos meus amigos: «O coração tem uma pálpebra fechada/ parece uma capa viscosa e plúmbea/até que o amor o visita/ e então ela abre-se afogando o mundo/ com a fragância dos limoeiros. // Aí um fragmento de canção/ vivificou o teu silêncio. /E repetes, repetes aquele acorde/ por se assemelhar ao relento/ dos seus lábios quando sobre/ o teu corpo espalhavam a cal viva.// Não confundas a carne acordada/ com a tua sombra, só na dela/ se refaz a luz, só na dela/ se apraz o teu ligeiro embaraço./ Olhas da esplanada a baía –/ lembra uma melancia/ pois já o poente vos abraça.// Ela lê o Auster, tu manténs os dedos/ entrecruzados, em vigília, esperas/ que uma palavra se solte no ecrã/ do laptop, vibrante como o urso/ que acabou de despertar do longo inverno.// Desde que se conheceram nunca mais/ cerraram as persianas (omito aquela tarde/ do ciclone em que até as oleosas varejeiras/ do porto se colavam às janelas,/ aí na respiração do medo correram// as persianas) para que o perfume/ dos limões nos terraços da cidade/ vos reponha os cambiantes/ que trouxeram à doce anarquia/ dos vossos corpos nus um valor:/ ouro, fósforo, magnésio,// todos os credos que consolam/ a nossa vida portátil e breve/ por ser sempre tarde o armistício,/ de ser sempre maior a sede/ que o golfo do desejo recíproco.// Olho-vos e narrador me confesso:/ invejo-vos, na curva do seu braço/ que envolve o teu, no vosso riso/ na escolha de um postal, ao balcão,/ da imagem justa, invejo-vos/ na felicidade intocável de quem ainda/ não foi corrompido por segredos:/ a pálpebra aberta no seu máximo esplendor. »
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasPoemas de Li Bai [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]primeira vez que tive contacto com Li Bai remonta ao ano de 1992, com a tradução de António de Graça Abreu dos poemas deste poeta da Dinastia Tang. Seguiram-se outras traduções ou versões que fui encontrando, aqui e ali. Mais tarde, em 2001, nos três meses que passei por Macau, o contacto com o poeta Yao Jing Ming – que tinha conhecido no ano anterior em Lisboa – motivou-me para aprofundar o conhecimento do poeta. Estive sempre ciente do enorme muro da língua chinesa e limitei-me às traduções de outros e alguns textos teóricos acerca do poeta. Assim, os poemas que aqui vou apresentar, são poemas que cruzam inúmeras traduções e, sempre que possível, esclarecimentos com pessoas chinesas. Não pretendo que os poemas sejam lidos como traduções, que não são, evidentemente, nem tão pouco assumo qualquer tipo de autoridade que não seja o do amor à poesia em geral e aos poemas de Li Bai – ou o que julgo serem os seus poemas – em particular. De resto, respeito o número de versos de cada poema e tento sempre que posso apresentá-los com a concisão que me é possível, exigência dos próprios originais. A FLAUTA DE BAMBU NA NOITE DE PRIMAVERA EM LUOYANG De quem é este coração, que sopra implacável a flauta de jade? Alaga por toda a aldeia de Luoyang o doce vento da Primavera E prende-me aos ramos de uma canção antiga, “O salgueiro que se parte”. Fico sem quaisquer forças para não pensar na terra onde nasci. DESCENDO A MONTANHA ZHONGNAN E FICAR A BEBER COM UM AMIGO A MEIO DA NOITE Com o sol em declínio e a lua a seguir os meus passos, Desço a montanha azul. Olho para trás, para tudo o que já fiz, E só vejo sombras de muitas sombras. Junto ao conhecido portão coberto de flores Os filhos de um velho amigo chamam-me. No estreito e longo caminho verde de bambus A minha roupa agarra-se às silvas, não quer que eu siga. Mas é uma alegria poder descansar E beber o precioso vinho do meu amigo. Cantamos, afinados pelo vento que faz vibrar os pinheiros, Até que as estrelas brilhantes não passem de recordações. Mais bêbados e mais alegres que qualquer coração apaixonado, Esquecemo-nos de nós, do mundo e de tudo a que se possa dar importância.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasLabirinto da saudade [dropcap style=’circle’]É[/dropcap]o nome do filme documentário/ensaio de Miguel Gonçalves Mendes que teve estreia a 24 de Maio com distribuição da NOS Lusomundo Audiovisuais e fez 1.722 espectadores nas 170 sessões que tiveram lugar nas salas das Amoreiras e El Corte Inglês em Lisboa, Alameda Shop e Arrábida Shopping no Porto, Alma Shopping em Coimbra. O número referido de espectadores corresponde a uma receita bruta de 9.225,16€. Mas dizer isto é quase nada dizer sobre o filme e sobre as condições de produção e visibilidade/exibição do cinema português. O labirinto da Saudade, é uma adaptação da obra homónima, é um ensaio documental narrado pelo próprio Eduardo Lourenço que percorre os espaços da sua memória e da própria história e identidade portuguesa, em busca da resposta do que é, afinal, isto de se ser português. É assim que a produtora LONGSHOT apresenta o filme e com esta introdução começa-se a perceber melhor ao que o filme vem e o que trabalha. Eduardo Lourenço e o filme que é filmado na sua cabeça Diz Eduardo Lourenço após uma sessão de visionamento em casa de Pilar Del Rio: “Nunca imaginei na minha vida ser actor de mim próprio. Obrigado Miguel. Isto foi uma das grandes surpresas da minha vida, tudo isto. Que não sei bem o que é: uma espécie de ficção – uma ficção encantatória -, diria, para me dar algum relevo antes de me ir embora. É uma espécie de requiem. É uma imagem interessante porque uma das coisas que mais me impressionou na vida foi o primeiro filme que eu vi sobre Dom João, rodeado de musas. Há demasiadas musas neste filme. Tenho a sorte de ter tido bons amigos na vida, como este cineasta. No princípio, por ser baseado no livro, pensei que não haveria qualquer referência à Annie, a minha mulher. Mas está lá tudo, o que devia estar, o amor e uma ausência sem solução. E com ela estão os meus amigos que partilharam estes pensamentos e foram de uma generosidade talvez excessiva, pra mim, e que me é muito difícil de suportar. Eu sou eu. Comigo eu entendo-me. Ou vou-me entendendo mais ou menos. Mas não posso, não consigo pensar-me com o olhar dos outros. Sinto-o como uma coisa excessiva para uma pessoa que não tem uma notoriedade que corresponda a esta espécie de “conto de fadas”. Com alguns pontos infelizmente negativos, pelo meio. Tudo isto é moderado e modelado pelas intervenções dos diálogos que eu vou tendo com as diversas pessoas que se cruzam no meu percurso. Gente que quis dialogar comigo, que quis perceber o que é que eu andei a dizer por ai de maneiras talvez um pouco crípticas e misteriosas. O filme é demasiado, demasiado grande para mim, demasiado… quer dizer, toca-me em pontos que são muito sensíveis. Não quero dizer com isto que achei o filme chato. Pelo contrário, a questão é que chato sou eu na realidade. E eu não posso sair deste filme como se não estivesse lá dentro. E isso é obra e consagração de quem fez o filme. Eu não queria nada imitar o Agostinho da Silva mas tenho algum receio que me transformem numa espécie de segunda versão do Agostinho. E é muito interessante que no filme apareçam essas referências ao Brasil. Que às vezes parecem um tema tabu. Esse diálogo com o Gregório é um dos melhores. Nunca tinha oportunidade de dizer o que me vai realmente na alma sobre o Brasil – essa presença/ ausência. De nós com ele e deles de nós. Tudo isto foi uma aventura, uma das aventuras, digamos, pouco romanescas como no nosso passado. Sobretudo, dos tempos em que fomos descobridores de mundos. Mas eu não descubro nem descobri coisa nenhuma. O que eu conheço já está descoberto há muito tempo. Eu limito-me a navegar na navegação dos outros por minha própria conta. Cada um julgará da minha performance neste filme ou falta dela. No Sentido que poderá ter esta navegação, por conta de um sonho, que é maior do que eu. Claro que nunca imaginei ser ator de mim próprio. E eu tenho a consciência de que não sou ator de modo nenhum. Como disse nunca imaginei na minha vida ser ator de mim mesmo. Esta é uma aventura que não corresponde às minhas capacidades. Esta aventura de me vestir nela de uma maneira criadora como aquilo que tentei fazer, por minha própria conta, quando escrevi o Labirinto da Saudade. De maneira que esta foi uma nova oportunidade de refletir toda uma mitologia que muitos contestam, e talvez até com razão, e assim foi me oferecida a oportunidade de emendar de novo um certo número de temas ou propósitos. Enfim, quem me ouve, quem me lê. Sobretudo quem me leu estará em circunstâncias de me corrigir que bem preciso. É um belo filme. Mas eu preferia que fosse outra pessoa a vestir esta coisa que me fica larga. Não houve nada que me tivesse chocado. Uma pessoa mitifica-se como pode. Mas pronto está feito, está feito.” Miguel Gonçalves Mendes (o realizador do documentário José e Pilar) filma “O Labirinto da Saudade” de Eduardo Lourenço. O filme é uma viagem pelo interior de uma mente brilhante, inquieta, e amante. Um amor continuado pela mulher com quem casou e viveu longos anos em França, um amor continuado pelo capacidade e exercício do pensamento, um amor continuado por um território real e simbólico com uma história já próxima do milenar, — faltam 169 anos, foi em 1179 que o Papa Alexandre III assinou a bula Manifestis Probatum que concede o título de Rei a Afonso Henriques — que se chama Portugal. Aos 94 anos, o escritor e filósofo Eduardo Lourenço faz eco em nós das perguntas que até hoje nele perduram. Que traumas nos definiram enquanto povo? Quem somos? O que fizemos? Que atrocidades cometemos? Quais os caminhos que podemos seguir? São estas questões o ponto de partida e o caminho percorrido em “O Labirinto da Saudade”, filme sobre uma “nação condenada desde a sua origem a esgotar-se em sonhos maiores do que ela própria”. Mas atenção, talvez que até hoje, esse seja um património comum à génese de todas as nações, qual a nação que pode existir e não soçobrar se nela não houver lugar para um sonho de si maior mesmo que ela própria, um sonho talvez até mesmo impossível? Pode um País existir sem sonho? E no caso particular Português, que sonho é esse que nos faz, que nos alimenta e nos distingue? Narrado e protagonizado pelo próprio Eduardo Lourenço, o documentário percorre os corredores da memória própria e da história de Portugal. Cruza-se com fantasmas e amigos do seu presente – Álvaro Siza Vieira, José Carlos Vasconcelos, Diogo Dória, Gonçalo M. Tavares, Lídia Jorge, Ricardo Araújo Pereira e Gregório Duvivier, que assumem o papel de interlocutores e coadjuvantes condutores das reflexões escritas no livro. O cinema é o dispositivo por excelência do sonho partilhado e, neste filme encantatório, como o referiu Eduardo Lourenço, há um personagem que é um homem hoje com quase um século de existência para quem por razões de carácter – aquilo que lhe é próprio – e de destino – a possibilidade escolhida no conjunto sempre múltiplo das possibilidades que nos contextos foi encontrando – teve como objecto de trabalho e de afecto pensar o território que o viu nascer. Esse território tem nome de nação, chama-se Portugal. Materialidade e Sonho, inteligência e agudeza de espírito, simplicidade e encanto, um sonho que foi e é vida, é o que cada espectador partilha sente e vive quando da visibilidade em grande ecrã na sala escura deste filme que é uma das pequenas/grandes obras cinematográficas de Portugal em 2018. Não perca. https://www.youtube.com/watch?v=LdUawS1Mv94
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasOs disponíveis [dropcap style=’circle’]N[/dropcap]ão há emprego onde um tipo não se depare com esta casta particular de trabalhadores. À primeira vista, parecem estar lá para descomplicar situações: oferecem-se para colmatar a ausência de um colega adoentado, para executar uma tarefa para a qual não têm competências, para entrar mais cedo ou sair mais tarde. A devoção que manifestam ancora-se no medo que têm de ser prescindíveis ou numa auto-estima comatosa que necessita de palmadinhas nas costas para arrebitar. Às vezes, em ambas. Não sabem dizer que não. Acatam ordens como se estas se tratassem de dogmas. Estão lá para o que der e vier. Literalmente. Por todos os trabalhos que passei, os disponíveis sempre foram aqueles que mais prejudicaram as condições laborais deles e dos seus colegas. Metendo medo ou ego à frente de horários e regras, acabam por criar para o empregador uma zona cinzenta, contígua à definida pelo contrato, onde a exploração legalizada encontra forma de continuar a ordenha dos famélicos sem o prurido decorrente de ter que assumir a sua ilegitimidade e avareza: afinal, se o Silva se ofereceu, nenhum mal advirá ao mundo de pedirmos a outro para fazer o mesmo. “Sim, é verdade que o horário é até às 19H, mas há que fazer a caixa, limpar e arrumar e fechar a loja, pelo que é natural que saia às 20H. O Silva, ontem, ficou até às 21H para atender uma família de japoneses que entraram em cima da hora e não perder essas vendas.” “De facto, devíamos ter os turnos escalonados com mais antecipação, mas há muitos imprevistos e o Silva na semana passada até se ofereceu para fazer dois turnos de seguida porque um colega faltou.” “É claro que tem hora de almoço, mas era preferível comerem na recepção, onde podem continuar a atender clientes, do que num restaurante ou assim. O Silva come sempre cá e em quinze minutos apenas.” Quando um Silva abdica de respeitar uma regra, sofrem todos os outros apelidos. Uma relação entre patrão e trabalhador é semelhante a uma relação entre adulto e criança: basta falhar uma vez para tornar infrutífera uma insistência coerente de anos. O Silva, por via da sua disponibilidade infinita, mete em causa não somente aqueles que o rodeiam como toda uma história de conquistas laborais que o precedem. Para o Silva, há dias em que vai trabalhar no Séc. XXI na Europa, dias em que vai trabalhar na China, dias em que vai trabalhar nos finais do Séc. XIX. A sua peculiar disposição para disponibilidade indevida acaba por lhe conferir, aos olhos do empregador, uma dupla patine: para além da sua generosidade laboral, é ainda pouco apreciado pelos calões que o rodeiam. Os calões, diga-se, são aqueles que tentam cumprir as regras e os horários. “Por mim, o Silva pode trabalhar até às seis da manhã, se quiser, e aviar todos os japoneses de Tóquio numa noite. Nem eu sou o Silva nem o Silva é modelo para qualquer empresa”. “O Silva, se quiser, pode nem ir a casa. Eu tenho uma vida, uma família, outros afazeres e ocupações. Preciso de definição no que diz respeito a horários e turnos.” “Se a questão se coloca dessa forma, nem há conversa. O Silva podia vir trabalhar de soro na veia para não ter que perder tempo a comer. Eu tenho uma hora de almoço e nessa hora vou fazer o que quiser. O que inclui não querer estar no local onde passo as restantes sete.” Se de cada vez que um Silva se apressa a militar no esclavagismo houvesse um patrão que o proibisse ou um Ferreira que lhe mostrasse o lado obscuro da disponibilidade gratuita, talvez os restantes apelidos deste mundo não tivessem que emular este empreendedorismo de amochado para justificarem os seus postos de trabalho. Arranjem uma namorada ao Silva, um hobby, um gato bebé que tenha de ser alimentado de hora a hora. Arranjem-lhe uma vida.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasComo quem se olha ao espelho [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]omo pode dar-se o reconhecimento do outro, como lhe chama a filosofia um “outro si próprio” (self)? Platão formula este problema. Arranca-o à simplicidade de se achar que é fácil ou difícil, possível ou impossível conhecer alguém. Põe no núcleo duro do problema a reciprocidade. Sou eu quem se reconhece como um “si”, como portador da “vida”, do ser universal que escancara todos os tempos havidos e a haver e todas as pessoas de todas as gerações passadas e futuras? Como posso, então, reconhecer o outro como outro, isto é, como portador da vida universal e a fortiori, à escala mundial, em si mesmo como outro e como um “si próprio” para si? Sou eu quem está projectado no outro que eu reconheço? É o outro que existe em mim e quem o outro aí comigo também pode reconhecer-me como um duplo de si próprio? São os amigos uma multiplicação dos mesmos nos outros como diferentes filhos são o mesmo mas multiplicados pelo seu número? Pode “isto” passar-nos despercebido, isto é, que sou quem existe no outro e que é o outro que existe em mim, como diz Platão no Fedro dos enamorados, que cada um está apaixonado por si no outro, mas isso mesmo, a paixão por si no outro lhe passa desapercebidamente? O reconhecimento da alma (psychê) uma outra palavra para o si próprio é compreendido analogicamente pelo facto do quotidiano de nos vermos ao espelho. Tal como um olho se pode ver a si próprio espelhado no olho do outro para quem estamos a olhar também o próprio de nós poderá ser reconhecido ao olhar-se para o próprio do outro, naquela dimensão em que nós podemos ficar plasmados no olhar do outro, no olhar de preocupação que inspiramos no outro, no olhar de amor de que somos susceptíveis e podemos inspirar no outro. Um olho pode ver-se a si mesmo no seu reflexo na pupila de um outro olho. De modo semelhante, uma alma pode conhecer-se a si mesmo na sua “reflexão” na dimensão mais complexa do si próprio no outro. Além do mais, um olho pode ver-se a si mesmo melhor ainda na sua reflexão num espelho. Uma alma, de modo semelhante, pode conhecer-se a si mesma quando usa o melhor dos espelhos reflexivos, e contempla o modo como se encontra refletida em Deus. Assim, “O rosto da pessoa que olha nos olhos de outra pessoa é mostrado nos olhos da pessoa que se encontra à sua frente, como num espelho, e chamamos isso pupila, pois de certo modo é uma imagem da pessoa que olha. Um olho ver-se-á, enquanto vê o outro olhos nos olhos, sobretudo quando olha para a parte mais perfeita dele, aquilo mesmo com o qual vê. E assim também se verá a si. Mas não pode olhar para nenhuma outra parte do outro, nenhuma parte do seu corpo, nem do seu rosto. Terá de ver para lá do próprio olhar e enfrentar olhos nos olhos a vida que acontece no outro. Terá de olhar para o que verdadeiramente se assemelha a si, a sua própria vida espelhada na vida do outro diferente de si. Essa diferença é anulada e duas pessoas reconhecem-se como sendo uma da outra: uma e outra projectadas reciprocamente em cada um dos outros. “E se a alma também vier a conhecer-se a si mesma, certamente deve olhar para uma alma e, especialmente, para aquela região em que ocorre a excelência de uma alma. Porquanto essa parte da existência onde ocorre a sua excelência é assimilada por Deus. Quem olhar para isso e vier a conhecer tudo o que é divino, obterá assim o melhor conhecimento de si mesmo.” (Platão, Alcibíades II) Conhecer-nos a nós mesmos implica desviar o olhar da imagem da pupila do olho no espelho em frente (e fora) de nós e olhar para aquela região da alma que é mais divina. Então, olhando para Deus e fazendo uso deste mais belo espelho interno e também olhando para a excelência da alma, somos, portanto, muito mais capazes de ver e reconhecer nós mesmos da maneira como realmente somos. Reconhecemos o outro susceptível de Deus. O outro reconhece-nos “capazes de Deus”. Deus é um nome para a possibilidade radical da felicidade no amor de outrem por nós e de nós por outrem. O outro apresenta-se em si tal como é ao olhar? E nós o que vemos quando olhamos os outros olhos nos olhos? Vemos os outros simplesmente? Os outros o que vêem, quando nos vêem? Vemos nós simplesmente os outros ou vemo-nos lá a olhar os outros sem nos apercebermos de que somos nós próprios lá? E os outros o que vêem de nós? Não se verão também a si mesmos em nós, não percebendo esse facto, achando que nos vêem tal como somos em nós próprios? Não há nenhum acontecimento isolado de si. Ou, antes, cada pessoa percebe-se no seu isolamento apenas, porque percebe a distância a que se encontra de toda a outra pessoa. Mas o milagre acontece e todo o reconhecimento recíproco traz consigo esse maravilhamento de que o outro é o nosso próprio si e nós somos o próprio si do outro. Passar-nos-á despercebido a maior parte do tempo da vida a respeito da esmagadora maioria da humanidade, mas a hipótese filosófica do reconhecimento do outro como outro, da vida a acontecer no outro, implica crescermos à altura em que vemos a vida de que somos portadores, universal, a fortiori à escala mundial e vital.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA Coreia na Guerra do Japão à China [dropcap style=’circle’]D[/dropcap]e todos os consulados de Portugal na China, o de Shanghai é indubitavelmente o que tem mais elevado grau de importância, e quer porque revista os seus titulares de carácter e funções de juízes, quer pela numerosa comunidade que está sob a sua jurisdição e pelos magnos interesses que naquele tribunal se debatem e ventilam, exige que só seja confiado a um cônsul de carreira, ou a um homem suficientemente habilitado e que dê todas as garantias do bom desempenho de tão transcendente missão”, segundo O Independente de 1 de Agosto de 1891. De 1891 a 1893 os capitalistas europeus e sobretudo os de Londres retiraram uma imensa quantia de dinheiro do giro comercial da China por eles empregado em Hong Kong, pois estava em curso a desvalorização do preço da prata. Regressado a Shanghai vindo da Metrópole, o cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, Joaquim Maria Travassos Valdez, de 1893 a 1895 como Doyen (decano do corpo consular) geriu as questões de Shanghai, “muitas, importantes como, a proibição da importação de máquinas, a de medidas preventivas por ocasião da peste bubónica, a do jubileu de Shanghae, a da dragagem de Vonsung, a da supressão da loteria e outros jogos, a queima e destruição de pagodes, e finalmente a da neutralidade de Shanghae por ocasião da guerra entre a China e o Japão.” No início o Daily Press de Shanghae mostrara-se contra o Sr. Valdez para decano do corpo consular, mas escolhido pelos seus colegas, o facto desmentia as asserções desse jornal. Como Doyen da Concessão Internacional, o Sr. Valdez presidia ao Shanghai Municipal Council, eleito pela elite económica dos proprietários estrangeiros e nesse cargo conviveu com três tao-taes e com esses governadores da cidade chinesa manteve cordiais relações de amizade. Quando rebenta a guerra entre a China e o Japão, o tao-tae de Shanghae procura amiudadas vezes o Sr. Valdez para ouvir a sua autorizada opinião sobre várias questões, algumas delas estranhas ao seu cargo, mostrando não só confiança no Sr. Valdez, como lhe reconhece competência. Informações do jornal O Provir de Hong Kong. Parecer do Doyen Camilo Pessanha ainda viaja para Macau quando a 28 de Março de 1894 em Shanghai ocorre o assassinato de um refugiado político da Coreia, Kim Ok Kiun, a residir no Japão, morto por Hung, também coreano. “Como a Coreia não é uma potência que tivesse tratado com a China, pois considerada como um seu Estado tributário, é difícil decidir qual deve ser a lei, e qual o juiz para julgar o caso” e aqui entra o Sr. Travassos Valdez, cônsul geral de Portugal e Sénior cônsul, na sua qualidade de Doyen do corpo consular em Shanghae. “Mostra que os cônsules e o conselho municipal reunidos possuem os poderes legislativo, executivo e judicial – tudo quanto constitui uma verdadeira soberania. Prova que o pagamento de um pequeno foro ao imperador da China, (que, pela lei chinesa, é proprietário de todo o terreno no Império e só o afora aos seus súbditos) não afecta a questão de soberania dentro dos Estabelecimentos, do mesmo modo como o pagamento de um tributo, feito por um Estado tributário, não diminui os seus direitos de soberania dentro das suas fronteiras. Demonstra ser a autoridade do magistrado chinês pelos regulamentos do tribunal misto quem tem a menor alçada e é limitada pela presença de um assessor estrangeiro. Conclui que o caso deve ser julgado por um membro do corpo consular, e conforme as leis de seu país. A oposição que houve no corpo consular impediu a adopção dessa conclusão e Hung foi entregue às autoridades chinesas e libertado na Coreia. Para o Sr. Valdez um ultraje às bandeiras estrangeiras que defendiam os Estabelecimentos, como uma violação dos sagrados direitos de asilo, e com um perigoso precedente que poderia conduzir a crimes sem fim. Guerra da Coreia Quatro meses em Macau e Camilo Pessanha toma conhecimento ter o Japão, incitado pelos britânicos e com ajuda americana, a 1 de Agosto de 1894 invadido a Coreia, país ainda tributário da China e por isso sobre sua protecção. “Tudo começa na Primavera de 1894 com uma revolta de camponeses, tendo os senhores feudais coreanos pedido ajuda ao Governo Qing para enviar tropas. Quando em Junho chegam as 1500 tropas chinesas a Asan, está já a revolta controlada, encontrando-se quase toda a força naval e dez mil soldados da infantaria japonesa em Seul e ao redor de Inchun. A China propõe ao Japão deixarem ambos os países de ter tropas na Península da Coreia. O Japão recusa, dizendo ser para ajudar a Coreia nas suas internas reformas”, segundo Bai Shouyi, em Outline History of China. E nesse livro em tradução livre continuamos, “Nos finais de Julho, os vasos de guerra chineses encontram-se em Asan, quando de repente uma frota japonesa os ataca, causando a morte a mais de 700 soldados, levando a armada chinesa a retirar para Pyongyang, onde a 15 de Setembro ocorre a batalha, que as tropas chinesas ajudadas pelos coreanos conseguem repelir. Dois dias depois da Batalha de Pyongyang, a armada chinesa Beiyang comandada pelo Almirante Ding Ruchang, inexperiente em batalhas navais, encontra-se no Mar Amarelo quando é cercada pela japonesa. A batalha dura cinco horas e os chineses perdem cinco navios. Em finais de Outubro, as tropas japonesas invadem o Nordeste da China, capturando a Península de Liaodong e no Rio Yalu, Jiulian e Andong (hoje Dandong, Liaoning). Em meados de Janeiro de 1895, os japoneses vão à Província de Shandong e assaltam o porto Weihaiwei, onde o que restara da frota Beiyang é completamente destruída em Fevereiro. Passam as tropas japonesas à península coreana e rapidamente ocupam muito território, levando o Governo Qing a pedir a paz. A astuciosa inteligência comercial estimula atritos que sabe levarem à guerra e assim mais uma vez resulta. A Inglaterra apoia o Japão e não a Rússia, sua oponente em Xinjiang, no Oeste da China, onde os britânicos para Norte e os russos para Sul tentam expandir os seus impérios, levando entre ambos à assinatura de um tratado em 1895. A Guerra da Coreia (1894-95) dá ao Japão asas no sonho de construir um império na Ásia. Guerra que marca um novo estado de agressão estrangeira à China, a ter de permitir aos poderes ocidentais investir aí em fábricas a satisfazer as suas necessidades urgentes para exportar capital. O status da China como semi-colónia fica confirmadíssimo, segundo Bai Shouyi. Ainda em 1893 começara um movimento reformista de chineses ricos ligados aos Qing a investirem largas somas de dinheiro na modernização tecnológica das suas fábricas. A maioria dos negócios desses milionários acaba em bancarrota devido à competição dos comerciantes estrangeiros, já na Era do capitalismo industrial. Controlam os transportes, as matérias-primas e a produção, e sem rivais no comércio entram por todos os países. O mercado tem que ser livre, nem que seja pela força. Ou ocorre como com a planta do chá. A Rainha Vitória impera no mundo, cujo jubileu de diamante será em 1897.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasA ferida tornou-se doença Horta Seca, Lisboa, 27 Agosto [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]cerca da primeira leva de selecionados para o Prémio Oceanos, aforismo nada novo e não se fala mais nisso: nome reconhecido na espuma vai mais longe que mil qualidades. Horta Seca, Lisboa, 28 Agosto Rodopiando no vórtice, por todo o lado encontro o tempo, agora mesmo nesta barata estrebuchando nas escadas rolantes do metro. Logo na inutilidade dos últimos movimentos outrora ágeis percorrendo o nada. Depois, vem lá do começo dos tempos para labutar decompondo o lixo que fazemos sendo. Ou vice-versa. Horta Seca, Lisboa, 29 Agosto «Histórias para meninas distraídas», assim se chama, mas estes poemas da Liliana [Ribeiro] estão prenhes de fina atenção. Ainda não falara do pequeno volume, dos iniciais colecção Mão Dita, aguardando inutilmente a oportunidade de lançamento na capital, que a norte já se desmultiplicou como quem semeia. Os versos misturam, qual biscoito de mel com gota de estricnina, um modo de ser gentil e duro. Infância, «adultância» e outras ânsias, mas também amor, morte, a palavra e o maior dos panos de fundo: o feminino. Ah, e o tempo, esse devorador, que merecia «Cartão Vermelho»: «Ninguém nos tinha dito que o tempo a favor de todas as possibilidades acabaria. Acabaria o ciclo, o ensaio, a diversão, a determinação instruída. A meta fixa fora sempre um truque, um sinal para as mãos se juntarem no banco do autocarro e assistir gratuitamente ao concerto no estádio municipal. Tudo o resto, desvarios, distrações contra as árvores iguais.» Acabado de ler o manuscrito, outro cuja publicação demorou o irrazoável, anotei: a ferida como doença. Tanto fica por dizer. Horta Seca, Lisboa, 30 Agosto Supostamente, qualquer computador se liga, enigma palpitante, ao coração do átomo onde arfa Cronos comedor de filhos e senhor de todas as colheitas, mesmo as mais sangrentas. Por que raio ou significado os números do canto inferior direito, do meu pêcê, irmanados pelos dois pontos, manetas de ponteiros, cavalgam muito além do comum? Induzem em erro, mas ajudam a cumprir. Contudo, chegar antes continua sendo alta de pontualidade. Marcará o kairos o das oportunidades que, por ver mal as horas, fui perdendo? João Villaret , Lisboa, 1 Setembro A querida Daniela [Gomes] desatou a compor uma boa série de «Covers» (ed. Paralelo W), i.e., ou seja, quer dizer. Recolheu fotografias antigas e anónimas sobre as quais pintou correspondências com versos de canções díspares e significativas. A que se reproduz na página, por exemplo, corresponde aos três últimos versos de Sandy Denny, acolhida nos Fairport Convention. Para sublinhar que não sei para onde o tempo se escoa, incluo aqui mais uns quantos e ponho a canção a rodar (vai passar a constar do karaokabysmo, cancioneiro selvagem das noites deste verão de mentirinha). «Across the evening sky, all the birds are leaving/ But how can they know it’s time for them to go?/ Before the winter fire, I will still be dreaming/ I have no thought of time// For who knows where the time goes?/ Who knows where the time goes?// Sad, deserted shore, your fickle friends are leaving/ Ah, but then you know it’s time for them to go/ But I will still be here, I have no thought of leaving/ I do not count the time// For who knows where the time goes?/ Who knows where the time goes?» A Daniela, fazendo uso de extrema e melancólica sensibilidade, isolou as figuras com trabalho sobre a cor que inventa carnes e matérias e prolonga as melodias. Isolou o humano, retirou-o das suas circunstâncias, para o fazer voar por sobre infâncias, desencontros, sonhos, ramos, rochas, corpos e casas. E aquele não lugar entre a luz e nenhures. Estamos sós com a música. Cai-se com facilidade em vários, por isto ou aquilo, olhar ou situação, detalhe ou conjunto, mas prendi-me a este da explosiva leitura do fulgor tendo por companhia as nuvens. Sei bem as razões. Horta Seca, Lisboa, 3 Setembro Tão dolorosamente belas são as imagens do Museu Nacional do Brasil ardendo, no seu aniversário! A estatuária que vigia, do telhado, perdeu terceira dimensão, são meras sombras face ao combate perdido, cegas do horizonte perdido, engasgadas pelo fumo tóxico da memória livre das ciências, talvez devessem deixar-se cair com o estrondo seco do escândalo. O gato embalsamado morrerá de vez ou sobra-lhe ainda hipótese de roçar alguém algures? Quantas mortes ali vivas voltarão a morrer à mão da estupidez impune? A múmia de Amon, o gajo de Atacama e o acocorado de Aymara e cada esqueleto ainda sendo ali poderiam levantar-se em grito para atormentar consciências. Bendegó, o meteorito vai resistir a estas brasas para continuar aceso na memória da incúria criminosa. A beleza é efémera ou não seria, razão maior para a admirar. E conservar. Ferida obscena, esta imagem da barbárie, servindo ideologia sanguinária que prefere a morte, na vez do humano que pulsa em cada migalha de museu. Que quotidianamente aceita sacrificar no altar do lucro a cultura, por dispensável, gratuita, inútil. Experimento em cada museu coração que pulsa. Pode até ter sido erguido sobre ideias gastas, solúveis na espuma da raiva, mas uma única delas justifica seiva e pulsação: fotossíntese. Falta-nos – cada vez mais – o ar. Santa Bárbara, Lisboa, 5 Setembro Vinte e cinco anos depois, continuo trocando os pés pelas mãos, incapaz de te dar o horizonte que merecias, tão aquém do possível que até dói. Nem poema consigo novo. «Os teus braços, afinal tu/ como sítio abrangente (a floresta)/ lugar panorâmico (o mar em fundo)/ onde me recolher/ sem palavras/ precisei delas gastei-as para chegar/ a ti/ despia-me já choroso (o mar em mim)/ e depositava-me/ massa desprendida solta de gordura e afecto e/ ossos/ nos teus abraços de estátua vibrante/ ora cama repousante/ ora colo ofegante/ soluçante, eu e os pensamentos/ ardendo à nossa volta/ incendiados pelo resto incandescente/ das palavras caminho/ os teus cabelos cobrem-nos de mundo/ aceitaste/ aceitaste-me/ os teus olhos húmus convidam à sementeira/ não terá sido por isso/ o desespero encontrou a intimidade/ continuo os soluços/ pois deles se soltam/ dançando/ as estrelas/ da já noite/ até que a tranquilidade/ por vida praça que rasgaste / na pele do promontório (a floresta)/ me acolheu desfeito/ não precisei da manhã para amanhecer/ ou de perder os verbos (a nuvem)/ para me erguer estendido/ na tranquilidade/ quedo tolhido fiquei/ já que continuei a vir pelas palavras caminho/ para repetidamente / morrer (em ti)».
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasConta-me contos, ama [dropcap style=’circle’]C[/dropcap]ontos, o melhor da literatura e os mais interessantes parceiros de viagem, onde sem nenhum esforço vamos encontrar os grandes escritores contando de formas várias quantas vezes o mesmo conto, que neles reescritos são sempre novos, sempre únicos. Discursos que se unem derivados das mesmas fontes, culturas que partilham espaços oníricos, tão próximos que ficamos a saber de uma provável fonte comum. Contam então muitas vezes os contos, aspectos particulares das culturas dos povos, na vertente do gosto pelos ciclos curtos e intensos, por onde férias e dias grandes hão-de passar: esse tempo de papel que rasgado em mil pedaços, deles fomos recolhendo as lendas, e hoje, escutamos no interior deste género literário ainda as “vozes” pelos autores que tão bem, e jamais, deixaram de escutar tais chamamentos . Faltam-nos sempre alguns que a voracidade agarra e leva rápido num saco de viagem. Já não temos amas e vozes que nos contem coisas nesta solidão, e carregamos com eles levando as “vozes” e num breve instante damo-nos conta que grande parte das nossas bibliotecas estão pilhadas deles, que esperam partir connosco para longe em fuga aos quotidianos. Por instantes, ainda nos admiramos de tanta coisa sem interesse de carácter marcadamente intimista que ocupa lugar a mais, impressão volumosa, pesadas notas interpretativas, um conflito permanente com a nossa paciência que desejamos polida para nos massacrarmos na ânsia de não ficar para trás nos temáticos interesses da época. Medimos o tempo pelo resto que nos falta e resolvemos só levar connosco tudo que nos faz radicalmente bem. Que tempo descritivo é o nosso, sim, onde a factualidade é de tal ordem implementada que se remete a herança de uma memória colectiva para certos apeadeiros a que chamam ficção, que passa rapidamente a fixação, quando todos numa embrulhada gigantesca resolvem soltar a sua história. Por isso todos sabem de tudo e o que não sabem inventam num desespero sem paralelo para que se escute as suas vozes… até fazem cursos para aquilo sair ligeiro e onde fiquem depois mandatados para tecerem resmas de papel nas quais se debruçam testando assim a nossa paciência. Acrescentar matéria aos sonhos requer muito mais, e admoestar um serviço ao seu mais fino conteúdo, exige o grau máximo da qualidade que se dá, quando em proveito de todos nos desembaraçamos de nós. Juntos «Contos Misteriosos e Fantásticos» de Edgar Allan Poe, «Contos Maravilhosos» de Herman Hesse, «Sobre os Contos de Fadas» de Calvino, «Pequenas obras Morais» de Leopardi, «Contos de Amor Loucura e Morte» de Horacio Quiroga, «Amor no Feno e outros Contos» de D.H. Lawrence, «Lendas» de Gustavo Bécquer, «Contos Populares Russos», «Contos» de Eça de Queiroz, voltamos para o ano sem grandes saudades de mais nada. «O Mabinogion» sem par, onze contos da cultura celta, uma arte de bardos e de encantos, as lendas, dadas por dois manuscritos, o Livro Branco de Rhydderch e o Livro Vermelho de Hergest, escritos em língua galesa no século XIV mas podendo remontar ao século XI na versão mais antiga no país do Rei Artur, transformando a leitura de alguns contos por vezes muito curtos em demorado prazer. O clã celta é uma estrutura compacta que afasta o cavaleiro paladino do silêncio e da solidão, naquele local todos se juntam sem ásperos abandonos a um propósito privado. Podíamos viver aqui o resto da viagem. Nos contos encontramos por fim os arquétipos, bem como os mitos inaugurais, e de tão juntos, renascemos outra vez para os grandes e bons encontros. No «Homem que Morreu» ( como se cada homem no país de Lawrence fosse eterno) a “contagem” é a dos Véus de Isis…Quiroga um dos fundadores do conto moderno, dá-nos a contar a Morte de Isolda… a morte está presente como sinal de arremesso aos desaires dos seres… Bécquer, esse, só não quer que se toque nas pedras de Toledo, em Eça de Queiroz e a partir dos seus textos dispersos em jornais e reunidos em «Contos» vamos encontrar as páginas mais bonitas da sua escrita. Os «Contos Russos» onde a Gata Borralheira também entra, bem como um certo aspecto do seu folclore que faz surpreender culturas distantes, instiga-nos a ver melhor a universalidade dos povos. «Lendas e Narrativas», que longe anda, tece esses meandros dos sonhos de antanho e das lutas e amores onde não falta a veia árdua de um cronista na opulenta capacidade de Alexandre Herculano. Quanto ao tema das literaturas populares devemo-la a Almeida Garrett, recuperados os ciclos da expressão oral. São sempre novos, sempre outros, sempre os mesmos, no fazer e refazer da linguagem de cada um, por que é essa similitude que dá o maravilhoso, pois em nós nada há dessa matéria retirados se formos desse todo. Por isso os levo como se levasse apenas um, que contam assim na multiplicidade individual das suas vozes e fazem entender que a trama não passa muitas vezes de um artifício fustigado por “originalidades” sem origem. Conta-me contos ama, todos os contos são esse dia, e jardim e a dama que eu fui nessa solidão… Contam-nos assim os que dizem escrevendo para nós no interior dos tempos, e de tal modo a voz nos soa a uma paz perdida, que ama sempre mais a criança que somos, a velha ama.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasArdem as línguas 01/09/2018 Colava-se na sua testa, estreita mas com sobreloja, uma inteira colecção de selos, talvez os das aves de Moçambique, estampados em… (fosse o meu sogro vivo e eu despacharia esta data com a limpeza de quem lava os olhos no copo do oftalmologista). Infelizmente para ele, mais valia estar à la page, a sua testa voraz – os olhos sumiam-se abaixo da metade do crânio – curva-se em altitude como os ovos, numa indesmentível aproximação à redondez vilipendiada pelos partidários da terra plana; fanáticos que não enxergam que só em espelhos ovais sobressairão as cabeças quadradas, e mesmo aí raramente, exprimindo casos particulares que não chegam a neutralizar a sensação das cabeças serem primordialmente esféricas como Gaia, como as cerejas, como as prenhuras e as líchias; aliás como o plano de corte de uma veia: imperativo da agulha, dizem. Mas falava da criatura que à minha frente rói até ao tutano a galinha e mexe os maxilares num crânio assustadoramente estreito – ah, Giacommeti, envia-me a tua morada e vais desmaiar de inveja! – e tão oblongo, que consegue ser a sua própria figuração. E mesmo quando na sua testa se esplendem as luzes do tecto a sua luz natural cria outras linhas e cores no ébano, como se eclodissem desse planisfério ovóide as ostras do tempo. 04/09/2018 O que ressalta da negligência a que foi votado o Museu Nacional do Rio de Janeiro e que levou ao incêndio que o destruiu é a constatação de que chamar país ao Brasil é uma calúnia. Como aliás se podia dizer o mesmo depois dos desastres de Pedrogão e de Monchique, em Portugal. Enviou-me o Luís Carlos Patraquim o email de um poeta do Rio, e amigo comum, o Alexei Bueno, que dá a dimensão trágica do ocorrido: «Muito obrigado Reinaldo, chorei muito ontem, passei inúmeros dias da minha infância nesse museu, lá levei meu filho, e assim por diante. Além do que era visto, pouca gente avalia o valor do que não estava exposto, era o que havia de mais importante no Brasil, seguido pela Biblioteca Nacional. Além da coleção egípcia, na verdade a maior do Hemisfério Sul, e da coleção grega – da Magna Grécia -, etrusca e romana da Imperatriz Teresa Cristina (que era de Nápoles), lá estava guardada toda a história de etnologia e arqueologia brasileiras, as urnas marajoaras e tapajônicas, os fósseis, a Coleção da Comissão Rondon e a Coleção Roquette-Pinto (filmes, fotos, registros sonoros, não sei se algo foi copiado), os papéis do Curt Nimuendaju (um alemão que foi o maior etnólogo do Brasil), a magnífica coleção de taxidermia (quantos taxidermistas deve haver hoje, e com aquela qualidade?), os fósseis, os ossos de dinossauros, a sala do trono, onde havia a célebre cerimônia do beija-mão, milhares de peças de tribos já extintas, um trono que o rei do Daomé deu para D. João VI em 1811, sem similar nem no Quai Branly, tudo destruído. Duzentos anos de coleta, escavações e estudos etnológicos dum país que tem o quarto território contínuo do mundo transformados em pó. Havia quatro vigias para um prédio de 13 mil m2, obviamente sem qualquer recurso, que viram o início do fogo e fugiram, os hidrantes sem água, etc… Exatamente 40 anos depois do incêndio do MAM. E tentavam conseguir vinte milhões (quatro milhões de euros!!!) para o prédio! Mais do que o dobro disso havia no apartamento de Geddel Viera Lima, um deputado corrupto, em Salvador. Gastaram dois bilhões para demolir e adulterar o Maracanã, uma construção classificada federalmente, e queriam resolver o problema dum prédio daquele tamanho e mais do que bicentenário com vinte milhões!!! Nem o interior do prédio conseguirão recuperar, todos os pisos originais, com as imensas tábuas de velhas madeiras brasileiras hoje indisponíveis, os tetos estucados e pintados… Não há o que falar. Um grande abraço, extensivo aos amigos.» E estes são apenas os incêndios visíveis. Ocorre o desastre ao mesmo tempo em que um candidato às eleições brasileiras, o inefável Bolsonaro, num comício, simula uma metralhadora e diz o que fará aos do PT, caso ganhe, sem que qualquer Comissão Nacional de Eleições o torne imediatamente ilegível. Há algo de profundamente corrosivo nos tecidos da vida activa dos países de língua portuguesa, como se padecessem de uma sintaxe infernal que atoleima os seus falantes e conecta os seus destinos às variações de um naufrágio repetitivo e sem remissão. Uma espécie de maldição de Naufrágio de Sepúlveda, reactualizada através de todos os elementos, formas e coordenadas, sendo executada em todas as dobras do tempo. Respondia Hannah Arendt numa entrevista, sobre ter continuado a praticar o alemão a níveis mais profundos, depois de ter enfrentado os horrores do Holocausto. “Mesmo nos tempos mais amargos?”, pergunta o entrevistador. E responde ela: “Eu interrogava-me: o que fazer? De qualquer maneira não foi a língua alemã que enlouqueceu!”. Já Derrida, num livro muito interessante, O Monolinguismo do Outro, levanta a suspeita de que as línguas possam enlouquecer e contaminar com a sua demência as comunidades que as usam, e até as instituições. Se olharmos para o que se passa no Brasil e em Moçambique, países numa combustão descontrolada, e os impasses em Portugal, Guiné e Angola, é difícil não concluirmos que seria difícil correr pior e como a inaptidão de cooperar e de operacionalizarmos algo de útil, sistémico, e de mútuo interesse, deixa cada país sozinho com as suas orgulhosas infeções internas. Há uma subcutânea maldade nesta incapacidade para, em todos os quadrantes, ultrapassar os irreais; nesta irresponsabilidade com que deixamos arder os valores e a cultura; nesta desagregação de vínculos, que prefere o egoísmo da má consciência à mutualidade de uma comunidade de língua que pudesse ser melhor em conjunto e erguer um carácter que relevasse por sobre os defeitos individuais. Não somos capazes. Será preciso deixar arder a língua, para darmos conta de que urge uma terapia?
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasBienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira comemora 20ª edição com homenagem a Cruzeiro Seixas [dropcap style=’circle’]A[/dropcap]20ª edição da Bienal Internacional de Arte de Vila Nova de Cerveira foi inaugurada no dia 10 de Agosto no fórum cultural daquela vila do distrito de Viana do Castelo, numa sessão presidida pelo ministro da Educação de Portugal, Tiago Brandão Rodrigues. Organizada pela Fundação Bienal de Arte de Cerveira (FBAC), esta edição da bienal, subordinada ao tema “Artes Plásticas Tradicionais e Artes Digitais – O Discurso da (Des)ordem”, homenageia também o pintor Cruzeiro Seixas, um dos expoentes máximos do surrealismo português, com uma mostra retrospectiva da sua obra plástica e poética. Segundo a organização da bienal, o pintor manifestou-se muito agradado com este tributo, considerando fundamental a organização de exposições sobre os artistas da sua geração que, num tempo de ditadura, foram impulsores da implementação de novas ideias. Segundo a organização, a bienal, que decorre até ao dia 23 de Setembro, “mantém o formato adoptado desde a primeira edição, em 1978, afirmando-se como um local de encontro, debate e investigação de arte contemporânea, num programa concertado com o ensino superior das artes a nível europeu”. Através das obras em exposição, provenientes de colecções públicas e privadas, a organização sustenta que “é proposta ao público uma nova reflexão sobre o movimento artístico”. De acordo com dados da FBAC, a bienal de arte “mais antiga do país e da Península Ibérica, contou, nesta edição, com a inscrição de 437 candidaturas e 717 obras de artistas oriundos de 43 países, sendo, no total, seleccionados 162 trabalhos de 143 artistas, maioritariamente provenientes de países como Portugal, Brasil, Espanha, Peru e Rússia, apresentados ao público no Castelo de Cerveira”. Aquelas obras foram seleccionadas pelo júri do concurso internacional da 20ª Bienal Internacional de Arte de Cerveira, que foi composto por artistas, investigadores e professores do ensino superior da área da arte contemporânea, entre eles, Albuquerque Mendes, António Olaio, Cabral Pinto, Jaime Silva, Ignacio Barcia Rodríguez, Miguel Carvalhais e Sandra Vieira Jürgens. Representados estão artistas como Graça Morais, Silvestre Pestana, Ana Vidigal, entre muitos outros como a mais recente vencedora do prémio Novo Banco Revelação, Maria Trabulo. Os trabalhos dos concorrentes, juntamente com outras obras de artistas convidados, estarão sujeitos aos Prémios Câmara Municipal (aquisição), num total de 20 mil euros, refere ainda a FBAC. A cumprir 40 anos de existência, o evento volta a alargar o seu âmbito expositivo. A vila transmontana de Alfândega da Fé, no distrito de Bragança, é, nesta 20ª edição, um dos pólos expositivos da Bienal Internacional de Arte de Cerveira com a mostra “XX Artistas na Casa”, assim como a de Monção, no Alto Minho. No final do ano, o Camões – Centro Cultural Português, em Vigo, na Galiza, acolherá também uma mostra da bienal. Entre 2 e 23 de Setembro, a bienal pode ser visitada à Segunda, Terça, Quarta e Quinta-feira das 14h30 às 20h00, à Sexta-feira das 14h30 às 22h30, ao Sábado das 10h30 às 22h30 e ao Domingo as 10h30 às 20h00. Até Setembro, decorrerão acções espontâneas de artistas e performances, tanto no interior do fórum cultural de Cerveira como no espaço público, cujo conteúdo será desenhado de uma forma interventiva e em interacção com os visitantes. A história da Bienal de Cerveira e a experiência adquirida em 25 anos constituem argumento e, concomitantemente, alavanca na prossecução de uma programação cultural complementar e sustentada pela Fundação Bienal de Cerveira. Neste âmbito, está a ser implementado um plano de estudo, preservação e divulgação das obras que integram o acervo do Museu da Bienal de Cerveira construído ao longo de 35 anos, organizando um ciclo de exposições, com carácter periódico, por forma a partilhar com o público as mais de 400 obras de arte. A apresentação é faseada e definida de acordo com os critérios dos respectivos comissários de exposição. O projecto Museu Bienal de Cerveira pretende ser um repositório da arte contemporânea nacional e internacional das últimas três décadas, reunido num espólio representativo da maioria dos grandes artistas portugueses e alguns estrangeiros, permitindo ao simples visitante tomar conhecimento da evolução das artes plásticas nos últimos 35 anos.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasJean-Luc Godard na reabertura da Cinemateca [dropcap style=’circle’]O[/dropcap]Filme, que conquistou a Palma de Ouro Especial quando estreou na recente edição do Festival de Cannes 2018, teve até ao momento em todo mundo poucas projecções e continua a reflexão do realizador sobre o cinema e o estado do mundo. É de referir que em 1968 – a ano fronteira na história das mudanças sociais e políticas em Paris que inflamou o mundo moderno – Jean-Luc Godard com François Truffaut, Polanski, Milos Formam, impediram a abertura do Festival que nesse ano foi cancelado. Talvez a prova de que o cineasta é também um performativo, o grande performativo, diga-se na arte contemporânea. Na sessão completamente esgotada, vi o filme sentado nas escadas , seguiu-se com continuado interesse o filme guerrilha, trabalho de montagem, sobreposição de imagens e sons, que o como o próprio filme explicita é construído com “Textos, Filmes, Quadros, Música, Todos Eles”. “O elenco inclui títulos de livros, escritos, filmes, pinturas, músicas, canções, fotografias, autores, um motor de busca. Em off, continua a ouvir-se Godard. A última afirmação é “e mesmo que nada tivesse sido cumprido como nós havíamos esperado isso em nada alteraria as nossas esperanças” [1]. São muitos os filmes neste filme, o que não é surpreende num cineasta cujo trabalho assenta na citação, na auto-citação, no cinema como matéria do próprio cinema, que de forma radical assume a frase Elian Kazan, “o cinema é a fala do mundo” e a asserção de André Bazin quando afirma que o“ cinema é uma arte impura” . O que faz JLG na sua mesa de montagem, como cria, organiza a produção de sentido nas suas mais recentes obras? “às imagens satura, pinta, queima, imprime outro ritmo, retoma, sobrepõe, dilata, comprime, interrompe. Sacode, até bruscamente, fazendo saltar os formatos de imagem. Aos sons sacode, a mesma brusquidão nas passagens de uma a outra pista da banda, desregula no volume, vozes ora sussurradas, ora baixas, ora altas, ora para se ouvirem em grande plano, ora para se ouvirem em plano de fundo, ora um ora duas ora uma em duas a fôlegos diferentes. E interrompe, entrecorta com silêncios momentâneos mas recorrentes, fá-las conviver com sons docemente musicais ou estridentes como bombas. [2]“ São muitos os filme citados; Jonhy Guitar, Le Petit Soldat, Young Mr. Lincoln, Le Mépris,Eisenstein, Ophuls, outros, vários, todos convocados retrabalhados, misturados com outros textos em outras sequencias produzindo novos sentidos novas reflexões. O filme estrutura-se em cinco partes, como cinco são os dedos da mão, e como a mão pode e é, afirma-o Godard, o único território da liberdade e morte do homem. Importa referir que a Guerra, o sangue, a luta, a violência percorre todo este “Livre D´Image”, a guerra está aí, é dito várias vezes, não vão os espíritos mais adormecidos acordarem em sobressalto e sem aviso prévio. A parte 1, chama-lhe “Remakes”, e em variações Rima(s)kes. A parte 2, “As Noites de São Petersburgo”, título do romance de 1821 de Joseph de Maistre. A parte 3, tem como titulação “Estas flores em carris ao vento confuso das imagens” do livro da Pobreza e da Morte de Rilke. A quarta – “O Espírito das Leis”. Tratado político de Montesquieu em 1748 (a capa da edição francesa surge num dos planos). E a quinta , chama-lhe “Região Central” centrado não sobre a região desértica do Canadá como no filme de Michael Snow, mas centrado na Arábia, petróleo e dominação, a parelha com que se tem constituído o mundo no séc. XX e ainda , em grande parte, no séc. XXI. https://www.youtube.com/watch?time_continue=22&v=t2QU_P5ubjw [1] Folha de sala da Cinemateca / texto assinado por Maria João Madeira [2] Folha de sala da Cinemateca / texto assinado por Maria João Madeira