Ardem as línguas

 

01/09/2018

Colava-se na sua testa, estreita mas com sobreloja, uma inteira colecção de selos, talvez os das aves de Moçambique, estampados em… (fosse o meu sogro vivo e eu despacharia esta data com a limpeza de quem lava os olhos no copo do oftalmologista).

Infelizmente para ele, mais valia estar à la page, a sua testa voraz – os olhos sumiam-se abaixo da metade do crânio – curva-se em altitude como os ovos, numa indesmentível aproximação à redondez vilipendiada pelos partidários da terra plana; fanáticos que não enxergam que só em espelhos ovais sobressairão as cabeças quadradas, e mesmo aí raramente, exprimindo casos particulares que não chegam a neutralizar a sensação das cabeças serem primordialmente esféricas como Gaia, como as cerejas, como as prenhuras e as líchias; aliás como o plano de corte de uma veia: imperativo da agulha, dizem.

Mas falava da criatura que à minha frente rói até ao tutano a galinha e mexe os maxilares num crânio assustadoramente estreito – ah, Giacommeti, envia-me a tua morada e vais desmaiar de inveja! – e tão oblongo, que consegue ser a sua própria figuração.

E mesmo quando na sua testa se esplendem as luzes do tecto a sua luz natural cria outras linhas e cores no ébano, como se eclodissem desse planisfério ovóide as ostras do tempo.

04/09/2018

O que ressalta da negligência a que foi votado o Museu Nacional do Rio de Janeiro e que levou ao incêndio que o destruiu é a constatação de que chamar país ao Brasil é uma calúnia. Como aliás se podia dizer o mesmo depois dos desastres de Pedrogão e de Monchique, em Portugal.

Enviou-me o Luís Carlos Patraquim o email de um poeta do Rio, e amigo comum, o Alexei Bueno, que dá a dimensão trágica do ocorrido:

«Muito obrigado Reinaldo,
chorei muito ontem, passei inúmeros dias da minha infância nesse museu, lá levei meu filho, e assim por diante. Além do que era visto, pouca gente avalia o valor do que não estava exposto, era o que havia de mais importante no Brasil, seguido pela Biblioteca Nacional. Além da coleção egípcia, na verdade a maior do Hemisfério Sul, e da coleção grega – da Magna Grécia -, etrusca e romana da Imperatriz Teresa Cristina (que era de Nápoles), lá estava guardada toda a história de etnologia e arqueologia brasileiras, as urnas marajoaras e tapajônicas, os fósseis, a Coleção da Comissão Rondon e a Coleção Roquette-Pinto (filmes, fotos, registros sonoros, não sei se algo foi copiado), os papéis do Curt Nimuendaju (um alemão que foi o maior etnólogo do Brasil), a magnífica coleção de taxidermia (quantos taxidermistas deve haver hoje, e com aquela qualidade?), os fósseis, os ossos de dinossauros, a sala do trono, onde havia a célebre cerimônia do beija-mão, milhares de peças de tribos já extintas, um trono que o rei do Daomé deu para D. João VI em 1811, sem similar nem no Quai Branly, tudo destruído. Duzentos anos de coleta, escavações e estudos etnológicos dum país que tem o quarto território contínuo do mundo transformados em pó. Havia quatro vigias para um prédio de 13 mil m2, obviamente sem qualquer recurso, que viram o início do fogo e fugiram, os hidrantes sem água, etc… Exatamente 40 anos depois do incêndio do MAM. E tentavam conseguir vinte milhões (quatro milhões de euros!!!) para o prédio! Mais do que o dobro disso havia no apartamento de Geddel Viera Lima, um deputado corrupto, em Salvador. Gastaram dois bilhões para demolir e adulterar o Maracanã, uma construção classificada federalmente, e queriam resolver o problema dum prédio daquele tamanho e mais do que bicentenário com vinte milhões!!! Nem o interior do prédio conseguirão recuperar, todos os pisos originais, com as imensas tábuas de velhas madeiras brasileiras hoje indisponíveis, os tetos estucados e pintados… Não há o que falar.
Um grande abraço, extensivo aos amigos.»

E estes são apenas os incêndios visíveis.
Ocorre o desastre ao mesmo tempo em que um candidato às eleições brasileiras, o inefável Bolsonaro, num comício, simula uma metralhadora e diz o que fará aos do PT, caso ganhe, sem que qualquer Comissão Nacional de Eleições o torne imediatamente ilegível.

Há algo de profundamente corrosivo nos tecidos da vida activa dos países de língua portuguesa, como se padecessem de uma sintaxe infernal que atoleima os seus falantes e conecta os seus destinos às variações de um naufrágio repetitivo e sem remissão. Uma espécie de maldição de Naufrágio de Sepúlveda, reactualizada através de todos os elementos, formas e coordenadas, sendo executada em todas as dobras do tempo.
Respondia Hannah Arendt numa entrevista, sobre ter continuado a praticar o alemão a níveis mais profundos, depois de ter enfrentado os horrores do Holocausto. “Mesmo nos tempos mais amargos?”, pergunta o entrevistador. E responde ela: “Eu interrogava-me: o que fazer? De qualquer maneira não foi a língua alemã que enlouqueceu!”. Já Derrida, num livro muito interessante, O Monolinguismo do Outro, levanta a suspeita de que as línguas possam enlouquecer e contaminar com a sua demência as comunidades que as usam, e até as instituições.

Se olharmos para o que se passa no Brasil e em Moçambique, países numa combustão descontrolada, e os impasses em Portugal, Guiné e Angola, é difícil não concluirmos que seria difícil correr pior e como a inaptidão de cooperar e de operacionalizarmos algo de útil, sistémico, e de mútuo interesse, deixa cada país sozinho com as suas orgulhosas infeções internas. Há uma subcutânea maldade nesta incapacidade para, em todos os quadrantes, ultrapassar os irreais; nesta irresponsabilidade com que deixamos arder os valores e a cultura; nesta desagregação de vínculos, que prefere o egoísmo da má consciência à mutualidade de uma comunidade de língua que pudesse ser melhor em conjunto e erguer um carácter que relevasse por sobre os defeitos individuais.

Não somos capazes. Será preciso deixar arder a língua, para darmos conta de que urge uma terapia?

 

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários