O afogado mais formoso

[dropcap style=’circle’]O[/dropcap]ntem, 7 de Setembro, estive prestes a afogar-me na praia do Tofo, em Inhambane. Havia um fundão e muito vento e marés em redemoinho e nas minhas costas o meu amigo (que nada muito melhor que eu) foi ao fundo por duas vezes antes de desenvencilhar-se, enquanto eu patinava no turbilhão, sem quaisquer resultados à vista.

Rapidamente fiquei ofegante; era batido por ondas desencontradas e já me faltava o fôlego para gritar. Piorou porque o tentáculo ácido de uma garrafa azul se enrolou no meu braço, lacerando-o; à sensação de que aquela massa de águas furibundas era superior às minhas forças juntou-se a dor e aí comecei a entrar em pânico.

Sentia-me um idiota a apagar-se a trinta metros da praia. E vi a minha mulher a sair da água com a minha filha mais nova, ambas pálidas, mais magras do que me recordava, como se um susto as alfinetasse – percebi que se tinham safado a custo. Ainda lhes acenei, mas não me viram no âmago do meu inferno.

Há um momento em que as perspectivas se invertem: o céu fica em baixo e a água em cima. E o peso daquela abóbada densa e líquida ameaça desabar sobre nós: é quando se deflagrou o sentimento de iminência. Aí sentimos o Opaco de que fala Michaux, a propósito da mãe a caminho da morte: a água deixa de ser fria, é apenas uma grande massa glacial, de algodão, que nos atravessa, poro a poro. Um cansaço geriátrico drenava o meu corpo, varrido pela inabalável densidade das águas. Num último assomo de espírito resolvi inverter de novo as perspectivas, pôr-me a boiar e deixar-me arrastar.

O coração explodia-me no céu da boca quando o nadador-salvador veio pelas minhas costas, a reboque de uma prancha. Não o vi chegar, tomo-o agora por um anjo no sentido que lhe deu García Márquez: o anjo é a única criatura do universo que não tem consciência do seu acontecimento.

A caminho da praia quase desfaleci por uma súbita baixa de tensão e ele teve de me segurar. Enfim, um descalabro que durou cinco minutos mas que nos faz perceber a fragilidade que nos tolera, a nossa profunda inaptidão.

Escrevo no dia seguinte, oito; voltei a entrar na água sem vacilar, para depois recuar porque fiquei com palpitações cardíacas. Retirei-me para a esplanada, onde releio o Justine, de Durrell, e penso como seremos sempre estranhos à vida e não íntimos dela.

E eis que tropeço nesta passagem lancinante: «a indiferença das forças naturais para com o mundo da Arte – uma indiferença que eu começo a partilhar. No final de contas, que interesse tem para Melissa uma bonita metáfora, quando se encontra agora profundamente enterrada, como uma múmia, na areia tépida e sombria do negro estuário?»

Acode-me então o belíssimo conto do Garcia Márquez O Afogado Mais Formoso do Mundo.

Conta-se nele que, num dia luminoso, se avistou um afogado no mar, do alto da falésia onde se incrusta a aldeia. Os homens desceram até à praia para recuperar das águas o infortunado.

Está tão coberto de algas, musgos, lapas, escamas e restos de conchas, que é irreconhecível. E a aldeia manda emissários às aldeias próximas para sondar se alguém desapareceu por lá. Ninguém reclama o corpo. Resolvem limpá-lo, querem ver-lhe os traços antes de lhe darem um enterro condigno.

Quando o seu rosto aparece a nu, é uma visão que espanta. É claramente o afogado mais formoso do mundo. É tão formoso que resolvem mudar as genealogias na aldeia para cada família ficar ligada àquele antepassado, porque todos querem fazer parte do lampejo da sua memória.

Até isso me seria roubado, no meu afogamento. Não me coube tal formosura. Nem como afogados há direitos que possamos reclamar, tudo depende das circunstâncias.

Para Dostoievski que só a beleza salvaria o mundo. Não sei se ele tem razão. Mas no meu caso funciona – depois de algo tremendo que me tenha acontecido costumo recuperar por via de algo que porte uma significação especial, por um fogacho de beleza.

Talvez por isso, enquanto lia Durrell, desceu sobre mim este poema, que dedico aos meus amigos:

«O coração tem uma pálpebra fechada/ parece uma capa viscosa e plúmbea/até que o amor o visita/ e então ela abre-se afogando o mundo/ com a fragância dos limoeiros. // Aí um fragmento de canção/ vivificou o teu silêncio. /E repetes, repetes aquele acorde/ por se assemelhar ao relento/ dos seus lábios quando sobre/ o teu corpo espalhavam a cal viva.//

Não confundas a carne acordada/ com a tua sombra, só na dela/ se refaz a luz, só na dela/ se apraz o teu ligeiro embaraço./ Olhas da esplanada a baía –/ lembra uma melancia/ pois já o poente vos abraça.//

Ela lê o Auster, tu manténs os dedos/ entrecruzados, em vigília, esperas/ que uma palavra se solte no ecrã/ do laptop, vibrante como o urso/ que acabou de despertar do longo inverno.//

Desde que se conheceram nunca mais/ cerraram as persianas (omito aquela tarde/ do ciclone em que até as oleosas varejeiras/ do porto se colavam às janelas,/ aí na respiração do medo correram//

as persianas) para que o perfume/ dos limões nos terraços da cidade/ vos reponha os cambiantes/ que trouxeram à doce anarquia/ dos vossos corpos nus um valor:/ ouro, fósforo, magnésio,//

todos os credos que consolam/ a nossa vida portátil e breve/ por ser sempre tarde o armistício,/ de ser sempre maior a sede/ que o golfo do desejo recíproco.//

Olho-vos e narrador me confesso:/ invejo-vos, na curva do seu braço/ que envolve o teu, no vosso riso/ na escolha de um postal, ao balcão,/ da imagem justa, invejo-vos/ na felicidade intocável de quem ainda/ não foi corrompido por segredos:/ a pálpebra aberta no seu máximo esplendor. »

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