Ars moriendi

[dropcap]U[/dropcap]m produtor americano, depois de visionar o material da primeira semana de rodagem, levou as mãos à cabeça, impotente, e disse ao realizador: “Nos primeiros cinco minutos dás-nos dezanove mortos. Não vejo o que possa acontecer mais no resto do filme!”

O número de armas que pululam nos filmes extenua o folego de qualquer maratonista etíope. Ninguém dissuade ninguém, atirando-lhe à mona a Suma Teológica do S. Tomás de Aquino, é de balázio para cima, e ficamos convencidos do que me dizia o Gilinho, amigo do meu prédio de infância: “só matam as balas que não querem enferrujar!”

Faço zapping e colecciono os mortos: uma doçaria excelsa, é um verdadeiro “mil-mortes” com uma barra de diabetes por cima.

Nem persuasão, nem perdão: ninguém ouve o Unchain my Heart, do Joe Cocker? Quando muito a morte adia-se pagando, sendo a vida outro modo de designar o juro – sempre a acumular.

O que afinal não difere do modo platónico de encarar o corpo como o túmulo da alma; o cinema devolveu-nos ao ponto de onde nunca saímos. Admira que o Sloterdijk nos esclareça que, para esta tradição, pensador que se preze é uma espécie de morto em férias? É bem-apanhado e próximo do que dizia o Godard quando adiantava que o cinema é o aparato que “filma a morte no trabalho”.

Uma morta em férias: a mulher de Michel Piccolli, no fantástico Dillinger Morreu, do Marco Ferreri, que exasperava os espectadores por ser todo em tempos reais. Era assim:

Glauco, um desenhador industrial, chega a casa e encontra a sua mulher já a dormir e uma refeição fria. Resolve confeccionar qualquer coisa e comer sozinho, vendo a televisão. Depois projecta vários filmes de férias e mima idiotamente alguns momentos. Por acaso, encontra na dispensa um revólver embrulhado numa velha reportagem sobre a morte do gansgster americano Dillinger. Pinta a arma de vermelho com bolinhas brancas. Depois da tinta secar sobe ao quarto, mete uma almofada sobre o rosto da mulher e dispara dois tiros. Sai, guia até ao porto e vê que num iate um marinheiro morto é lançado à água. Nada então até ao iate e pergunta quem morreu, respondem-lhe que o cozinheiro e ele oferece-se para ocupar o lugar.
Volto a fazer zapping. Para o cinema mais comercial, que encharca os canais do meu pacote televisivo, a vida é uma retrete abandonada, um epitáfio inacabado.

Conheço um livro brilhante de epitáfios dum poeta italiano, Giorgio Bassani, Epitafio, talvez na esteira do americano Edgar Lee Masters, mas preferia o livro do transalpino, que infelizmente extraviei. Há pouco tempo também escrevi um epitáfio. Reza assim (o verbo não podia ser mais justo):
“Meu querido, enquanto não me enviares os teus pulmões em encomenda registada eu não abro mão da tua laje no jazigo da família!”.

Deve-se a outro poeta, o checo Miroslav Holub, esta Breve reflexão sobre a morte: «Agitam-se alguns/ como se ainda não tivessem nascido./ Entretanto um dia/ Williams Burroughs, intimado por um estudante a dar/ opinião sobre uma/ eventual vida póstuma, replicou:/ – Mas quem lhe disse que você não está já morto?»
Holub foi um poeta e eminente imunologista checo, a quem a especialidade não resguardou da crua pergunta de Burroughs, feita pela própria morte em 1998.

Sugere o poema que estamos sempre desconectados, num estado de extenso sonambulismo, e pouco nos é dado fazer, para além de nos agitarmos demais ou de colocarmos perguntas desnecessárias, ie., rebarbativas: póstumas. Talvez consigamos aceder momentaneamente à consciência que nos cede o poema, num breve interregno, ao flagrante de uma sintonia, mas estou certo de que Holub, ainda para mais com a sua especialidade, não declinou num assédio de consciência: terá sido mais à má fila, por um efeito adverso, que a morte o visitou.

Há várias formas de partir da vida e de chegar ao último apeadeiro. Vitorino Nemésio no hospital, conta-se, tinha um medo que se pelava.

Para os indianos a morte é apenas o lambril de um palácio cuja planta está por desenhar.

Desconsidero-me um arquitecto a tal altura. E seria preciso a energia de imaginar a experiência da morte multiplicada por éne, labirinto em que me vejo mais escamado do que a barracuda na banca de Neptuno.
Contento-me com uma morte que o poeta moçambicano Heliodoro Baptista definiu bem, deste modo: “Antes da merda obnóxia me exaurir de todo”.

Todavia, reconheço-o, surpreendem-se várias faces para a morte, como esta que achei nos meus diários:
«O livro olhava para mim, da estante. Bebi o café e comi a torrada, repimpado na cama, mas o livro não desarmava. Fitava-me, de esguelha (ou de lombada), na estante. Depois da última golada de café decidi-me, fui buscá-lo. Uma antologia (em espanhol) alentada do poeta polaco Tadeus Rózewicz, nascido em 1921 e uma das vozes mais autênticas da “anti-poesia” universal. Como o chileno Nicanor Parra, ou, das Balcãs, Vasko Popa.

Abro o livro ao calha e sai-me isto:

CORREÇÃO/ A morte não corrigirá/ nem uma linha de um verso/ não é uma correctora/ não é uma benevolente/ redactora// uma má metáfora é imortal//o mau poeta que morreu/ é um mau poeta morto// o aborrecido trás a morte aborrece/ o estúpido vomita cretinices/ desde a própria tumba.
Estupidificado na própria cama, abala-me o susto. Uma má metáfora é imortal. De quantas já fui responsável, de quantos milhares? Imortal? Como os vírus, afinal?

Há uma ecologia para o verbo a que de facto não ligamos. Devíamos ser mais parcos, posto que na verdade não ressuscitaremos para corrigir qualquer coisinha, enquanto o ranço das más metáforas é imortal.
Alguém tem por aí um aparador de relva que me empreste?»

Aparador não tenho, mas tenho à mão este verso do Heliodoro: “Já alguém deu de comer ao vento?”. Refrigeração.

22 Nov 2018

Afinal está tudo na net

[dropcap]U[/dropcap]ma vez passeava de barco num dos canais da cidade de Utreque e, a alguns metros de mim, percebi que dois barcos iriam inevitavelmente colidir. A velocidade e a direcção em que ambas as embarcações seguiam tornava inevitável o choque. E aconteceu. No entanto, durante aqueles breves instantes que antecederam o embate, fui invadido pela conhecida sensação de quem não consegue acreditar no que está a ver. Foi como se agora desse com Theresa May encostada à nespereira do meu pátio a fumar erva.

Para acreditar não basta que as coisas possam ter ou não sentido, é necessário sobretudo que quem acredita sinta na mão o leme que não é o seu e o articule com o desejo. Isto é, quando acredito, desdobro-me (no ‘outro’ ou em ‘outrem’) e logo regresso ao meu próprio encontro. Um ‘boomerang’ que decorre num ápice, a maior parte das vezes de modo involuntário. Naquele dia, em Utreque, eu não consegui rever-me na quilha das embarcações que iriam embater entre si e o meu desejo, parece, estava longe de acompanhar o arroubo do contratempo.

As propósito destes vaivéns, verdadeiros anjos da guarda que nos colam ou descolam da vida, soube, na passada semana, de um caso particularmente interessante: uma amiga minha recebeu em casa um livro de poesia acabadinho de vir da gráfica e o filho, com doze anos de idade, agarrou no livro, folheou-o de ponta a ponta e inquiriu: “Ó mãe, foste mesmo tu que escreveste isto, ou viste na net?”. O rapaz também não queria acreditar na colisão de Utreque e muito menos na desenxabida aparição de Theresa May.

Aproveitemos a concordância para permanecer em Utreque, cidade a que costumava chegar de comboio, todas as manhãs, durante alguns anos. Relembro ainda que a palavra holandesa “beeldenstorm” significa literalmente “tempestade de imagens”, mas, na realidade, é utilizada no dia-a-dia para designar a guerra contra as imagens que começou em 1566 e que se estendeu à região de Utreque no verão de 1580. A revolta levou o poder protestante a cortar cabeças de santos em diversas esculturas da catedral do Dom. Uma iconoclastia anti-católica que deixa ainda hoje à mostra, na capela Van Arkel, superfícies rasas e brancas por cima dos pescoços das imagens. A primeira vez que vi aquelas decapitações nem queria acreditar. Eu estava como o rapaz de doze anos, que se chama Duarte, mas sem qualquer net para poder atribuir a autoria de tais sórdidos actos.

Os iconoclastas daqueles tempos praticavam actos à talibã, porque a coisa rimava com fé. Uma pessoa, quando crê, não se imagina a desdobrar-se ou a desejar seja lá o que for; apenas disfere, dispara, investe. Nem interessa em que direcção, pois, de um lado, o mundo é negro e do outro torna-se logo redentor. Coisa perigosa. Crer é bem distinto de acreditar, acreditem-me. Se não vejamos: no início deste ano, num famoso museu de Manchester, a direcção achou por bem retirar da exposição um quadro de William Waterhouse, intitulado ‘Hilas e as Ninfas’ (1896). O ‘pecado’, aparentemente, não se baseava em questões de fé, nem teria resultado da faina de possíveis plágios. O que estava em causa era a “forma decorativa passiva” com que as mulheres haviam sido registadas pelo pintor vitoriano (que deveria sofrer de patologia contemplativa). Para que não se pensasse que o arrojo pudesse ter conotações de crença talibã, a curadoria do museu comunicou publicamente a iniciativa iconoclasta como se fosse, ela mesma, uma obra de arte. Eu nem queria acreditar e fiquei com dúvidas, se foi o curador que teve a ideia, ou se ‘viu aquilo na net’.

Entendamo-nos: “ver na net” quer dizer, no nosso tempo, bem mais do que copiar ou do que cumprir uma simples moda ou ensinamento. “Ver na net” significa essencialmente viver, respirar e até acreditar. Num caso limite, implicará “crer”, separar, disferir. “Ver na net” é imitar tendências e fazê-lo cegamente e em fluxo: repetir, reverberar, reiniciar. A perífrase “Ver na net” estará mais em linha com um certo modo de rectifcar o mundo, tornando-o mais ‘correcto’. Como se fosse um imenso shopping digital em que tudo se expõe de uma maneira formatada, precisa, higiénica.

Há uma proto-ideologia em crescimento no planeta, de que um pós-‘millenial’ como o Duarte dá conta que nem peixe na água, que nos diz que as embarcações de Utreque vão mesmo embater uma na outra. Iremos ainda, um dia destes, ver quadros de Picasso retirados dos museus, azulejos taurinos recolhidos das estações da CP e pinturas de batalhas famosas irradiadas dos salões. Iremos ainda ver um mundo sem autoria seja de quem for, mas todo ele esquematizado, denunciado e sem qualquer ironia (com excepção para aquela menina que faz os anúncios da Trivago).

As mãos que arrasaram as esculturas de Gerrit Splintersz na catedral de Utreque e as mãos que privaram um museu de Manchester do quadro de William Waterhouse têm em comum um ideal de pureza. Mas uma pureza que exclui a conhecida sensação de não conseguir acreditar no que se está a ver. Banhados por esse brilho de pureza, ver torna-se sinónimo de crer. Coisa perigosa. Quer no devir protestante, quer no devir da correcção ‘millenial’, a realidade é uma plasticina criada pela re-arrumação permanente de bits (antes designados através do fogoso ímpeto do ‘espírito santo’).

E já se sabe que, no tempo digital, uma simples imagem numérica, não analógica, livre de referentes e apenas subordinada à linguagem que a gera, decompõe ou programa… pode fazer de cada um de nós um iconoclasta em potência, ou até, no limite, um internauta com claras inclinações talibãs. Afinal de contas, o Duarte tinha razão: está tudo na net.

22 Nov 2018

Direito à diletância

Elegance against ignorance
Difference against indifference
Wit against shit
Middle-class heroes, The Divine Comedy

 

[dropcap]D[/dropcap]esconfio de tempos com demasiadas bandeiras, épocas em que tudo é passível de ser interpretado como uma posição entrincheirada. Apesar de mim esse é o tempo em que vivo agora e mesmo não gostando tenho como mínima obrigação de sobrevivência aprender a lidar com isso. Mas é difícil. Tento, com denodo, aplicar a ironia, o sarcasmo, a auto-depreciação para temperar conversas inflamadas em que não existe debate – apenas combate. Habituado à nuvem da diletância – que insisto em confundir com liberdade – percebo que o humor é muitas vezes mal vindo numa discussão informal em que sempre parece estar em causa o futuro do universo. Cansa, garanto-vos.

Talvez a culpa – se é de culpa de que se está a falar, e duvido – seja minha. Desde cedo alimentado com Oscar Wilde aprendi que só o supérfluo pode ser essencial. Que muitas vezes é no paradoxo que reside a verdade e que mesmo esta última é uma entidade mítica e por vezes demasiado vulnerável. Há quem tenha ambições mais grandiosas e certamente mais perenes do que a minha, que é a de servir um aforismo decente ou uma frase com piada numa mesa ao jantar. Sei do mundo e é provável que o mundo me conheça; apenas não consigo levar ninguém muito a sério, a começar por mim. E, caro leitor, nos dias de hoje esta posição é tudo menos popular.

Pior: é perseguida. Num tempo de neo- literais – os que acreditam cegamente no que vêem e lêem sem questionar seja o que for, não admitindo qualquer tipo de polissemia – o humor ou a desmistificação da seriedade (o que provavelmente é a mesma coisa) é visto quase como um crime, um desinteresse maligno sobre os Grandes Temas Que Nos Regem E Que Normalmente Aparecem No Facebook. Não é que este clima seja novo: a auto-ironia ou a busca de uma forma perfeita para transmitir um conteúdo sempre foi vista como uma atitude distanciada e menor face à suposta militância que seria essencial para resolver os problemas da Humanidade. Ai do filósofo, académico, crítico de arte e etc. que se atreva a escrever longe do jargão a que está preso e que não mostre uma inegável vontade de deixar uma “mensagem” – é um diletante, alguém que não pensa nem leva a sério o que diz. Hoje, moralistas da envergadura de um Chesterton, Bernard Shaw ou Voltaire tendem a estar condenados à reserva dos engraçadinhos de serviço, gente com meras frases ornamentais que ficam bem mas não servem para nada.

Uma sociedade que tem vindo a matar a ironia e a diletância é uma sociedade perigosa. É a que recusa a inteligência e a voz do outro em favor de uma literalidade contínua e sujeita a uma ortodoxia feroz. É o que está a acontecer, sob vários nomes. O célebre “politicamente correcto” pode ser um deles (e um dia voltaremos a falar sobre isso) mas não é o único. Prefere-se agora a politização da arte à arte da política. É o triunfo dos neo-literais. Combata-se, entre outras formas, com o garantir do direito à diletância.

21 Nov 2018

Entre nuvem e deserto

EL Corte Inglés, Lisboa, 9 Novembro

[dropcap]U[/dropcap]m dos objectos mais quotidianos acontece ser a conversa. Desatentos, não damos pelas palavras a explodirem ao nosso redor, demasiado perto apesar de alheias, a ecoarem autónomas do seu sentido, a despertarem indignações, quase sempre caladas, mas também as do comércio do espírito, soltas da nossa boca por receio do silêncio, para atapetar a urbanidade. Mas conversa séria acontece para além das palavras.

O modo como são ditas, como o corpo as interpreta, brinca com elas, gargalhando, repetindo, hesitando, sublinhando, sussurrando, provocando, acolhendo, sugerindo, comovendo, oferecem tanta informação como o resto, feito apenas ponto (e logo penso em Reinaldo Ferreira). «Mínimo sou,/ Mas quando ao Nada empresto/ A minha elementar realidade,/ O Nada é só o resto.» Recordo pouco, para defesa da razão, mas guardo como privilégio do que vou vivendo assinaláveis conversas, meros pontos que, no momento, fazem do resto pouco mais que nada. E ecoam. Acaba de acontecer com o António [Valdemar], esse portador da chama da memória que incendeia a minha mítica Lisboa. Encontramos sempre lugar onde encaixar figura, ou vice-versa. Pode ser um sátiro de Canto da Maia, uma passagem de Aquilino ou os olhos de Almada. Hoje passeámos bastante por Almada, o que quer Lisboa e o resto. As palavras, claro, mas sobretudo os olhos de ver ao longe. O que importa vai ficando dito pelo António. Preciso, para mim e para efeitos básicos de orientação, que me o António me faça, um destes dias, o mapa das famílias que há muito estendem redes, latitude e longitude, sobre este ponto de acostagem. Falo da cidade ou de cultura?

Santa Bárbara, Lisboa, 10 Novembro

Tons de amarelo, mais ou menos torrado pelo sol. Não há América do Sul (nem realismo, mais ou menos neo) sem torreira do sol. De que cor se veste a solidão? A adolescência acontece a Norte? «cem/ anos/ de solidão», minúsculas assim partidas em três linhas, a bold, a fazer cama para meio general ao baixo, quadriculado quase por inteiro, como se as mãos fossem medalhas, com muitas mãos por ser de baralho e, portanto, espelhado. À esquerda, quase a caber na altura da palavra «cem» lá aparece, cortando mais que o sabre do general: GABRIEL/ GARCIA/ MARQUEZ, maiúsculas assim partidas em três linhas. E o mundo mudou. O 13.º volume da preciosa colecção D (ed. Imprensa Nacional), do Jorge [Silva], anda por aí a mostrar fragmentos de Dorindo Carvalho (Lisboa, 1937). Muito trabalho de salvaguarda do património gráfico nacional acontece discretamente por aqui, dando atenção ao que a academia (quase) sempre despreza ou menoriza. Que importa o desenhador do logotipo da colecção Três abelhas, ou das capas dos Livros de Bolso Europa-América? Ou do logo da Assírio & Alvim bem como as capas ilustradas dos Cadernos Peninsulares dessa mesma editora? De que cor se veste a memória, amarelo-torrado?

Santa Bárbara, Lisboa, 11 Novembro

Vivi perto de Évora, nem cidade nem campo, lugar perdido do intermédio. Nunca antes havia experimentado o sol, mormente aquele que se faz entorno e nos sustém. Nunca antes tinha visto nuvens, sobretudo a diversidade que ora pasta no azul, ora vem prenhe de tempestade. Não longe, a Cartuxa de Évora, cujos muros nunca transpus. Tenho ideia que tentei, mas a memória esvai-se-me.

O duplo volume «Nuvem» (ed. Chili Com Carne), do Francisco Sousa Lobo, dedicado à Cartuxa, abriu-me espaços sobre a paisagem da inquietação, esse deserto. Um dos lados, com uma toada jazzística, de curtas e sucessivas aproximações, não apenas ao universo cartuxo, mas ao sagrado. O outro lado, que se chama «Deserto», funciona ora como prefácio, ora posfácio, à vontade do freguês, que para tanto ajuda o facto de serem dois volumes invertidos umbilicalmente colados pelas contracapas. O Francisco desenha com ponto de interrogação. Faz autobiografia, como a melhor da banda desenhada contemporânea, mas muito para além do recurso diarístico de episódios mundanos ou circunstanciais. Reflecte-se, no duplo sentido de se espelhar e de se pensar. E fá-lo combinando textos breves, simples, despojados, com uma estética minimal, a duas cores, na qual a criteriosa composição estética procura sublinhar não tanto a narrativa como o pensamento. Sim, temos uma banda desenhada de ensaio, que não se furta a questionar a própria linguagem que pratica. Mas são detalhes, se comparados com a rara atmosfera que do volume se solta, interpelações incluídas, algures entre nuvem e deserto.

Redes, Algures, 12 Novembro

Morreu Stan Lee (1922-2018), o inventor do pós-modernismo. O Umberto Eco percebeu antes de toda a gente, mas agora que o cinema vive da inesgotável máquina de produzir e questionar narrativa e heróis percebeu-se a realidade da fantasia. Ou melhor, a potência da narrativa gráfica. Este colosso da iconosfera foi pioneiro em dezenas de aspectos, mas, por estar tudo dito algures e me sentir nostálgico, vou apenas procurar os meus Spiderman, mais torrados que amarelos. Proponho apenas um quadradinho (algures na página), que, até por não ser apenas dele, afirma logo que esta linguagem resulta de singulares colaborações: entre palavra e imagem, gesto e reflexão, mas também entre criador e leitor. Conseguiu, por isso, atingir o âmago do humano, esse vértice das narrações. Stan Lee inventou a interactividade, ali nas páginas baratas das revistas que voavam abaixo do radar. Respondia às cartas dos leitores, pedia e aceitava sugestões, prolongava o fascínio tornando-o palpável. E no momento em que cada um dos adolescentes, perdido em mundo que os não entendia, sonhava em ser super-herói e assim resolver a enorme confusão da vida, Stan Lee cria o Homem-aranha, herói perdido na mais clássica das tragicomédias: que fazer com este destino? «Sai daí, não sejas empecilho do progresso.»

Almeida Garrett, Porto, 18 Novembro

Um dia a caminho de [Manuel António] Pina tinha que começar assim: o destino era o Porto, para o celebrar nos seus 75 anos. Ia com a inevitável companheira destas andanças e amizade, Inês [Fonseca Santos]. Chamei o táxi e a motorista, não tão comum no feminino, chamava-se Inês Santos. O gato sorriu-me, como só eles sabem, e segui. O Pina fez-se lugar, cada vez mais frequentado. Encontro-me sempre melhor em Pina, seja ele onde for. Antes de irmos à biblioteca tratar de «desimaginar o mundo», fomos comer ao Convívio e lá estava ele, modestamente iluminado em dia cinzento. As árvores tinham uma cor que não consegui investigar devidamente, entre outono e inverno, um trato por resolver entre a água e o frio. O Pina desconcertava muito. Oiço dizer que foi dos poetas que mais vestiu os versos de perguntas. Rio-me só de imaginar que alguém os andou a contar, aos versos. E aos gatos, sabidamente pontos de interrogação. A ideia de obra era-lhe estranha. E ter começado pelos livros para putos deve tê-lo afastado das ribaltas. E depois praticou o teatro e a crónica e a poesia (em bulas de medicamentos e outros papéis menores). Sem esquecer a conversa, arte maior. Até que choveu e se começou a reparar no Pina. Mas ele não ligava nenhuma. O Pina ligava às pessoas e aos gatos. E às palavras, mal se tornam desobedientes. Entrar no Pina, mesmo sem ser pela janela da amizade, era limpar os olhos. Sei lá com os restantes, os que fazem mundo, mas comigo mudou-me a maneira de ver os dias. Espanto-me mais, muito mais.

21 Nov 2018

Quando morre um grande escritor

[dropcap]N[/dropcap]a passada quinta-feira, morreu um grande escritor brasileiro, oriundo de Jaguarão, Rio Grande do Sul, na fronteira com o Uruguai. Aldyr Garcia Schlee morreu em sua casa, na cidade de Pelotas, a uma semana de completar 84 anos de idade e poucos dias depois de lançar o seu mais recente romance O Outro Lado, na Feira do Livro de Porto Alegre. Era considerado um dos grandes contistas brasileiros, embora estivesse sendo a ser lembrado pelo facto de aos 19 anos, em 1953, ter sido o autor da equipamento da selecção brasileira, a canarinha. A camisola verde-amarela desenhada por Schlee foi eleita num concurso organizado pelo jornal Correio da Manhã, após a derrota na final da Copa de 1950, para o Uruguai.

Aldyr Garcia Schlee teve grande reconhecimento como contista nos anos 80 do século passado, com os livros Contos de Sempre (1983) e Uma Terra Só (1984), mas depois foi aos poucos desaparecendo do mapa brasileiro, ficando cada vez mais restrito à sua terra natal, Jaguarão, e à sua terra de adopção Pelotas. Será já no início deste século que o artista plástico Alfredo Aquino inaugura uma editora em Porto Alegre, a ardotempo, e passa a editar novos livros de Schlee e a reeditar os antigos, fazendo reavivar a chama do escritor. Neste período escreve dois livros absolutamente memoráveis: Limites do Impossível – Contos Gardelianos (2009) e o romance sinfónico Don Frutos (2010).

Este meu texto, que é simultaneamente um elogio fúnebre e um encómio, deriva de ter privado com o escritor e de ter pelos seus livros, principalmente o seu Don Frutos – e também Limites do Impossível – uma admiração sem medida. Tentarei aqui reviver o escritor através do seu Don Frutos, de uma leitura desta obra magna.

A obra de Aldyr Garcia Schlee tende para o mundo todo. Traz a ambição humana de tocar o mundo todo e nessa ambição nos mostra esse humano, o humano universal, ontológico, enraizado numa terra de fronteira, como se por metáfora do que é a nossa vida, fronteira entre nada e coisa nenhuma, e ponte entre o mistério e o desconhecido. E uma das questões de fundo, primordiais de todo o projecto literário de Aldyr Garcia Schlee poderá ser expresso do seguinte modo: só irá permanecer aquilo que ficar escrito; só a palavra escrita se salva e, com sua salvação, a salvação das coisas (ou transformação delas). Veja-se o que está escrito à página 66: “(…) pois o que não estava escrito… não era! (…) Só fica o que está escrito no papel (era como se tivesse pensado; e pudesse dizer: o que está escrito acaba sendo a única verdade, mesmo que seja mentira; porque a memória não pode desmentir a verdade que tenha sido falsificada e que fica no papel; (…))” Aqui está o que leva o escritor em causa a escrever. Ele não escreve ficção, ele recria a realidade. Em verdade, ele cria a realidade, cria aquilo que aconteceu, ainda que nunca tenha acontecido. Só uma coisa interessa a Aldyr Garcia Schlee: reescrever os acontecimentos, isto é, remendar a história. Melhor: corrigir a história. O que aconteceu não importa, o que importa é o que deveria ou poderia ter acontecido. Escrever é criar o mundo.

Segundo Aristóteles, a diferença entre a história e a poesia é que a primeira debruça-se sobre o que aconteceu e a última sobre o que poderia ter acontecido. Assim, desde esse tempo Grego, a literatura trata do que poderia ter sido e não do que foi. Aqui, na obra de Schlee, não se trata de querer transformar a poesia em história, mas antes de mostrar que o carácter da história é, ele mesmo, poesia. Tudo o que é humano é palavra, e tudo o que é da palavra tende a ser poesia. Veja-se o que o autor escreve à página 302: “(…) este é um romance, sempre mais preocupado e comprometido com aquilo que terá talvez sido do que com aquilo que realmente foi (…)” Aldyr Garcia Schlee mostra-nos claramente, ao longo do livro, como meta-narrativa, a sua própria reflexão acerca do romance que escreve e, muito provavelmente, acerca do romance em geral.

O conceito de história é aqui, neste livro, permanentemente colocado em causa. Não no sentido de perguntar se existe ou não existe uma ciência da história, como se usa falar, mas no sentido em que essa mesma ciência da história é virada do avesso, como que para ver as linhas com que ela se cose. Que quer isto dizer? Quer dizer as fontes que se perdem ou se fizeram perder, a memória apagada, que se força a apagar, como por exemplo no caso do assunto Revolução Farroupilha em Jaguarão: “(…) seja aonde for, seja como for, aqui em Jaguarão ninguém fala às claras sobre a Revolução Farroupilha. É como se nada tivesse acontecido (…) O silêncio é quase total. Até mesmo os documentos oficiais se perderam; ninguém sabe nada, ninguém se recorda de nada (…)” E quantas Jaguarão e Revoluções Farroupilhas não existem nos tempos do mundo?!

Quantos buracos no tecido da ciência da história não existem, talvez até ao ponto de serem mais buracos que tecido?! Para não falar acerca daqueles que destroem documentos em prol do que querem que fique registado pela ciência da história; ou, a mais das vezes, apenas em seu próprio benefício, como, e uma vez mais, no caso de Jagurão, aqui referido: “Consta que por puro medo, Manuel [Manuel Gonçalves da Silva, irmão de Bento Gonçalves] levou para fora os livros e atas da Câmara, extraviando-os ou destruindo-os, perdendo-se com isso toda a história da vila, desde sua elevação, em 1833 a 1836 e até 1845, quando a luta acabou.” Também aqui, nesta violência para com os factos registados, encontramos o mundo repleto de exemplos. Jaguarão, aqui, representa uma vez mais o mundo e a violência cometida contra as obras dos homens.

No fundo, o que aqui está em causa é o seguinte: o instrumento da história é o mesmo instrumento da literatura, isto é, a palavra. A palavra é aquilo através da qual se faz história. Com a palavra se regista documentos, se relatam factos, se contam episódios passados. A mesma palavra que forja documentos, inventa factos, fabula episódios passados. Esta é a verdadeira questão que Aldyr Garcia Schlee quer que tenhamos bem presente, quando caminhamos pelas páginas do seu Don Frutos. Este lugar por onde caminhamos com nossos olhos e nossa consciência é feito de palavras. Quais as da História e quais as de Literatura? E quais as que dentro da História não são já elas Literatura? É isto que antes de mais temos de saber que Schlee nos mostra.

Mas a questão histórica só pode se tornar aqui uma questão literária, se existir consciência em relação a tudo isto. E esta consciência é-nos mostrada ao longo do livro em diversas passagens, como a que se citou anteriormente, acerca da Revolução Farroupilha, ou a que iremos ver de seguida: “Sabe-se, é verdade, que houve o capitão Fructuoso Rivera, filho de Rivera com Eusebia Pedernera, pai do comandante Fructuoso Rivera e avô do bisneto do General, o Coronel Fructuoso Rivera, que chegou perto dos nossos dias. Mas isso são cousas que a história registra e não precisam ser repetidas aqui.” Veja-se como a última frase sublinha a existência das várias camadas de história a que o livro nos remete.

É evidente que a questão mais pertinente, literária e epistemológica, diz respeito à confluência entre história e narrativa. Amiúde, a narrativa põe a noção de história a céu aberto. Veja-se as páginas acerca do coronel José Artigas: “Falo para que se veja que ainda existe um ancião oriental que pode dar testemunho de todo o ocorrido, que pode desmentir todas as inverdades, falsa ou maliciosamente propaladas contra Artigas.” O que aqui está em causa, e embora seja um problema que apareça ao longo de todo o livro, aqui neste capítulo XXIII ele atinge a sua pertinência máxima, a saber, o que é que a história vai registar. O que é que a história vai deixar como documento, acerca de um homem ou de um episódio, tendo ele vários lados. Já não estamos mais nos interrogando ou mostrando aquilo que é, também, de extrema importância para Schlee, a existência do que fica escrito em detrimento do que não fica, mas sim um passo adiante, isto é, o que é que leva alguém a escrever, por exemplo, que José Artigas foi El Protector de los Pueblos Libres, ao invés de um facínora ou traidor, como aparece descrito também neste capítulo? A questão assume uma pertinência ímpar, precisamente através da narrativa. A narrativa do romance, ao nos colocar de uma vez por todas no tempo em questão, sem distanciação, e nos mostrando as diversas falas, “em tempo real”, “ao vivo”, daqueles que viveram e sentiram na pele os actos de José Artiga, mostra-nos claramente que somos nós, leitores, que temos de optar pela escolha do que queremos que José Artiga seja, pois todos os argumentos apresentados são válidos e convincentes, quer seja pelo testemunho in loco, quer seja pelo conhecimento privilegiado, de bastidores, da politica da época. Assim, a narrativa, o modo como o romance é construído, é uma flecha na carne da ciência da história. Para a ciência da história, o que fica é o que serve os interesses de quem está no poder no momento em que esses “documentos” são escritos ou apresentados. Isto é de uma claridade assustadora, porque presente quase a cada instante, neste romance de Aldyr Garcia Schlee. É precisamente aqui que o autor mostra claramente qual é a sua guerra. A guerra dele não é à história, a ciência da história, mas ao poder que, a cada momento, a instaura como sendo “A” história. Neste sentido, o romance, ele todo, é uma guerra sem tréguas e sem quartel, levada a cabo pela poesia contra o poder injustificado da História. E entenda-se por poesia a literatura, a escrita que causa fascínio, que fascina, que encanta, que está do lado do que poderia ter acontecido.

Em momento algum podemos afirmar que há um ataque gratuito à história, à chamada ciência da história, até por que o próprio autor usa essa mesma história na edificação do seu assombroso livro. O problema da chamada ciência da história, no romance, concerne às fontes e não ao estudo. A saber, concerne à edificação dos documentos e não à busca dos mesmos e suas fontes. Veja-se, por exemplo a passagem à página 330, em que o ministro Lamas, ministro do império do Brasil, responde a Fructuoso Rivera, aquando do seu segundo desterro no Rio de Janeiro: “Devo assinalar-lhe minhas veementes suspeitas de que os documentos de prova que me há enviado estão adulterados.” Não importa aqui saber de qual documento se trata, nem das suas pretensas veracidade ou falsidade. Importa apenas mostrar que se trata, a mais das vezes, de uma decisão individual e de interesses políticos. E é isto que passará a ser considerado documento histórico. Temos também ao nível do privado (que quando se trata de figuras públicas e de interesse para a história de um país, não pode deixar de ser de interesse público) a divergência de acontecimentos relatados pelas cartas trocadas entre Rivera e Manuel Herrera y Obes. Diz assim, Rivera: “hei de mirrar os fatos, hei de provar com documentos; publicarei toda a correspondência oficial do governo do país e a correspondência oficial de todos os homens influentes da república, dos que vivem e dos que hão morrido (…)” Veja-se então agora a resposta, quatro dias depois, de Herrera y Obes, na resposta à citação que aqui se leu de Rivera: “(…) esses fatos que V. há inventado tão audaz como incrivelmente (…)” A história, ficamos cientes disso, é buscar, escavar no tempo, nos dados, nos documentos, e, na sua tese mais dura, numa possibilidade documental. A história é um discurso vivo que, tal como a literatura, dialoga consigo mesma e com seus intervenientes, seus estudiosos, pesquisadores, escritores. A história é de quem a lê e não de quem a faz.

Quem escreve a história, quem cataloga os documentos não faz parte da história, mas daquilo que antecede a história. Escrever é sempre um trazer à existência. Por seu lado, história enquanto ciência será sempre estudar, aprender o que alguém fez existir. Esta é distinção que Aldyr Garcia Schlee deixa bem claro em Don Frutos. Uma coisa é escrever, outra é aceitar o que foi escrito e se quis ver como autoridade. Autoridade, é sabido, é do autor. Neste sentido, seria fundamental, se não um estudo aprofundado ao tema, pelo menos um breve passagem, pela obra do português Fernão Mendes Pinto. Peregrinação é um livro do século XVI, que se pretende simultaneamente um livro de viagens e um livro de história, no sentido em que se trata de um documento dos lugares, das pessoas e do modo como os portugueses olhavam e agiam em relação aos povos e países do oriente longínquo. Há na obra de Fernão Mendes Pinto uma questão que é seguramente querida ao autor de Don Frutos: a credibilidade do que o autor português escreveu. Durante séculos, as atrocidades declaradas no livro foram consideradas invenções, mentiras do seu autor. Assim, e por causa disto, não é somente a credibilidade que é posta em causa, mas também o seu género literário. Caucionado pela ciência da história o livro passa a ser um documento histórico, sem essa caução passa a ser um romance. É esta distinção que arrepia Schlee, principalmente neste seu assombroso romance. Na sua génese, toda a ciência da história tem algo de romance e todo o romance tem na sua leitura algo de ciência da história. A palavra, que é a medida exacta do humano, não permite ciência exacta. Haja palavra, que deixa de haver ciência. A ciência, medida exacta do universo, da natureza, expressa-se em números e linhas. Onde há palavra, existe só e somente comunicação (dia a dia) e romance. Tudo o resto, por mais que se tente jogar números e linhas sobre a palavra, não passa de um romance em forma de teoria.

E assim não faz sentido nenhum falar de romance histórico quando se fala desta magna obra Don Frutos. Seria antes, se teimarmos em usar essa imagem, um romance anti-histórico. Sem dúvida, não podemos deixar de pensar o conceito de história em Don Frutos. Seria o mesmo que não pensar no conceito de fenomenologia em À La Recherces du Temps Perdu [Em Busca do Tempo Perdido], de Proust, ou no conceito de futuro em Das Schloss [O Castelo], de Kafka. História, o seu conceito, são as areias movediças onde o romance de Schlee avança e se afunda. Não porque seja um romance histórico, repito, mas porque rasga o sentido de história a cada capítulo, o sentido que temos por dado, por tacitamente aceite do que seja história. Não é um romance histórico, mas anti-histórico. Termino com uma citação da página 223, que nos soa agora como uma tremenda provocação por parte do autor: “Pena que este seja um romance e não seja um livro de História.”

Quando morre um grande escritor, morre um pouco a nossa língua e com ela o mundo. Cabe-nos a nós, leitores, ler e reler as páginas de Aldyr Garcia Schlee para que a perda não se faça sentir de modo insuportável.

20 Nov 2018

Make Portugal Great Again

[dropcap]P[/dropcap]ortugueses e portuguesas, trabalhadores e desempregados, ricos e pobres, irmãos e irmãs.

Passamos por um período histórico particularmente difícil. Leio o desespero na vossa cara, aqui e agora, mas também nas caras de tantos homens e mulheres que vejo todos os dias, a caminho dos seus empregos, vagueando na ilusão de terem um rumo para a vida. Como vocês, também eu fingi anos a fio perceber o mundo e o meu lugar nele. Como vocês, também eu pus uma máscara com a qual me apresentava, feliz e optimista, aos meus colegas de trabalho, à minha família, aos meus amigos. Mas, como vocês, também eu carregava no coração um peso ao qual não sabia dar nome ou cara. Um peso que me consumia todos os dias. Um peso que me fazia desejar o dia em que a morte, finalmente, me libertasse desta obrigação incompreensível de estar vivo. E, no entanto, como vocês, sorria.

Procurava atenuar este peso assistindo a programas de televisão. Vendo a bola com amigos. Bebendo e falando com amigos. As nossas conversas, como as vossas, iam sempre dar ao mesmo ponto, por muitas voltas que déssemos. Sentíamo-nos abandonados. Pelos políticos nos quais nos habituámos a votar vezes em conta. Pelos empresários que sempre disseram que a riqueza deles seria a nossa. Pelas pessoas a quem entregámos a nossa fidelidade e amizade à espera de que nos fossem recíprocas. Por aqueles que tinham poder sobre nós. E toda a gente parecia ter poder sobre nós.

Anos a fio assistimos a este desastre em câmara lenta: desemprego ou trabalho precário para quase todos, riqueza apenas para alguns; uma justiça para a classe média, outra para os ricos e impunidade para os marginais; suborno, corrupção, compadrio e gatunagem por parte daqueles que foram eleitos para cumprir a vontade do povo. Na verdade, só cumprem a pequeníssima e mesquinha vontade deles: da esquerda à direita, não passam de corruptos que compram votos e poder distribuindo o nosso dinheiro. Para eles, somos apenas os agrilhoados dóceis cuja manipulação se tornou tão fácil que já nem precisam de nos agradar aqui e ali. Habituaram-se à nossa passividade e à nossa complacência. Contam com elas. Alimentam-se delas.

Um dia, porém, depois de ter chegado ao fundo do poço da minha desgraça, estando vivo apenas de nome, sem nunca realmente o estar, vi claramente que o problema não era eu. Que, a despeito de tudo quanto nos repetem todos os dias como um mantra, não somos a areia na engrenagem do progresso desejado. Não somos nós os culpados pela baixa produtividade, pela criminalidade alarmante, pela corrupção nas empresas e no estado, pela imigração que nos tira o trabalho e nos desvirtua a paisagem social, pela fraqueza que acomete os braços e pernas deste povo que outrora conquistou um país aos árabes e deu mais de meio mundo ao mundo. Não somos nós. São eles. São eles que estatizaram a sociedade, que destruíram a família e o seu sentido, que impõem agendas marginais que apenas servem para fazer implodir a coesão social e disfarçar a cobardia que têm de tomar decisões verdadeiramente importantes. São eles que reescrevem a história para que nos envergonhemos dela ao invés de nos orgulharmos dela, são eles que manipulam a comunicação social e que impedem que a verdade veja a luz do dia nas páginas dos jornais, são eles que entregam o país e os portugueses que nele habitam à Europa, aos chineses das multinacionais e dos fundos de investimento, aos terroristas islâmicos que se aproveitam das nossas fronteiras abertas e nos colonizam às claras. São eles, são a cruz no boletim de voto, a cara no cartaz numa rotunda, as frases batidas que lhes ouvimos desde sempre como se fossem transmitidas hereditariamente. São os nossos políticos.

No Partido pela Verdade Democrática, não vos pedimos sequer para que votem em nós nas próximas eleições. Rogamo-vos, isso sim, que não votem naqueles que nos andam a enganar desde sempre. Votem em alguém que tenha como prioridade Portugal e o Povo Português. Votem em alguém que fale com vocês, que trabalham e contribuem, e não com os párias da sociedade que tantos nomes têm e nenhum benefício social trazem. Qualquer que ele seja e a despeito das mentiras e do medo que vos tentem influir. Votem na esperança. Precisamos de refazer esta sociedade e este destino. Precisamos cumprir Portugal.

19 Nov 2018

Viagem e deslocação 2

[dropcap]U[/dropcap]ma aula é um acontecimento musical. Deleuze dizia-o. Não é óbvio, mas uma aula não é uma sala de aula. Não são as peças de mobiliário que lá se encontram: várias filas de cadeiras e secretárias paralelas umas às outras, dispostas de tal maneira que o quadro ou o ecrã de projecção possam ser vistos- as cadeiras estão dispostas para quem lá se senta não dar as costas ao docente. Mas o que importa mesmo são as pessoas que lá se encontram: professor e alunos. É de um encontro que se trata, marcado a uma determinada hora, num dia da semana, numa dada sala. Todas estas determinações estão fixas para poderem repetir-se no tempo. Podemos assim perceber que não é o local onde uma aula tem lugar que é verdadeiramente importante. É, antes, o encontro. Ainda assim, o encontro não é compreensível como a presença simultânea de pessoas num mesmo local.

Os estudantes podem estar sentados no mesmo sítio e ao mesmo tempo em que o professor simultaneamente aí está presente, e, ainda assim, não haver nenhum encontro: não estarem uns com outros de modo a poderem encontrar-se. Dar uma aula e ter uma aula depende do ser a encontrar-se. Quem dá a aula deve ir ao encontro de quem tem uma aula e quem está a ter uma aula deve também ir ao encontro de quem está a dar uma aula, ao encontro do que está a ser explicado, explanado, desenvolvido. A possibilidade da aula não está no sítio nem no tempo, na sala, enquanto tal, mas no “evento”, no “processo”, no “acontecimento” dela.

Uma aula não pode pois ser descrita senão verbalmente: ter/dar ou estar a ter/dar, ter tido/ter dado ou vir a ter/vir a dar uma aula. O ser da aula é verbal. Embora digamos “aula”, não nos referimos ao sítio, nem à matéria dada na disciplina em particular ou ao nível do ensino, mas ao ser da própria aula, à sua duração qualitativa, ao que lá se passa, à interacção, simétrica ou não, entre pessoas.

A aula é um acontecimento musical, então. Há ritmos diferentes, para públicos diferentes. Há micro-associações de alunos que se perfilam. Não apenas por haver ritmos diferentes de aprendizagem, estados diferentes, etapas diferenciadas, em que os alunos encontram. Mas porque há interesses completamente diferentes e cada pessoa tem o seu interesse. O mais estranho é que nem sempre as pessoas sabem quais são os seus interesses. É a sessão particular ou os momentos particulares de uma sessão que despertam interesses nas pessoas, que poderão nem saber que podiam ser susceptíveis desses interesses.

O professor não deve apenas travar um solilóquio consigo, deve auscultar ao mesmo tempo que fala os ritmos de captação do que diz, os interesses que são despertos ou não. O que diz pode ser dito de muitas maneiras e pode não ter interesse nenhum, mas também esta falta de interesse tem de ser perseguida até à sua genealogia.
A aula dura no tempo. Começa já com o fim marcado. Começa depois de uma aula anterior, se não for a primeira do dia e antecede outra que se lhe seguirá, se não for a última do dia. Mas é sempre com os olhos postos no fim da aula como no fim de um concerto sem encore, que a aula decorre. Começa a partir do fim em contagem de crescente. É como se formalmente a aula estivesse sempre projectada do seu fim para o princípio, retrospectivamente do futuro para o presente, sempre a queimar etapas.

Uma aula tem um alinhamento, como se fosse um alinhamento de músicas. Tem partes, pode ser esboçada ao princípio no sumário em poucas linhas e em breves instantes. Pode ter assim um tema ou algumas frases que correspondem a refrões que têm de ser repetidos para reforçar a sua presença. A aula admite, talvez mesmo até, força a variações.

A aula tem um elemento de improvisação própria do jazz. As formulações vêm não se sabe de onde nem como, mas fica-se suspenso do que o professor diz, como o professor está em suspenso, na expectativa, do que vai dizer, sem pensar bem nisso. Mas acontece: o sentido abre o horizonte já com as palavras implícitas do que vai ser dito. É onde se chega e como se procura lá chegar o que importa. Não pode ser uma repetição da lição decorada. Mesmo confusa, a aula é o resultado pro-activo do que se quer dizer e explicar, mas sem bem se saber como se abre do futuro imediato ou mais ou menos mediato a dimensão do sentido que é perseguida e não repetida.

Tal como na música é a expectativa que domina a aula, o por onde ir, onde quer chegar, o ritmo, a melodia.

16 Nov 2018

Contém cenas eventualmente chocantes

[dropcap]E[/dropcap]ste filme deve ser bom, alvitrou com notória expectativa o cavalheiro ao meu lado. Aprontávamo-nos para ver “Irei como um cavalo louco” de Arrabal.

Como percebeu que os meus 16 anos partilhavam igual antecipação, o velho – assim viria depois a depreciá-lo – desbobinou glosas e avaliações sobre as fitas que desfrutara recentemente e pelas quais cotejava a crença que tinha neste. Já vi o “Emmanuelle”, muito bom, belos cenários, mulheres de gabarito. E o ”Último tango em Paris” assim pró esquisito, mas tem lá aquela cena da manteiga que é de estalo e a miúda deixa-se levar… Há-de ter evocado mais um ou outro com maior percentagem de humidade relativa, cujos suores frios não ficaram para a história.

Terei corado de horror – desencavara um pequeno-burguês reaccionário, alienado e pervertido, que consumia cinema sem temática e linha cultural, muito menos revolvente ou revolucionário, só para cevar os seus baixos instintos.

Arrabal iria vingar-me. Ao intervalo o gaiteiro levantou-se de pulo, muito arremelgado. “Mas que grande porcaria. Você está a perceber isto? Já não há quem nos proteja de barretes destes, é o que é.” E saiu. E com ele boa parte da sala, resmungando igual vexame.

Mencionar que “Irei como um cavalo louco” era uma crítica à sociedade de consumo, à perfídia do capitalismo, aos costumes burgueses, não o distinguirá em nada dos demais desse tempo. Revelar que as personagens deambulavam à reata da psicanálise tal como o enredo desatinava à vara larga do improviso também nada esclarece. Se na década anterior os filmes ainda presumiam ter princípio, meio e fim, mesmo que não por essa ordem segundo a chalaça de Jean-Luc Godard, nos anos 70 jogava-se às malvas enquanto retrógrada a narrativa linear. À época a transgressão era norma canónica e dela terá persistido, ainda hoje, um certo preconceito que subentende na manifesta inépcia subtis sintomas de génio.

Eu viera ali ter encomendado a uma rigorosa dieta de filmes estrambólicos – isso das artes cinematográficas e suas metafísicas, era doutrina que ainda não se havia popularizado. Baldava-me com justa causa às aulas para ir ver mirabolâncias na linhagem de “Week end” de Godard, “Teorema” de Pasolini, “O Silêncio” de Bergman, ou outra qualquer complicação deliciosamente inalcançável à minha verdura intelectual.

Fernando Arrabal tinha créditos firmados nas formas do happening, do tardo-surrealismo, na sátira e no absurdo como denúncia. Ou seja, dava-me garantias de que não iria entender nada do filme, o que era grande virtude. Da sessão terei saído satisfeito, mas hoje confio tratar-se de obra fruste e desengonçada. Se tão poucos recordam “Irei como um cavalo Louco” e quase nenhuns o marcam como influente, alguma insignificância lhe pode ser assacada.

A bem da honestidade convém referir que fundadas razões de queixa assistiam ao homenzinho. Ele fora ludibriado pelos cartazes que nas vitrinas do Satélite (incrustado no cinema Monumental – coisas já completamente demolidas e obliteradas…) faziam reclame ao filme, todos alardeando cenas de nudez e fluidos orgânicos.

Numa feliz coincidência astral os naturais distúrbios da minha adolescência foram contemporâneos do incandescente ano de 1975, muito mal fornecido de sensatez. Ora isto provocou uma reacção em cadeia. Numa idade propícia a esticar a corda para além das regiões limítrofes do senso-comum, a explorar e experimentar coisas invulgares, esgrouviadas, chocantes, eis que também a sociedade portuguesa se precipitou num delírio colectivo, ávida de absorver num trago tudo de que fora privada durante décadas. Por conseguinte, gozei de um insólito e singular privilégio que foi o de ser impelido, pela força das circunstâncias, a desdenhar o equador da conformação, a extrapolar os meridianos do gosto, a bolinar de viés aos ventos dominantes.

Festa e desacato formam casal e só idealistas e dogmáticos (também estas parentes próximos) exigem que se divorciem. Porque foi sôfrega, esta liberdade irrompeu na forma da radicalidade. E como arrefeceu com demasiada rapidez ficou uma substância amorfa no espírito dos saudosos desses tempos bíblicos. Mas muito haverá a ganhar se forem feitas orelhas moucas aos suspiros de quem se arraigou a nostalgias anacrónicas. Pois de tão exuberante período redime-se bastante proveito: uma vontade de transcender o pensar e o “viver habitualmente”; uma predisposição para superar os lugares-comuns que nos são dados como evidentes; e, o que costuma ser deveras incómodo para quem estiver por perto, um irreprimível desejo de contrariar.

Hoje deploro a petulância do rapazola que sentiu asco e sobranceria intelectual em face do pobre sujeito que ao cinema só pedira algum refrigério para a sua virilidade. Na verdade não estava ele mais baralhado do que eu.

16 Nov 2018

História da emigração chinesa

[dropcap]N[/dropcap]a História da China, o primeiro episódio a reportar uma emigração, não propriamente planeada, ocorreu cerca de 2500 a.n.E. durante a guerra entre as tribos de Huang Di e de Chi You, quando alguns barcos no Oceano Pacífico se perderam no nevoeiro e foram parar ao continente americano. Crê-se serem estes os antepassados dos índios americanos, tanto pelas feições como pelo calendário por eles usado corresponder ao antigo calendário chinês, cujo ciclo era de 52 anos. Também Xu Fu, nascido em 255 a.n.E. no Reino Qi, foi enviado por duas vezes pelo primeiro Imperador Qin Shihuang ao Mar do Leste à procura do elixir da imortalidade.

Na segunda vez, em 210 a.n.E., com ele partiram cinco mil pessoas, levando três mil rapazes e raparigas virgens, mas esta missão nunca regressou. Séculos depois, o monge Yichu escreveu sobre essa expedição referindo ter chegado ao Japão. Já na dinastia Han, os chineses com Chi You como Antepassado, os integrados no povo han foram enviados para a Península da Coreia e os que não aceitaram miscigenar-se colocados no Sul e Oeste das fronteiras do país. Se desde então a emigração se tornou normal para o Nordeste e Sudeste da Ásia, já na dinastia Tang e Song houve chineses a irem trabalhar e viver para a Ásia Central e Sul da Índia e no século XIII para a Birmânia, quando o Imperador mongol Kublai Khan a trouxe para a sua soberania.

Esse fluxo pela Ásia ganhou um novo incremento com a dinastia Ming e durante as viagens do Almirante Zheng He as colónias espalharam-se pelos portos onde se fizeram feitorias. Desde 1405 tal ocorreu em Semarang, Java, em Malaca, Malásia e nas Filipinas, quando o terceiro imperador da dinastia Ming, Yong Le, despachou um alto dignitário da corte para aí governar. “Não admira, por isso, que, em 1571, os Espanhóis encontrassem já, em Manila, uma colónia chinesa, bem organizada e composta de várias dezenas de milhar”, segundo o Padre Benjamim Videira Pires, que refere, “Quando os holandeses fundaram Batávia (a Jacarta de hoje) em 1619, os chineses eram velhos residentes da Indonésia. As Molucas ou ilhas das Especiarias tinham-nas eles demandado no século IX ou antes.”

As sete viagens de Zheng He, de 1405 a 1433, pela política expansionista do Imperador YongLe, em continuidade com o que ocorrera já durante a dinastia Song, levaram os chineses pelo Pacífico e Índico até ao continente africano. Após a sétima e última viagem marítima, a China optou por uma política isolacionista, proibindo os chineses de viajar para fora do país e os desobedientes mercadores, impedidos de regressar, estabeleceram-se pelo estrangeiro, tendo muitos casado com mulheres desses países.

A China fechada

“Em 1450 os isolacionistas conseguem impor ao Imperador o seu ponto de vista e a política externa da China sofre uma transformação radical que vai modificar o curso da História. A marinha chinesa que em 1420 era tão importante que justificava um ministério especial, é raiada da superfície dos oceanos com um simples traço de pena; as esquadras imponentes, de dezenas ou centenas de navios e de dezenas de milhares de homens de equipagem, serão varridas dos mares pela força de um decreto; os navios de maior tonelagem que existiam na época em qualquer parte do mundo serão afundados ou desmantelados, os estaleiros queimados, os marinheiros dispersos. A China que dispunha de todos os trunfos para se tornar a maior potência naval do Mundo, capitães experimentados e boas equipagens, tonelagem, número de navios, canhões e pólvora, recursos financeiros enormes, soldados e recursos populacionais em número mais do que suficiente para suportar uma ocupação militar e um êxodo colonizador intenso, fecha-se na sua concha, isola-se numa torre de marfim e adormece num sono continental de que só a hão-de acordar os canhões europeus, já no século XIX”, segundo Benjamim Videira Pires.

Com a China fechada ao comércio externo, houve grupos privilegiados de comerciantes, a quem era permitido aventurar-se até aos mares do sul em busca de negócio. Os de Cantão iam até à feitoria chinesa de Malaca, o mais distante porto onde faziam Trato e os de Amoy e Ningpo para as ilhas das Filipinas e Japão.

“Os comerciantes e conquistadores da Europa empregaram os bons ofícios destes emigrantes chineses na sua expansão ultramarina pela Ásia, mas, às vezes, quando lesados nos seus interesses, os homens da cabeleira negra revoltaram-se contra os bárbaros do Ocidente. Assim, em 1603, os Espanhóis massacraram, em Manila, 20 mil chineses amotinados. Em Batávia, os Holandeses mataram igualmente, no ano de 1740, vários milhares de chineses que resistiram a uma ordem de deportação”, refere Videira Pires. Segue Beatriz Basto da Silva, “Sempre houve nos chineses meridionais, uma natural tendência para a emigração: o povoamento da Formosa e de Ainão, as densas colónias chinesas do Sião e portos do Estreito, o verdadeiro prolongamento da Província de Fukien em Manila, onde já em 1643 o seu número exigia a presença de três procuradores chineses! Para não mencionar a diáspora na Oceânia, Java, Malásia, Polinésia, enfim, um pouco por todo o Sudeste Asiático, onde se mostram empreendedores, infatigáveis e hábeis para tudo o que toque o comércio.”

Assim se estabeleceram ao longo dos séculos as livres colónias de chineses ultramarinos.

Clandestina emigração

A dinastia Ming proibira a emigração de chineses e tal continuou com a dinastia Qing. Penang, desde 1786 colónia da Companhia das Índias Orientais (EIC), além de receber um grande número de emigrantes chineses, tornou-se um entreposto para a distribuição desses expatriados. Para evitar conflitos com o governo chinês, a EIC usou Macau como local de reunião desses cules e daí eram enviados em navios portugueses para as colónias inglesas, como referem Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, que aditam terem os portugueses também aproveitado para enviar mão-de-obra para as suas colónias.

Após a I Guerra do Ópio ocorreu um imenso êxodo de chineses, que inicialmente e ingenuamente se entregavam voluntariamente para ir trabalhar no estrangeiro. Encontravam-se eles por essa altura em extrema pobreza, por razões de catástrofes naturais e dos impostos que o governo mongol dos Qing lhes impunha para pagar as inúmeras e pesadas indemnizações das guerras que os ocidentais fizeram à China. Os ingleses, sem nada de interesse para trocar com os chineses, traziam ópio e a guerra a este pacífico país, conseguindo assim roubar o pecúlio acumulado durante 5000 anos de excelentes governações e ter moeda de troca para adquirir os eruditos trabalhos como a seda, porcelana, laca e o chá.

O excedente demográfico e a sua fácil adaptação aos mais diversos climas levaram os chineses a ser preferidos para irem trabalhar nas colónias inglesas e na América, com falta de mão-de-obra devido à abolição da escravatura.

Dos portos abertos pelo Tratado de Nanjing de 1842 continuou o esforço amargo a emigrar, apesar das leis da China não aceitarem essa expatriação.

16 Nov 2018

O futuro de Speedy González e do gato Sylvester

[dropcap]H[/dropcap]á pouco mais de um mês, o festival literário “Fólio” deu, mais uma vez, abertura ao Outono e à rentrée (não apenas literária). Podia ter sido outro o jogo e o terreno de jogo, mas este desejo de marcar o tempo e de o reiniciar é irresistível. O que nos faz saudar os recomeços é o mesmo que leva um gato com dezasseis anos a mamar no meu pulso, macerando a epiderme. Aquilo que advém tem sempre sinal (ou insídia) de coisa que permanece, ou que antes, de alguma maneira, já teria sido instilada ou mesmo experienciada.

Para a mesa em que participei, redigi um texto que acabei por não ler. Nesse texto tentei predizer o que seria o “Fólio” daqui a 130 anos. Já se sabe que prever é sacudir inferências: um pouco como abrir a toalha na varanda para a livrar dos vestígios da refeição. O linho mais puro convida inevitavelmente ao desalinho.

Daí que, no meu exercício oracular, eu tenha chegado a algumas conclusões que agora reato e reelaboro (com o devido colorau) e que dizem respeito à velocidade, à tecnologia e ainda ao que nos parece ser sempre um dado adquirido (incluindo aqui a nossa pegada simbólica). Juntando-as todas ao jeito de um trevo de muitas folhas, dir-se-ia que Speedy González se há-de transformar, um dia, no queijo que sempre perseguiu, mas sem deixar de ter no gato Sylvester uma referência segura.

Comecemos pela velocidade evocando um filme de Marcel L´Herbier, A desumana (L´Inhumaine, 1924), que celebrou o tema através da sucessão de planos de um automóvel que ia originando mudanças de forma no rosto do condutor, na viatura e na paisagem. Uma explosão de design incorporada numa obra de arte (curiosamente, uma arte ainda à procura de si própria – o ‘film d´art’ dava então os primeiros passos). É um facto que todas as linguagens com que nos habituámos a viver nos últimos quatro milénios são de base analógica, das argilas do Gilgamesh a Marcel L´Herbier, e não estão preparadas para significar a aceleração virtual da vida que está em curso no planeta. Em 2148, o design já não explodirá, pois a explosão já terá encontrado uma morfologia adequada para serenamente respirar. É verdade: Speedy González e o queijo serão nessa altura um único ser, coisa híbrida e boa de se ver.

Passemos à possibilidade de uma nova tecno-antropologia, coisa que não é novidade pois a ficção científica já imergiu, há muito, nesse tipo de mundos. O que hoje é um simples bypass será amanhã uma incorporação tecnológica em espaços da mente que nos permitirão fazer novas perguntas e permeabilizar o ser a novas realidades. O teletransporte e a corporeidade estarão de certeza no centro dessa operação. O chapéu largo de Speedy González tornar-se-á numa espécie de anel de saturno polvilhado de software açucarado.

Continuemos o diagnóstico, dando agora atenção àquelas conformidades que parecem sempre adquiridas e ilusoriamente eternas: vai ser muito difícil explicar no Fólio do Outono de 2148 aquilo que aprendemos a designar por “ficção” e por “realidade” (nos mitos antigos, tal separação não existia). Deparar-nos-emos com a mesma dificuldade com que, hoje em dia, se tenta explicar o que era a “pneuma” para os estóicos (força vital que perpassa todos os corpos do cosmos, mantendo-os unificados e conferindo-lhe qualidades). Speedy González já nem se lembrará, daqui a 130 anos, do que eram dantes os resorts do México, quanto mais do rosto oval de Frida Kahlo quando – nem ela própria…o imaginaria – era um ícone da pop.

Por fim, estou em crer que o chicote e o gancho que surgem esculpidos no túmulo de Tutankámon terão a sua sequência lógica no futuro. Será difícil o humano, mesmo inseminado pela destreza dos chips, desprender-se do seu cariz simbólico. E. Cassirer caracterizou o dado simbólico como algo singular e sensível que, sem deixar de ser o que é, adquire a força de apresentar à consciência imagens universalmente válidas. Esta transposição que nos permite ser e superarmo-nos ao mesmo tempo, prendendo a ilusão a uma possível consecução é parte íntima do humano. É por isso que o nosso olhar é reflexivo e projectivo, pois incorpora sempre o olhar do outro, o olhar do mundo que nos atiça, define e interpela.

Podemos desejar esperando e podemos desejar reivindicando-o instantaneamente. De uma maneira ou de outra, enquanto existirem humanos, ‘eu’ serei sempre ‘eu’ no mundo. Isto é: não haverá Speedy González sem Pancho Vanilla e sobretudo sem o temível gato Sylvester de unhas de fora e sempre a rondar por perto.

15 Nov 2018

Carta ao artista Jeff Koons

Meu caro amigo,

[dropcap]o[/dropcap] filósofo polaco Laszek Kolakowski inicia assim o seu livro Horreur Méthaphysique: “um filósofo moderno que nunca se sentiu um charlatão demonstra uma tal ligeireza intelectual que a sua obra não merece a pena ser lida”. Como isto se aplica a um poeta pós-moderno! É o meu caso. Aquele que nunca se sentiu um charlatão é vítima de insuficiência ou de cinismo.

Quem não me parece ter dúvidas é o amigo Jeff Koons, mas já lá iremos. Escreveu John Cage que imaginava facilmente um mundo sem arte. Aqui para nós, a coisa sempre me soou a bazófia: que lhe faltou para abandonar a arte e tornar-se mecânico de automóveis? Já o Claes Oldenburg – suponho que conheceu – dizia preferir uma loja de ferragens a um museu – e é mais entendível, aceitando a afirmação como sucedânea do que confidenciou Duchamp sobre a impossibilidade da arte superar a perfeição formal da hélice de avião.

Todavia, e suponho que aqui não concordará comigo, o que se produziu a partir de tais configurações havia-se mostrado até hoje manifestamente chocho e roçava a irrelevância. A estetização do quotidiano condicionou a criatividade, conformou-a, à medida que o gosto médio se mostrou impositivo e a arte volveu “o espelho” que o Jeff se propôs refinar.

Desta vez, chapeau, o Jeff Koons elevou a irrelevância a um supremo acto de tauromaquia de salon. Parabéns. É a terceira vez que uma peça sua, da série Banality, peças feitas a partir de fotos de publicidade, é acusada de plágio. A justiça deu razão a Franck Davidovici, o autor do anúncio publicitário da marca de roupa francesa Naf-naf.

Cito o Diário de Notícias, para não me enganar: “o anúncio de Davidovici, intitulado Fait D’Hiver, mostrava um leitão, que era a mascote da marca Naf Naf, com um barril ao pescoço, muito parecido àquele que os cães São Bernardo usam nas suas ações de socorro na neve, ajudando uma jovem morena. A obra de Jeff Koons não é uma fotografia a preto e branco. É uma escultura colorida que também se chama Fait D’Hiver e que mostra uma mulher deitada na neve e a ser ajudada por um porco com um barril e uma coroa de flores ao pescoço. Ao lado estão dois pinguins”.

O fulcro, a verdadeira essência da arte, mostrou-a o Jeff agora: a sua escultura foi leiloada em 2007 pela Christie’s de Nova Iorque por mais de quatro milhões de dólares e agora, o tribunal condenou-os, a si e ao Centro Pompidou, a pagar a Davidovici, em conjunto, a quantia de 148 mil euros. Realce-se que o juiz não ordenou que a obra de arte fosse confiscada, outro dos pedidos do publicitário, e que agora, dada a publicidade de que a sua peça beneficiou, ela vai ter um reforço de valor.

Esta desproporção terá sido devidamente calculada pelo Koons, que fez aquela série para ser acusado de plágio. As esculturas eram o simulacro para favorecer o que importa: a operação financeira.
Só lhe falta, meu amigo, realizar o acto de síntese, a sua obra magna – aquele haiku do samurai no acto da harakiri: reproduzir num friso escultural um leilão da Christie’s.

Não sou invejoso, escrevo-lhe, saudando-lhe a inteligência, para lhe propor ser plagiado por si. É nesta intenção que aqui divulgo a minha fotografia O Banho da Musa Intermitente.
A foto tecnicamente é mazita, mas o que importa é o teor, o teor, O TEOR (- peço-lhe, imagine esta frase dita pelo Brando).

Saberá, meu caro Jeff, as culturas dividem-se entre as que querem conversar com os mortos e aquelas que querem conversar com os vivos. Uns querem aplainar o mundo, os outros aceitam as suas rugosidades. Eu, e imagino que o meu amigo também, bandeio para o lado dos que aceitam as rugosidades e entendo que o plágio possa ser apenas mais uma dobra da arte, quando o fito é outro. Nisto estou por si, por nós.
Estou certo que o nosso trato lhe convém – encontramo-nos depois nas barras do tribunal. Verá que exporei o meu dorso a uma das suas bandarilhas.

Não pense que só me move o interesse e por isso conto-lhe uma história. Passa-se em Nampula. Daniel conseguiu penhorar todos os seus mortos. Com uma pistola na cabeça do penhorista, que frequentava o mesmo culto que o seu, da igreja Zione. “Tanta cerimónia aos espíritos, tanta saudações aos antepassados”, censurava, Daniel, puxando o cão da pistola, “e agora não os aceita como penhor, para si valem menos que uma torradeira!”

Só não o liquidou ali porque o penhorista, na aflição, antecipou o equivalente a quatro gerações de antepassados. Embora isso não o tivesse livrado da coronhada.

Vê, meu caro Jeff Koons, andamos todos ao mesmo.

Antes pensava, coitada da arte que é apenas combinatória, pois acosta rapidamente ao reino das quantidades, quando a vulcanologia e a formação dos vulcões nos ensinam que há estados que nascem por dentro, com mínima contribuição do exterior – e com um furor que pelo contrário vai, ele sim, mudar a paisagem exterior

Contudo, agora que estou doente, começo a pensar com os tomates, com o coração e os pulmões. Não enxergo modo de pensar que não seja um inquilino do meu corpo (ainda que admita um por outro clandestino). E comecei a entender Parménides, para quem ser e pensar eram o mesmo, pois “raciocino” primeiro com a natural sintaxe do meu corpo o que depois as palavras traduzirão; daí que alinhe com Michel Barat quando ele aventa que a boa nova dos Evangelhos é anunciar não a imortalidade da alma, mas antes a ressurreição do corpo. O que aqui para nós, convém admitir: fica cara.

O seu gesto esclareceu-me: há que aprender a arte dos toreros de salon. São esses quem,
no fim, mais lucra.

Impaciente pelo seu plágio, sem cerimónias, o seu
António Cabrita

15 Nov 2018

O tempo: modos de usar

[dropcap]S[/dropcap]abemos isto: o tempo é uma invenção humana. É uma medida de mortalidade e esperança, de legado e exemplo. Precisamos dele porque a memória que o alimenta é a nossa maior e melhor característica civilizacional, o que realmente nos distingue dos outros animais. A arte, a cultura, o progresso – nada seria possível sem essa consciência do que foi e como foi.

Tantas vezes o desprezamos, mesmo assim. Tantas vezes o culpamos, clamando como o personagem de Shakespeare que a vida é apenas sua escrava e que por isso o tempo tem de parar. E então inventamos modos de usar que nos dão essa ilusão de um tempo circular e perfeito. Isso é particularmente visível nestes dias, em que o ritmo da nossa existência é frenético, bombardeado por informação e miríades de estímulos do exterior que ninguém consegue controlar a menos que se converta a um qualquer tipo de ascetismo. O tempo tornou-se o nosso maior luxo.

A celebração de efemérides – da passagem redonda dos dias – é a resposta laica e quotidiana às antigas festas religiosas que existem desde o nascer da Humanidade. Começa pelo nosso próprio aniversário, passando por datas históricas universais ou dirigidas a um grupo particular de pessoas. São feitas de pretextos grandiosos e importantes – como aconteceu há dias com a celebração dos cem anos do Armistício – e de outros mais triviais, como o aniversário da edição de um livro ou disco que amamos e que os anos pouparam. E por vezes – tantas vezes – isso é o que verdadeiramente nos comove.

É pouco? Não. Uma história próxima, recente e verdadeira para o justificar: imaginem um inveterado hedonista, uma daquelas pessoas que acredita sinceramente que a vida foi inventada para ele e flutua graciosamente pelas agruras com um sorriso nos lábios. Conheço alguém assim. Chamemos-lhe António e estaremos a fazer bem. António nunca tinha conhecido grandes dores, nem sequer aquelas que advêm das inevitáveis perdas que viver sempre traz. Até há pouco: encontrei-o sorumbático, à beira da apatia. A aura de felicidade que sempre exibia sem pudor tinha-se apagado misteriosamente. Como bom amigo perguntei o que tinha acontecido, como poderia ajudar. «A X. saiu de casa. Ontem». Para que o leitor possa continuar a seguir esta pequena narrativa convirá dizer que “X” era o amor deste meu amigo. E sobretudo que a perda desse amor nunca lhe tinha passado pela cabeça. António sofria como todos sofremos: sozinho.

Como desconfio bastante da minha sabedoria nestes affaires du coeur, sugeri-lhe quase a medo: «Vai ouvir o Only The Lonely do Sinatra. Comigo resultou. Ainda resulta. Não resolve mas ajuda». António olhou-me perplexo mas prometeu que iria fazê-lo.

Aqui chegados preciso confessar o meu estatuto de inveterado sinatrófilo. O homem conhece-me melhor do que qualquer indivíduo, graças ao que cantou e como cantou. Mas isso seria assunto para outra crónica (ou um livro, ou vários). O disco que António foi ouvir pela primeira vez é uma das obras-primas da música popular. Trata apenas de solidão, melancolia e tristeza. De perda de quem mais amamos, de amores chorados ao fundo do balcão e confessados ao barman que quer fechar o bar. Sinatra conheceu bem essas matizes de azul de que é feita a solidão amorosa. E aqui canta-a magnificamente, numa voz de fumo que nos embala e ajuda a compreender. Sempre com uma extraordinária dignidade e em algumas canções com um humor triste e auto-depreciativo. Nos momentos mais escuros emerge triunfante do próprio desespero. E isto é possível porque Sinatra viveu tudo, ganhou e perdeu tudo e a sua arte é feita dessa matéria-prima indizível mas que qualquer um reconhece.

Dias depois voltei a falar com António. Disse-me que tinha ouvido o disco e que ficou espantado com a sua verdade e actualidade. Que ainda chorava a perda de X. mas que já não estava sozinho. Agradeceu-me e informou-me da efeméride: Only The Lonely faz sessenta anos em 2018. O tempo pode ser tão bom quando se deixa usar.

14 Nov 2018

Vestir de negro

Fundação Eugénio de Almeida, Évora, 13 Outubro

[dropcap]C[/dropcap]onvive com o a do Pedro [Proença], esta exposição dedicada ao «Grupo 8», conjunto artístico dos anos 1970 que projectava a sua identidade a partir do Alentejo. António Palolo foi membro e dele, Joaquim Tavares, o curador, escolheu telas cinza, talvez reverso iluminado das cores primitivas que o tornaram dos pintores mais imitados. Anunciava-se tempestade, mas não ali, no conforto climatizado do museu, parede negra e luz baixa de acentuar mistérios, obscuridades. Aquele cinzento magnetizou-me, logo deixou de ser apenas cor, ganhou textura, uma pele áspera e cortes a desenhar meridianos, cicatrizes que a fornecem de carnes. Estamos nisto: extrair da cor uma qualquer razão. Nem que seja para vestir.

Clube Estefânia, Lisboa, 1 Novembro

Certo e sabido: a vida não se deixa prender nos calendários. Ou seja, o espírito fin de siècle está a explodir-nos agora nas mãos. A religião feita refém da loucura sanguinária. A economia feita máscara dos meta-estados corporativos. A política entregue à violência da estupidez. A arte virada do avesso a patinhar nas tripas. Em fundo, o desespero que atira gente ao nada, ao nada feito mar ou muro. Gente que se atira ao nada, entorpecente e narcótico. «Três actores, três músicos, uma personagem discreta, mas omnipresente: a morte», assim se apresenta na «inútil» folha de sala do «Cabaret Macabro», que o Valério [Romão] escreveu para a Marta [Lapa] encenar. Com excepção da senhora da gadanha, que usa cabeleira, e apesar atração inevitável pela perfeição do triângulo, a afirmação não se confirma. O autor do texto começa cedo a ser invocado, contrariado, maltratado, fazendo-se afinal benquisto do princípio ao fim, ou não tivesse esculpido o texto durante os ensaios. Também a encenadora se faz personagem, primeiro interpretada pela Carla Galvão, para depois sair mesmo da sombra para fazer o que faz bem: questionar tudo, baralhar e voltar a dar. Estamos, pois, em plena desconstrução, essa noção tão cara à nouvelle cuisine. Iniciada na folha de sala, não mais útil que pastilha elástica sob a cadeira, diz ele. O autor-a-fingir-que-não-o-quer-ser usa bem a bisnaga vira-bicos, e põe a Margarida Cardeal e o Vitor Alves da Silva a questionarem o «processo», a discutir tudo e mais alguma coisa, acompanhados, como se de fado se tratasse (e trata!), pelo [Carlos] Bica, pelo Lucius Omnibus e o Pedro Moura. «Como é que a arte contemporânea reflecte o actual sistema de labirintos simultâneos a que parece corresponder o mundo actual?» O meio artístico – por ideal romântico? – vê-se sobejamente maltratado e logo curado, como agora se diz das exposições, para sinónimo de escolha e arrumação. Nem escaparam os abysmados, esses que praticam activamente e para desconhecimento geral a subtil arte do cabaret e o encantatório tratamento por mano. Não tanto desconhecido, que passa amiúde alguéns mais alheios em busca de encosto. A girândola vai rodando sobre si própria, e nem precisa parar para deixar entrar assuntos sérios, íntimos até. Para nos chamar à voragem. Só que as expectativas, se não a esperança, parecem mortas e enterradas no negro do fundo-cenário (até das fotos que autor também assina, algures nesta página). O Valério, que usa cartola, desenha a luz com o negro. E nem as canções nos salvarão. Ou salvam?
No dia da estreia, o cabaret agudizou-se em seguida, prolongando a «proceça», e confirmando a realidade: «what could permitting some prophet of doom/ To wipe every smile away/ Life is a cabaret, old chum/ So come to the cabaret.»

Lisboa, 3 Novembro

Se quisermos ter exemplo na ponta da língua de que o 25 de Abril acabou sendo revolução, apesar de não ter começado por sê-lo, basta aduzir a rede nacional de bibliotecas de leitura pública. São mais de 300 corações espalhados pelo país mais obscuro a bombar sangue, a trocá-lo por oxigénio, a produzir palavras, imagens, pensamentos. Nalguns destes lugares, a vida mudou, a morte cedeu. Sou testemunha, disso e do facto de muito devermos à força de vontade da Maria José Moura (1937-2018) este aumento das possibilidades. A morte toca menos quem soube espalhar vida.

Barraca, Lisboa, 7 Novembro

Andam por aí vozes que, de tão doutas ficam burras. Sabem tudo sobre tudo, mas sobretudo sobre edição. Sabem bem o que deve ser feito e até como. Cospem cânones na vez de expectoração. Por serem do contra, agora que é fácil e custa pouco, ganham automática razão. Costume de largo espectro, não fazem, basta-lhes escrever sobre. As enormidades do que dizem procurando fátuos likes, além do pressuposto ideológico e moral que querem impôr, resulta da ignorância, além de endémica má-fé. Livro simples, como este que agora lançamos, «As Constituições Perdidas de Aristóteles», esconde processo – próximo do cabaret . Mas interessa? Começa logo pela vontade e horas investidas na tradução pelo mano – olha outro… – António [de Castro Caeiro]. E na paciência: há muito que estava pronto a sofrer os tratos do prelo, mas circunstâncias várias retardaram-no. Até que um trabalho de outra natureza iluminou a colecção que, afinal, se quer bífida, traduções de um lado, ensaios sobre os clássicos, do outro. Depois, já que o primeiro esforço resulta informe, sobretudo devido ao carácter fragmentário e científico da obra, houve que arrumá-lo em partes, pensar em apêndices e notas, enfim, decidir se a colecção cresce no sentido da divulgação ou dos circuitos especializados. A revisão merece, também por isto, revisão. Desembocamos, então, nas conversas com o Miguel [Macedo], das quais resultará objecto, no caso com meia sobrecapa, sobrepondo apenas em metade da capa cor forte e outra tipologia, mais carregada. Este jogo, que se prolonga no miolo e no logótipo com outros expedientes gráficos, propõe esta ideia de fenda, que resulta de cruzamento abrupto entre o passado e o presente, entre elegância e arrojo. O essencial do trabalho de arqueologia destes textos reside na urgência de sentidos que escapam aos tempos. O futuro, tal como se nos apresenta hoje, precisa de se atirar de cabeça aos clássicos. Neste caso, além de questões fundadoras do nosso direito, que estão ameaçadas, também pelas de identidade. O que faz de nós comunidade? Como manter-nos comunidade viva e convivial, na vez de moribunda e despedaçada por cegos antagonismos? Nas apresentações, manda o protocolo, não se fala destes assuntos. O livro existe para além da forma e os processos, estamos aqui para congregar leitores. O Carlos [Querido], em Óbidos, e agora o Ricardo Araújo Pereira, não fizeram outra coisa se não ensinar cavalos a tocar flauta. «Contava-se que os Sibaritas chegaram a um tal ponto de devassidão que até traziam os próprios cavalos para os jantares. Estes, mal ouviam entoar a flauta, erguiam-se apoiados nas patas traseiras e com as dianteiras dançavam como quem marca o ritmo com as mãos.»

Casa da Cultura, Setúbal, 9 Novembro

Esta «filosofia a pés juntos» faz-se no terreno pesado da educação. De súbito, o António [de Castro Caeiro], mesmo após dia inteiro de aulas na escola, que não significa «tempo livre» como outrora, consegue atingir a leveza e inspirar uma plateia. Como os atletas para o combate, procuremos a disciplina de um treino, por via do estudo e da conversa. Para acrescentar cor no arco-íris das possibilidades. A vida toda feita brincadeira de crianças, outro modo de dizer paideia.

14 Nov 2018

Júlio

“It has been a beautiful fight. Still is.” – Bukowski
Em memória de Júlio Ávila

[dropcap]A[/dropcap] mercearia chinesa da minha rua fechou. Não aceitavam cartão, nem de pagamento nem de desconto. Mas sorriam sempre, embora nunca perguntassem pelo contribuinte na factura. É verdade que, nos últimos tempos, já só lá ia para comprar melancia, quartos de, a noventa e nove cêntimos o quilo e todo o sabor do mundo. Um sabor rosa-vivo simples, a única coisa que me apetecia, por vezes, comer. Melancia que levei para casa, para o trabalho, para a praia. Que comi sozinha e partilhei. Triângulos e triângulos de consolo e doçura. Arestas, faces e vértices que não magoavam, e de que era segura a repetição. Não sei o que dizer mais do que sei o nome da tua avó, que te ofereceu melancia cortada aos cubos no que agora lhe deve parecer ter sido ainda outro dia. Não tenho avós há muito tempo, e pergunto-me se a tua terá ouvido falar da Björk, que também sabe uma ou outra coisa sobre melancias. E lágrimas.

Conseguiste. Que o carro passasse na inspecção. Conseguiste. Que a vida deixasse de passar por ti e te magoasse. Tu tentaste e não falhaste. Aprendeste o nó que desfez os teus, não importa se nos deixou um permanente. Ninguém deveria poder dizer que nos desapontaste.

Os pêsames pesam. Os meus sentimentos também. Seremos sempre demasiado novos para estas coisas. Ser millennial não nos dá um certificado de saber lidar consigo mesmo ou com os outros, com o quão pouco sabemos uns dos outros e sobre nós mesmos. Vivemos em excesso de informação não relevante e em carência de quase tudo o resto

Contigo fui turista e visitei uma igreja, partilhei a mesa do almoço, a vista do miradouro do Outeiro da Memória, a melhor amiga, uma grande moca, gargalhadas, o teatro, a escrita, o peso da vida. Trazias uma t-shirt azul no dia em que te conheci. Letras em degradê laranja e amarelo, calções e chinelos. Éramos quatro. Mesmo nessas fotografias desfocadas, continuamos a ser quatro. Eu estou do lado de cá, mas senti-me em casa convosco. Lembro-me de não estar bem, de ser a única desabituada à altitude. Lembro-me de que, no último ano, todos quiseram deixar de estar aqui, tentaram e quase conseguiram. E pergunto-me se algum dia vocês, desculpa – se eles se vão habituar à vida. Pergunto-me se alguém mais vai conseguir. E dou por mim a rever conversas e a enviar mensagens e a querer marcar viagens. Quem me dera ter voltado aí. Agora sei que nunca vou sair.

Os pêsames pesam. Os meus sentimentos também. Seremos sempre demasiado novos para estas coisas. Ser millennial não nos dá um certificado de saber lidar consigo mesmo ou com os outros, com o quão pouco sabemos uns dos outros e sobre nós mesmos. Vivemos em excesso de informação não relevante e em carência de quase tudo o resto. Vivemos em estado de depressão e de distracção, mas tu sabias estas coisas. Tu sabias de ti. Tu prestavas atenção.

Saber muito pouco de alguém e ainda assim ser de repente a pessoa em quem mais pensamos, e isto servir para nós e para os outros. Ir de casa para o trabalho, da terapia para os medicamentos, de mal a pior, de millennial a memorial. Deixar de ter um nome para passarmos a ser também um evento, uma descrição, uma memória. Fazer um testamento real para a persona virtual. Estar sempre a um ecrã de distância das nossas pessoas preferidas, até de nós mesmos. Sim, porque deveríamos saber ser uma das nossas pessoas preferidas. Tu certamente o és, serás para muitos, serás para sempre.

Onze, catorze, quinze, dezasseis. Um dia para nascer e três para morrer. Mil novecentos e oitenta e seis. Dois mil e dezoito. Abril, Outubro e trinta e dois anos e meio entre eles. Nasceste, cresceste, viveste, morreste. Tu estiveste aqui. Tu estavas, realmente, vivo. Ficaste mais quando foste embora, tu que já eras tão grande. Tu não desapareceste. Obrigada por tudo o que escreveste.

Esperarmos que as pessoas que gostam de Júlio encontrem algum conforto ao visitar o seu perfil, para relembrar e celebrar a sua vida.

It has been a beautiful life. Still is.

14 Nov 2018

Poemas de Li Bai

O TEMPLO DA MONTANHA

[dropcap]A[/dropcap]brigo-me no templo, no alto da montanha.
De noite, quase toco com as mãos nas estrelas.
Mas nem uma palavra atiro ao vento.
Não se perturba os habitantes do céu.

 

A CANÇÃO DE OUTONO

Como extensos rios, os cabelos brancos
Alagam o coração.
E reconheço ao espelho
Esta geada de Outono.

 

POEMA DA RAPARIGA ÚNICA

Águas do rio, espelho da lua,
A rapariga que me mostrais parece neve.
O seu vestido sobe e desce com as ondas.
Luz absoluta, que brilha e desaparece.

13 Nov 2018

Sexo XXI

[dropcap]V[/dropcap]inte e um gramas é o que pesa eventualmente a alma, o que deixa um rastilho de dúvida que nos incita a tratar desta suposição com esperança. Ela está presente num momento muito belo e lancinante no Evangelho segundo São Mateus «depois, lançou um grande brado e entregou a alma», devolveu o sopro que o sagrou na hora de nascer, aos gritos, aos urros, chorando, aos brados. Esta ínfima substância não é fácil nem quando começa nem quando acaba. Entramos em choro, saímos em brado, e ainda somos o resultado dos suores gritantes de quem se dá.

O século vinte e um, tão jovem ainda, já tem o seu peso, nasceu com imagens de queda e de gritos, nasceu talvez com a alma aflita, e tocou pela primeira vez nas fontes naturais do circuito da transmissão: seremos provavelmente a última Humanidade sexualizante, o tempo que se desvia das naturais funções acaba por recriar os seus próprios órgãos, transmutando o fruto na marcha evolutiva face à essência primeira.

Parece estranho que digamos estas coisas numa esteira de desejos mundiais, mas não será difícil olhar a escalada híbrida, o hermafroditismo, o imenso mal-estar da função que talhou o órgão – órgão que faz a função – a ciência avança de forma apaixonante e quase atravessamos o nosso corpo como ilustres desconhecidos… Amor, ainda um eufemismo servidor da causa, não criado e sim gerado, e que consoante os méritos de cada um foi orientado e sublimado na construção árdua do mundo onde jamais se confundiu “amor profano” com grande amor, pois Deus parecia estar no homem como sémen propagador, era-lhe consubstancial na transmissão.

Atravessemos. Os séculos são estradas, têm alma, nascem e morrem e, claro, a dramatização desta matéria não se esgota, o pré-condicionamento não está apagado. Afinal ainda procuramos um arquétipo perdido… que em ninguém se encontra, mora, ou se repõem. O problema não está nas pessoas e nos seus níveis de conflitualidade ou de atracção, mas sim num certo “air du temps” que mutilou a outrora função cegamente programada. Tem gerado até pelo temor da sua força muitos neuropatas, mas esse imenso caudal será arrumado num grande “tubo de ensaio” como matéria atómica. Lixo radioactivo! Com quanto a transfiguração que nos daria uma experiência amorosa parece também ter sido rejeitada na fase alternativa do “beijo que liberta”. Beijos são sopros, talvez almas, tudo em que descremos como bem sabemos se afasta de nós. A sexualidade tomou um espaço anatómico que denunciava já a sua futura morte, demonstrando assim uma saúde moribunda.

Intelectualmente fomo-nos preparando para o século XXI e fizemo-lo com relativo êxito, mas biologicamente estamos atrasados. Somos uma plataforma de vestígios portadora de vínculos que não estão adaptados para a breve realidade de uma outra História do Tempo. Creio que esse tempo nos devore, esse mesmo tempo que gastámos a “comer-nos” uns aos outros com a prática canibal de uma sexualidade que na função se esgotou. O corpo foi brutalizado, o corpo «Glorioso» não é isto, e talvez nos peça agora o fim das provas antevendo nós agora o grau da sua luz numa outra projecção: «as fantasias do teu erotismo/ põe-nas, semi-ocultas/ em meio às tuas frases/ esforça-te, poeta, por guardá-las todas.» Kaváfis

Mais diz ainda: “Lembra corpo o quanto foste amado, e os desejos que brilharam em outros olhos claramente”, este corpo vamos com ele até festejarmos tudo tão claramente como um encontro sem par, que o par é um lado estagnado da função, e ela é outra, e tão nova, tão repentinamente nítida, que amá-la não pode ser um local narcísico, amando-a no lago frio das ilusões, tanto e tão, que caímos na armadilha mil vezes repetida de uma prova elementar que não transpusemos.

Amar outrem, muito, tudo, não é necessário, são conclusões morais que obrigam a um cansaço e muita vigília… Acontecer no tempo. O corpo continua e os vinte e um gramas implantados nos ditarão o caminho novo que se aproxima agora da meta anunciada. Nem o castigo, nem a libertação, nem a aceitação, nem o logro ou a luxúria, conseguiram restituir a grande causa escondida que brotará melhorada e porá fim a uma parte do processo evolutivo.

Os corpos subtis foram apelidados de “corpos aromáticos” e um mundo que cheire bem terá resultados telepáticos amorosos progredidos e ampliar-se-á na construção da alma vindoura, os fluídos da energia transformadora e formadora estarão próximos de um êxtase de vida que reconheceremos mais benigno para esse peso tão leve e definitivo.

Talvez mudando a escala da erotização mundial nos possamos então propor a reformar estes destinos grupais projectados num mito que agora encontramos sujeito a falência, mas longe, tão longe da castração por fluxo concentrado o qual não fez mais que precipitar a sua queda. A liberdade encontra-se sempre ligada ao propósito do bem e bom será então dar as boas vindas a este «Sexo XXI» sem o medo dos contágios.

13 Nov 2018

O eu abreviado

[dropcap]Q[/dropcap]uando entro no café e peço uma água das pedras e uma bica, a menina que me atende sorri e eu sorrio de volta. Nenhum de nós imiscua no comércio da vida cotidiana aquilo que de mais pesado e verdadeiro transportamos todos os dias no coração como trocos na algibeira. A maior parte das nossas interacções rege-se pela batuta da cordialidade superficial. Aquilo que somos, aquilo que temos de verdadeiramente único, escondemo-lo. Às vezes, à vista de todos; outras, em sítios de que até nós nos esquecemos.

Manda a etiqueta da convivência social que não andemos nus. Não impomos a nossa intimidade física a outrem. É desadequado. É estranho. Há sítios remotos e cercados para onde vão as pessoas que têm vontade de andar em pêlo. Chamam-se colónias de nudistas e praias de nudistas. Com os nossos segredos, é muito assim; não os partilhamos desnecessariamente porque tal seria infringir um código não escrito e, simultaneamente, um sinal de vulnerabilidade e de desequilíbrio. Mas como são esses segredos que, em grande parte, nos definem, o seu radical escondimento acaba por no fundo configurar uma forma de mentira socialmente aceitável: respondemos afirmativamente às perguntas cotidianas sobre o nosso bem-estar, negamos a existência de problemas quando nos chamam a atenção pela nossa ausência, divergimos imediatamente de assunto quando confrontados com a possibilidade de alguém adquirir indevidamente informação que não pretendemos transmitir. E todos fazemos isso. O tempo todo, ou quase.

Estranha forma de vida, esta, e estranhamente bela. Passamos noventa e tal porcento do tempo a fingir o que não somos para termos oportunidade de sermos o que somos para pouquíssimas pessoas por pouquíssimo tempo. É como se a vida fosse uma espécie de mina de baixo rendimento onde é necessário processar dezenas de toneladas para obter um mísero grama de ouro. Uma mina com uma rentabilidade tão negativa como a nossa já teria sido fechada. A maior parte de nós, no entanto, opta manter as portas abertas, a despeito de por vezes ter imagens muito claras do logro enorme que são as relações humanas: uma gigantesca teia de formas que supostamente devemos assumir, de acções que supostamente devemos ter, de respostas que supostamente devemos dar. E nada disto é claro, e nada disto está escrito. O código mais complexo e poderoso de regulação social encontra-se ausente de qualquer manual.

De vez em quando, somos confrontados com pessoas que, em situações extremas, nos deixam nas mãos muito mais do que aquilo que tínhamos pedido. Que nos emprestam, contra a nossa vontade inicial, parte do peso que carregam e que se dispõem a receber da nossa parte a intolerância e a incompreensão ou a radical bondade de querer ajudar a encontrar no peso e na profundidade uma leveza ou um ângulo que facilite o transporte.

A vida que se diz passar à frente dos olhos quando a mente antecipa a morte não corresponde a mais do que meros segundos de experiências vividas. A uma sequência de imagens de que muitas vezes desconhecíamos a importância. O eu tem uma forma de escalonar a grandeza daquilo que vivemos e o cérebro parece ter outra. Ambas correspondem na forma: qualquer vida pode reduzir-se a um filme de 30 segundos. Esses trinta segundos são a sinopse daquilo que de facto nos faz sentir únicos. São os sete ou oito picos de intensidade no sismógrafo existencial que nos definem e definem em grande parte a nossa forma de agir. O resto, o filme em si, é o cotidiano. É a mentira.

12 Nov 2018

Roteiro de uma novela

[dropcap]P[/dropcap]or uma manhã de 1948 estava Marta no mercado a sopesar a frescura das toranjas quando do fundo do corredor esbravejou uma voz masculina: “Mentiras, Martas, mentiras! Acredita que eu nunca tive sífilis!” Era Arnold – septuagenário, cabeça de Pierrot, calva lunar – quem assim ralhava de maneira tão destemperada. A Marta dirigia o escândalo, causando-lhe grande embaraço e estupefacção nos outros clientes. Mas ao contrário destes, intrigados com o desacato, seria doido?, estaria bêbado?, Marta percebeu tudo. Arnold referia-se a Adrian, personagem central do último romance de Thomas, que nalguns traços é verdade que poderia ser um avatar de Arnold. Desencadeado o drama passemos às apresentações.

Marta, de nome completo Marta Feuchtwanger, era mulher e musa de Lion, mentor de Brecht e escritor a quem os arbítrios da história não entronizaram no Panteão da literatura à medida do prestígio que gozava na época.

Arnold era Schoenberg, o Pedro fundador da música ainda hoje chamada de contemporânea, demiurgo e sumo pontífice da atonalidade e do dodecafonismo. Como boa parte dos criadores, sobretudo os que geram doutrina e se crêem deturpados por epígonos, sentia-se invariavelmente incompreendido. Dissabor que amiúde exprimia com um proverbial mau feitio.

O romance que Schoenberg invectivara era “Doutor Fausto” da autoria de Thomas Mann, publicado no ano anterior. Glosando a lenda de Fausto, o livro narra os sucessos de um compositor, o tal Adrian Leverkühn, que num pacto com Mefistófeles contrai sífilis para que a loucura lhe potencie o génio. Assim é que inventa um novo sistema musical, o dodecafonismo – não haveria Arnold de se sentir insultado?

À data, Schoenberg e Mann, em virtude da obra já fabricada, vasta e basilar, eram duas torres que deitavam sombra imensa na cultura alemã do século. E se na geometria instável e variável das relações humanas, sobretudo entre cabeças de cartaz com cismas de prima-dona, ora se conciliavam, ora gelavam, o certo é que as suas relações iam para além de um mero “passou bem” e conviviam nas soirées dos Feuchtwanger, nem que fosse para se evitarem e formarem círculo em salas diferentes.

Estas tertúlias que o desvelo e a encantadora personalidade de Marta promoviam – “tem o perfil de uma princesa egípcia”, diria dela Thomas – celebrizaram-se por a elas acorrer o who’s who da intelectualidade germânica: além de Thomas o seu irmão Heinrich Mann, Bertolt Brecht, Horkheimer, Theodore Adorno, Kurt Weill e a formidável Alma Mahler-Werfel, que à época já fora viúva do compositor Gustav Mahler, ex-amante de Walter Grupius e de novo viúva do escritor Franz Werfel. Introduzidos os protagonistas talvez seja o momento de desferir um golpe de teatro.

O cenário em que se deu a truculenta peripécia entre Arnold e Marta não era o de alguma cidade em escombros e miasmática na devastada Alemanha de 48. Aconteceu sim no refinado Brentwood County Market, num dos bairros mais gentrificados de Los Angeles. E todos os nomes atrás evocados, além de outros de menor, mas não menos certa fama, igualmente domiciliavam em Pacific Palissades, onde a vida espairecia ao rumor das palmeiras, temperada pela suave brisa do Pacífico e o prazenteiro sol da Califórnia.

É fácil depreender que esta fina-flor ali viera culminar não de vilegiatura, como se em estância de repouso e lazer numa montanha mágica, mas por obséquio do cabo Adolfo. Entre as incontáveis patifarias por ele perpetradas contra a humanidade em geral conta-se esta em particular de ter estropiado de maneira irreversível a cultura alemã em nome de uma pureza primordial, de uma autenticidade acrisolada, de um integrismo inabalável.

Como todas as novelas também esta há-de ter moralidade.

Ainda hoje quem traga no bolso cinco melréis de mel coado de snobismo olha por cima do ombro para Los Angeles como para um descampado cultural. Imagine-se em 1948. Hitler votava pela América o desapreço que lhe merecia um povo rafeiro e sem raízes, uma nação dominada por plutocratas e judeus. Do ponto de vista cultural sintetizava-a como “uma anedota estúpida”: “o que é a América senão concursos de beleza, milionários, música idiota e Hollywood?” Em resumo: “uma sinfonia de Beethoven tem mais cultura do que tudo o que a América produziu até hoje.” Convenhamos que esta opinião calava fundo não só na Alemanha nazi, como em muitos círculos intelectuais europeus. Também alguma intelligentzia nova iorquina a partilhava em relação ao que provinha da Califórnia.

O sulco deixado por estas luminárias germânicas nas universidades da Costa Oeste – e não tanto nos filmes, porque aí foram outros alemães que marcaram – foi indelével e contribuiu sobremaneira para dar à América uma primazia ainda hoje incólume. Por mais que cegos não a queiram ver.

9 Nov 2018

Manga pró menino e prá menina

[dropcap]C[/dropcap]omo aficcionado de longa data de banda desenhada, até com vagas incursões pela escrita de argumentos, cedo me fascinou a manga japonesa, desde as robóticas e futuristas aventuras que me animaram a infância e o início da adolescência até às ficções urbanas que iam tardiamente chegando a Portugal, como a magnífica série Akira, originalmente editada no Japão nos anos 1980 mas que só nos 90 seria publicada em Portugal, motivando expectantes visitas às livrarias na esperança de ter chegado mais um volume, com calendário mais ou menos irregular, durante uns dois anos. Jamais suspeitaria na altura que décadas depois iria viver no Japão e ainda menos que a minha simpatia por este fantástico género literário havia de diminuir muito bruscamente depois de cá estar.

Na realidade, o alerta foi-me dado num simpático e bem regado almoço lisboeta com o autor de banda desenhada com quem trabalhei esporadicamente, que me chamou a atenção para a particularidade da representação do corpo feminino na manga: quase invariavelmente, e independentemente do conteúdo de cada história, as personagens femininas são sexualizadas ao extremo e representadas por traços comuns à generalidade dos autores, com olhos muito grandes e voluptuosos volumes torácicos, por assim dizer. Quando cheguei ao Japão não foi difícil constatar que o público de manga é muito maioritariamente masculino: as revistas vendem-se nas lojas de produtos essenciais convenientemente distribuídas por todos os bairros de todas as cidades e vêem-se muito regularmente rapazes japoneses a consultar e a comprar as edições recém-chegadas, sendo muito raro ver raparigas nessa diligente procura pelas últimas novidades.

Não foi difícil concluir, depois de meia-dúzia de conversas, que os ideais de beleza transmitidos pela representação do corpo feminino na manga alimentam uma generalizada frustração. É verdade que em todo o lado os padrões de beleza física tendem a promover a idealização de corpos raramente existentes na realidade quotidiana (há “Barbies” e “Kens” em todo o lado), mas no caso da manga essa representação leva o ideal de beleza feminina a um extremo quase oposto ao dos traços morfológicos dominantes nas mulheres japonesas. Dessa preguiça que se traduz em repetir generalizadamente o mesmo padrão resulta com frequência uma permanente insatisfação: nem os rapazes encontram as raparigas com que se habituaram a sonhar, nem as raparigas se acham suficientemente dignas do interesse masculino (de outras particularidades das relações amorosas e familiares no Japão contemporâneo falarei um destes dias).

Em todo o caso, num mercado tão massificado há também espaço para alternativas. Na realidade, desde os anos 1970 foi-se desenvolvendo um sub-género (shoujo-manga) especificamente orientado para raparigas, cuja evolução está relativamente bem documentada em estudos e ensaios recentes. Parece consensual que as a representação das mulheres evoluiu da vinculação aos seus papéis sociais tradicionais para a sua discussão e questionamento em abordagens mais recentes, incluindo naturalmente aspetos relacionados com a sexualidade. Também a representação anatómica evoluiu, desde os iniciais lacinhos, uniformes escolares e predominância do cor-de-rosa, até uma evidente mistura de traços masculinos e femininos ou interessantes explorações sobre os limites do binarismo de género, questionando uma cultura dominante hegemonicamente masculina. Ainda assim, mesmo se o volume torácico diminui significativamente nas personagens femininas da shoujo-manga, já os olhos sobredimensionados continuam a ser um traço característico generalizado.

Também parece consensual que a shoujo-manga tem muito reduzida popularidade entre o público masculino, ainda que os temas não sejam necessariamente “femininos” – na realidade, os temas abordados são bastante variados e as reflexões que possam suscitar sobre a sociedade contemporânea são passíveis de ter interesse para qualquer pessoa (já agora: talvez não fosse inoportuna uma publicação deste género em português). Mas esta clara divisão de géneros literários e respectivas audiências não deixa também de ser reveladora da persistência de uma profunda divisão entre os papéis dos homens e das mulheres na sociedade japonesa contemporânea.

Não será só no Japão, evidentemente: na realidade, os movimentos feministas que foram assumindo protagonismo nos continentes europeu e americano nos últimos 50 anos não tiveram a mesma dimensão e impacto na Ásia. Mas não deixa de ser surpreendente observar tão abismal disparidade entre os papéis sociais de homens e mulheres numa sociedade tão rica, tecnologicamente desenvolvida e com tão altos níveis de educação como a japonesa. Voltarei ao assunto no futuro mas adianto que apenas 30% das mulheres em idade activa trabalham no Japão.

9 Nov 2018

Deslocação e viagem I

[dropcap]D[/dropcap]emora-se muito mais tempo a chegar a um sítio do que se pode pensar. Mesmo que o não pensemos explicitamente, há claramente uma diferença entre deslocação por locomoção e viagem. Não estou a falar necessariamente da diferença que existe entre viagem interior e deslocação no espaço exterior. Não, se decorrerem no mesmo tempo. À chegada, percebemos que estivemos sem prestar atenção à paisagem. Nem há que pensar que estivemos a ouvir música ou a ver filmes, se fôssemos conduzidos e não os próprios condutores. A sensação do tempo da deslocação pode dar a noção de que decorreu depressa, nem demos conta do tempo. Mas também pode arrastar-se, parece que nunca mais chegamos.

Há, em todo o caso, uma diferença entre a deslocação por locomoção e o transcurso temporal da viagem. Se preparamos o que chamamos uma viagem de fim de semana, de férias ou ao estrangeiro, estamos já virados para a possibilidade efectiva do que vai acontecer semanas antes. Não quero dizer que seja uma preparação minuciosa, ou de uma viagem que venha efetivamente a acontecer. Podemos considerar essa hipótese como que a sonhar ou como um desejo ou um voto. Mas consideremos a antecipação das férias, por exemplo. Pode requerer mais ou menos preparação. Podemos ir só com uma mala com artigos indispensáveis. Podemos ir por uma semana ou mês. Contudo, uma semana antes ou nos dias que antecedem a partida, estamos completamente virados para esse dia futuro. Estamos ainda a cumprir calendário, com uma agenda própria, a trabalhar, com as atividades normais que temos, com os nossos hábitos nos sítios a que vamos, com os horários que temos. Ainda assim, estamos já em contagem decrescente para o dia e hora da partida. Estamos na antecipação já na expectativa do que vai acontecer. E ainda faltam dias para a partida. Não começamos a deslocar-nos ainda, não fomos, por assim dizer. Podemos até nem nunca partir. Mas a viagem já começou. Os preparativos mesmo apenas mentais estão já a criar tensão. Podem ser despedidos, podemos não pensar neles, mas estão já a formar-se no espírito, temo-los em mente.

As vésperas de viagem estão já a construir a própria viagem. Viajaremos nós ainda? Podemos correr mundo e apenas deslocar-nos. É tudo velho de mais e o que encontramos tem diferenças mas não são muito acentuadas se viajarmos sob o planeamento de roteiros de viagem feitos para sítios diferentes sempre com uma mesma linha de edição, gizada por alguém que nunca saiu do seu quarto, podendo até viajar mais do que quem de facto viagem. Ou não: alguém que nunca saiu do seu bairro e quer ver em todo o universo à imagem e semelhança do seu sítio.

Talvez possamos viajar e fazer a jornada. A deslocação pode ser não apenas a anulação da distância entre o sítio da partida e o sítio da chegada. Pode ser uma viagem, uma jornada, onde encontramos pessoas e não apenas passageiros, condutores. Podemos encontrar sítios e não localidades com longitude e latitude. Podemos chegar diferentes, como quem entra numa dimensão completamente diferente do que aquela em que se encontrava quando partiu.

Não chegamos também apenas quando o percurso foi feito e o caminho galgado.

Demora tempo a chegar e a esquecer velhos hábitos. É assim: para sítios, para pessoas, para coisas, para nós.

9 Nov 2018

Emigração chinesa para o Brasil

[dropcap]O[/dropcap]s monopólios dos bens essenciais encontram-se na ordem do dia quando em 1894 Camilo Pessanha chega a Macau, mas o negócio de Ópio e dos Cules anda ainda pelas páginas dos jornais.

O assunto da emigração de trabalhadores chineses, conhecidos por cules, reaparecera nas páginas dos jornais da cidade pois, Mr. Hippisley, comissário da alfândega da Lapa, no seu relatório respeitante ao ano de 1893 refere o envio de emigrantes chineses de Macau para o Brasil e insinua a má-fé do agente da Companhia Metropolitana do Rio de Janeiro, promotora dessa expatriação.

Tal devia-se ao Sr. Hippisley “entender que Macau não tem o direito de deixar embarcar colonos chineses para o Brasil, porque esta república não tem tratado com a China a esse respeito. É verdade que um tratado negociado entre a China e o Brasil em 1881, nada estipular sobre a emigração”, segundo o Echo Macaense, que prossegue, essa “insuficiência e a necessidade de uma especial convenção suplementar a fim de obter os trabalhadores que se desejam, foram reconhecidas pelo Brasil, que enviou à China para este fim um Enviado especial, que se achava em caminho. O Brasil não tinha representante na China, nem a China tinha algum agente acreditado junto ao Brasil, para velar pelos interesses dos emigrantes.” (…) “O facto da companhia se recusar a esperar pela vinda do Enviado e pela conclusão das negociações que o seu governo julgou necessárias, naturalmente despertou a suspeita sobre a boa-fé.”

A 17 de Outubro de 1893 partiram de Macau para o Rio de Janeiro 475 emigrantes chineses, mandados ir pelo presidente do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Porciuncula, para no Brasil trabalharem na agricultura. Transportados no fretado vapor alemão Tetartos, desembarcaram no porto de Imbetiba em Macahe no dia 5, ou 11 de Dezembro de 1893 e com eles veio um carregamento de arroz. De Macahe, divididos em dois grupos, seguiram pela estrada de ferro Macahe e Campos, ramal de Frade e passaram para o estabelecimento de emigração em Cabiunas, de onde foram distribuídos aos agricultores. O Echo Macaense, rebatendo o relatório do Sr. Hippisley, argumenta, “Estamos certos que melhor tratamento não teriam eles recebido se tivessem emigrado para Singapura, ou outras possessões inglesas, onde têm de trabalhar muito arduamente até reunir o preço das suas passagens.”

Clandestina emigração

O Governo da dinastia Qing proibia a emigração de trabalhadores chineses, mas quando a Companhia das Índias Orientais (EIC) em 1786 fez de Penang uma sua colónia, o governador dessa ilha pediu “ao representante da EIC, em Cantão, para recrutar artesãos e lavradores chineses e transportá-los para Penang através dos navios da companhia”, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, que referem, “Em 1805, o governador de Penang, informava o representante da Companhia das Índias Orientais (EIC) de que o governador da Índia Britânica planeava recrutar trabalhadores chineses para a colónia britânica de Trinidad. Foi proposto que os trabalhadores chineses se juntassem primeiro em Macau e, depois, fossem transportados para Penang por um navio português, a fim de evitar conflitos com o governo chinês.” (…) “Além dos ingleses, os próprios portugueses, em Macau, também recrutavam emigrantes chineses para as colónias portuguesas (Brasil, Timor, entre outras), através de Macau. Em 1812, chegaram ao Rio de Janeiro 300 chineses cultivadores de chá.”

Benjamim Videira Pires refere que “o povoamento do Brasil, no tempo de D. João VI, e por iniciativa do Conde de Linhares, se fez por meio dos chineses. Eles introduziram, no Jardim Botânico e na ex-fazenda dos Jesuítas Santa Cruz, do Rio de Janeiro, a cultura do chá. As plantações ocupavam muitos acres de um morro cheio de pedras, semelhante ao habitar da planta na China.” Adita Leonor Seabra e Liu Cong, “Numa carta enviada, em 1815, para o ouvidor de Macau, Miguel de Arriaga Brum da Silveira, o ‘cabeça’ dos trabalhadores chineses no Brasil lamentava-se da vida dura no Brasil, que não estava de acordo com o que se estipulara no contrato.”

Emigração para o Brasil

Sobre a emigração chinesa para o Brasil, o Echo Macaense de 29 de Agosto de 1893 começa por dizer, “noutros tempos, quando havia guerras, o excesso da população chinesa era tal que podiam emigrar milhões de chineses, com mais razão deve haver agora muita gente para emigrar, porque tem havido vinte anos de paz e não tem havido iniciativa da parte dos capitalistas para dar impulso a empresas agrícolas, o que é devido talvez a ter havido ultimamente tantos abusos e tantas companhias malogradas.

Nestas circunstâncias o Brasil convida os trabalhadores chineses para irem arrotear os campos daquele imenso país, que ocupa mais de metade da América do Sul, onde o solo é fertilíssimo, e rico em ouro e diamantes, arroz, trigo, madeiras, café, açúcar, etc..

Foi em 1531 que começou a colonização portuguesa no Brasil, mas até hoje existem numerosos terrenos incultos, e para os cultivar os capitalistas daquela república resolveram convidar trabalhadores chineses, tendo para esse fim primeiramente pedido ao Presidente da República que fizesse uma convenção com o governo chinês sobre este assunto. O Tsung-Li-Yamen já deu a sua anuência, e por isso vai haver uma legação brasileira em Peking e cônsules em Cantão, Amoy e Shanghae.

O artigo 13.º do tratado de Brasil com a China, celebrado em 1881, estipula que os chineses no Brasil gozarão dos mesmos direitos e privilégios que os brasileiros e os súbditos da nação mais favorecida, por isso a nova convenção servirá só para garantir ainda mais o bom tratamento dos chineses.

Se esta emigração for feita pelo porto de Macau, onde já se acha um agente do Brasil, as autoridades portuguesas serão muito vigilantes para evitar todos os abusos, pois que em Macau os emigrantes são primeiramente examinados na Procuratura dos Negócios Sínicos, e só depois de verificada a sua espontaneidade é que se lhes concede o passaporte.

Nas vésperas da partida do vapor, são de novo interrogados a bordo pelo capitão do porto, que faz desembarcar aqueles que não quiserem seguir viagem, donde se vê a imparcialidade e a justiça que presidem à fiscalização deste ramo de serviço; portanto poderão os mandarins ficar bem descansados a este respeito.” (…) “Seguem-se depois umas breves referências à Historia do Brasil, e a sua transformação moderna de império em república, faz ponderações sobre as garantias que oferece esta emigração feita com protecção do governo chinês, sobre a plena liberdade com que ela é feita, e sobre a conveniência de se aproveitar desta emigração para dar ocupação a tanta gente que não tem meios de subsistência, e para a qual os outros países estão fechados; e conclui por assegurar que o jornal advogará sempre os interesses dos oprimidos se alguém for violentado ou maltratado.” Estão memórias de uma triste História, escondida por detrás destas palavras.

9 Nov 2018

Ordenhar com amor uma vaca da Frísia

[dropcap]E[/dropcap]xistem coisas terríveis no planeta azul, é verdade. A amostra e o armazém confundem-se: jaíres que amam a estabilidade das ditaduras, sanguinários sauditas à solta e, virando a página, milhões e milhões de refugiados a errarem na parte sul do Sudão, nas Américas ou no Mediterrâneo. E dias há em que a televisão nos dá a ver inundações e tsunamis, mas há sempre vozes ventríloquas a papagaiar que tudo se passa lá muito ao longe.

As coisas terríveis têm a mania de acontecer na outra margem. Como se existisse um rio entre nós e a realidade, interrompido apenas quando sobre a nossa cabeça se abate uma gigantesca bigorna de aço. Se acordássemos do choque, essas vozes persistiriam. Cair uma bigorna na cabeça de alguém é sempre um pára-arranca a deambular lá muito ao longe. Nem seria preciso citar Napoleão a acossar pirâmides do Egipto, para concluir que os humanos gostam de imaginar os longes (‘longes bem longínquos’ onde tudo arde), adoram lucubrar sobre episódios terríveis e até se deram ao trabalho de inventar o teatro e a própria palavra “catarse”.

Colocando de lado por instantes o ‘coiso’ do Brasil, os tsunamis e os ventríloquos, é coisa corrente no dia-a-dia que as grandes e pequenas monstruosidades andam geralmente camufladas. Atravessamos a rua no fim da tarde de uma sexta-feira amena e temos aquela sensação na boca de estar a solfejar “Amor, I love you” de Marisa Monte, ou então vemo-nos a apanhar da calçada uma folha de plátano com toda a ternura, antes de teclar um coração no iphone. Depois, encaramos as nuvens paradas e concluímos que a vida é bela, cheia daquela harmonia dos verões da infância, lânguida de ardores (dos que antecedem os arsénicos de Emma Bovary). Poderemos até abraçar um peru ainda vivo ou ordenhar com amor uma vaca da Frísia e dizer que o natal é quando a alma de Mahatma Gandhi quiser.

Então porquê as monstruosidades camufladas? Não, não é por paixão carnavalesca. Talvez seja, na mesma ordem de ideias que levou Polonius a questionar Hamlet – “Will you walk out of the air, my lord?”, por causa daquele grau de suspeita que permite deduzir que ‘eles andam aí’. Por vezes nem precisam do ar que respiram. Sobrevivem ao jeito da melanina que protege do sol os mais apetecidos recessos cutâneos. ‘Eles andam aí’, pequenos e grandes, e comportam-se com tique de máscara mal colocada, fazendo lembrar osgas, louva-a-deus, cavalos-marinhos, sapos, lagartas, girafas, aranhas e corujas que sabem confundir-se com o pano de fundo da natureza onde se acoitam, sejam florestas, desertos ou corais. Só que, de um momento para o outro, aparece quase sempre quem os detecte. Coisa de sortudo e não de pobre diabo.

Pobre diabo é uma designação feliz, sim. Dizem que os pobres diabos são tão leves que sobem ao reino dos céus como sumaúma. E podem inesperadamente ser muitos, muitos milhões. Por exemplo: já experimentou, caro leitor, telefonar para Meo a perguntar por que razão a factura mensal aumentou de repente (e sem qualquer razão)? A voz gravada há-de desafiar a sua paciência celestial durante 40 minutos e depois você desiste por ter compromissos marcados. Já experimentou, caro leitor, ir às finanças anular um pagamento que teve como base o lapso de um funcionário? Há-de conseguir a validação dos dados, sim, mas, logo a seguir, terá que subir à secção das dívidas e vão dizer-lhe, a esfregar as mãos feitas de sumaúma: “a intervenção humana está feita, mas o sistema tem os seus timings próprios e, por isso, vai ter que pagar (e com juros), caso contrário haverá penhora das contas bancárias”. De um momento para o outro, os predadores confundem-se com as osgas, as louva-a-deus, os cavalos-marinhos, as aranhas, etc, etc, e não com o pobre diabo que se lembrou de ir resolver umas coisinhas correntes, no fim de uma amena tarde de sexta-feira, quando na esplanada do bairro toda a gente cantava em uníssono “Amor, I love you”. Há alegorias que valem mais pela amostra do que pelo armazém.

Seja qual for a escala do desvelo, caro leitor, confesso que não há gramática que resista a uma bela bigorna a perfurar o tálamo ou às pirâmides de gizé a mangarem com a estatura de Napoleão, pois tudo se passará inevitavelmente do outro lado, na outra margem, no silêncio de Polonius. O pessoal vê sites e notícias sobre os jaíres pistoleiros e as novas “invasões bárbaras”, o pessoal vê crianças mortas nas praias e ouve a nova geração de políticos da Hungria, da Polónia ou de Itália e, a caminho do ginásio ou de regresso das finanças, vai pondo uns likes na atmosfera. E com os phones cada vez mais enterrados nos ouvidos, a maior parte do pessoal continuará a ouvir sem parar os anjinhos ventríloquos e natalícios a fazerem de coro grego: ‘Let it be’, ‘No pasa nada’, ‘Baby It’ll be alright’ e outros hits tipo rap evangélico. Tal como Camus escreveu no romance A Peste: “…o flagelo reunia todas as suas forças para as lançar sobre a cidade e se apoderar dela definitivamente” (1). Já faltou mais.


(1) Camus, A. A Peste, Livros do Brasil, Lisboa, s/d, p.156.

8 Nov 2018

Dos jornais

[dropcap]T[/dropcap]omé não planeou enfiar-se no chapa e raspar-se com a viatura quando a viu estacionar à frente da barraca Trinitá e topou o motorista a esgueirar-se – torcido pelo gotejar de uma mija – para as traseiras. O apagão que logo a seguir, com artes de cleptómano, fez desaparecer a cidade é que lhe ondulou na cabeça e aí limitou-se a obedecer ao impulso.

Entrou na cabina, rodou a chave na ignição. A carrinha deslizou suavemente por entre os volumes enegrecidos (experimentou os óculos Ray-Ban que se encontravam no tablier), e só no fim da rua acelerou. Estava no papo.

Não havia mais que quatro ou cinco passageiros mergulhados no breu, mansas criaturas amodorradas, e ninguém dera pela troca do motorista. Deixou-se seguir sem acender as luzes interiores, sem o tinir duma sílaba – gado bom de ordenhar.

Era estranha a música que o leitor de dvds emitia, uma toada electrónica que parecia velha como o mundo. Ouvia-a e vinha-lhe à cabeça um refrão: há quantos anos deixei de usar ganga? Vacilava, se achava mais bizarro o gosto musical daquele motorista se o modo como as frases lhe despontavam na mente, cometas chegados de nenhures para um destino inadivinhável. Há quantos anos deixara de usar ganga? Deixou a música fluir, a ver onde aquilo ia.

Conhecia a rota como a palma da mão e levou a viatura sem custo até ao seu término. Aí encheu o carro de people, botões que se acotovelavam na gana de aninharem em casa. Aproveitou para descobrir que música era aquela. Neu! Hallogallo. Quase gala-gala, mas não conhecia. Voltou a pisar o play. Algas com ferrugem num mar electrónico – como vira uma vez na Costa do Sol. Já apinhado o carro, deu conta que aquele chapa andava sem cobrador – melhor, cobrou ele logo à cabeça.

Era vinte e duas horas em ponto e o apagão alastrara a sua tinta de polvo por toda a cidade.

Ladeava o muro da lixeira do Zimpeto quando sacou da pistola com silenciador que havia comprado ao china e, sem se virar, atirou ao acaso por detrás do pescoço, visando duas vezes à esquerda e três à direita. O silenciador funcionava, não fazia mais ruído que um peido de formiga. O escuro, a surpresa, a sua rapidez – ajudaram.

O alarido só rebentou quando numa guinada parou o chapa à beira do muro e, gozando o prato, acendeu as luzes virando-se para trás, de pistola em riste. Os passageiros, no calado de um navio de muitos quilates, miravam as vítimas de cabeça pendida. Atingira um olho, um coração, uma testa, um cotovelo que guinchava e um pescoço gorgolejante. Uma mulher gritou, pela última vez na sua vida. Remédio santo para os demais.

Disse-lhes:
– Bradas, passem tudo o que têm nos bolsos.

Depositaram tudo no lugar do morto. Moedas, notas, telemóveis, porta-chaves. Até camisinhas. Encheu os bolsos. Depois fechou as luzes do chapa e articulou, pausadamente:
– Zuca lá para fora mas easy, relax, vamos pôr os mortos onde devem estar…

Aos ouvidos dos seus acagaçados passageiros a sua voz soava metálica, não se apercebia. Desceram do chapa retardando o passo, mais enfiados que o esterco no rabo do cabrito.

Veio-lhe ao nariz a certeza de que um gordo se borrara. Depois do gordo desceu um madala com umas calças de ganga. Há quantos anos deixara de usar ganga? Desligou a música. Alinhou-os contra o muro. Aproveitando-lhes o estupor, na rapidez que lhe dera o treino de comandos, mudou o carregador da arma. Contou-os, eram treze. Abateu o gordo:
– Crazy, não gosto do treze e o camone fedia…

Uma mulher soluçou. Baixinho. Grossas bátegas de calafrio entrechocavam-se como seixos na testa dos homens. Ao redor, os grilos faziam de segundos violinos. Vivalma. Noite de trevas, muito ao longe acenava o farol dum carro, mais solitário que o lenço de mulher esquecido. O gordo gemia. Um balázio na cabeça serenou-o. Tomé suspirou, entediado e observou:

– Black é assim mesmo, vive da bacela do medo. Vamos ao que interessa. Quatro a quatro, peguem nos corpos e atirem-nos por cima do muro. Sempre que falharem abato um dos quatro…

Os homens superam-se. Os cadáveres rebolavam sobre si mesmo, impulsionados à justa. O quarto corpo elevou-se um pouco mais, somou uma reviravolta ao trajecto e pairou no ar antes do ombro esquerdo ir embater no topo do muro fazendo-o girar para o outro lado. Suspiros. Não ficaria mal aqui a ratonice dum corvo, se um corvo fosse capaz de se interrogar, Há quantos anos deixei eu de usar ganga. Porém, Tomé congelara a música dos alemães Neu!

Ao baque do último corpo no outro lado do muro, Tomé gabou:
– Somos melhores que os mambas… os moçambicanos só precisam de uma motivação… – e atirou para o ar – Alguém guia?

Um rapaz novo, receoso, levantou a mão. Tomé – deu-lhe um súbito cansaço – deixou cair a arma, olhou para ele e sugeriu, atencioso:
– Leva-os daqui… – após o que sorriu, antegozando a ideia – Para os jornais digam que foi um comando da Renamo, e largou uma gargalhada.

Num ápice, desapareceram. Foram no encalço de um velho Mercedes que passou, tossicando.

Tudo correra pelo melhor. O apagão, a hora, a pouca afluência de carros, não ter havido um passageiro que se julgasse com estofo de herói… até a piada final lhe saíra a primor. Além disso, Tomé que, como o seu xará bíblico, gostava de ver para crer, era obrigado a reconhecer que os chineses, afinal, não têm à venda só a fancaria das lojas de trezentos, tinham do bom.

Encaminhou-se para casa, ali perto. A mulher esperava-o. No dia seguinte podia comprar-lhe um micro-ondas, tão prático para durante a noite se aquecer o biberão do bebé. Os óculos Ray-Ban ficavam-lhe a matar.

Glossário: madala, cinquentão; bacela, brinde; mambas, equipa moçambicana de futebol

8 Nov 2018

As pessoas são estranhas

[dropcap]É[/dropcap] possível que o mundo precise de ser salvo. É pouco provável que isso venha a acontecer. Ou mesmo que seja desejável. E enquanto os grandes desígnios da Humanidade não se cumprem, observemos o que para aqui nos interessa: os seus pequenos desígnios, iguais e da mesma forma espantosos.

O amador da natureza humana tem uma vantagem sobre os restantes indivíduos: há sempre qualquer coisa passível de deter o seu olhar, por mais irrelevante ou marginal que possa parecer. Normalmente são factos disfarçados de trivialidade, reservados para rodapés ou comentários ociosos que facilmente se esquecem.

Mas, caro leitor, estes pequenos afluentes humanos que correm ao lado do grande rio da História não deixam de ser reais. Como esta notícia recente, por exemplo: um cientista russo, Serguei Savitsky, esfaqueou o colega com quem se encontrava em serviço numa remota estação científica na Antárctida. Até aqui nada de novo – altercações violentas acontecem um pouco por todo o lado. Mas o motivo não: a vítima não parava de contar ao agressor os finais dos livros que o outro estava a ler. Pausa para o leitor sorrir, como eu fiz. Só que este pequeníssimo alfinete no Grande Esquema Das Coisas pode ter mais do que se lhe diga (para além de Savitsky ter ficado com a honra duvidosa de ser o primeiro homem condenado por esfaqueamento na Antárctida). É que a coisa já tem antecedentes. E com elementos comuns.

Explico: em Setembro de 2013 dois homens discutiam acaloradamente as obras de Immanuel Kant. Subitamente um deles, provavelmente por um qualquer imperativo categórico, disparou várias balas de borracha sobre o interlocutor, acabando assim o debate. Eram ambos russos. Mas continuem comigo: quatro meses depois do incidente que relatei, outro esfaqueamento. Desta vez a discussão era outra mas o tema também era relevante: o que é superior, a prosa ou a poesia? Um ex-professor resolveu colocar o argumento definitivo sobre esta matéria em forma de arma branca; a vítima, um homem de 67 anos, não resistiu aos ferimentos. Aconteceu no sul de Sverdlovsk que fica – adivinhastes – na Rússia.

Que conclusões poderemos tirar daqui, leitor ? Pessoalmente acho qualquer tipo de violência inaceitável; mas poderei dizer que não compreendo estes homens ? Ou estes acontecimentos confirmam as teorias de que existe uma identidade colectiva (e nestes casos em particular a famosa Alma Russa)? Ou mais prosaicamente que o vodka pode prejudicar qualquer discussão literária ?

Não sei responder. Como de costume vou buscar santuário ao que já foi escrito (e tudo já foi escrito) para tentar compreender as coisas, E encontro-me com esta famosa locução de Publius Terentius Afer (194 a.C ? – 159 a.C), um autor romano de várias sátiras e comédias: “Homo sum, humani nihil a me alienum puto”, ou seja “Sou homem; nada de humano me é estranho”. Uma atitude distanciada e quase blasé sobre aquilo que somos e fazemos. Mas felizmente, e por mais banal que isso possa parecer ainda é possível maravilhar e estranhar. E quem sabe, isso sim poderá salvar qualquer coisa, por mais pequena que seja. O mundo, nunca se sabe.

7 Nov 2018