A agenda extasia os servos

[dropcap]O[/dropcap]s seres humanos não conseguem lucubrar sobre tudo. Há limites. É por isso que existe a poesia, é por isso que se criaram as religiões, é por isso que houve necessidade de se inventar a filosofia e outros modos de perceber e de questionar.

Imaginemos, no entanto, uma peça de teatro em que o princípio activo fosse esse: dez ou vinte personagens em cena a falarem sobre tudo e sobre nada ao mesmo tempo. Seria uma coreografia sobre o que não existe, uma verdadeira panóplia para loucos, na medida em que “tudo” não passa de um pronome indefinido e invariável, logo algo que faz pela vida apenas na imaginação das pessoas e não na realidade, digamos, tangível (Shakesepeare jamais podia ter comparado a linha avançada do West Ham com a do Leicester).

O normal – sim, falemos de coisas normais – é a existência de escolhas, de opções, de alinhamentos (como escreveu o semiótico dinamarquês L. Hjlemslev, os humanos recortam do continuum as suas opções, embora esse recorte obedeça a linhas de resistência, tal como os pintores na pré-história permitiam que os seus traços se orientassem pelas linhas da rocha). Ao escolhermos, a nossa soberania é sempre uma soberania orientada, prescrita, definida.

Durante praticamente toda a história dos humanos, as proibições facilitaram as escolhas possíveis. Sempre foi proibido falar de muitas coisas, por razões políticas, espirituais, históricas, tabus, etc, etc. No ocidente moderno, a ideia de liberdade (enquanto possibilidade) foi, entretanto, escrevendo a sua própria história. E o que sempre limitou a liberdade acabou, também, por ser o que melhor a caracteriza.

Hoje em dia, sentimo-nos livres quando se designa por agenda aquilo de que se fala. A agenda é a sucedânea das antigas linhas da rocha que orientavam os pintores pré-históricos. A agenda é o novo sinaleiro tectónico que nos diz sobre o que lucubrar e quando.

A agenda selecciona alguns tópicos que se vão abrindo e fechando ao longo dos dias. Esses tópicos surgem com o formato das ondas: erguem-se no alto, rebentam, espumam (por vezes muito) e logo desaparecem. O vestígio e a patine que ficam deste exercício são constituídos por gases raros. Um nada que se forma como uma nuvem de Verão: chamemos-lhe memória (ou o que dela ainda resta).

Quase tudo o que a agenda viabilizava há 24 ou há 36 meses já não existe hoje no debate diário. Do mesmo modo que a agenda dos últimos dias, tão vociferada nos teclados, irá em breve esvair-se. Perdemos o dom da ritualização e adquirimos o propósito do fluxo. Estou a referir-me ao escritor que disse que não se atirava a mulheres com mais de 50 anos, às expectativas dos estudos ambientais em torno do aeroporto do Montijo, às vicissitudes do muro de Trump, às entrevistas a fascistas na TV, à rapariga saudita em fuga pelo sudeste asiático, às greves de sectores da função (naturalmente) pública, aos políticos na justiça dando a ideia de que são perseguidos, aos pobres globos de ouro, à vaga de gripe, aos treinadores de futebol que saem e que entram, aos migrantes sem porto para desembarcarem e à Tesla que se está a instalar em Xangai.

Os tópicos da agenda começam geralmente por um facto e, depois, inflamam, degeneram e tornam-se em ziguezagues palavrosos que se acirram. Mais de noventa e cinco por cento das pessoas que ‘dão opinião’ (nesse novo polígrafo do julgamento divino chamado redes sociais) é o que fazem: pescam um tema da agenda e depois assanham-se, inebriam-se ou registam aquilo que imaginam advogar como se fosse algo único, ímpar, fundador do mundo. Virada a página do dia ou da semana, é como brincar às escondidas: lá se removeu todo o miolo da convicção, lá se foi toda a massa do pão da madrugada passada para que possa amassar sempre a do dia seguinte.

Na verdade, nunca ninguém está presente. O vazio da véspera é o já o vazio do próprio dia. Razão pela qual o ‘feed’ das redes sociais é um fio-de-prumo sem qualquer arquitectura para habitar. E o mais maravilhoso é que a nossa era vive precisamente desta beleza sideral: o que não faz parte, nem nunca fará da agenda (aquilo para onde ninguém olha, por outras palavras) é o que melhor a definirá. Da mesma maneira que a fotografia se pode definir, nos nossos dias, como aquilo que ainda não foi fotografado, tal é a hemorragia com que as imagens, sendo o que são, se estão a transformar em coisa nenhuma (um ‘sample’ que é repetido até ao torpor). Não deixa de ser verdade meus amigos: a fotografia é aquela parte de mim ainda por fotografar.

Sabendo que, na verdade, nunca ninguém está presente, pergunto-me, por vezes, por que razão continuo ainda a pagar a assinatura do cabo, já que em todos os canais, com raras excepções (mesmo na, por muitos adorada, neflix), se vê sempre o mesmo filme. A agenda é matreira e consegue espalhar eflúvios de aparente felicidade nos povos do globo! Mas eu sei por que continuo a pagar: tenho que estar dentro da rede, nos calores da infosfera. Fora da gruta, ‘liberto’ das opções impostas, eu seria um desalojado e sentiria graves problemas de sobrevivência. As presas de caça dos neandartais são hoje megas gigas teras petas. Assim é. Pouco mudámos, já se vê.

Assim é. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que conseguimos falar sobre tudo e sobre nada, ao mesmo tempo. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que está tudo à nossa mão e de que somos livres a fazer as nossas opções. Nem que seja para que nós, humanos, tenhamos a sensação ilusória de que é ‘bluff’ pensar numa agenda que nos tende a escravizar.

Os novos escravos têm diante de si o espelho e o teclado da normalidade e deixam o seu traço no mundo, interiorizando a ideia de que são os personagens mais autónomos do planisfério. Por vezes usam maiúsculas, repetem clichés, imaginam-se na ponta do charuto de Churchill e cantam fora da banheira como se fossem Plácido Domingo. Ao fundo da rua, ouço tantas, tantas vezes Nietzsche a rir à gargalhada.

17 Jan 2019

A arte como campo de batalha

[dropcap]D[/dropcap]e quando em vez a vida oferece-nos pepitas inesperadas e muito bem-vindas, que com sorte irão ficar connosco até ao fim. Foi o que me aconteceu, há alguns meses: graças a uma sessão dos Poetas do Povo – encontros poéticos idealizados pelo meu amigo Alexandre Cortez e que já vão no quinto ano de existência – vi-me, pela minha condição de anfitrião, a jantar ao lado de Mestre Cruzeiro Seixas. Para quem não sabe de quem falo, poupo uma ida ao Google: Cruzeiro Seixas é, juntamente com Fernando Lemos, um dos sobreviventes dos surrealistas portugueses. Poeta e pintor, aos 98 anos apresenta um humor e lucidez fabulosos, para além de uma disponibilidade encantadora. Muitos foram os momentos que retenho dessa noite; mas para o que aqui me interessa houve este que passo a contar.

O restaurante-bar onde se realizam estas sessões acolhe também uma residência artística de jovens fadistas. E assim, durante o jantar e entre conversas, ouvimos fado. No final da actuação da artista perguntei ao mestre o que pensava ele do fado: «Adoro!», disse-me com os olhos a brilhar. «Sempre adorei mesmo quando não se podia gostar de fado porque era coisa do regime e outras asneiras parecidas…Eu gosto e gosto porque o sinto.»

Foi esta resposta, tão anacrónica e marginal no clima destes dias, que me interessou. Eis um homem que manteve durante a sua vida posições políticas que quase lhe custaram a liberdade; que sempre se envolveu com o seu tempo e que no entanto proclamava para um género artístico a quintessência do prazer solitário – o prazer estético, sem intenções, função ou moral: apenas sentir.

Só que nos dias que correm este tipo de sentimento parece ter perdido valor e sentido. A arte é definida não pelas impressões que provoca ou cria no espectador mas pela sua função de educação social e política. Se não tem uma “mensagem” não é “arte” – será coisa menor, entretenimento ou, no pior dos casos, subversão.

Wesley Morris, crítico de arte e cinema, disse-o melhor num excelente artigo publicado no New York Times em Outubro de 2018 (e neste excerto que opto por não traduzir) : «A disagreement over one piece of culture points to where our discourse has arrived when it comes to talking about all culture — at a roiling impasse.

The conversations are exasperated, the verdicts swift, conclusive and seemingly absolute. The goal is to protect and condemn work, not for its quality, per se, but for its values. Is this art or artist, this character, this joke bad for women, gays, trans people, nonwhites? Are the casts diverse enough? Is this museum show inclusive of enough different kinds of artists? Does the race of the curators correspond with the subject of the show or collection? Increasingly, these questions stand in for a discussion of the art itself.» Ou seja, quando se discute arte não se está a discutir estética mas ética – ou a ausência dela face aos valores prevalecentes nesta cultura. Morris é um produto da academia dos anos 90, que embarcou nesse lamentável flagelo que é a “morte do autor” definida pelo estruturalismo. E é desse modo que percebe os erros que este tipo de avaliação incorre.

Mas piores do que os erros são os perigos. Num ensaio de 1913, Lytton Strachey – para mim o mais interessante e talentoso membro do chamado “Grupo de Bloomsbury” – prevê na perfeição este cenário: a intolerância, depois de estar presente na Metafísica (com as perseguições religiosas) terá passado para a Ética (com a condenação de comportamentos “desviantes” como a homossexualidade) para finalmente ir procurar refúgio no derradeiro abrigo: a Estética. Acertou. Todos sabemos o que está a acontecer: livros que são banidos por serem “racistas” ou “homófobos” ou, de uma forma vaga, ofensivos. A cultura popular ressente-se imediatamente: a série de animação Family Guy (até agora com um humor livre e ácido) vai ser higienizada pelos seus autores de forma a não incluir piadas que possam ofender a comunidade gay; o grupo de rock Guns n’ Roses, famoso pelo seu modo de vida, hum, rock n’roll, anunciou que vai retirar de futuras compilações algumas canções que podem ser “ofensivas” – o que deveria logo fazer-nos perguntar de que raio vale estar num grupo de rock se não podemos ofender ninguém.

Nesta intolerância estética nem os personagens de ficção são poupados: James Bond – repito: o personagem criado por Ian Fleming – foi condenado por um grupo de respeitáveis profissionais de saúde por ser “alcoólico”. E já há pressões para que passe a ser representado por actores de cor ou transgénero, para que as minorias supostamente ofendidas fiquem tranquilas.

É este o estado do mundo. Um amigo lembrou-me há alguns dias como nunca teria pensado ser outra vez necessário defender o célebre prefácio de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, onde o autor irlandês defende coisas como «Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que buscam sob a superfície fazem-no por seu próprio risco. Os que procuram decifrar o símbolo correm também seu próprio risco» até ao seu famoso desfecho «Toda a arte é inútil». Talvez não o seja – e não é – mas essa possibilidade terá sempre de existir.

16 Jan 2019

Data redonda com arestas

Horta Seca, Lisboa, 2 Janeiro

[dropcap]C[/dropcap]ontagem, agora mesmo que nos fixamos no calendário, na tentativa de melhor o ver. Cem crónicas sem que a dúvida se dissipe: em negro pano de fundo, aquilo que aqui se vem desenhando chega a ser espelho?

Horta Seca, Lisboa, 3 Janeiro

Mau e frio, este tempo. O [José] Bandeira, há tantas décadas a fazer-nos pensar de sorriso nos lábios, foi posto fora das páginas do Diário de Notícias em silêncio. Merecia suplemento especial, que assinalasse devidamente o seu contributo, mas nem falo nisso; eu, leitor, pedia apenas um obrigado. O [Paulo] Barriga, que fez do Diário do Alentejo um jornal atento e criativo, singular, acaba de ser saneado de modo vil. Ele há frios mais gélidos que outros, que nos encolhem, nos tolhem.

Horta Seca, Lisboa, 10 Janeiro

Só mesmo Tintim saberia resolver este enigma: Quem é Tintim? O seu nome está algures entre a alcunha e um erro infantil de dicção. Não tem apelido, veio ao mundo despido de família. E de infância: nasce a 10 de Janeiro de 1929, logo como repórter aos quadradinhos do Petit Vingtième, suplemento infantil de um jornal conservador belga que levava o nome do século. Tinha 14 anos. Cinquenta anos mais tarde não passava dos 17. «C’est bizarre, mais c’est comme ça !…», confirmaria, Georges Prosper Remi Remi, o jovem belga que, aos 22 anos e sob o pseudónimo de Hergé, assinava aquele traço tosco que compunha um rosto com três pontos, enquadrados por um pequeno nariz e duas orelhas interrompendo um círculo. A popa era ainda mais cabelo que personalidade. Naquela aventura no País dos Sovietes, a primeira de 23, foi jornalista, mas nunca mais se lhe viu estilo ou texto ou reportagem.

Quem é esse, então, risco tosco que, em 1930, Bruxelas em êxtase esperava como se fora herói de carne e osso? Quem foi o único rival confesso do general De Gaulle e inspirador de Warhol e de tanta arte moderna? Quem é esse nome sem sentido que continua a ser pronunciado em mais de 45 línguas e a brilhar na capa de mais de 170 milhões de álbuns de banda desenhada? Quem é esse pseudo-jornalista que desperta vocações e é das figuras da cultura popular mais estudadas?

Tintim é perfeito. Destemido e incansável, o seu coração é tão grande como puro. Foi, à razão folhetinesca de duas páginas por semana, colonialista quando a Europa o era, mas nutria simpatia pelos índios pele-vermelha. Procurava a verdade a qualquer custo, o que, está visto, acaba sendo inocência simpática. O seu paternalismo equilibrava-se com forte disponibilidade para o outro. Não deixou nunca de defender os fracos e de combater as injustiças, mas sempre do lado do poder legítimo. No último dos álbuns, Tintim e os Pícaros, o ditador derrotado lamentava-se ao ditador vitorioso por não cumprir a tradição de fuzilar os vencidos, a pedido do nosso herói: «Um idealista, não é?… Infelizmente essa gente não respeita nada! Nem mesmo as mais antigas tradições!», responde-lhe o reposto Alcazar: «Sim, triste época esta…» Uma ironia, está bem de ver, que Tintim foi respeitoso da sua época, embora desconfiado de ideologias. Só um fortíssimo desejo de vergar o mal o fez cruzar a Terra, do Ártico à Indonésia, do Médio Oriente à Suiça, da América do Sul à África Negra, de Chicago ao país dos Sovietes, da China ao Tibete, de países inventados como a Bordúria a uma Lua tão premonitória que até tinha água. E nesse afã aventuroso de salvar amigos usou todos e cada um dos meios de transporte, do avião ao foguetão, embora tenham sido os barcos e o mar palcos especiais. Tornou-se nómada, mas por muito que viajasse, regressaria sempre a um apartamento incaracterístico que, apesar de tudo, não ficava longe do palácio de Moulinsart, onde um tesouro repousava escondido em globo terrestre. O dinheiro não entrou na vida de Tintim, cujos inimigos principais acabaram sendo os capitalistas, maquiavélicos manipuladores de políticos e causadores de guerras, patéticos génios do mal que enriqueciam com o tráfico de armas, drogas ou escravos.

Tintim foi perfeito, insisto. Além de corajoso, era atlético e inteligente. Não bebia, nunca fumava, jamais vociferou. Para isso se multiplicaram personagens como o Capitão Haddock, esse iconoclasta senhor de gritante vocabulário, ou os gémeos Dupondt, desastrados e vigilantes, direi mesmo mais, vigilantes desastrados. (Na página, o comentário de Pedro Pousada). Sem sombra de pecado, nenhuma mulher conspurcou o seu mundo moralista, herdeiro dos códigos de honra medievais. Mas o cavaleiro solitário teve uma cadela, Milu, a fox-terrier que falava e tantas vezes o salvou quantas lhe fez perigar a vida? De pouco importava, para Tintim a amizade estava no tecto do mundo. Por ela, amizade, verteu a única lágrima, em Tintim no Tibete, quando julgou que o seu amigo Tchang, que não via desde O Lótus Azul, havia morrido.
«Em Tintim pus toda a minha vida», cedia um Hergé de 76 anos, a um par de meses da sua morte, esmagado pelo peso do fenómeno. A perfeição do herói de papel tinha como reverso o humaníssimo percurso do seu autor. Do mesmo modo que a actualidade marcou o ritmo de cada uma das aventuras de Tintim, também a vida de Georges Remi se imiscuiu na obra de Hergé. «Muitos são os pontos que unem Hergé e Tintim», escreve Pierre Assouline, autor de uma biografia, Hergé (ed. Folio, 1998). «A começar pelo principal: são ambos produtos típicos das classes médias. Mas o que os separa é também notável. O repórter mete-se em tudo para o que não é chamado. Tem o carácter, o temperamento, o instinto de Hergé, mas sem as suas ideias. E depois tem um cão, ao passo que Hergé só gosta da companhia dos gatos.»

O pensamento de Hergé tem a cor da sua infância: cinzento. Assumindo como divisa «toda a convicção é uma prisão», tratava-se de uma moral que misturava em doses iguais o espírito cavalheiresco, o gosto da acção e o sentido de humor, valores de um escutismo bem comportado, mas individualista, atento ao mundo, mas preconceituoso, cheio de generosidade ingénua e misógina virilidade. Para Hergé, mestre da «linha clara», a lisura há-de ser sinónimo de limpeza. Ora todo o homem, e o século XX encarregou-se de o escrever em sangue, tem os seus lados obscuros.

George Remi enfrentou os seus demónios com a ajuda de figuras tutelares. Wallez, o padre reacionário e truculento, que se achava co-autor de Tintim, marca o período da formação. Tchang, o artista-estudante que lhe mudará a vida ao apresentar-lhe o Oriente espiritual e artístico é a do período (vermelho) da maturidade, que corresponde a’ O Lótus Azul. A descoberta, em Fanny, da mulher-amante, que o faz divorciar-se, marca um período depressivo (branco) de Tintim no Tibete.

E ergueu uma obra, apesar dos seus tabus, fossem eles a dúvida acerca da identidade do seu avô paterno; ou a sua má relação com crianças e incapacidade física para ter filhos; as suas longas e profundas depressões na fase final da vida, ou o período do colaboracionismo na imprensa pró-alemã durante a Segunda Grande Guerra. De todos, talvez seja este o mais discutido, quando se limitou a sobreviver com algum oportunismo, obedecendo, afinal, à… amizade.

16 Jan 2019

Ímpar

«Numero deus impare gaudet»

 

[dropcap]F[/dropcap]rase romana que diz que os deuses amam os números ímpares, crendo então na forte probabilidade do Ano inaugural vir a ser amado por eles e talvez por todos nós. Nós, que gostamos de coisas e pessoas ímpares, pois sem dúvida que essa particularidade nos encanta e perturba muito mais que ser par, mesmo que de paridades se viva e de tráfico comercial, também, dado que: “ao par é sempre mais barato”.

Mas o que é certo é que não há nada que resulte bem sem essa imponderabilidade dos ímpares, mesmo nas nossas comuns associações que não raro esbarram para sociedades aos pares, a par, e que param. O movimento. Esbarra com toda a orientação que inove a vida de modo a saber e poder ser vivida, impõe-nos funções que pouco se contornam, daí, o par explodir, ser de natureza destrutiva e de iguais desfechos.

O Ano abre então neste nosso calendário, fechando a década, com o luminoso dezanove, mas, como penúltimo, ímpar, único, como súmula do ciclo quase findo, nestes períodos contemplamos a veracidade desta matéria mesmo que uma década após tendemos a esquecer. «Yung e o Tarô uma viagem arquetípica» um plano de estudo que foi feito para alcançar o conhecimento dos arcanos menores do Tarot de Marselha, composto por vinte e duas cartas, falará da jornada do herói até ao número dezanove que é o que nos interessa agora analisar, o Sol! Remetendo-nos de início para os Contos da Inocência de Blake há uma luz que nos apazigua e convida ao retorno a uma zona pouco experienciada na esfera de evolução em que nos encontramos.

A noção apolínea do Ano agora em curso é um convite a todo esse diálogo de elementos não só apaziguadores como inversores a toda a ofensa severa face à natureza das coisas. Se todas as espécies de neuroses são as sombras agarrando-nos para sobreviverem a estranhas dimensões através dos nossos frágeis seres, este ano, talvez seja bom pensar nalguma providencial queda das suas influências, dado que o Sol atingindo o zénite as fulmina. Saídos das eras das molduras- de molduras penais, das molduras sociais, das molduras de ser, das molduras dos grupos, fomos saindo devagar das agrestes derivas de um processo duro e insano, e o nosso ser mais íntimo deixou de olhar de olhos abertos o grande espectro da intensa luz, feridos nos grandes cativeiros que a vida ganhara brilhos tremendos.

Pode ser de ora avante um convite ou apenas uma simples nota que convém registar, que o paradigma humano, esse, se transformou, e anos bons aconteceram, “annus horribilis” pares, ímpares, primos, mas poucos nos dão de facto a alegria de um número assim, e se falarmos de uma convenção, então poder-se-ia afirmar também que tudo o é, com a grave incerteza de não se saber se algumas nos repõem a alegria, só quando as convenções se ajustam ao hábito a natureza das coisas pode ser modificada. Solar, leva-nos para casa na ideia de habitat amplo e requintado- viver num solar- ao mesmo tempo existe neste nomear a ideia de jardim, e o jardim faz parte da estrutura simbólica do significado do arcano que nos despe dos restos mortais dos andrajos costumeiros e nos coloca livres e nus num espaço deleitoso.

Entrar num mundo cercado pode significar aqui, segurança, vimos como o desventrar dos espaços ameaçaram os nossos equilíbrios e nos fizeram sentir invadidos, como a transfusão de muitos corpos habitando os mesmos lugares transformou o chão em palcos de guerra, recolher ao instante feliz não será por isso um mal, nem ousar retirar dele todos os que o profanam na sua primeira dimensão psíquica de paraíso. De qualquer das formas há que a ele regressar. Há prerrogativas que se firmam como segredos, silenciosamente. Após toda a névoa de uma mente que não fixou um saber libertador entraremos na experiência directa com a recuperação de uma energia renovável, cuja vontade é olhar, ficar, e viver toda a alegria das coisas ao redor. Hoje mesmo havia a tal neblina fria que nos inunda de um mistério antigo, coisas de quando ainda gravitávamos na escuridão …nós, a quem nascem guelras nos momentos em que precisamos de processar a água atmosférica e que fomos criando lianas nos fundos da alma…!

Atravessemos o tempo com algumas reformas e mudanças na jornada do caminhante que somos, deixemos o dia lavado, as coisas ditas, as formas ser, e quando tudo for restaurado nos subtis equilíbrios, esperemos o Sol . Ele vai levar-nos para Casa. Fala o número, Jung, e este instante da Criança Eterna.

15 Jan 2019

Emigração de menores chineses

[dropcap]O[/dropcap] Procurador Júlio Ferreira Pinto Basto enviou o seguinte ofício ao secretário-geral do governo de Macau, Sr. Henrique de Castro: Até essa data estava estabelecido deixá-los emigrar, quando nos exames a que aqui se procedia, mostravam espontaneidade e prestando a pessoa que os apresentava fiança idónea para qualquer reclamação, a haver sobre os menores depois de embarcados. Era também anteriormente à citada data esta emigração quase diminuta. Começou a aumentar este ano e com esse aumento, como era natural, tentaram-se os abusos que motivaram a minha informação no já citado ofício.

Desde essa data regularizou-se este serviço merecendo sempre a minha vigilante atenção, e parece-me poder asseverar a V. S.a que algum abuso, que por ventura tivesse havido, anteriormente, ficou completamente extirpado.

Só se aceitam emigrar menores depois de cabalmente averiguada a sua espontaneidade, e que a pessoa que os apresenta é seu pai ou mãe, e no caso de orfandade a pessoa que os representa, devendo esta ser tio ou irmão maior. Para se chegar a este conhecimento empregam-se os meios seguintes, que me parecem profícuos.

Isolado o menor em casa separada da pessoa que o apresenta é-lhe perguntado o seu nome, idade, naturalidade, profissão, o modo por que veio a Macau, o nome da pessoa que o apresenta, o seu modo de vida, a terra em que vivia e muitas outras coisas neste sentido. São escritas as respostas que o menor dá a cada pergunta. Em seguida fazem-se à pessoa que o apresenta as mesmas perguntas que a este e devem as respostas combinar exactamente, sem que o que se não aceita o menor a emigrar. Tanto a pessoa que apresenta o menor como a que o contrata prestam fianças idóneas. A primeira responsabilizando-se por alguma reclamação que por ventura possa ainda haver por parte de algum outro parente do menor, e a segunda por que as estipulações do contrato sejam fielmente observadas pelo patrão do menor. Os contratos são em triplicado sendo entregues um ao menor, outro à pessoa que o engaja e o terceiro remetido à essa secretaria para ser enviado ao cônsul português no país onde o menor se destina, para tomá-lo debaixo da sua protecção e vigiar que sejam observadas as cláusulas ali estipuladas. O contrato garante ao menor um salário mensal de $4 durante 8 anos, uma educação moral e religiosa, assistência médica e ser empregado apenas como criado de casa.

Desde o 1.º de Janeiro até ao último de Julho do corrente ano tem emigrado por esta repartição 97 menores. Sendo 15 para Havana e 82 para o Perú, contando neste último número 11 raparigas.

Por informações colhidas nesta repartição de chineses vindos do Perú e Havana consta que estes menores são ali muito bem tratados, sendo-o alguns como filhos dos seus patrões.

É costume entre os chineses venderem e mesmo darem os seus filhos, quando se vêem sem meios: e por isso não deve admirar que os próprios pais os venham apresentar a emigrar. Debaixo deste ponto de vista a emigração dos menores bem fiscalizada e regulada, como se acha actualmente, é altamente moral e civilizadora. O pai, que iria sacrificar o filho a uma escravidão perpétua vendendo-o, dá-lhe a liberdade e a fortuna contratando o seu serviço sob condições vantajosas. Geralmente são admitidos a emigrar a terça parte dos menores, que aqui são apresentados, e que se propõem emigrar. Os que deixam de emigrar são rejeitados geralmente porque a incoerência ou contradição das respostas dadas pelo menor e pela pessoa que o apresenta, faz suspeitar que ela seja um falso parente e um embusteiro.

A pessoa que vem contratar os menores apenas paga pelo serviço que se faz nesta repartição cinquenta avos ao escrivão, que faz o termo de fiança, além do selo de duzentos réis por cada contrato que é pago na fazenda e o respectivo registo.” Como o serviço fora montado na Procuratura dos Negócios Sínicos de Macau exclusivamente pelo Procurador Pinto Basto, pergunta este se merece aprovação. Pelo secretário do Governo, o Governador respondeu no dia seguinte dizendo aprovar provisoriamente o modo como é regulado esta emigração limitada e excepcional.

Receitas da emigração

“Se um navio estrangeiro vem à China buscar trabalhadores, o número que cada navio há-de transportar é fixado de um modo determinado, e o aliciador de culis faz um contrato, marcando-se dia certo para a saída do navio, devendo nesse dia estar preenchido o número. Quando o aliciador tem já celebrado o seu contrato, vai procurar em cada aldeia e cada distrito um aliciador subalterno, e faz com ele outro contrato. Cada aliciador subordinado deve fornecer um número certo de culis, segundo o tempo fixado no seu contrato. Se no dia designado se passar sem que o aliciador apresente o número de culis a que se comprometeu, exige-se do principal aliciador o pagamento do dinheiro pela carta de fretamento do navio, pelas despesas feitas com arroz e mais alimentos, e por qualquer dinheiro que adiantadamente possa haver recebido, bem como os competentes juros por cada parcela das despesas. Então o principal aliciador vai ter com o seu subordinado para que o indemnize.” Exige ser ressarcido, obrigando-o “a desfazer a sua casa e a dissipar o seu património, vendendo mulheres e filhos, e além disso a suprimir a diferença que faltar.” Assim quando o tempo urge, inventa ardis, “Ou emprega drogas que os tornam insensíveis, ou usa de dolo, ou à força rouba os culis. Põe em prática toda a sorte de malefícios e repete-os indefinidamente. Tem pressa de completar o número e de acabar com a sua responsabilidade. É levado a isso pela força das circunstâncias”, segundo Andrade Corvo no seu Relatório e Documentos, a fonte de grande parte do que apareceu escrito nos artigos anteriores.

Os documentos consulares de 1872 referem terem partido de Macau 33 navios com 13.476 colonos, morrendo na viagem 625 e em 1873, 24 barcos transportaram 13.918, chegando menos 645.

As receitas do governo de Macau resultantes da emigração eram entre outras, por cada colono $1 por passaporte e meia pataca por contrato. A 24/10/1872, o Rei aceitou o acordo feito pelo Governador com os agentes da emigração, a substituir por um só imposto (3,5 patacas) algumas das verbas das licenças pagas por estes.

Da Superintendência da emigração chinesa de Macau, em 1872 foram enviados 21.854 chineses às autoridades de Cantão a fim de serem repatriados para as suas terras de origem.

Pelas ruas de Macau, só em 1873 foram encontrados 292 mortos, sendo a maioria culis inválidos provenientes dos depósitos, que eram abandonados em vez de serem repatriados.

14 Jan 2019

Sujeitos indeterminados

[dropcap]C[/dropcap]om tanto ardor se arrepelam os assuntos alçados à ordem do dia que ganham estes proporção cósmica, como se deles dependesse a fortuna e a regularidade do mundo. Mas logo que no cata-vento sopram outras excitações tudo se dissipa sem seguimento, efeito ou desfecho. Voltar atrás tempos depois – mesmo que tão só um par de semanas – ao que foi dito e vigorosamente discutido é como ir a um passado remoto onde as coisas se apresentam tão esdruxulas e embaraçosas como as calças à boca-de-sino dos anos 70 se as vestíssemos hoje. Exumar tais assuntos é capaz de valer a pena se for tido que as larvas da memória deixam a limpo o que tanto corrupio não degradou.

No dia 1 de Janeiro lá houve então mais uma Mensagem de Ano Novo de Sua Excelência o Presidente da República, despendida pelo actual incumbente.

Televisivamente é uma tradição encetada por Américo Tomaz, que a comunicava com monocórdica dicção de mestre-escola e fixado nos papéis, apontando para a câmara a cabeça de sáurio. Figurão manhoso e grotesco em partes iguais, tão nulo que a história o descurou, na última alocução que proferiu – mal sabia ele… – no primeiro dia de 1974, este Almirante de secretária estadeou com plenitude a sua vacuidade em frases como: “todos nós devemos ser profundamente humanos e, ao mesmo tempo, profundamente portugueses” ou “a Pátria tem o direito de a todos pedir que se unam cada vez mais.” Adágios que da Miss Alabama 2018 a um qualquer vereador autárquico, ninguém desdenharia.

Confirma-se, portanto, que apesar de vivermos tempos bem mais desenvoltos que os do antigamente, a tradição de rotundidade da Mensagem de Ano Novo mantém-se inalterável.

Serve sobretudo o discurso para azafamar as editorias políticas das redações, sempre ávidas de páginas chamativas, pondo em marcha um carrocel de declarações derivativas e subsequentes que passam optimamente por informação noticiosa. O que resolve a contento o quebra-cabeças que é fechar um jornal num dia em que estando todos, do povo aos responsáveis por ele, a jiboiar os excessos da quadra, nada acontece além dos folgazões e gélidos primeiros banhos de praia do ano.

Aos canais televisivos a mensagem presidencial fornece a antena de pelo menos 48 horas de debate e comentário, com comentadores (passe a redundância), um inclinado à esquerda, outro ao centro e eventualmente um terceiro apresentado como académico, infundindo assim um aroma de neutralidade e ciência (da social, não da autêntica) à cavaqueira.

Nas famigeradas redes sociais, onde um fósforo a arder equivale ao incêndio de Roma, a prédica presidencial é combustível óptimo para as apocalípticas altercações do costume. Por ali o mundo acaba todos os dias.
Os partidos também lá reagiram como lhes cumpre. Os partidos gostam muito de reagir porque lhes dá prova de vida e lhes permite exibirem, com “convicção”, “responsabilidade” e “sentido de Estado”, a determinação e a contundência que têm como múnus.

Com o tremendismo em que excele o actual inquilino de Belém, depois de em 13 parágrafos se aliviar do rol de chavões inerentes à credibilidade do cargo, entrou a alarmar as portuguesas e os portugueses interpelando-os com uma exigência. Afinal era tão só para lhes pedir que votassem nas eleições que irão pontuar o ano. Talvez não fosse momento para grandes explicações, mas decerto que o rogo seria menos inócuo se minimamente trouxesse luz ao perturbante facto de cada vez menos portuguesas e portugueses, e cada vez com menos crença, exercerem um direito inigualável e fundamental que os devia deixar orgulhosos por dele poderem fazer uso.

Guardado estava o bocado… Após algumas recomendações paternais, eis que o Supremo Magistrado da Nação solta a frase que concitou as atenções gerais:

“Podemos e devemos ter a ambição de dar mais credibilidade, mais transparência, mais verdade às nossas instituições políticas.”

Sem deixar os seus créditos por mãos alheias, os reactivos partidos retorquiram que sim senhor, que era mesmo isso, que tinha toda a razão. De igual modo a caravana de comentadores que segue estes dizeres, queimou toda a lenha da sua retórica para lançar sinais de fumo, com muitos rodeios e especulações, a propósito da sentença.

A todos faltou contudo, esclarecer um pormenorzinho. Estando subentendido o sujeito da oração e fugindo todos os intervenientes de calçarem esses sapatos, a quem afinal foi dirigida a invectiva? “Nós” quem? Ninguém se acusando é de supor que aos deuses ou à estratosfera.

No jogo de sombras em que protagonistas e figurantes actuam na ordem política vigente, este sujeito subentendido a que se referia O Senhor Presidente da República é a entidade mais enigmática e procurada pelo comum cidadão-eleitor.

“Eles” deviam dar um prémio a quem o encontrasse.

11 Jan 2019

Eterna aprendizagem

[dropcap]A[/dropcap] minha mãe tinha um hábito que eu, em criança, detestava. Quando me levava a uma consulta médica ou a um bailarico de imigrantes – ocasiões nas quais nos era exigido um aprumo suplementar – humedecia a ponta dos dedos com a língua e alinhava-me as grossas – e perpetuamente desarrumadas – sobrancelhas. Era tanto um gesto de cuidado como um tique incontrolável. Anos mais tarde, ao levar o meu filho à escola – ele que herdou de ambos lados da família umas sobrancelhas de nível florestal – dou por mim a mimetizar o gesto materno: antes de ele entrar na aula, componho-lhe as calças, ajeito-lhe o cabelo e alinho-lhe as sobrancelhas com um dedo húmido de saliva. Como numa das mais belas canções da Elis Regina: “Minha dor é perceber / Que apesar de termos feito tudo o que fizemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Ainda somos os mesmos e vivemos / Como os nossos pais…”

Não foi só esse gesto que herdei da minha mãe; devo-lhe igualmente a teimosia, uma boa porção de sarcasmo, a capacidade de me rir de mim próprio e, tentando futilmente pôr de parte a inevitável lamechice que vem à tona sempre que falo da minha mãe, provavelmente as melhores partes de mim. Do meu pai recebi a propensão a não saber quando estar calado, o gosto pela caça, pelo tabaco e pelo álcool e uma tendência a não acabar algumas das tarefas que me disponho a fazer, sobretudo se implicarem construir ou arranjar qualquer coisa.

Só percebi verdadeiramente os meus pais quando eu próprio fui pai. Sobretudo de todas as vezes em que falho ser pai, em que sou demasiado pequeno ou demasiado fraco para a tarefa incessante de educar e de cuidar de alguém. Nessas alturas lembro-me dos rostos fechados deles, tolhidos pela vergonha de não estarem à altura e pelo medo de nunca o conseguir estar. Conheço agora por dentro esses rostos. Essa declinação visual da impotência que todos os pais e mães desde sempre conheceram e exprimiram. A vivência da paternidade reperspectiva a condição de filho; de repente estamos do outro lado da fronteira, mal preparados, como quase em tudo na vida, e vivemos finalmente o interior dos gestos e das decisões de que víamos apenas, e mal, a casca. De repente percebemos as limitações, a angústia, o cansaço e, sobretudo e de uma forma completa e vertiginosa, o amor e a sua urgência complexa.

A minha mãe nunca percebeu porque é que eu quis tirar filosofia ou escrever. Não aprovou muitas das minhas escolhas na vida, nomeadamente as que implicavam uma relação de custo-benefício no mínimo duvidosa. Mas nunca fez mais do que opor-se-lhes verbalmente. Nunca fez por me condicionar a escolha do caminho ou por me cercear a liberdade. Essa é a majestade suprema do amor materno: amar aquilo que não compreendemos, amar mesmo aquilo que exprime o que não gostamos.

Enquanto pai, sei que nunca vou estar à altura da tarefa que me coube. Nunca ninguém está. Como escreve Philip Larkin, no poema This Be The Verse: “They fuck you up, your mum and dad / They may not mean to, but they do.” A minha módica esperança é a de nunca achar-me na posse da ilusão do conhecimento suficiente para ser pai. De achar-me sempre aquém, em falta e em dívida – sem que estas me esmaguem – para querer ser sempre melhor pai do que o sou hoje. Porque esse é o tributo maior que posso prestar ao meu pai e à minha mãe. Esse é talvez o único tributo possível.

11 Jan 2019

Cinestesias I

[dropcap]É[/dropcap] dos conceitos mais fascinantes da fenomenologia de Husserl. Hoje, fala-se também de propriocepção, uma percepção do próprio ou na formulação clássica de Kant: percepção. A palavra latina dizia: animadversio: viragem para a alma ou para o espírito.

A cinestesia em Husserl é uma percepção do movimento e da mudança. Ao olhar através da janela de um veículo pelo qual somos transportados, vemos tudo parado no seu interior, quando o exterior, todo ele, está em movimento. As árvores, os candeeiros, os objectos inamovíveis parecem estar em movimento, os carros na faixa contrária passam por nós a uma velocidade extraordinária. O juízo não crítico seria: nós estamos parados e tudo o mais está em movimento. Mas percebemos que somos nós que estamos a ser deslocados, nós estamos em movimento, e o movimento da nossa deslocação efectiva produz um movimento aparente dos objectos que estão parados. O nosso ponto de vista, aponta a alvos que podem parecer estar em movimento e estão parados e vice versa há objectos que parecem estar parados e estão a mover-se. A nossa perspectiva está continuamente a alterar-se, a ser ganha e a ser perdida, a transformar-se. Pegamos nela para ter um horizonte. Deixamo-la cair. Voltamos a ganhar perspectiva noutros tempos e noutras circunstâncias. A nossa experiência está continuamente a sintetizar descontinuidades temporais e descontiguidades espaciais. Todos os objectos da carruagem do comboio estão parados aparentemente. E, contudo, é o comboio e as suas carruagens que estão em movimento. Mas não só. Se olhar para uma mosca a voar, percebo os espaços que se constituem em segmentações paralelas atrás da mosca até à parede e entre a mosca e o meu nariz. Ela voa rapidamente da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, de cima para baixo e de baixo para cima, aproxima-se e distancia-se. Mas onde ela aparece é um ponto absolutamente descontíguo. É o contínuo temporal que liga a mosca ao longe, em direcção do canto superior esquerdo do tecto com a mosca perto, à minha frente, sem eu perceber as linhas que esboçou até estar de novo próxima de mim. Ao mesmo tempo, toda a sala se metamorfoseia catastroficamente. A parede lá ao fundo desloca-se no seu todo, toda ela, da direita para a esquerda, quando a mosca voa da esquerda para a direita. Desfoca-se e duplica quando fixo a mosca. Volta a ficar focada quando fito a parede e a mosca duplica-se, porque eu entorto os olhos. É também assim que provocamos uma alteração nos conteúdos percepcionados: ao olhar para qualquer lado incutimos na cena perceptiva uma alteração. O mesmo se passa quando viramos a cabeça, nos viramos para a esquerda e para a direita, nos levantamos e sentamos, deitamos e pomos de pé, quando andamos, corremos, paramos. Há uma composição contínua entre o que é um produto da imaginação ou da fantasia e o que é efectivamente realidade. O que é efectivamente realidade é composto, colmatado nas suas lacunas, com uma composição irreal. Movimento e inércia, transformação e inalteração estão continuamente a dar-se. Mesmo o que aparentemente é o mesmo está em mutação contínua. Percebemos o romper do dia e o cair da noite com uma alteração das condições de luminosidade: clarear e escurecer, mas também esfriar e aquecer. O dia seguinte dá-nos a secretária como a deixamos no dia anterior. O escritório é encontrado como sempre o temos encontrado, o mesmo se passa com praias, sítios onde não vamos há muito tempo ou só lá fomos uma única vez. A última vez da apresentação de um sítio é ligada com a primeira vez que voltamos a ver essa apresentação: alguém, uma coisa, uma paisagem, nós no espelho. Tudo pode estar no mesmo sítio e não apresentar indícios da sua alteração. E, contudo, são momentos diferentes do tempo que estão a ligados entre si e com essa ligação também o meu quarto de ontem é percebido como o meu quarto hoje, alguém na semana passada é percebido como alguém nesta semana, mas a outra pessoa da semana passada, de ontem ou de hoje de manhã não é dada agora neste instante do mesmo modo nem da mesma maneira. Eu agora não sou o mesmo de há pouco. Nem os outros nem as outras coisas. E a ligação faz-se não se sabe bem como. A cinestesia compõe a realidade. Liga movimento ao repouso, temos diferentes no mesmo sítio e sítios diferentes no mesmo sítio.

E a propriocepção, a percepção de si?

Estou sempre eu a acompanhar todos os sítios onde vou? Quando durmo acompanho-me? Quando perco os sentidos, quando me distraio, quando perco a atenção, quando não estou “lá” e estou “longe”, o meu eu acompanha todas as minhas representações, como diria Kant? E os estados de espírito com que vivi momentos da minha vida, fiz experiências, tive começos e fins, será que os acompanho? Ser eu é diferente agora e na infância ou juventude. Sermos nós é diferente ao longo das horas do dia, dos dias da semana, dos meses do ano, dos anos e das épocas da vida. Temos a sensação de que somos os mesmos e de que tudo pode mudar. A mudança não é a deslocação no espaço ou o movimento motor. É outra coisa. Não temos bem a percepção de ter mudado, de como a mudança altera a nossa maneira de vermos quem somos e de vermos os outros. Pensamos ou podemos pensar que tal como as árvores e os candeeiros parados dão a sensação de que estão a mover-se e nós é que estamos parados, podemos pensar que é tudo o resto que muda, todos os outros que são diferentes, e nós próprios somos os mesmos, não mudamos. E pode ser o contrário: podemos achar que mudamos, que sofremos experiências que nos alteraram o âmago do nosso ser, que tudo é agora diferente do que foi e não sabemos muito bem já quem somos, no que nos tornamos. Mas os outros não são bem quem foram. Outros há que são o mesmo e relativamente a eles somos também os mesmos. Mas que identidade é essa na mutação, no movimento, na alteração, na mudança?

Qual é o próprio de si para cada um daqueles que conhecemos? Como temos uma apercepção do próprio que é cada um de nós na relação com todos os outros, conhecidos e desconhecidos?

11 Jan 2019

As gerações são um gelado ao sol

[dropcap]O[/dropcap] poder é como a polifonia: um vasto conjunto de vozes que irrompe de todo o lado, não se detectando, na maior parte das vezes, de onde provém e para onde segue. É uma zoada que desejaria subjugar ou imobilizar tudo o que mexe e que se impregna em todos nós, pobres mortais. Como escreveu Barthes, na sua famosa Lição (1977), é discurso de poder todo aquele “que engendra a culpa e, por conseguinte, a culpabilidade daquele que o ouve”. Os poderes fazem parte da teia humana, ou seja: eles são o grande parasita do maior predador do planeta, o que quer dizer que estão muito para além da galáxia política ou das (muitas) redomas dos costumes. Até esta crónica é um pequeno apêndice de poder. Até os periquitos do Jardim da Estrela são adições de poder (já me têm subjugado a meio dos meus passeios matinais).

Num tempo secular em que a rigidez dos costumes começou a pouco a pouco a fluir, o que aconteceu gradativamente depois da segunda grande guerra mundial, as gerações passaram a constituir-se, cada vez mais, como agentes de poder (de muitos poderes). Não é por acaso que, hoje em dia, a publicidade visa targets cada vez mais jovens: dos adolescentes aos pré-adolescentes, tal é o poder que estas franjas passaram a conquistar dentro do que ainda resta do conceito clássico de família.

Tão longe destas encenações próprias do nosso tempo, João de Salisbúria escrevia, há 859 anos, socorrendo-se de uma imagem semelhante à que acompanha este texto: “os modernos (neste caso, as pessoas do seu tempo) são como que anões aos ombros de gigantes que vêem mais e melhor do que os seus predecessores, não porque possuam uma visão mais apurada mas porque se encontram numa posição mais elevada, suportada pelos gigantes”. O adágio, atribuído a Bernardo de Chartres, dava a entender que o esclarecimento do mundo vinha sempre e inevitavelmente de trás; só a partir da ‘Querela dos Antigos e dos Modernos’, oito séculos depois, é que esta relação se começou a alterar. Desde então, e com acelerações brutais até aos nossos dias, foi emergindo a ‘consciência do nosso tempo’ e a ideia de que é no presente, e só no presente, que se encontram os gigantes, os génios, os chavalões e, figuradamente, ‘os imortais’.

Cada geração com que convivemos nos nossos dias imagina-se sempre no cume da história, numa espécie de clímax ou de vórtice mergulhado em chantili festivo. A desmobilização das ideologias que iluminavam o futuro e domesticavam o passado, a par dos poderes encantatórios da tecnologia que nos devolvem a instantaneidade do agora como único tempo possível e fruível, sublinham a patologia. Escrevi “patologia” pois nunca houve um tempo tão desligado da história, quer no sentido antigo (da pertença escatológica), quer no sentido dos modernos (que recriaram a escala do humano após o Iluminismo). As gerações são hoje a graça divina animada pela juventude eterna dos ginásios, pelos likes no FB enquanto inscrição existencial, pela aceleração e mediação das imagens, enfim, por uma espécie de autismo social de tipo ahistórico. Um papagaio de peito feito a quem os deuses deram vida perpétua.

O presente basta-se, desta forma, a si próprio nos nossos dias. É até possível que tal venha a configurar a primeira grande utopia que se realiza enquanto se vive (será esse o segredo conjugado do virtual, do hiperespaço e da telemática). De qualquer modo, só se entende bem o que é uma geração, quando se sai da vaga. Isto é: ao cruzarmos as primeiras cinco ou seis décadas de vida, o olhar retrospectivo permite ver e rever de fora a emergência de uma nova geração a ocupar os seus poderes, os mais diversos e em todas as esferas (mesmo nas que parecem mais inofensivas como a literária, por exemplo). Tudo o que ela afirma e inscreve funciona como se tudo estivesse a acontecer pela primeira vez. Já nem está em causa a amnésia ou a vaguez dos horizontes. O culto vira-se sobretudo para hiatos de linguagem (como “os novos”, “a neo-”, o “retro”, os “primeiros”) que são indícios, ainda que involuntários, de uma auto-celebração que se vai tornando pouco inclusiva. Sinal dos tempos.

Quando o que se celebrava era um feito luminoso do passado que ritualizava efectivamente o presente, os ‘culpados’ éramos todos nós. Razão tinha Barthes no seu diagnóstico dos poderes (os tais discursos que “engendravam a culpa”). Hoje em dia, celebramo-nos a nós próprios, ou, por outras palavras, cada geração celebra-se a si mesma, fazendo dessa ‘correcção’ um modo eficaz de nos desculpabilizarmos. Nunca os poderes foram, portanto, tão invisíveis e, ao mesmo tempo, tão actuantes e arredados do ‘dever ser’ tradicional. A ‘correcção’ e a sua colmeia onanista de ditames (amante de uma imagem turva da liberdade) é filha desta saga que gosta, ao espelho, de se confessar como sendo fracturante. Não haverá maior devaneio.

A consciência de se ser geração é uma coisa recente e corresponde a um modo de caracterizar mutações sobre as quais deixou de haver controlo. O que realmente fractura é a quase ausência de leme no fluxo de acontecimentos que fazem o mundo e não tanto o que possa decorrer desse agente fantasmático que, há poucas décadas, se passou a designar por geração.

10 Jan 2019

Inserir nome de família

– Diz à Gisela o que disseste ainda agora.
– Que se dormisse lá em casa ficávamos em família.
– E que mais?
– Como antigamente.

*

[dropcap]E[/dropcap]les falam ao mesmo tempo, um por cima do outro, completam as frases um do outro, refilam um com o outro, confundem-se um com o outro, e ora competem sobre quem vai contar uma história, ora pedem ao outro que a conte. Servem-me café, sumo, tosta mista com manteiga, bolo-rei. Não lhes posso recusar nada e eles oferecem-me tudo. A televisão ligada nalgum programa da tarde. São os mesmos sofás verdes, mas a casa já não é a de antes. Já não é comprada e já não é aquela onde viram filhos e netos crescer nos últimos quarenta anos, e onde estive à mesa do almoço tantas vezes, terminando refeições com um licor caseiro. Estão muito magrinhos, digo. Mas eles sabem. Poderia ter dito: estão muito velhinhos, afinal ele está a uns dias de fazer oitenta anos. Mas eles sabem. Eles sabem tantas coisas.

Ela vai buscar-me à estação e, num regresso lento e cuidadoso, sempre a pé, fala-me dos últimos problemas e da vida nova, umas ruas abaixo da morada anterior. Reparo na igreja onde também já estivémos. Faz-me uma visita guiada à casa antes mesmo de o marido se levantar da sala e vir abraçar-me no corredor. Um abraço como só alguém que pensou que nunca mais nos veria pode dar. Brinco com ele: digo, as coisas que faz para ter atenção e histórias para contar. E se há alguém que tem histórias para contar, são estes dois.

O meu filho dizia, porque é que arranjaste uma rapariga, foi só para me chatear? Mas tu querias uma mana. Queria, mas uma coisa destas não. Na escola ele sentia-se infeliz, porque era o único que não tinha irmãos. Só que a irmã era um terror. Dez anos de diferença. No entanto, as fotografias de ambos mostram somente o amor entre eles.

Escusas de estar a enganar-me. Foi mesmo assim, o mais novo foi buscar o tablet e disse, A internet mostra como é estar nos cuidados intensivos, e se é assim que ele está, tenho de ir vê-lo. Mas claro que não podia e, quando ele finalmente pôde, eu já estava na enfermaria. É o que dá deixarem os miúdos ir à escola, aprendem a ler e a escrever e a navegar na internet, não podemos mentir-lhes. Já o mais velho, a primeira vez que foi visitar o avô, foi logo lá para fora chorar. Foi ele que me tirou do fundo do poço, quando nasceu. Tomei conta dele. Ele lembra-me muito o meu filho.

Tive uma tuberculose pulmonar aos onze anos. E depois voltou quando eu estava grávida, afectou-me os ossos. Estás a ver a tartaruga dentro da carapaça? Era ela mas num tabuleiro de gesso, numa gaiola, diz o marido. Só pensava no meu filho. Ele nunca me tratou por mãe. Perguntava: “Mãezinha, quando é que vais para casa?” E eu deixava-o com a ama ou com familiares e ele detestava porque não o tratavam bem. Os outros miúdos eram maus para ele. À sexta-feira, depois de deixar esta, ele vinha passar o fim-de-semana comigo. Foi praticamente um ano deitada, paralisada, um ano de visitas diárias ao hospital. À minha filha, agora, o médico disse, Despeça-se do seu pai porque ele não vai sobreviver. Mas o colega dele visitava-me todos os dias, nem ia para casa, queria cuidar de mim a toda a hora. E sobrevivi. O pai chora.

Ele sobreviveu melhor porque trabalhava, saía de manhã, vinha à noite. Eu estava em casa. Já me tinha reformado, cedo, por causa do problema nos ossos e das operações. Ao fim de tanto tempo de baixa, foi automático. Quando ele tinha de ir para algum lado por causa do trabalho, eu ia com ele. Havia dias em que eu não podia ouvir nada, dias em que eu não podia levantar-me para vesti-la, para ela poder ir para a escola. Eu dizia, espera só um pouco que a mãe já levanta a cabeça e já te ajuda. E ela dizia que não precisava de ajuda, que já sabia escolher. E eu dizia, então veste o que quiseres e depois a mãezinha já vê. Ela virava costas e ia a casa da vizinha pedir que a vestisse. Outro dia ela disse-me, Eu sei que preferias que tivesse ido eu em vez do meu irmão, eu sei que não fui planeada; fiquei tão triste, aquilo magoou-me muito. A mãe chora.

Feitios diferentes, apazigua o marido. Eu sei porque é que ela diz aquilo. Porque ela estava sempre sozinha. E já o meu filho tinha ficado sozinho. E depois nós ficámos todos sem ele. Eu fiquei desorientada, fiquei de cama, só eu e Deus sabemos o que passei. Ela diz que nos esquecemos dela.

Em Tenerife achei que ia voltar para Portugal num saco-cama. Olha, não terias passado por esta de agora. Pois não. Eles entendem-se mesmo no humor negro. Tenho passado bons momentos na vida, conclui. Passeei bastante, gozei bastante enquanto tive saúde. Se voltar a ter, gostava de ainda fazer algumas coisas. Ir à Madeira. Falam-me de todas as viagens que fizeram, em férias ou em trabalho. Contam as últimas dos netos, do genro, da filha. Mais tarde ela liga-me, diz, Os meus pais adoraram a tua visita. Eu não deixei de pensar neles desde então.

Acompanhamos pessoas a uma missa pela alma do filho, do irmão morto ao dezasseis por um colega mais velho, com uma faca de ponta e mola, sem nunca se saber o motivo. Vamos buscar os miúdos à escola com elas. Vamos juntos para a piscina. Telefonamos de vez em quando ou eles a nós. Partilhamos histórias de cirurgias, exames e sintomas que os médicos nunca chegam realmente a saber o que são, apenas o que não são. Vamos com elas ao supermercado, rimos com elas, pensamos em como sobrevivem com tanta dor e durante tanto tempo. Sabemos dos comprimidos para dormir, das mudanças, das avarias, dos tribunais, dos dias em que pensaram tirar a própria vida. Das coisas ditas sem querer. Da generosidade imensa, do cuidado.

Sabemos que houve alguém que se assumiu culpado de um crime sem testemunhas e depois se enforcou, vinte anos depois, sem que se soubesse porquê. E há quem tenha de continuar, quem carregue um corpo consigo, apenas com algumas pausas pelo caminho, a vida toda. O peso de uma vida que mal começara a ser, e que poderia ter sido tanto para tanta gente. Uma memória como uma ferida em constante reabertura. Talvez só um filho seja mesmo insubstituível. Talvez o corpo, o karma ou a necessidade de punição por se estar vivo e o outro não, atraiam tantas outras situações de sofrimento. Talvez se busque uma dor que possa ser maior. E se falhe constantemente. Estas pessoas, que são tão reais, tornam-se parte de nós, tornam-se as nossas pessoas, mesmo se com outro nome de família.

Não sei quando se esclarecerão todos os equívocos e nem sempre a redenção chega antes da morte. Duas pessoas raramente contarão a mesma história da mesma maneira, e o que recordamos uns dos outros dependerá sempre do lugar sombrio ou mágico onde nos tiverem tocado. Mas gostaria de acreditar que sim, que há algo de luminoso que une as famílias, mesmo as que tantas vezes não se entendem, mas nunca deixam de estar lá uns para os outros.

*

– Lembras-te de quando dormiste lá?
– Lembro.
– Eu também gostei. (Dá-me dois beijos)
– Ó puto, eu não te disse se gostei ou não…

10 Jan 2019

Nudez e ateísmo

06/01/2019

[dropcap]B[/dropcap]eber um café sem açúcar é como engolir um astro, raspa na garganta, explode no palato, mineraliza a língua: as primeiras impressões da dieta a que me propus para me metamorfosear de homem-livro em homem-livre, pelo intenso cuidado de si (de mim).

Só posso beber vinho, outra das restrições.

Voltar a incarnar o corpo, emagrecendo, para o sentir de novo, até na doença, é o fito, e aliás a percepção do corpo é um tracejamento cíclico porque a nossa vida é ondulatória – periodicamente necessitamos de uma inversão.

Entretanto, talvez o mais difícil na vida seja emendar o que calámos. Porque o silêncio, em maior ou menor medida, faz da memória um rascunho.

07/01/2019

Não deixo de ler a frase uma e outra vez: “aquele nu era um implante, mas que não se deixava reabsorver”. Fascinante, os jogos de linguagem, nomeadamente quando são involuntários: que um nu possa ser um implante.

A frase é do livro Le Nu Impossible, de François Jullien, um ensaio delicioso que questiona porque não “consentiu” a China esse género pictórico e através da análise desse tabu o estudo debruça-se igualmente sobre as condições que permitiram o nu na Europa. O que se interpôs entre a carne e a nudez, na China, tornando-a fonte de opróbrio, enquanto noutras culturas a nudez pode isentar-se de moral e nem significa necessariamente “estar nu”?

Um dos mais belos nus de que me lembro é o de Ornella Muti, na abertura dos Contos da Loucura Normal, do Marco Ferreri. Serking/Ben Gazzara é um poeta alcoólatra de tendência anarquista que vive e vagueia entre prostitutas e marginais, no submundo da cidade de Los Angeles. Um dia, conhece Cass/Ornella Muti, uma prostituta de uma espantosa beleza e um carácter auto-destrutivo. Os dois iniciam um romance que ganhará tonalidades trágicas… Quando o filme começa, dentro do quarto, Serking olha a silhueta nua de Cass à janela e vomita.

Dirão os mais prosaicos: é grande a ressaca. Eu prefiro outro tipo de explicação mais excêntrica: Serking vomita porque a beleza é um excesso irremediável, que não se absorve sem custos.

E então sobre o nu foi implantada a beleza.

Inclusive, o nu erótico, na China, continua Jullien mais adiante, como em Qui Ying, não é convincente. E falando de um rolo deste, mostra como as figuras enquanto estão vestidas são delicadas, insinuantes, e ao aparecerem despidas “os corpos parecem empilhados como sacos” desgraciosos e absolutamente desviados de qualquer sensualidade.

Todo o contrário do que se vê no Japão, em Hokusai, por exemplo, onde até tomando um polvo como amante a nudez está magnificada pela sensualidade que implanta no nu o seu desejo encantadamente polimórfico.

08/01/2019

Tinha acabado de anotar: Atrevo-me a escrever que, apesar de tudo, vivemos uma época de desencantamento muito tonificante pois acredito que os sinais de retrocesso civilizacional que por todo o lado mostram a sua cauda simiesca não correspondem a mais do que um momentâneo estertor final dos sentimentos mais arcaicos – e de repente leio no editorial da Ana Sá Lopes, no Público:

«49 pessoas, incluindo crianças, foram resgatadas por dois barcos de uma ONG alemã, mas até agora nenhum país europeu aceitou recebê-los. É verdade que se “meteu” o Natal e quando se “mete o Natal” e o Ano Novo a Europa congela.(…) Ao menos se fossem cães ou gatinhos, haveria uma opinião pública disponível para se emocionar. Como são pessoas, não têm esse benefício. Ver morrer pessoas no Mediterrâneo (em 2018 foram 2262) tornou-se um hábito e não convoca a consciência das massas.

O Papa fez ontem um apelo “do fundo do coração” para que a Europa não se mantenha congelada nas férias de Natal, mas tenha consciência do significado profundo daquilo que celebram como férias. Francisco lembrou que os barcos com os 49 migrantes esperam há dias autorização para aportar e exortou os países europeus a tomarem medidas “de solidariedade concreta com estas pessoas», e lá se vai o meu optimismo à viola.

Por outro lado, o Papa esteve bem, nesta questão, e repararam como nas homilias de entre o Natal e o Ano Novo ele declarou que era mais respeitável e digno ser ateu do que ser um cristão hipócrita e inconsequente?
Quando um gajo se sente acompanhado pelo líder da maior igreja do mundo não pode esmorecer.

09/01/2018

Um actor chinês sempre começa uma acção com o seu oposto. Para olhar para uma pessoa sentada à sua esquerda, um actor ocidental usaria um movimento directo e linear do pescoço. Mas o actor chinês, como os demais orientais (é pensar nos filmes japoneses), começaria como se quisesse olhar para o lado oposto. Se se deseja agachar o actor chinês começa por levantar-se.

Do mesmo modo, na dramaturgia, o que faz evoluir uma trama é o estorvo, o conflito, a dificuldade de se alcançar o objectivo. Ou seja, de novo, alguém começar a despir-se não implica que se queira ficar nu.

Regras simples que tenho de transmitir ao Assistente que me arranjaram na universidade. Estou contente até porque somos amigos e o Venâncio Calisto é bastamente inteligente e é de facto a grande revelação dos últimos anos no teatro em Moçambique. Mas não deixa de ser um luxo bizantino arranjarem-me um Assistente numa disciplina onde tenho dois alunos.

09/01/2019

O cartaz repete-se de cinco em cinco metros, ao longo dos tapumes que cobrem as obras do Hotel Andalucia, a 30 metros de minha casa. Anuncia o cartaz: «Proibido mijar no murro!». Era difícil ser melhor.

10 Jan 2019

Elogio da rotina

[dropcap]E[/dropcap]star vivo pode ser um espantoso acaso cósmico e sabemos que não acaba bem. Mas a viagem vale a pena. As paisagens que iremos atravessar nem sempre serão as mais bonitas ou as mais desejadas; algumas irão deixar feridas e mazelas de que nunca iremos recuperar. Mas do tanto de bom que inevitavelmente guardaremos pelo caminho existirá sempre este maravilhoso truísmo: aprendemos. É um modo de usar a vida que nos chega naturalmente, quer por tentativa e erro quer apenas por estar atento ao que fomos e ao que somos.

Aprender exige, mais tarde ou mais cedo, um acto de contrição. Algo de que julgávamos ter uma certeza inamovível transforma-se de repente num quase embaraço pelo simples facto de termos arrecadado experiência e conhecimento. E se vos maço com um início de crónica que quase ameaça o registo dos piores livros de auto-ajuda (há “melhores” ?) é porque aqui venho confessar o meu caso e procurar redenção.

Porque houve um tempo em que desprezava a rotina. Queria fugir dela, como se foge de uma doença ou se tenta evitar um mau presságio. Considerava uma coisa menor, pouco digna e sobretudo algo que impedia de “viver a vida como ela deveria ser vivida”. Naturalmente este tipo de considerações coincidiu com a juventude, que é o mais próximo que o ser humano irá estar da imortalidade – e consequentemente o período em que estamos dispostos a correr mais riscos e a ser mais patetas em geral. Mas divago.

Todos conhecemos essa noção romântica da fuga à rotina, difundida na nossa sociedade sobretudo a partir do advento da Revolução Industrial, em que os dias ficaram mais presos por horários rígidos. Mas a rotina não é uma banalização: é uma âncora, um caminho percorrido que conhecemos bem. São rituais que nos estruturam, gestos e jeitos que procuramos pela sua familiaridade e conforto.

Nem sequer é um obstáculo à criatividade ou às mais importantes decisões. O poeta inglês W.H.Auden afirmava que a rotina numa pessoa inteligente é sinal de ambição. Os seus dias eram pontuados de forma implacável: despertar e palavras cruzadas às seis da manhã; cerca de onze horas de trabalho movidas a Benzedrina (o nome comercial da anfetamina, então substância legal e muito popular entre escritores), pausa para receber convidados e beber vodka martinis fortíssimos, jantar e recolha ao leito com ajuda de um soporífero (recusava-se a trabalhar durante a noite porque “só os Hitler deste mundo trabalham à noite”).

No dia seguinte a fórmula repetia-se, numa rotina capaz de empalidecer o mais profissional dos boémios. E podia continuar com muitos exemplos, o mais famoso sendo o do grande homem que com as suas decisões solitárias salvou a Europa durante a Segunda Guerra: o dia de Winston Churchill envolvia vários banhos, um pequeno-almoço regado a whisky com soda, horas a ditar discursos e memorandos, pausa para um almoço de três pratos, vinho e brandy, jogar às cartas com a mulher, trabalho outra vez, bebidas antes de jantar, jantar, trabalho e dormir. Assim, nos dias considerados “normais”.

Mesmo nós, os que não somos tocados pelo génio, compreendemos a manutenção destes rituais. Os nossos são mais próximos e menos grandiosos: a ida ao café do costume, a leitura à noite, uma bebida antes do jantar. Mas é de rotina que se fala; não é um método nem sequer uma solução. É uma arte da repetição, momentos que se aprendem a acarinhar, mesmo na sua ausência. É uma forma de domesticar o tempo, fazê-lo saltar pelo aro de metal quando nos bem apetece enquanto se contempla uma plateia que conhecemos bem. E agradecer, agradecer sempre.

9 Jan 2019

Casas e ocasos

Rebelva, Carcavelos, 18 Dezembro

[dropcap]O[/dropcap]s ateliers são-me assim como o reverso das telas, modo de espreitar as hesitações, de passear no grande jardim do caos, de tocar as bainhas da beleza. Sinto-me acolhido na confusão, a lareira acesa das ideias, queimando-se na absoluta liberdade, hesitantes ou disparatadas, roupas tocadas por restos das cores, por gestos involuntários, as ferramentas e as matérias postas no seu repouso prestes a. A pretexto do mais que improvável, logo desafiante, projecto da Catarina [Marques da Silva], a emergente galeria Cisterna, encontro-me no meio dos panos e formas da Ana [Jacinto Nunes]. Anuncia-se a chuva nas massas de cinza lá fora, erguendo pano de fundo apropriado para o que por aqui se passa ou guarda. Um rolo pode desdobrar-se em texturas e mistérios. Um recanto pode tornar-se janela para um jardim do Éden. Sobre a mesa podem baloiçar-se uns pássaros do paraíso ou alongar-se uma bailarina. A Ana pratica um desenho que mantém relação líquida com a palavra e o pensamento, desaguando nos mais díspares suportes. Anda em inquietação com os modos da mulher ser contra a gravidade, a paisagem e o tempo, de se fazer corpo no confronto com os bichos da arca atracada ao dilúvio. Admiro a estupefacção dos rostos, as figuras envolvendo o seu próprio movimento, os objectos de assentar. Aliás, vi por ali rostos a fazer de bancos, bailarinas suspensas na parede suportando peso. Trouxe nos olhos uma deusa de duas cabeças, desmultiplicada em olhos e bocas, sentada sobre rosto ecoando águas de cisterna de velha encruzilhada de civilizações, a interpelar-nos, a nós enrolados no tempo, com frescura de seda. «A deusa imaginária/ planeia crimes/ progride o caos.» Assentam bem, os versos finais de Progride o Caos, do Rui André Delídia. Entretanto, chove.

Horta Seca, Lisboa, 18 Dezembro

Escavamos na circunstância e, desfocados dos ritmos alheios, até em título excluindo natal («Às Voltas em Dezembro»), arranjámos maneira de plantar pretexto para mostrar a carne do ano, feita de livros e imagens. A generosidade do mano [José] Anjos suscitou um pouco mais, dispondo-se a tocar enquanto o António [de Castro Caeiro] ou o Pedro [Lamares], o Valério [Romão] ou a Raquel [Serejo Martins] foram dizendo. Surgiu do nada um calor que suspendeu a chuva e permite esperançar outros verões. Leio, do Delídia com delícia, de Em Pó como Antiquíssimas Memórias: «Infinito? Estrada de fogo nocturno?/ silencioso caminho/ por onde se parte para nunca chegar;/ máscara círculo etéreo/ de ódio contra a luz alastra a voz/ na névoa onde as formas se confundem/ contra aranhas e estrelas explodem as palavras.»

Lisboa, 19 Dezembro

Para o estado, o óbito é uma bala expansível, das que em requinte de crueldade se fragmentam e expandem por todo o corpo da vítima. Incontáveis gestos burocráticos minaram os últimos dias da contagem que me importa tão pouco. No seu afã prático, o meu pai resolveu partir de lugar próximo de tantas oficialidades. Não facilita voltar ali para sublinhar a morte com funcionalidades do obrigatório seguir em frente. Depois, no banco, era suposto herdar o seu nome, tal qual, quando há muito me escolheram outro apelido, com desagrado seu, estou certo. Tive que o dizer alto, sem querer: não quero esse nome.

Horta Seca, Lisboa, 20 Dezembro

Comecei por pensar em lâminas, vítima de dramatismo. Passei para golpes de papel, respondendo com optimismo. Nada disso. Alguns dias metamorfoseiam-se em corredores, longos corredores com paredes movediças e uma floresta de mãos. O terror tem raízes no quotidiano mais plano. De pouco serve voltar atrás, mas continuar implica arranhadelas, nódoas negras e, sobretudo, o asco. Não me posso queixar, pois ninguém me obrigou a vir passear para o pântano. Mas custa aguentar, sem qualquer ordem particular, o desdém e a indiferença, a má-fé e a ganância, a volúpia do ataque gratuito e a miséria fria dos pequenos poderes, enfim, o desprezo generalizado. «Corte/ feridas no olhar incurável/ doença aberta/ mapa volátil.» Delídia, de novo.

Horta Seca, Lisboa, 21 Dezembro

«em forma de árvore, a face oculta do mal/ agrava a chama dos jardins, escultura/ aérea. Faca volátil, colecção de mortes,/ ombros, braços contra paredes, raivas privilégios/ nas cabeças dos visionários, aventureiros/ como colares ou pássaros, tigres alfabéticos.» Trata-se de «Uma Ideia Mineral», isto é, um seu fragmento (terceiro). Nem para os editores as memórias se ficam pela espessura do papel. De uma penada perderam-se dois dos que importavam nisto de erguer livros que são vidas. Devo a ambos, além de preciosíssimos títulos para bibliotecas instáveis, conversa solta e o farol de uma ética. Coincidem no acaso desta croniqueta com a animália. Não foi apenas a Salamandra que o Bruno da Ponte (1932-2018) criou, mas nela nos encontrámos, tendo sido prévio leitor da Questões & Alternativas, e partilhando o interesse pela poesia experimental além de recorrente discussão sobre luta armada. Fez-se primeira ilha açoriana conhecida e ainda nos cruzámos na Abril em Maio, maneira de dar nós no tempo, aqui há tempos. Afastado que tenho andado dos sábados e da Anchieta, há muito que não me encontrava com o [Rui] Martiniano (1954-2018), mas a Hiena jamais deixará de me gargalhar ao peito. A boa editora faz-se cruzamento dos vários tempos que se souberam inventar uma literatura a partir dos restos arestas do humano. Um catálogo cometa, resultado de investigação de um particular e partilhado gosto febril. São peças simples e cuidadas, feitas para servir textos indispensáveis e nomes únicos, que brilharão no alfarrábio, como convém. Pássaros que continuam a voar na noite. Acendi, nestes dias, a Luz Negra, do seu lado B, a do poeta Rui André Delídia. Faça-se parágrafos de silêncio.

Horta Seca, Lisboa, 21 Dezembro

Voltámos a consumir a tarde por entre os acordes do [José] Anjos e as palavras de quem se chegou ao microfone. Desta ecoaram inéditos da Rita [Taborda Duarte] e do Ricardo Gil Soeiro, augurando horizontes. A inesperada figura da tarde acabou sendo o Tóssan, de que o Jorge [Silva], além de grande divulgador, se tornou voz. Suscitou mesmo a amorosa participação de vários putos sem medo. Tudo fragmentário, desorganizado, discreto. Aqui e ali surpreendente. Para o fim da tarde, rimando, deu-se a breve e inusitada apresentação de «Caridade Romana», a nova e inclassificável polifonia de José Emílio-Nelson. Pequeno somatório de impossíveis, cruzando momentos de fulgurância poética com confissões ejaculadas nas redes sociais, invocando a erudição das teologias heréticas para as queimar nas fogueiras dos misticismos desregrados e celebratórios do corpo, altar maior. Pensar com espinhos que esfolam, que pedem a paciência dos prazeres estendidos ao limite. Quem arriscará para além do paleio transgressivo? As capas (algures na página) são visões (dobradas) da carne do mergulhador de corpos, António [Gonçalves].

Cova Funda, Lisboa, 28 Dezembro

Fazendo da mesa tantas vezes bússola, saber que o Cova Funda vai fechar agrava a minha desorientação.
Foi ponto de partida e porto de abrigo, lugar de encontro, miradouro de horizontes, plantação de desafios e ideias, casa de família. Construído a partir da mesa. A Ana [Jacinto Nunes] faz das cadeiras um bicho. Soubera eu, e faria da mesa animal doméstico. A mesa é o melhor amigo do humano. Também serviam, no Cova, dos melhores cozidos da cidade, um peixe que o fogo celebrava como carícia, pezinhos de coentrada e outra comida de tacho que soerguia a cova a pontos altos. A companhia importava, mas até o farol precisa ser aceso.

9 Jan 2019

Do Suor

[dropcap]S[/dropcap]eria sempre pouco o sabor a sal a deslizar pela pele que, uma e outra vez, se humedece de suor. E não tem a ver com um esforço qualquer mas simplesmente por ser, por estar sob o clima inóspito, sob o céu baixo e uma sufocante matéria estelar. Um vaivém descontínuo e um gotejar soberbo da testa que o lenço inutilmente limpa.

A experiência do suor exige um simulacro de língua fervente a descer pela pele. Indicia um corpo lacrimejado a preceito, a via crucis sem sangue, obsessiva, mas um corpo que incha, se expande, um corpo a rebentar.

A experiência do suor exige a paciência do doente e remete para a imobilidade hospitalar. É, curiosamente, imediata e progressiva como um som que não pára de crescer até nos rebentar os tímpanos. Uma música de pesadelo, música de fonte muda de onde silente escorre uma água espessa e quente.

O silêncio do suor obriga ao arquejo. Cola-se a roupa ao corpo como um destino se cola a uma existência em desgraça. O suor lembra o remorso, evoca o castigo infernal.

É, no entanto, bom ficar muito quieto enquanto as gotas nos emergem da fronte e lentamente escorrem rosto abaixo. É um desconforto que, aos poucos, se transmuta em aceitação de um estado praticamente excepcional. Existe um estranho peso, cálido e opressor, que nos afaga, que nos embala para um fora de nós, um inusitado espaço, terreno outro de inferno frígido, que pode até invocar o adorcismo e a alucinação.

*

A experiência do suor é também experiência limite do corpo, sobretudo quando ele deriva da não-acção, quando não existe uma razão real para suar, para a sua emergência. Quando não corremos, mal andamos e ainda assim a pele chora comovida por dar conta de si sob um opressivo calor sem sol.

O suor é uma chuva discreta, contranatura, olorosa, imbebível, que só o próprio corpo — ou outro corpo — admite reconhecer. O suor marca presença entre os amantes e é sublinhado pelo álcool e pelo medo. Surge da pele em toda a sua extensão e desliza grave por ela, acelerando o arrepio.

A presença do suor é sintoma de alteração, de metamorfose. Não serão as mesmas palavras, as mesmas intensidades, os mesmos desejos, as mesmas acções. Sob o seu reino, a mente ignora e experimenta, amiúde descobre novos prazeres.

Há algo de perda inconsequente na experiência do suor que é tão mais válida quanto menos for provocada e desejada. Seria sempre pouco o sabor a sal na pele, a indiciar uma e outra vez uma repetição, um arremedo infindo, a presença tépida e sublime de uma pequena morte.

8 Jan 2019

O ano da vida de Ricardo Reis

[dropcap]C[/dropcap]ansados da morte que é sempre a mesma, vem em qualquer instante, é certa, e nunca consentida, queiramos numa vertical tendência inaugural recriar um ciclo de renascimentos sem par ( o par atrasa o crescimento) e refazer as coisas, projetar os cultos, fugir da rota, atravessar os mares.

Que de todas as matérias que trabalhamos haja uma super-matéria que nos trabalhe a nós, vítimas de corrompidas quedas e penosas dores em obscura forma. Que saibamos passar, pois que só passando se atravessa, que os caminhos tanto podem ser experiências como círculos fechados, os caminhos que vamos talhando são a geografia do nosso entendimento e, claro, serão entendíveis todas as marchas do processo, se com ele, formos de nós mesmos o Bode do deserto, por um lado, e o Expiatório, pelo outro.

A matéria legítima da vida é um sopro. Assim estabelecido o pacto todos os caminhos são possíveis, todas as direções destinos, todas as casas estalagens, pois nos guia a fluidez de imponderáveis razões. Uma vida nunca pode ser julgada e não seremos certamente nós a poder fazê-lo, apenas servimos de ajuda uns aos outros na marcha do tempo, e, protelamos a memória como a melhor fonte de recompensa. Nunca devemos ser rápidos a lembrar.

Pois que Ricardo Reis era um outro que em outro vivia, e cada “si” um outro sim que em si se sente, quem são, quem somos, todos nós em romagem decrescente para o nada, pois que mais Anos, mais vida descontada?! Coisa nova criada, somos outros, estamos numa rota galáctica e lá para baixo ficam as Nações.

Esta certeza faz vida! O instante protege os sonhos e quase tocamos nas suas caudas que olhos visionários trouxeram entre os escuros cinzentos das eras industriais; homens juntos por uma causa exalam ódios a que chamam política, homens livres exultam propostas e chamam-lhe poema, nestas curvaturas está agora o tempo que vem fechando postigos, cansados, inúteis.

Este Ano foi o Ano do Cão, o Ano que aí vem dar-nos-á o do Porco, que está sempre representado em forma de mealheiro o que denota que é Ano associado à riqueza, porém, nem Porcos nem Cães são um alter ego predileto, mas, reconheço a boa e leal colaboração do Cão que faz do sacrifício a sua vitória. Nós, resumimos tudo em quase nada: se não ritualizamos também não nos ocupamos de façanhas inexplicáveis, de modo, que condensamos no Natal todos os propósitos da vacuidade das Festas. E talvez não seja em vão fazer renascer o nosso tão querido latinista imaginário, que, bem vistas as coisas, não teve data de morte, sabendo-se apenas que nasceu a 19, e chegou ao Brasil em 1919. Por isso, neste Ano, ir-se-á provar que não só não morreu como continua vivo em 2019, o que dita uma atmosfera de esperança de vida para todos nós.

Mas, a criatura, suplanta está claro o criador, e só a criação da criatura de ora em diante será lembrada como uma outra natureza ( natureza outra). Por qual, dezanove simboliza o Sol, brilha agora bons augúrios para seres construídos nas cabeças de cada um, e assim, cada um terá à disposição várias delas que consubstanciarão a própria Hidra que os representará.

Proeminentes desígnios esperam dar vida aos condenados bem como animar a robótica de forma a deixar descansar este humano que já longe vai e grave anda na razão da sua natureza. Quanto a mim, propus-me ressuscitar os mortos, já que os vivos não se encontram em bom estado experimental para práticas futuras; e não é que logo encontro o nosso querido Ricardo? – Eu sentia que andava alguém aqui nos meus umbrais, mas até pensei que fosse de novo o Corvo, só quando vi o Ricardo é que disse: não morreu! – Ricardo, não deixes que te matem.

E assim foi, agora que partilho uma experiência paranormal e recupero um helenista algo estranho ao contacto direto com os deuses- nós, os Bodes do Deserto – aqueles que foram para lá durante mil anos escapando à morte, vos saudamos do cimo da nossa montanha. Quando nos encontrarmos de novo por aqui será um recomeço bem vindo pois que da morte, o da Expiação nos foi livrando, e sempre assim será enquanto houver em cada um de nós tal entendimento.

Recomendai-vos uns aos outros como epifenómenos em vias de extinção, e recuperai as oferendas de um Deus benigno que vos foi desconhecido até ao limiar do abandono. O Novo Ano transluz de coisas tais, que é preciso não ter evoluído para Ciclope e ver em todas as direções a «Grande Marcha». Prósperos os que encontrarem Ricardo Reis. O «Homem (lido)» e relido, encontrou-o e continua. Por que não fareis vós a mesma coisa?

Ponho na altiva mente o fixo esforço
Da altura, e à sorte deixo,
E as suas leis, o verso;
Que, quando é alto e régio o pensamento,
Súbdita a frase o busca
E o escravo ritmo o serve.

Um belo Ano então.

7 Jan 2019

O excesso de tudo

• “Qual a sua opinião sobre a situação na Síria?”
• “Acha que devemos dar voz, no seio da democracia, aos movimentos políticos de matriz anti-democrática?”
• “Como vê o conflito no Iémen? E o papel da Arábia Saudita na geopolítica do Médio Oriente?”
• “O futuro treinador do Benfica deveria ter que tipo de perfil?”
• “É um anacronismo anunciado falarmos de «trabalho humano» num tempo em que a Inteligência Artificial parece cada vez mais ser capaz de fazer qualquer tipo de tarefa?”
• “Depois do Bosão de Higgs, que nos falta descobrir a nível de partículas elementares?”

[dropcap]C[/dropcap]om o advento da Internet, a informação massificou-se. O que não tornou especialmente fácil a tarefa de analisá-la convenientemente. Ao acréscimo da quantidade de dados não correspondeu qualquer incremento na capacidade de processamento do humano. Continuamos a ser as criaturas excepcionais mas excepcionalmente limitadas que éramos antes da World Wide Web. Pelo contrário; a desproporção entre o acesso rápido e maciço à informação e a nossa módica capacidade de analisá-la tornou-nos coxos. E não se vê como colmatar a lacuna que só agora se fez ver.

É comum assistirmos, no decurso de um noticiário televisivo, a uma ou mais rubricas de comentário, normalmente de cariz político ou generalista. Quando estas são de teor político, o convidado é quase sempre um senador do regime, ou seja, um tipo que activamente contribuiu para a erosão do estado-de-coisas no rectângulo sem nunca mostrar o ensejo ou a capacidade de alterar a percentagem de inclinação negativa do declive. A maior parte das vezes até foi parte activa na sua acentuação. O sucesso em Portugal não se mede pelos resultados obtidos. Os critérios pelos quais se afere o sucesso e correspondente visibilidade mediática são da ordem do oculto.

Quando o comentário é de índole generalista, o convidado – muitas vezes um senador ou figurão do regime, as únicas criaturas com passe vitalício e dispensa de exame de comentador – é inquirido sobre os mais diversos temas. Como procurámos caricaturar no início deste texto, é a guerra na Síria, a validade científica da homeopatia, a relação preço-custo dos vinhos chilenos ou a recente alunagem chinesa. Ninguém, a não ser duas ou três pessoas que se escusam a aparecer publicamente, sabe alguma coisa interessante e esclarecedora de matérias tão diferentes e específicas. A verdade é que o comum dos mortais, preocupado em conseguir fazer da vida um terreno menos inóspito, também não. E é por isso que a coisa passa e la nave va. Se cada um de nós conseguisse alçar o pescoço além do horizonte da mediocridade difusa, a nudez do rei apareceria sem qualquer esforço de focagem.

A grande petulância do desconhecimento nunca foi a da sua admissão. A ignorância confessa sempre foi – e é-o sobretudo nestes tempos – um sinal de lucidez: é normal não se saber de um assunto, ora por este ser extremamente complexo ora por falta de interesse ou de tempo para estudá-lo. O que nunca foi normal foi saber um pouco de tudo sobre tudo, e este é precisamente a aura que preside ao nosso tempo e que de algum modo reflecte, em jeito de acto falhado, a aura da nossa época: o de não sermos capazes de admitir que enquanto indivíduos – o grande credo da modernidade – estamos votados a saber muito pouco e a contar para muito pouco. Ao contrário do que prometiam as nossas mães, não somos especiais.

Haverá excepções, homens e mulheres que sozinhos empurram continentes história adentro. E talvez a evolução, no sentido lato, seja de facto a marca filigranar que une os indivíduos excepcionais ao longo do tempo. Mas isso não resolve nada, em termos de aquietar o espírito. Nós, os que porfiam para se manter à tona, não somos excepções. E saber que há tanta coisa que poderíamos ser mais do que somos só nos parece esmagar ainda mais.

7 Jan 2019

Repetição I

[dropcap]V[/dropcap]amos muitas vezes aos mesmos sítios. As nossas localidades têm uma referência espácio-temporal. Os locais das nossas biografias estão espalhados por diferentes latitudes e longitudes. A auto-referência espacial dá-lhes um sentido auto-biográfico. Há sítios que não tinham importância para nós e passaram a tê-la. Há sítios que tinham uma importância absoluta para nós e que também a perderam. Os sítios nos mapas das nossas vidas ganham e perdem, voltam a ganhar e voltam a perder, importância, dizem-nos muito, tudo e: nada. Sítios, lugares, localidades e espaços são à partida definidos espacial e geograficamente. Os espaços podem ser delimitados como uma casa: a casa da praia, a casa dos pais, a casa dos avós, a casa de cada elemento da nossa família ou de cada amigo, a nossa própria casa, as diversas casas que habitamos ao longo das nossas vidas e as diversas casas- ou as mesmas- dos outros. Podemos também no interior de cada habitação falar dos “nossos” espaços, como o quarto na juventude com as suas mais bizarras e peculiares bandas sonoras, conversas com amigos, ainda projectos dos seres humanos que estavam para ser, com os assuntos mais ou menos banais, resultantes da descoberta do interesse pelos outros: namoradas e namorados, estudos futuros, e tudo o que inquieta mentes jovens como a festa do fim de semana seguinte e a indumentária a usar. Mas podia ser a sala onde, ainda todos estávamos vivos, passávamos vésperas e dias de Natal, a véspera de ano novo ao jantar e o almoço do primeiro dia do ano. Ou cozinhas onde convivíamos com a avó, mãe e tia, para bater bolos, ir buscar talheres e pratos, para pôr a mesa. Havia a escola, a da infância, os liceus que frequentámos, a Faculdade. Havia ginásios onde passávamos muito tempo, um espaço que ocupávamos física e virtualmente. Depois: cafés, o café do liceu. As localidades das nossas vidas são também públicas. A beira-mar, Alcântara, Carcavelos, Estoril, Guincho. A oriente: Cais do Sodré, Terreiro do Paço, Expo. Podem ser horizontes mais ou menos alargados como províncias: Alentejo e Trás-os-Montes, rios: Tejo, Mira, Douro. Podem ser países: Portugal, Alemanha, Japão, Tailândia Brasil. Podem ser sítios onde fomos e lá estivemos em diversas épocas da vida, com as mais variadas pessoas, muito tempo ou por breves instantes. Podem ser sítios onde fomos felizes e sítios onde fomos infelizes e sítios onde fomos felizes e infelizes. Podem também ser sítios onde nunca fomos e aonde pensamos ir, aonde podemos ir. Podem ser sítios também aonde nunca iremos, mas que nos definem. Sítios há que existem nas geografias mais objectivas do mundo, mas que não existem já no tempo. Paris de Hemingway, Hollywood de Sinatra. Sítios que, sem as gentes que lá viveram e por lá foram, já não são os mesmos e existem em dimensões paralelas. Esses sítios existem em mundos paralelos e possíveis que podem ser revistados pelos portais virtuais da imagem cinematográfica ou do som das músicas, das fragrâncias, aromas e dos paladares de coktails que nos depõem em dimensões concretas mas meramente virtuais.

Cada ser humano é portador de uma data de sítios, tem guião para cada um deles. Podem ser muitos, a princípio, como as pessoas que começam a viver no estrangeiro muito cedo e estão entre cá, que é o País de origem e lá, que é o País onde vivem. O cá pode passar a ser o País onde vivem há tantos anos, há mais anos do que viveram no País de origem. Lá pode ser o País de origem, de onde partiram há tanto tempo que já não se lembram de como era. Não se lembram, não das paisagens, mas dos outros, dos que morreram, dos que desapareceram dos mapas afectivos, ficaram vida fora, passaram a ser personagens figurantes nos filmes das nossas vidas, mas apenas em episódios. Depois, ficam vida fora, mesmo que tivessem sido preponderantes na formação da nossa personalidade e até existência. Cada ser humano referencia os sítios, locais, localidades, espaços das suas existências de tal forma que a sua geografia é ainda mais complexa do que o mosaico que a constitui. É que o que constitui as nossas geografias é o sou que cada um de nós diz: sou eu lá em cada um desses sítios, locais, localidades, espaços. Ser eu lá é o que cada um de nós pressupõe, quando habita um sítio. Ser eu lá e sermos nós dois ou todos lá. É isso o que define: seres tu lá, serdes vós lá, serem eles lá nos sítios da tua vida, da vossa vida, da vida deles. Quantas vezes não revisito em memória o pátio do Rés do Chão do prédio da minha infância. Era enorme. Tinha clarabóias que davam para a garagem do prédio. Havia cereal a secar, miúdos a jogar à bola, uma luz crua no verão que ofuscava os olhos, a família indiana que o habitava com aromas de caril e sons estranhos. As traseiras das casas dos meus avós davam para o pátio do meu liceu. Agora, implodiram os ginásios e tudo irá dar lugar a um hotel. A praia do Monte Estoril que estava ligada à do Tamariz está dividida por paredões. Parecia maior na infância. Em cada um desses sítios sou eu lá a ser, são os sítios da minha vida onde lá estive. Ninguém os pode ver como eu vejo. Não que não os possam ver no que são. Não podem ver esses sítios à minha maneira. Como eu não posso ver os sítios dos outros à maneira dos outros. Nós vemos os nossos sítios como pessoas das nossas vidas e nós vemos as pessoas das nossas vidas de um modo peculiar. Influenciamos e somos influenciados. Os sítios não são apenas habitados. Habitam-nos também. Entram por nós adentro. Insinuam-se ou impõem-se, acolhem-nos ou estranham-nos. Somos nós sempre a fazer ser os sítios das nossas vidas. A auto referência biográfica constitui-os. Sem o si mesmo de cada um de nós os sítios são paisagens fotografadas em postais ou em fotografias dos álbuns de todas as famílias que não conhecemos. São sítios impermeáveis, sem história, sem nos dizerem nada para além do caracter objectivo que apresentam. São denotações e denominações ilustradas sem o figurado ou a possibilidade de conotação. Quando vejo o meu liceu, ressuscito mortos, jovens envelhecidos, adultos que foram ou não foram o que queriam ter sido e foram ou não foram como queriam ter sido, pior: nem sequer foram o que poderiam ter sido. Eu vejo-me lá, quando jovem, nem sequer era o princípio, era tão incipiente que não era a minha existência, como eu, apesar de tudo, reconheço que é a minha existência. Quando eu me lembro do pátio do prédio da minha infância eu ponho-me lá todo eu, um horizonte, uma paisagem escancarada. É a minha vida que constitui o horizonte onde eu ponho pela memória esse pátio, desse prédio, à minha frente, como também eu lá fico deposto. E sem ver os outros, quando vejo a luz crua do sol reflectida no pátio, eu ponho lá a avó na cozinha, o pai no Banco onde trabalhava, a mãe a chegar a casa, a rua da frente, o rio Tejo ao fundo, Lisboa que eu não conhecia ainda na minha ténue infância e era projectada no futuro a haver de mim ainda e Lisboa. Em embrião, nessa apresentação da infância estava já o seria e haveria de ser com todas as outras paisagens que preenchem o meu mundo, com todos os outros que perfazem os protagonistas da minha vida. Um sítio das nossas biografias nunca está isolado do mundo nem é despovoado de gente, mesmo que seja uma natureza morta.

 

4 Jan 2019

Dissimulada escravatura

[dropcap]A[/dropcap]s medidas até então tomadas sobre a emigração por Macau apenas se ocupavam da “fiscalização dos colonos enquanto se conservam nos estabelecimentos e na superintendência, mas não previnem ou castigam os abusos dos corretores no acto da aliciação no território chinês nem alteram as suas condições fundamentais nos contratos dos emigrantes. A administração buscava não perturbar um comércio que considerava como origem da prosperidade de Macau”, segundo Andrade Corvo.

“Em 1871, foram tomadas disposições contra os contratos entre agentes e cules. A partir daí, os cules eram registados e, depois da habitual inspecção a bordo, exigia-se uma declaração do capitão em como o barco não levava cules enganados, nem suspeitos de serem piratas”, segundo Montalto de Jesus (MJ).

Um novo regulamento foi promulgado em 1872 pelo Governador Januário Correia de Almeida (Visconde de S. Januário) e “englobavam todas as anteriores disposições cuja eficácia tinha sido posta à prova pela experiência”, MJ. A partir de meados desse ano, “as autoridades de Cantão começaram a actuar no sentido de impedir a emigração de cules por Macau”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra, [Revista Cultura n.º 55 de 2017], que aditam, ter o vice-rei de Cantão, por ofício ao Zongli Yamen de 15 da 5.ª lua do 12.º ano do reinado de Tongzhi (1873), informado “quão difícil era vigiar e impedir o tráfico de cules em Macau. Por um lado, os portugueses em Macau não tinham outro comércio lucrativo senão o tráfico de cules. As receitas anuais do governo de Macau, resultantes do tráfico de cules, ascendiam a mais de 200 mil dólares de prata. Não só o governador de Macau, mas também o rei de Portugal, estavam relutantes em abolir a emigração por Macau.”

 

Ofício do cônsul em Havana

 

José Maria d’ Eça de Queiroz, nomeado pelo Rei D. Luís cônsul de 1.ª classe em 16 de Março de 1872, é colocado em Cuba nas Antilhas Espanholas onde chegou a 20 de Dezembro, segundo António Aresta [Revista Cultura n.º 52 de 2016], que refere, “A três dias do fim do ano [1872], com base nas informações que lhe terão sido fornecidas pelo anterior cônsul, Fernando de Gaver, [Eça] rapidamente envia um ofício ao ministro João Andrade Corvo”: <Existem, Ilmo. Sr., nesta ilha mais de cem mil asiáticos que o Regulamento de Emigração pelo porto de Macau põe hoje explicitamente sob a protecção do Consulado Português. (…) V. Exa. compreenderá a importância deste consulado que pode abrir a cem mil almas o registo de nacionalidade portuguesa: é portanto urgente que o Governo de S. M. atenda às condições em que vive aqui esta população colona>. (…) <A legislação cubana dividiu artificialmente a emigração asiática em duas espécies de colonos: os chegados a Cuba antes de 15 de Fevereiro de 1861, e os que vieram depois desta data arbitrária. Os primeiros tendo findado já o prazo de 8 anos – porque vêm contratados todos os colonos que saem de Macau – são livres no seu trabalho e podem requisitar deste consulado a cédula de estrangeiro; os outros – os que chegaram depois de 61 e estão chegando – são obrigados, findos os seus 8 anos de contrato, a sair da Ilha dentro de dois meses, ou a recontratar-se novamente>. Mas <a prática é extremamente diferente – e autoriza a opinião Europeia de que a emigração chinesa é a dissimulação traidora da escravatura. A lei permite aos asiáticos que chegarem antes de 61 que solicitem a sua cédula de estrangeiro – mas por todos os modos se impede que ele a obtenha: e o meio é explícito: formou-se na Havana, sem estatutos e sem autorização do Governo de Madrid, uma comissão arbitrária que se intitula Comissão Central de Colonização; esta comissão pretende ter o pleno domínio da emigração; formada dos proprietários mais ricos impôs-se, naturalmente às autoridades superiores da Ilha, e conseguiu que se determinasse – que nenhum asiático tire do Consulado a sua cédula de estrangeiro sem que a Comissão Central informe sobre ele e o autorize a requerê-la: ora sucede que a Comissão Central, para cada asiático, prolonga indefinidamente esta informação – e durante este tempo o colono está numa situação anormal e inclassificável – não é colono porque terminou o seu contrato – e não é livre porque não tem a sua cédula; esta situação faz a conveniência de todos – da polícia que à mais efémera infracção (encontrar, por ex. o china, fumando ópio) o sobrecarrega de multas enormes, do Governo, que o aproveita, sem salário, para as obras públicas, e dos fazendeiros que terminam por o recontratar>. Segundo A. Aresta, “O problema de base está na divisão artificial com que distinguiam os colonos.” E continuando com o que Eça de Queiroz escreve no Ofício de 29/12/1872: <Em quanto aos que vieram depois de 1861 – uma legislação opressiva obriga-os a saírem findo o seu contrato, da Ilha, em dois meses ou tornarem a contratar-se; e como naturalmente o colono não tem meios de regressar à China – a polícia recolhe-os nos depósitos – é obrigado a servir mais 8 anos>.

 

Cônsul no Peru

 

A galera peruana Fray-Bentos de 561 toneladas deixou Macau a 6 de Janeiro de 1871 e o Cônsul Geral de Portugal no Peru, Narciso Velarde certificou que esta fundeou neste porto de Callao no dia 12 de Abril, trazendo 369 passageiros chineses dos 375 que tinham embarcaram, havendo morrido durante a viagem ‘apenas’ 6. Das informações tomadas por este consulado resulta que os ditos passageiros foram bem tratados durante o transporte, em fé do qual se expede o presente certificado em Lima aos 17 dias do mês de Abril de 1871.

No ano seguinte a galera estava de novo em Macau pois em 1/8/1872 o tesoureiro da junta da fazenda, Carlos Vicente da Rocha informava ter recebido $366 patacas pelos emolumentos dos passaportes dos 366 colonos para o Perú nesse navio. A 7 de Agosto o capitão do porto de Macau, João Eduardo Scarnichia certificava a Fray-Bentos, cujo capitão era Ramon Mota, pois mediu 732 metros cúbicos de capacidade no alojamento destinado aos colonos. Sai do porto de Macau para o de Callao de Lima conduzindo 366 passageiros chineses contratados para servirem como colonos, e todos sabem o lugar do seu destino e vão por sua vontade do que me informei devidamente, bem como, que os contratos que levam foram registados na repartição competente. Certifico mais, que a dita galera se acha em estado de navegar na vistoria que lhe passei e leva a tripulação suficiente para a manobra, que tem os mantimentos e aguada determinada no regulamento da emigração, bem como há a bordo cirurgião, botica e intérprete chinês e que a embarcação tem acomodações para os passageiros que conduz, e os necessários meios de ventilação aprovados pelo facultativo do quadro de saúde que foi a bordo. Está conforme. Capitania do porto de Macau. E assim partiu nesse dia a galera Frey-Bentos para o Peru, onde a esperava um novo cônsul, Sant’anna Vasconcelos.

O regulamento da emigração chinesa publicado a 28 de Maio de 1872, no artigo 67.º referia ser necessário 2 m³ para cada colono transportado.

 

4 Jan 2019

Esperança e memória

[dropcap]É[/dropcap] difícil evitar esta onda de optimismo sazonal que nos invade no início de cada ano. O clima é tão forte e a pressão social tão intensa que mesmo velhos pessimistas antropológicos como este vosso escravo são compelidos a sorrir e a acreditar que o que aí vem será melhor. Não faz mal: é uma ilusão doce e inofensiva que, se formos a ver, até sabe bem. E há sempre a risível probabilidade de ser verdade, pelo menos durante algum tempo. É bom pensar que por algum misterioso motivo tudo se regenera para melhor a partir do primeiro dia do calendário gregoriano, como se os factos mais desagradáveis da vida ficassem suspensos por um instante num território remoto e inacessível. Para quem duvida mas despreza determinismos, como é o meu caso, é uma oportunidade perfeita para utilizar a nossa palavra preferida: “talvez”.

Mesmo assim sentimo-nos desconfortáveis neste universo paralelo momentâneo. Não queremos ser desmancha-prazeres mas também não conseguimos embarcar de boa vontade nas promessas e esperanças desmedidas que muitas vezes apenas reflectem os falhanços passados que gostaríamos de mudar. Mas há muito que é assim e, suspeito, assim será durante os próximos tempos – quanto mais não seja porque disso precisamos.

Tive a oportunidade recente de voltar a confrontar toda essa desmesurada e maravilhosa carga de esperança e confiança no futuro ao assistir a um extraordinário milagre documental: chama-se They Shall Not Grow Old e é realizado por Peter Jackson (sim, o mesmo da trilogia de O Senhor dos Anéis). A partir de filme e depoimentos de época, Jackson mostra-nos o que foi ser um soldado britânico a combater nas trincheiras da I Guerra Mundial. O impacto é imenso, tanto em termos de narrativa como na parte visual. O trabalho do realizador neo-zelandês – com a essencial cumplicidade do Imperial War Museum, que colocou à disposição todos os seus arquivos – foi seleccionar, restaurar, colorir e sonorizar filmagens de época. Para isso, para além da tecnologia que domina como ninguém, Jackson contou com a colaboração de leitores labiais para recriarem o que era dito nesses filmes para depois o entregar a actores que se encarregaram de dar voz ao que vemos. Além disso alterou a velocidade dos filmes de então para os familiares 24 fotogramas por segundo, evitando assim a pátina do tempo que passou e consequentemente envolvendo o espectador de hoje numa narrativa contemporânea.

Mas apesar de todos estes prodígios o que de facto faz a força deste documentário são os depoimentos não identificados de cerca de 120 veteranos que viveram e sobreviveram ao conflito. Ouvimo-los em off, sobre as imagens; percebemos quem são os oficiais e os soldados. Acompanhamo-los desde o entusiasmo patriótico do pré-guerra até ao final, onde apenas sobrevive uma profunda indiferença sobre o desfecho dos combates. Existe um cansaço nos dois lados beligerantes e acreditamos que o primeiro a ceder será o derrotado. São homens perdidos, abandonados numa guerra que não compreendem. Apenas conhecem o que vêem e sentem: devastação, paisagens lunares cheias de morte, condições de sobrevivência infra-humanas. Mesmo quando chegou às trincheiras o boato – e é disso que falam, do “Mr. Rumour” – de que a guerra iria acabar não houve festejos – só apatia e desconfiança. Mais do que a luta contra um inimigo, o que a I Guerra Mundial trouxe aos que nela participaram foi um combate constante e duro contra a sua desumanização. E muitos perderam.

É muito o que nos dá este They Shall Never Grow Old. Mais do que honrar a memória, faz-nos vivê-la através dos olhos e das vozes de quem lá esteve. Para nós, portugueses, não nos deve ser indiferente: foi o único conflito global em que participámos, mal armados, mal preparados e não desejados, arrastados apenas por uma criminosa vontade de um regime que almejava ser legitimado internacionalmente.

E depois, depois de tudo acabado, a esperança. Que a humanidade nunca mais iria ver semelhante carnificina; de que a Europa iria enfim ficar em paz. Como se de repente fosse Ano Novo para o planeta. Mas o diktat do Tratado de Versalhes, com as terríveis condições que impôs à Alemanha, fazia temer o pior. Churchill alertou; o marechal Foch, herói francês, foi mais longe e acertou em cheio ao dizer: «Isto não é um Armistício – é um cessar-fogo com a duração de vinte anos».

Em 1933 um antigo combatente da I Guerra, forte opositor do Tratado de Versalhes, foi eleito Chanceler da Alemanha. O que se seguiu já o sabemos.

Que a esperança não morra mas que a memória nunca a deixe sozinha.

4 Jan 2019

As penas de Bird

[dropcap]M[/dropcap]ais do que uma vez Charlie “Bird” Parker se descompôs no indecoroso e lastimável espetáculo de encalhar diante do clube Birdland aos gritos de que lhe deviam dinheiro por lhe usurparem o nome e o proibirem de entrar. Desleixado como um vagabundo não hesitava em pedir esmola aos atónitos transeuntes que Sábado à noite pejavam a Rua 52.

O alcunha de “Bird” ou “Yardbird” foi um chiste de caserna apodado a Parker, com o seu quê de jocoso. Numa digressão ele salvara uma galinha de ser atropelada, recolhendo-a viva no autocarro. Não houve clemência mas egoísmo no gesto; no dia seguinte estrangulou-a, depenou-a, eviscerou-a, assou-a e comeu-a sozinho.

O Clube Birdland deveras homenageava – e capitalizava – a celsitude de Charlie Parker, percursor e sumo-sacerdote do bebop, música endemoninhada que só os duendes que nele estrebuchavam poderiam ter soprado. E mal abriu em 1949 depressa o Birdland refulgiu como uma das entradas mais chamativas da tal Rua 52, onde a partir do final dos anos 30 e durante duas décadas o jubiloso swing estrondeava no ar. Às mesmas horas, 5 fusos mais adiante na rotação do planeta, as noites da Europa Continental sofriam doutra animação, incendiadas pelos bombardeamentos da II Guerra Mundial. Propelidos pelos ritmos fulminantes do jazz, grupos festivos ou corações solitários, aventuravam-se na Rua 52 até de madrugada, de porta em porta para dançarem, filar namoro, matar a sede e outros divertimentos. Havia naquilo tudo um frisson de transgressão, um sentimento de ousadia, de quem passa para o lado incerto da cidade.

A este travo de inquietação e um tanto de lascívia que se pedia ao jazz, e ele não se fazia rogado em proporcionar, o Clube Birdland acrescentou alguma bizarria na pessoa de “Pee Wee” Marquette, o apresentador de palco, que do alto do seu metro e dez de altura, introduzia os músicos com piadas duvidosas. E se eles não lhe dessem uma gorjeta, enganava-se deliberadamente ao pronunciar os seus nomes.

Cedendo aos rogos de Parker, ou para o calar, a gerência do Birdland deu-lhe o cartaz de um fim-de-semana. Mas na sessão de 5 de Março de 1955 Bird atingiu um nadir. Ao piano Bud Powell – outro génio fatal e martirizado, que passou por estadias em hospitais psiquiátricos onde o “trataram” a electro-choques – assaz alcoolizado, incapaz de acertar nas teclas, deu em insultar Parker, também ele mais para lá do que para cá, tendo chegado meia-hora atrasado, o que lhe valeu uma admoestação pública. Perante uma casa cheia a altercação azedou e num acesso de raiva Powell bateu com a tampa do piano e saiu do palco despejando uma nuvem de impropérios. Parker, como num transe, pôs-se a recitar ao microfone “Bud Powell… Bud Powell… Bud Powell…” Apavorados ou nauseados, os espectadores retiraram precipitadamente. Tarde de mais o contrabaixista Charles Mingus ainda tentou salvar a noite com uma frase que acabaria nos anais: “Senhoras e senhores, por favor não me associem a isto. Isto não é jazz. Isto é gente perturbada.”

Uma semana depois Charlie Parker morreria engasgado no sofá da suite de Nica, a vestal e protectora dos músicos de jazz. O médico-legista que o autopsiou espantou-se ao ver na ficha a idade de 34 anos. O corpo parecia de um homem de 70.

Bird não foi uma avis rara. Com o tempo os demiurgos do jazz foram ganhando contorno e estofo de trágicos, mas enquanto vivos eram muitas vezes suportados como intoleráveis e funestos, mesmo se admirados – criaturas a evitar. Quando muito levavam-nos na conta de dramáticos; sentiam-se incompreendidos, o que raro seria verdade, eram incapazes de resistir à exigência de uma criatividade infalível e constante buscando consolo no além do vício, e despenhavam-se no lugar-comum, nem sempre errado, que associa o génio ao desmando e à loucura.

As figuras lendárias alguma vez hão-de ter sido humanas e como humanos sofreram vidas dolorosas e amarguradas. Depois de morto de Parker ficou só o que de bom dele recebemos. É uma espécie menor, mas talvez a mais segura, de imortalidade.

 

4 Jan 2019

A mais recente provocação de Lars von Trier

[dropcap]O[/dropcap] novo filme de Lars von Trier, estreado este ano em Cannes e que tem estreia marcada para o Nimas neste início de 2019 – amanhã, 3 de Janeiro – tem como foco um serial killer, Jack (Matt Dillon), Mr. Sophistication, que vai estabelecendo um diálogo com Vergo (Bruno Ganz), numa clara analogia à Divina Comédia de Dante. Podemos ver o filme de dois modos distintos, mas que se entrecruzam: o modo literal e o modo metafórico. Irei começar pelo primeiro modo de ver. Aqui o filme terá de ser visto através do distúrbio radical que conduz um ser humano a matar outros. A história de alguém que está entre nós como se não fosse um de nós – e não é, de certo modo – e despede a grande maioria dos espectadores de identificação.

Na literalidade da narrativa, o espectador fica no lugar daquele que no início do século passado ia a uma feira ver as aberrações que a natureza produzia no ser humano. Porque, felizmente para a maioria de nós, Jack é uma aberração, um desvio radical do comportamento humano. Ele não mata pessoas por dinheiro ou porque em algum momento se enfurece e reage intempestivamente, ele mata pessoas por prazer e por considerar um acto artístico. Ele compara a morte às maiores criações humanas. Ao longo do filme assistimos a um excerto de um documentário em que aparece Glenn Gould a tocar Bach ao piano. Mas também compara a decomposição do corpo humano à decomposição da uva na criação dos vinhos licorosos como o Sauternes. Jack não só mata, como guarda os corpos numa câmara frigorífica. Estamos claramente nas franjas do humano. Ninguém ou muitos poucos se podem aqui identificar com Jack. Jack é um monstro, uma aberração humana, um erro de Deus e da natureza. Visto neste modo literal, a própria narrativa do filme torna impossível a identificação do espectador, pois a descida ao Inferno inviabiliza essa mesma identificação. Lars von Trier impede a identificação ao estabelecer a cumplicidade entre este novo Virgílio (Bruno Ganz) e Jack.

E na literalidade do filme Jack não somos nós. É também neste modo de ver o filme que explode um dos pontos mais polémicos do filme, a aproximação deste fazer a morte à arte. Jack fala mesmo de Hitler e de Estaline como ícones. Mas a pergunta mais pertinente é a que nós mesmos fazemos: aonde é que termina a violência que pode ser considerada arte? Qual é o grau de violência a partir do qual deixa de haver arte? Por exemplo, de modo geral estamos de acordo que os filmes de Van Damme, de Stevan Seagal, de Chuck Norris não são arte, mas entretenimento, e mau entretenimento. E, por outro lado, em que pé ficam os filmes de Tarantino? Desde o violentíssimo Resevoir Dogs até à parodia Kill the Bill? E filmes de autores ainda mais independentes, como sejam os casos de Pasolini – por exemplo o Salò ou os 101 Dias de Sodoma – e de Abel Ferrara – por exemplo o The Bad Lieutenant ou o Funny Games de Michael Haneke? Até onde podemos usar a violência numa obra de arte sem que a arte deixe de ser arte? A pergunta vai um pouco mais longe, pois de modo geral a aceitação da violência na arte advém da aceitação do realismo. A premissa de que temos de filmar o real, temos de filmar aquilo que se passa, aquilo que acontece. A arte não pode fazer como a avestruz e evitar ver a realidade. Assim, quando a violência filmada ou escrita advém de uma realidade ela é aceite pela arte. E do mesmo modo que o humano tem franjas, limites radicais de ser humano, como é o caso deste Jack, também a realidade tem as suas franjas. Um serial killer é uma dessas franjas. Assim como o são os traficantes de órgãos humanos, de armas e de drogas. São realidades que estão nas franjas da realidade e, por isso mesmo, ignoradas pela arte. Se a arte se atrever a tocar nessas franjas, imediatamente é transformada em entretenimento barato ou kitsch. Isto pode advir de várias razões, uma delas é que os senhores das academias, quer de áudio-visuais, quer literárias são pessoas com vidas completamente além destas realidades, eles não vivem nestas zonas do humano. Por conseguinte, o seu olhar acerca disso será sempre a menos e a mais. A menos, porque não sabem nada do que acontece, a mais porque tendem a mistificar. Mas outras razões haverá, seguramente. Seja como for, o filme levanta a desconfortável pergunta acerca do que legitima ou não a relação entre violência e arte.

Quanto ao outro modo de ver o filme, pelo seu lado metafórico, a identificação torna-se evidente, pois o protagonista representa cada um de nós cada vez mais fechados em nós mesmos, nas nossas necessidades, nos nossos caprichos, nas nossas preocupações e prazeres. Cada um de nós não levanta o olhos do monitor, seja ele do portátil, do ipad ou do iphone para atentar no outro. Os mais jovens chegam a estar lado a lado a conversar através do telemóvel. Mas não é uma crítica às tecnologias, mas a este nosso contínuo afastamento uns dos outros. Já só falamos do outro para dizer mal. Isto aparece no filme, na argumentação de Jack, por outras palavras. A vida humana está às moscas. A falta de empatia de Jack pelos outros representa a nossa crescente falta de empatia uns pelos outros. Numa cena do filme, a única em que mostra Jack próximo de uma relação com outro ser humano, e antes de assassinar essa mulher, ele incentiva-a a pedir ajuda, a grita por socorro, e ele mesmo grita na janela em busca de socorro, mostrando claramente que ninguém quer saber de ninguém, ninguém está disposto a sair de sua casa, de seu quarto para vir ajudar outrem. Várias são as palavras escritas em cartazes que Jack vai deitando fora ao longo do filme, à imagem do teledisco de Bob Dylan “Subterranean Homesick Blues”, que indicam o egoísmo da nossa sociedade actual. Não são apenas palavras que o acusam, mas que nos acusam a nós.

Que o modo metafórico seja aquele que Lars von Trier quer que vejamos parece evidente, não só pela estrutura narrativa, que é ela mesma uma metáfora, uma alegoria, um poema, mas também pelo seu fim moralista. Assim, aquele que no fim cai no mais profundo abismo de fogo do Inferno somos todos nós, aqui e agora. Não porque matámos alguém, mas porque matámos ou estamos a matar o humano que somos.

3 Jan 2019

Se não me puderes amar no inverno, quando?

[dropcap]P[/dropcap]alavras que sejam, elas próprias, desempenho, e, mais do que adejo, corte sob a pele.
Não há outra medida para o escritor, mentira que lhe valha.

Por isso, continuemos, venha o que vier: os pálidos gestos de ternura, as tempestades, os descalabros invisíveis da História ou o paliativo do quotidiano. Mesmo os que não nos consolam os tremores íntimos anónimos, aqueles que feriram, apesar de aparentemente irrelevantes; eu em miúdo odiei ter sabido que um bigode pode ser à Cantiflas – e, sim, o humor não resgata tudo.

Contudo, só porfiando algo se articula, um raio ou uma face arregalada pelo desarme. Só transformando a escrita em vivência ela arranca à viscosidade do caos uma repetição equiparável à buzina com que Harpo Marx inscrevia no silêncio uma nova linguagem.

Um novo ano, e nada me ocorre senão aquele começo poderosíssimo de Camilo José Cela em Ofício de Trevas 5: «es cómodo ser derrotado a los veinticinco años aún sin una sola cana en la cabeza sin una sola caries en la dentadura sin una sola nube en la conciencia con sólo dos o tres lagunas en la memoria y mirar el mundo desde el cielo desde el purgatorio desde el infierno desde más acá de los montes pirineos y la cordillera de los andes con frialdad con indiferencia con estupor».

Conheci tantos em quem vi a comodidade de serem derrotados aos vinte e cinco. Antes de, devido à intransigência que cabe aos jovens, conseguirem sequer adivinhar que afinal nada há de intransitivo na vida.

Ou melhor, que a única coisa intransitiva na vida é a idade – a única aprendizagem que se entranha. O mais é puro derrame de uma coisa noutra, contágio, intersecção, simbiose e corrupção. Só a idade nos retém e aparvalha – uma besta enfurecida – entre maxilares. E mesmo aí temos direito a momentâneos vislumbres fora da caixa palatal que nos rumina. Enquanto, merda, ficamos tardios, a congeminar que a roleta do mútuo consentimento nos abandonou e que ao selvático empenho de amar se sobrepôs o respeito, a defeção. O que quer que isso seja. Sem outro ganho que o de reconhecermos: sob a dura casca de noz que nos subjuga lateja ainda um jovem assombrado pelo tumulto das luzes que nos cegou no seio do labirinto.

A chegar aos sessenta (faltam dezoito dias) pergunto-me quantos livros li até ao fim? Necessariamente um terço dos que comecei a ler. E acima das trezentas páginas contam-se pelo dedo. O Moby Dick, Dostoievski, Tolstoi, alguns Dickens, Saul Bellow, dois ou três volumes do Proust… ou livros que tive de ler por trabalho. Fico sempre banzado, no estrangeiro, quando vejo multidões nos comboios e no metro aferrarem-se a setecentas páginas de irrelevâncias.

Li mais até ao fim Saramago do que Lobo Antunes. É-mais fácil. Há em Saramago um admirável trabalho de relojoaria, a que se segue o ronrom. Com Lobo Antunes levanta-se uma questão de densidade – prescinde da trama, abro qualquer livro e leio cinquenta páginas como se mergulhasse no mercúrio. É retemperador, mas preciso de pausas entre cada dose.

Escusam de me perguntar de quem gosto mais, sou incapaz neste caso. Já entre Eça e Camilo alinho por este último.

Demasiadas vezes interessa-me mais o processo do que a história do livro.

Há escritores a quem cheguei cedo e outros a que acostei tarde.

Ao Ruben A. cheguei temprano e ainda hoje me admira ser tão desconhecido da maioria, ao Augusto Abelaira cheguei tarde, à primeira só o Bolor me agarrou, mas trinta anos depois de não o ler comprei no metro O Triunfo da Morte e Sem Tecto, Entre Ruínas, e percebi que aquela liberdade livre é rara e só por extrema deficiência na educação dos leitores ele não é, foi, um sucesso.

É difícil a unanimidade, mas livros há que me espantam de não a terem. O Alface impingiu-me um autor francês que, orgulhoso, só fui ler depois da precipitada morte dele, o Maurice Pons e o seu As Estações. Até chorei depois da leitura do livro por não o ter lido antes, para comentarmos o livro. É extraordinário, um dos maiores exercícios da imaginação que li na vida. Contudo, já o tentei vender a meia dúzia de pessoas que não compreendem o meu entusiasmo. Há contágios que só passam de escritor para escritor, sendo necessário lidar com os limites da imaginação própria para reconhecer um acto pleno. Em França há clubes de fãs de As Estações, em Portugal foi um fracasso absoluto.

Há livros nas minhas estantes cujas edições se desfazem de tantas vezes serem relidos, dobrados e riscados, como Debaixo do Vulcão, de Malcolm Lowry, o Empresta-nos o seu marido?, de Graham Greenne ou o Mulheres e Homens, do Richard Ford; outros, apesar de lhes reconhecer a excelência, deixam-me frio e abandono-os invariavelmente a meio, como os livros do Sebald, que têm todos um ar espantosamente novo.
Agora, com um pé nos sessenta, sinto-me ejectado para o espaço. É o momento de fixar um livro de memórias. E tudo só pôde começar porque arranjei um título convincente, e desta vez não lhe mudarei uma sílaba: Se não me puderes amar no inverno, quando?

Será em três volumes, o primeiro sobre a infância, o segundo em torno dos amores e o terceiro sobre a escrita. O primeiro é o que me ocupará neste mês de Janeiro. O segundo escrevê-lo-ei em Janeiro de 2020 e assim sucessivamente.

Será o modo de atar o meu corpo ao compromisso de durar mais uns anos, viés sobre o qual às vezes tenho dúvidas.

Que as letras me catapultem e se rendam à hipótese de que existe uma realidade para além das imagens, suscita-me o desejo de toda a luz e é o projecto possível para quem não nasceu para ser discípulo do Mallarmé.

3 Jan 2019

As voragens da “correcção” ou a gramática prometida

[dropcap]É[/dropcap] fácil descrer dos humanos e criar uma infindável lista de exemplos que permita legitimar e interiorizar a descrença. Descrer é fácil e até embalador, tanto mais que o perfil da nossa época herda, já de si, um horizonte generalizado de descrença. Quando ouço alguém dizer que “descrê do ser humano”, penso logo que o debate acabou, pois o argumento pertence à casa das coisas mais óbvias, daquelas que tranquilizam e guiam as convicções consumadas. A minha gata prefere espreguiçar-se a dar atenção a esses senhores girassóis.

No Ocidente (que hoje é muito mais do que um ponto cardeal no globo), o mundo moderno tem vivido da ascese da máquina e do crescente monopólio da programação, renunciando, apenas na aparência, aos mais variados rituais associados às transcendências. Na realidade, as ideologias eram formas lunáticas de transcendência, do mesmo modo que as linhas de montagem da morte (ensaiadas na primeira metade do século passado) também se ergueram em nome de um homem puro ou novo (ou fosse lá o que fosse na sua excentricidade maléfica). Daí que a crença inabalável não seja uma luz que contracene com as trevas da descrença, nada disso.

É talvez por causa destes lamaçais feitos de ‘preto no branco’ (a alta definição é um olhar telecomandado) que a Europa se tornou num hematoma perigoso e descontrolado. Quando se diz “Europa”, diz-se aquela paisagem arrasada pela violência que o continente experimentou de 1914 até 1945. No final da Segunda Grande Guerra Mundial, uma mais do que improvável utopia (sublinho “improvável”) decidiu criar um projecto sem precedentes, através da ‘união’ dos antigos contendores num devir económico que deveria ter evoluído para outras fasquias mais altas. O salto foi ficando a meio, desde o alvor do século XXI. Ninguém já se lembrava, na carne, da Europa em ruínas e a ferro e fogo. A dissuasão ocultou o tremendismo e este foi-se perversamente diluindo com o passar do tempo.

Faz agora 33 anos, o JL publicou um texto de Kundera sobre a Europa que hoje parece profético a este respeito. Leiamos o seu momento fulcral: “A Europa não se apercebeu do desaparecimento do seu grande foco cultural, porque, para a Europa, a sua unidade já não simboliza a sua unidade cultural. Em que bases assenta então a unidade da Europa? Na Idade Média assentava numa religião comum. Nos tempos modernos, numa altura em que o Deus medieval se transformou em Deus absconditus, a religião cedeu o seu lugar à cultura, que passou a significar a concretização dos valores mais elevados” (…) “Da mesma forma que, em tempos passados, Deus cedeu o seu lugar à cultura, é agora a vez da cultura ceder o seu lugar. Mas a quê e a quem?”.

Kundera já estava, neste texto, a tactear o universo de descrença que havia de fechar o rasgo utópico nascido nos idos do pós-1945. Nada mais fácil de conjecturar, pois os humanos, no mundo moderno, não foram nunca capazes de persistir para além do ‘seu tempo’. A memória é assustadoramente curta. Há pouco menos de um milénio, a construção de uma catedral perdurava ao longo de várias gerações, já que o tempo era entendido como uma dádiva que vinha de cima. Agora os rumores fundeiam por baixo e a existência é feita de fractura, de dígitos e da apoteose tecnológica. O que acontece desaparece logo: tsunami ao longe é hemorragia mediática por perto. E depois… o vazio. Estamos tão longe uns dos outros como Werther estaria da “vida” real; só que o personagem de Goethe ainda sonhava com as “encantadoras plenitudes” e, hoje, são as portas do Colombo ou do Vasco da Gama (os nomes são entidades por vezes tão irónicas!) que fazem de simulacro da plenitude. Uma sublimação da descrença, por outras palavras.

É para iludir o buraco negro da descrença contemporânea que se inventou o corpo diante da televisão, o corpo dentro da rede, o corpo caído no shopping, o corpo sitiado no ginásio, o corpo a fugir das vacinas; o corpo, enfim, a vociferar por uma liberdade tipo ‘barata tonta’, mais parecida com o vaivém controlado de uma bola de pingue-pongue tipo ‘new age’ do que com uma nave autodirigida a percorrer (sem rumo) as galáxias virtuais.

Neste cenário, qualquer forma de cepticismo tem um infinito fuel à sua disposição. Azucrinar filosoficamente ou de modo chão e letal (como acontece nos comentários que surgem na rede) faz parte desse fel. O outro lado da moeda luz como prata areada em dia de festa, na medida em que hoje tudo é ensaiado e encenado através de uma lógica ‘gourmet’. O discurso político, a publicidade e até o ‘stand-up’ respiram numa ordem de tipo transgénico. Tudo lhes é previsível: quer o que se diz, quer as esperadas reacções. É desta concordância que é feita a gramática a que a correcção aspira, pois ela alimenta-se freneticamente da descrença liofilizada; quer da que tem os seus apólogos, quer daquela que insufla os que (apenas imaginariamente) se lhes opõem.

Neste cenário, “to be or not to be” é uma e a mesma coisa. Sem querer cair no burlesco, é possível que, mais do que nunca, se precise de alma. Pelo menos na acepção de Amos Oz, desaparecido na semana passada, para quem a alma era descrita como “uma corsa ansiando por águas vivas” (‘O Mesmo Mar’, 1999).

*Kundera, M., Europa Central: um continente sequestrado in JL nº 164, 1985, p.22, P. Projornal, Lisboa.

3 Jan 2019

Progresso e crença

[dropcap]À[/dropcap]s nove e meia da noite do dia 14 de Novembro de 1853 a Rainha D. Maria II entrou em trabalhos do seu décimo primeiro parto. Correu tudo mal – das vascas da morte a esta propriamente dita foi o trânsito de uma madrugada.

Já antes Maria tivera parições duríssimas e três dos seus nascituros vieram mortos ao mundo. Segundo algumas crónicas, num caso pelo menos houve que degolar o bebé in utero para que a mãe sobrevivesse. Por volta das duas da manhã o Teixeira, 1.º cirurgião privativo da Real Câmara, ainda augurava esperanças, mas três horas depois pediu que entrassem os restantes quatro colegas, que salvaguardavam o pudor da monarca aguardando respeitosamente à porta da sua alcova, a fina-flor da ciência médica nacional, para deliberarem o que fazer. Foi consensual diagnosticarem a situação como aflitiva e de imediato deram início à operação. Rasgado o ventre da Rainha extraíram-lhe D. Eugénio a tempo de o baptizarem antes de expirar. Ainda foram convocados mais dois médicos, entre os quais o ilustre Magalhães Coutinho, mas a causa estava perdida. Sem recursos que valessem à moribunda, que se mantinha meio consciente, os clínicos ministraram-lhe clorofórmio para lhe mitigar o sofrimento e hão-de ter procedido a uma ou outra flebotomia, o que à margem do jargão da arte se chama de sangria, em tentativas para lhe purificar o sangue e estimular a reacção do organismo. Combalida mas lúcida, D. Maria confessou-se e recebeu a extrema-unção do Patriarca, despediu-se dos íntimos e foi-se esvaindo até ao seu passamento às onze da manhã. Tinha trinta e quatro anos.

As catástrofes sanitárias que assolaram a Coroa portuguesa não se ficaram por aqui. Dois anos depois da morte da Rainha consorte D. Estefânia, vítima de difteria, em 1861 e no período de um mês, o tifo haveria de dizimar o rei D. Pedro V, com 24 anos, e os príncipes D. Fernando e D. João, ambos adolescentes. Sobreviveu o irmão Luís que ganhou horror ao infecto Paço das Necessidades onde consta nunca mais ter posto os pés.

Se for levado em conta que esta mortandade se abatia sobre quem habitava palácios, vivia rodeado de cuidados, comia e bebia do melhor e do mais impoluto e era zelado pela mais avançada medicina da época, com maior acuidade se percebe a urgência e o realismo que Dickens investiu no seu “Hard times” de 1854 e Victor Hugo em “Les Misérables” de 1862. Há, porém, outro aspecto que importa trazer à colação: esta mortandade ocorreu há coisa de 150 anos, uma bagatela na passagem do homo sapiens sapiens pelo planeta, que já dura há 200.000 anos. O séc. XX abundou em desastres e patifarias provocadas pelo ser humano, mas também em progressos assombrosos. Só a má-fé ou um espírito obtuso não ficará extasiado com o facto de a medicina ter evoluído mais em tão curto tempo do que em todos os anteriores 189.850 anos. Hoje só por grave incompetência não teria sido estancada a hemorragia que vitimou D. Maria e as epidemias de tifo, se não foram erradicadas, estão controladas. De cada vez que fazemos o gesto simples e casual de tomar um antibiótico, há 150 anos enfrentaríamos a morte.

Estamos no entanto a assistir actualmente a um fenómeno perturbante senão mesmo embaraçoso. Os habitantes das regiões mais pobres e ermas do planeta onde a medicina não chegou ou é rudimentar, ambicionam, com maior ou pior sorte, o bem-estar e a qualidade de vida que ela proporcionou aos cidadãos dos países mais desenvolvidos. Por experiência própria, ninguém melhor do que eles entende as vantagens da aspirina ao chá de ervas a que têm de recorrer. Em contrapartida, uma parte dos principais beneficiários deste miraculosos progressos, a despeito de todas as confirmações históricas e estatísticas, deu desconsiderar a medicina e a ciência preferindo-lhes terapias – pseudo-terapias – cuja eficácia é sustentada por um atabalhoado e pedestre jargão cabalístico mas, aparentemente, muito convincente porque parece “tradicional”, “natural” e “autêntico”.

Dos vários motivos que levam tanta gente a tamanho obscurantismo, dois serão preponderantes.

40 anos de insistência numa cultura da suspeição estão a produzir o seu efeito. Dela emerge uma forma de niilismo que vez de reparar que nunca as sociedades foram tão abertas e escrutinadas como hoje, imagina o mundo governado por um círculo secreto e fechado a conspirar no escuro contra mim. De tudo se duvida, portanto, porque sobre tudo se presumem más e obscuras intenções.

Outra causa será a espécie de solidão e desalento existencial que carece dos consolos especulativos da metafísica e das verdades seguras, embora inexplicáveis, de um transcendente. Conhecer não basta, é preciso acreditar. Mas em nome de uma pretensa pureza este misticismo tem que ser exótico e original, esotérico e meândrico, porque das formas organizadas, domésticas e tradicionais, ou seja, das igrejas, desconfia-se que façam parte da conspiração.

Só desdenha aquilo que tem, quem o toma como adquirido. A isto pode dar-se o nome de “alienação”. Talvez um pouco de consciência histórica e, literalmente, de razão, mesmo que em doses homeopáticas fizesse bem aos insatisfeitos da boa fortuna.

28 Dez 2018