Votos para 2019

[dropcap]E[/dropcap] de repente faço sessenta anos (sou capricórnio) e recebo a visita de um neto, antes mesmo de ter tido um béguin com a Stephanie do Mónaco. A vida é ingrata!

Esta falha horroriza-me, nem sequer consegui ser guarda-costas da filha da Grace ou segurar-lhe as maças no circo. E em que zona das omoplatas me enxertaram um neto, se as minhas células continuam a regenerar à velocidade com que os supersónicos engolem nuvens de algodão doce e, por amor, me dispunha a renunciar aos princípios republicanos, de tal modo que ambos no fim tatuaríamos no peito um Leão da Tasmânia?

«Estamos alegres. Nem rato/ porá a casa em desacato,» sentencia o Robin de Sonho de Uma Noite de Verão, que acabo de reler, e sinto que o desacato personificou no rapaz gentil e falador de 9 anos que me entrou em casa nestes festejos e me desviou o pensamento da estratégia de me aproximar do Mónaco para conhecer a alvorada na intimidade de uma mulher que, dizem as revistas cor de rosa, choca os seus súbditos por não aparecer maquilhada nem esconder as rugas. Tudo o que me convinha.

O importante é que ela não cantasse, pois eu sou um gnomo honesto e seria incapaz de mentir-lhe.

E espero que o puto não me volte a visitar antes de me apresentar à Beth Hart, a cantora de blues, e de interpretarmos os dois no duche Caught Out In The Rain, fazendo disso cicatriz do destino.

Não esperem menos de mim que do Dominguín, o toureiro que foi amante de Ava Gardner e a deixou sozinha na cama às duas da manhã; respondendo, face ao espanto dela por ele sair da cama, Desculpa lá, mas agora tenho de ir ao bar contar que ando a comer a Ava Gardner, pois para mim metade do gozo está em contá-lo.

Fui sempre um rapaz recatado, mas esta onda de pez em que o «politicamente correcto» nos promete naufragar dá-me uma vontade irredutível de vos anunciar como vai ser, em 2019.

Na primavera rumarei à Escócia para dar uma oportunidade à Ali Smith para me conhecer. Depois proponho-lhe uma viagem no tempo, recuaremos vinte e cinco anos. Após o que talvez nos despenhemos no amor. A imaginação dela convém-me muito.

No verão, não regressarei imediatamente a Portugal depois da viagem que, está estabelecido, farei a Lisboa com a mulher e as filhas. Armarei uma estratégia para elas regressarem sem mim, e ala para a Bordéus, onde se encontra a escritora galega Luísa Castro. Do mais seria indecoroso falar, mas com certeza que a interrogarei sobre Los versos del eunuco, Los hábitos del artillero ou Una patada en el culo y otros cuentos, livros dela que me agradam muito.

Em Outubro deslocar-me-ei ao Canadá para discutir alguns tópicos de Oedipal Dreams com a sua autora, Evelyn Lau. Tudo dependerá de muito, mas se averiguar que ela não teve qualquer relação com o poeta americano Charle Simic – para mim, mulher de amigo é homem -, não me farei rogado e pode sair que algo corra entre nós, por exemplo, um livro a meias e em alexandrinos.

No Inverno repousarei.

A filha de Bukovski tem-me escrito, quer vir fazer-me a receita favorita do pai: bifes com ervilhas. Mas resguardo-me de quaisquer encontros com os mitos, temo a sua senescência.

O meu neto é que a sabe, fala como já floresceram as varandas em Verona.

Nos intervalos que a visita obrigatória ao Kruger com o miúdo me deixou, li dois livros deliciosos: Retalhos do Tempo/ Um memorial de Dublin, de John Banville, absolutamente recomendável, e a comédia de Shakespeare, numa excelente tradução de Maria Cândida Zamith.

O que é extraordinário, ao ler-se esta ou outra peça de Shakespeare, é pensar como era inteligente o público que fez de O Sonho duma Noite de Verão, o maior sucesso da carreira do bardo. A peça é estruturalmente enxuta e perfeita, mas a surpresa reside no facto do ignaro povo e maioritariamente analfabeto do período isabelino aderir ao seu teatro e à sua linguagem (que hoje nos parece elitista) sem a menor reserva e aprendendo trechos de cor.

Veja-se este espantoso jogo de trocadilhos fonéticos (- que fui buscar à tradução brasileira, que li primeiro, e que é o único trecho que prefiro a esta nova tradução da Relógio D’Água):

«Demétrio

O rapaz que jaz é um ás da morte.

Lisandro

Ás que jaz é incapaz; é um zero à esquerda.

Teseu

Com a ajuda de um médico é capaz de se recuperar e voltar a ser um as-no»

Pensar que o espectador elisabethiano acolhia entusiasmado o wit, a qualidade deste humor, e reagia na hora, no timing certo, às deixas – o que não acontece com a maioria dos meus alunos – é descoroçoador.

Há uma história da recepção literária ou dramatúrgica por fazer e seria utilíssima para derrotar mitos actuais que encharcam jornalistas, agentes culturais e editores numa suficiência espasmódica e gelatinosa que os levou a interiorizar a crença de que o gosto médio não está preparado para o complexo e só compreende estruturas básicas e um nível lexical a roçar a decomposição onomatopaica, viciando completamente a literatura e o que nela é considerado aceitável e inteligível.

Hoje o Shakespeare não teria editor e seria aconselhado a aplainar os textos em nome da eficácia e da funcionalidade. John Updike teria dificuldades em arranjar editor se começasse a editar vinte anos depois, pois foi sempre acusado de escrever bem demais.

E agora deixo-vos com uma variante minha à última fala de Oberon, na peça: «Agora, até à alvorada,/ Vá pela casa cada foda/ A melhor noiva escolher,/ Sua cama abençoar;/ (…) Cada foda vá voando/ Cada quarto abençoando/ Neste palácio amoroso: /E o seu dono, venturoso,/ Sempre descanse feliz./ Que se faça o que se diz».

São os meus votos.

28 Dez 2018

Dos balanços

[dropcap]Q[/dropcap]uem abraça este ofício de escrever sobre os dias de maneira regular tem, mais tarde ou mais cedo, dois grandes adversários: a clássica “angústia da página em branco” ou a “angústia da originalidade”.

Sobre a primeira, grandes crónicas já foram escritas (e outras péssimas também): lembro-me de uma belíssima obra de arte do brasileiro Antônio Maria – o padroeiro desta minha casa – com o título Amanhecer no Margarida’s, onde o cronista nos descreve o seu acordar prematuro, o nascer da manhã e a multidão de pensamentos que lhe passam pela cabeça. Termina com uma breve reflexão sobre o método caótico e inesperado que está na base das suas crónicas, o que é normal porque se chama vida. É uma crónica que sem ter um assunto consegue nessa ausência preencher tudo o que nos diz respeito.

Já o desafio da originalidade é mais complexo. Escrever algo verdadeiramente original – isto é, sobre alguma coisa nunca escrita – é, por definição, impossível. O Livro do Eclesiastes já dizia que não há nada de novo debaixo do sol. De outra forma mais literária, e reflectindo sobre o acto de criação, o escritor Blaise Cendrars afirmou de forma certeira: «Se alguma vez me aconteceu ser original foi sem querer». Os temas serão, de uma maneira ou de outra, sempre os mesmos – apenas o tratamento que lhes podemos dar irá variar.

Portanto, leitor, eis o meu drama: tinha um encontro marcado com as palavras e o segundo flagelo que descrevi invadiu-me e aterrorizou-me: o que poderei eu escrever de novo, que combate ou elegia deverei escolher? E foi então que mais uma vez a menina Marina me salvou o dia. Mas estou a ser mal-educado, permitam-me que a apresente: a menina Marina é real. Trabalha no café aqui do bairro, onde tomo o pequeno-almoço, e é o meu primeiro contacto com a realidade exterior. A menina Marina já deixou há muito tempo de ser menina mas aceita esta aliteração cortês com que a saúdo todas as manhãs porque – desconfio – se sente lisonjeada. E em troca dá-me o benefício dos seus comentários. Nada de profundo: se existe alguma especialidade que a sua conversação possa ter são as platitudes. Mas há muito que aprendi a não dispensar tão depressa tudo o que parece óbvio, simplesmente porque muitas vezes é lá que mora o bom senso.

De modo que ignorando por completo estes meus dilemas de escrita a menina Marina me atirou enquanto me atendia: «Ai, senhor Nuno, estamos outra vez naquela altura em que toda a gente faz balanços e se lembra do que aconteceu durante o ano… Para que é que isso serve se já aconteceu ?». E pronto, eis a epifania servida com pastel de nata.

É de facto uma altura estranha, feita de uma festiva melancolia. Recordar o melhor e o pior do que sucedeu durante 365 dias é para mim mais um exercício desesperado contra a nossa transitoriedade. A não ser no que diga respeito a grandes e marcantes acontecimentos a memória colectiva é, sabemo-lo de forma dolorosa, muito ingrata. A nossa, a individual, basta-se a si própria, e as conquistas ou perdas que sofremos durante um ano acompanhar-nos-ão durante toda a vida. Ao olhar para 2018 não vejo grande momento para parar: a natureza humana continua a exceder-se naquilo que tem de pior, agora ajudada por um clima cultural e social de profunda estupidez e perseguição, disseminado a velocidades vertiginosas. Não, não haverá nunca um “balanço do ano” que nos redima.

Esta é e será sempre uma época difícil para um céptico, pelo que prefiro esconder-me atrás de livros e música. E ouvir as sábias palavras da menina Marina enquanto vou saindo do café: «Saudinha é que é preciso, senhor Nuno». Sim, menina Marina, sim.

27 Dez 2018

Ti Coelho

[dropcap]O[/dropcap] Ti Coelho não me reconheceu, quando nos encontrámos, por acaso, na quarta feira. Apenas fingiu que sim. “Parece que me lembro, menina, mas não estou a ver de onde…” Nalgum lugar da sua memória, talvez acreditasse no que eu lhe dizia, que nos conhecíamos do Kiwi, o restaurante que ele teve durante muitos anos na Antero de Quental, e onde eu almocei e tomei café quase todos os dias durante pouco mais de um ano, já a crise ditara que se não abrisse à hora de jantar. A crise dele e da esposa, por quem tive receio de perguntar, num dos anos em que eu mais ganhei dinheiro. A minha crise era outra, então. Comida simples, boa e barata, era só descer um pouco e atravessar a estrada. Actinidia deliciosa. A Ariana diz que é a fruta mais bonita e sinto-me tentada a concordar. Havia um grupo de amigos que ocupava a maior parte do espaço a um dia fixo da semana desde há muitos anos. Sempre quis ter essa rotina com alguém, conheço quem tenha e acho saudável. É bonito, quando a amizade é um hábito, porque, de facto, parecemos cada vez mais desabituados uns aos outros. Muitas conversas, reuniões, alguns dramas e piadas, sempre que o Ti Coelho fazia traduções do latim mas dizia não saber o que o carpe diem na tatuagem de alguém significava. Nunca ouvi falar nisso, dizia. Pois é, ele não se lembrava de mim. Não propriamente. Não do modo que faria com que me abordasse com a rapidez e a alegria com que eu o fiz. Não do modo como fez um rapaz na outra semana, quando eu estava a olhar para o horário da roda gigante no Marquês e uma voz confirmou o que eu dizia à Diana, que a roda já estava fechada. Na altura, foi natural o que sorrimos naqueles segundos. Podia ter sido no dia anterior, termos ido trabalhar, ou sair com os amigos, ou voltar para casa a pé. Podia ter sido no dia anterior que ele decidiu ir para casa em vez de ir ver uma amiga que, na realidade, já cá não estava, que já não era ela. Podia ter sido no dia anterior o churrasco da Petra. Podia ter sido no dia anterior o meu aniversário, a vela num queque e a prenda um livro sobre viagens em África, para eu estar “mais em contacto” com as minhas origens. Podia ter sido no dia anterior o carro da Tânia ficar sem bateria. Podia ter sido no dia anterior eu ter começado a levar a máquina para todo o lado, mas eu não via o Cláudio há sete ou oito anos. Mas não pensei nisso, quando vi o Ti Coelho. E eu não o via, a ele, há cinco anos. Ele ainda era ele. Mas depois percebi que não podia esperar que me reconhecesse. Porque aquela rapariga que o Ti Coelho conheceu não era nada parecida comigo. Eu sabia que era eu. Mas quase mais ninguém sabia. Essa é a diferença. Para um, eu nunca fui. Para outro, eu nunca deixei de ser. Como explicamos a alguém que, só agora, de fugida, num corredor de um edifício no hospital onde eu nunca tinha entrado, é que está, realmente, a ver-nos pela primeira vez? E que mesmo assim, ainda falta? Eu não era eu, poderia ter dito. Naquele ano não fui eu que vim, foi tudo o que me aconteceu em anos anteriores. Mas o tempo estava a contar, ele tinha pessoas à espera e eu também, apenas não aquelas com quem ele esperava que estivesse tudo bem. Não lhe disse que não sabia se estava. Não lhe disse tudo o que tinha mudado. Talvez daqui a uns anos nos reencontremos e ele não me reconheça de todo. Talvez eu apenas lhe sorria sem dizer nada e lho perdoe. Talvez os quilos pesem mais do que os anos, na memória de alguém. Na minha, sei que sim. Talvez haja coisas impossíveis de esquecer mas das quais nos possamos ir lembrando cada vez pior, mesmo se vivemos nelas a vida toda. Ou quase. Talvez seja a única forma de nos mantermos sãos. Poderia ter explicado isso, também, mas ultimamente tenho aprendido muito sobre o que é preciso ou não dizer, que é como quem diz, tenho aprendido muito sobre mim, que eu ainda vou ser.

27 Dez 2018

Aliciadores e barracões de cules

[dropcap]”D[/dropcap]esde 1856 partiram de Macau 414 navios com colonos, e só 5 deixaram de chegar ao seu destino por terem sido saqueados pelos emigrantes. Esta proporção, considerada como diminuta, de cinco catástrofes por pouco mais de quatrocentos navios é, quando se considera com a devida ponderação, tão extraordinária como pavorosa. As violências e revoltas de culis foram, quase sempre, provocadas ou pelo tratamento bárbaro que nos navios recebiam, ou pela introdução a bordo de criminosos a título de emigrantes; cada uma daquelas catástrofes descobre as angústias, as misérias, a opressão, a fome, a tirania, que padeceram centos de homens ou revela o vício profundo de uma emigração em que se ocultam facínoras dispostos a cometer os crimes mais atrozes”, segundo Andrade Corvo.

Montalto de Jesus (MJ) refere, “Em Macau, ninguém abominava mais o tráfico do que muitos respeitáveis macaenses. Não queriam de modo algum envolver-se nisso, considerando-o uma desgraça completa para a colónia. Os traficantes de escravos eram de várias nacionalidades, tendo alguns portugueses por ajudantes.

Em todos os distritos adjacentes, o engodo continuava sem impedimentos, apesar das queixas oficiais enviadas por Macau. Milhares de engajadores nativos engodavam à rédea solta os camponeses com saborosos repastos e enganavam-nos com a promessa de um EI Dourado, emprestando-lhes o dinheiro que, invariavelmente perdido no jogo, em breve colocava as pobres vítimas na obrigação de se entregarem como forma de pagamento. Quando não havia camponeses para enganar, atraiam-se aos barracões vendilhões, artesãos e criados de Macau, que eram obrigados, com maus tratos, a embarcar como emigrantes”.

Abolir o tráfico

“O primeiro passo na liquidação do tráfico de cules foi dado pelos Estados Unidos, que, importa salientar, precedeu de mais de dez anos as medidas idênticas adoptadas pelo governo de Hong Kong. Assim, em princípios de 1862 uma lei interditava a todos os cidadãos dos Estados Unidos ou estrangeiros residentes, por si ou por interpostas pessoas, de construir, equipar ou, por qualquer forma preparar, quer como capitão, proprietário ou outro título, navios destinados a receber da China ou de qualquer outra localidade, habitantes ou súbditos chineses, denominados cules, para os transportar a um país estrangeiro com o fim de serem vendidos ou contratados por determinado número de anos, para serviços. Os navios contraventores seriam sujeitos a confisco, perseguidos e julgados em tribunais dos Estados Unidos. Ficavam fora da alçada desta lei os casos de emigração voluntária”, segundo Lourenço Maria da Conceição. Os proprietários dos navios americanos, dando a volta ao problema, venderam-nos e assim com bandeiras de outras nacionalidades continuaram o transporte de cules, sendo o exemplo seguido pelos ingleses.

“Outras medidas tendentes a proteger e dificultar o tráfico foram estipuladas em 5 de Março de 1866, no regulamento acordado entre os representantes de Inglaterra e França e o Príncipe Kung (Gong). Este regulamento tinha sido prometido nas Convenções de Pequim, em 1860, celebradas entre a Inglaterra e França, por um lado, e o Império Chinês, por outro”, segundo Lourenço Maria da Conceição, que complementa, “Na convenção suplementar aos Tratados de Tien-Tsin, de 24 a 25 de Outubro de 1860, os aliados fizeram inserir a obrigação de o Imperador, por decreto, ordenar às autoridades superiores de cada jurisdição que dessem aos chineses que quisessem servir nas colónias inglesas ou outros países de além-mar, inteira liberdade de contratar nesse sentido e embarcar em navios, ingleses ou franceses, em todos os portos da China abertos ao comércio.”

Depósito de cules

Em Macau, além de muitos barracões clandestinos, “Dos dezassete estabelecimentos de emigração chinesa, dez achavam-se na cidade cristã, seis no Bazar e um fora das portas de S. António”, segundo o B.O. de 1867, que refere, a 14 de Junho haver 319 corretores de colonos e 163 empregados nos estabelecimentos de emigração chinesa. “A emigração no ano de 1867 foi diminuta, em quanto que em 1871, segundo o que conta dos livros da extinta Superintendência e dos Boletins do Governo, saíram por Macau 23.882 colonos contratados e 458 livres, e havia 24 estabelecimentos de culis, dos quais somente um, denominado do Carneiro, em 1871 contava 1754 corretores ao seu serviço. Por tanto, deduzidos os indivíduos de Macau, que eram relativamente poucos [5463 portugueses e 66.267 chineses], pois que corretores, agentes, subagentes eram, com poucas excepções, estrangeiros, não será erro calcular que aquele número de indivíduos inerentes à emigração, principalmente os colonos, fosse muitíssimo maior em 1871”, segundo Almerindo Lessa. Liu Cong e Leonor Seabra referem, “Em Macau [1873] havia mais de 300 barracões portugueses, espanhóis e peruanos, não tendo em conta os de outras nacionalidades.”

Tráfico de Cules

Desmentia o Governo de Macau as acusações, dizendo ser voluntária a emigração pelo porto de Macau. Certa vez, na visita a um depósito, “O capitão de um barco de cules recusou-se a transportar alguns anamitas, comovido pelas suas lágrimas e súplicas. Com os braços no ar, um deles mostrou uma cruz ao dono do barracão que, bondosamente, os libertou, entregando o grupo inteiro aos jesuítas, recentemente restabelecidos no Colégio de São José. Com gestos e esboços os pobres infelizes tentaram explicar como tinham sido raptados. Alguns missionários franceses de Hong-Kong forneceram então um intérprete anamita”, segundo Montalto de Jesus que esclarece, “esses anamitas eram parte de uma escolta enviada pelo governador de Nandhin, com um tributo para o imperador de Annam (Aname, um reino entre a Cochinchina, na mão dos franceses desde 1859, e Tonquim). Partiram em cinco juncos e, atacados por piratas em dez juncos bem armados, alguns renderam-se depois de uma breve luta e os outros saltaram para o mar.” (…) “Depois de decapitarem dois mandarins feridos, e de fazerem à pressa o transbordo dos homens e do saque, os piratas zarparam e em Bah-choi passaram os cativos e um grande saco de prata para duas lorchas.” À chegada a Macau, os cativos foram coagidos a embarcar como emigrantes, sendo “fechados no porão de uma das lorchas com um pouco de arroz e muito pouca água. Mortos de sede, suplicaram por mais água; só lha davam com a condição de aceitarem emigrar. Acedendo, foram transferidos para os barracões e ai eram açoitados sempre que choravam ou se recusavam a embarcar”, história no Echo do Povo, de 14/5/1867. O intérprete foi à procura de outros cativos anamitas, sendo-lhe negada a entrada nos barracões. Certo dia andava o intérprete pela rua quando se cruzou com um grupo de seus conterrâneos vestidos à chinesa e seguindo-os até ao serviço de emigração, descobriu como os cativos eram passados por emigrantes. Falando-lhes na sua própria língua, todos declararam não querer emigrar. O superintendente ordenou imediatamente a sua soltura.

21 Dez 2018

As Conquistas de Roma

[dropcap]A[/dropcap] Netflix é o Uber do cinema. E um filme como o tão badalado “Roma” é o primeiro passo desta revolução, a qual, como sempre acontece, vai causar enorme destruição antes de triunfantemente se afirmar.

“Aconteceu no Oeste” é uma caubóiada com todos os matadores, moscas e balas. Estreado em 1969, bem depois da missa do 7º dia pelo western, sob a batuta de uma banda sonora palpável o filme é uma voluta absolutamente ornamental, todo ele forma e feitio, que aos apocalípticos pareceu uma espoliação quase paródica e amaneirada do género e aos integrados uma divertida homenagem a ele. Sergio Leone queria fazer – e fez – prova de que o cinema tinha qualidades inalcançáveis à TV e enquadramento após enquadramento até os espectadores do primeiro balcão tinham de rodar a cabeça para ver um dos duelistas quase no Marquês de Pombal e o outro com os pés já nos Restauradores, na ponta oposta do ecrã.

Quando no clarear da década de 80 o vídeo se propalou por esses lares afora, era o cinema que ele metia dentro de casa. Com o vídeo o pessoal libertava-se da cadência imposta pela distribuição cinematográfica – se viste, viste, se não viste, azar… – e dos critérios de exibição das TVs. Havia tanta coisa que se queria rever ou se havia perdido aquando da sua estreia e agora estava domesticamente ao alcance do comum dos mortais.

Sucedeu então que “Aconteceu no Oeste” voltou à baila. Como enfiar aquele Rossio visual na Betesga do televisor? Assim se fez uso de uma técnica apelidada de “pan e scan” que basicamente rodava o olhar, como um movimento de câmara, dentro do que fora um enquadramento original imóvel. Isto era grande aleivosia, pois alterava a forma, a linguagem e, a limite, a tensão dramática das cenas. Famosa ficou uma exibição televisiva de “Aconteceu no Oeste” que não lhe tendo sido aplicado este método de abastardamento visual, na cena do duelo só se via, se tanto, a ponta do nariz dos actores, com a imagem centrada no cenário que Leone pusera ao meio entre eles. Ou seja, não se via nada do que se passava.

Tornando-se o vídeo e a expansão da televisão essenciais à carreira dos filmes, cuja esperança de vida comercial praticamente triplicou, bem depressa produtores e cineastas perceberam a conveniência de enquadrar as imagens ao centro. Por mais independente, artístico ou de autor que seja a fita, é no miolo da imagem que nela tudo acontece. Não há nada de novo nesta conformação da forma, ou seja, da “arte”, à difusão, quer dizer, às “conveniências” – já McLuhan havia ajuizado que “o meio é a mensagem” sem que alguma vez fosse desmentido.

E dos finais da década de 80 em diante assim ficaram as coisas que a Netflix veio agora bulir.

Anunciar “Roma” com as parangonas que aos filmes pertencem por direito adquirido e neste caso com Leão de Ouro em Veneza e tudo, e estreá-lo na internet, é desfaçatez tão grande e ousada como apontar uma pistola à cabeça da indústria de distribuição cinematográfica. É todo uma fileira industrial que está posta em causa, cidadela incólume desde os anos 50, mesmo com os ferozes assaltos da televisão, contra os quais nunca falhou em dar resposta. Televisão essa que a Netflix já pôs em frangalhos bem à vista de toda a gente e que anda à procura do seu futuro sem saber se o encontra.

Que tenha sido “Roma” a arma de arremesso é coisa de espantar. Porque diabo a Netflix elegeu um filme a preto e branco, passado nos anos 70, no seio de um lar na Cidade do México? Haveria obra menos provável para ir à conquista dos públicos?

Na verdade é um golpe de génio. As salas de cinema oferecem um espetáculo desolador a quem tiver mais do que 16 anos e já não tem paciência para os pulos e correrias dos ridículos heróis da Marvel, sempre vestidos de leggins e a discorrerem inanidades.

Ou seja, hoje as classes médias urbanas só saem de casa para ir jantar fora. Já antes, vai fazer agora 20 anos, um canal como a HBO lhes afagara o córtex e o gosto com uma série improvável e bastante incomum como “os Sopranos.” Ora aí estava algo que um canal aberto não ousaria transmitir e que não se dirige nem aos miúdos nem aos básicos. De modo que a Netflix, há-de ter feito o trabalhinho de casa e posto o marketing a peneirar estudos e estatísticas de modo a concluir que meter dentro de casa filmes diferentes, menos aparvalhados, com algum sentido, talvez devolvesse o interesse pelo cinema de cartaz.

Há ainda um aspecto nada despiciendo a destacar em “Roma.” De um ponto de vista estético é absolutamente televisivo, embora haja quem ache que a textura e os pormenores que enriquecem a imagem sejam mais bem apreciados no grande ecrã. O que a exuberância visual de um filme feito para ver em casa prova é precisamente o contrário: o triunfo do digital – ver um filme em ecrã HD, ali na sala de estar, é quase tão bom como ir a o cinema.

21 Dez 2018

Da injustiça

[dropcap]O[/dropcap]s gregos não têm palavra para injustiça. Não, porém, como a conhecemos em português, arraigada que está, no substantivo feminino latino iustitia, -ae. A palavra latina tem a raiz ius, -ris.

É o direito no sentido em que vincula os homens à sociedade humana. Nesse sentido, “ius” não é apenas direito mas também dever. A palavra grega para justiça é dikê e a Dikaiosynê nomeia a Divindade patrocinadora da justiça entre os homens. Contudo, o étimo dik- é de uma raiz completamente diferente da raiz da palavra latina e, por conseguinte, diferente da raiz da palavra portuguesa. A raiz *dik-, *deik- é a do verbo deiknymi e quer dizer mostrar, revelar, fazer ver, provar, produzir prova, denunciar. O verbo dico em latim, traduzido por eu digo tem a mesma raiz. Eu digo quer dizer eu afirmo, eu exprimo uma opinião, etc..
Por outro lado, o sentido de dikê exprime os usos e os costumes, portanto, tem um sentido eminentemente moral. Quer também dizer, modo de ser, jeito e maneira. Em última instância, quer dizer justiça, no sentido de denunciar para levar à justiça. Uma das interpretações mais complexas, porque aparentemente contrariam a opinião popular e a visão comum das coisas é a de Platão. Pela voz de Sócrates, a justiça é sempre levar à justiça para, em processo, chegar a uma sentença, “transitada em julgado”, isto é, sem recurso possível a um tribunal de instância superior. A dikê é a justiça feita, depois de se ter processado alguém. Contudo, se a sentença pode ser dupla: condenação e absolvição, para Sócrates “fazer justiça” é “pagar a multa”.

Pressupõe, portanto, condenação. Nunca absolvição.

Apesar de Platão ter escrito uma defesa de Sócrates, a Apologia, o Sócrates de Platão interessa-se, sobretudo, pela acusação, pela Categoria. Assim, na formulação dikên didónai, à letra, dar justiça, fazer justiça, há uma compreensão tácita de que se trata do resultado processual condenatório de uma acusação. O desfecho não é o de absolvição. O desfecho é a condenação. O substantivo feminino de 3ª declinação condemnatio, -onis quer dizer, numa das suas acepções as: “indemnizações concedidas num processo civil”.

A formulação de Sócrates quer dizer: reposição da justiça, depois de ter sido feita, ao condenar o arguido num processo de apuramento de responsabilidades. É certo. O Sócrates de Platão usa o tribunal, o julgamento, o juiz, o arguido e acusação como um laboratório filosófico, a partir do qual, de modo concreto, se pode fazer luz sobre o conceito filosófico de justiça. Cada ser humano tem uma relação com a justiça e com a injustiça, é justo e é injusto, sofre a injustiça e repõe a justiça, independentemente de ter sido processado ou ter processado alguém. Faz parte da facticidade da existência humana que desde sempre nos encontramos numa relação intrínseca com a justiça por via da relação constitutiva aos outros. E mais, o mais das vezes e primariamente, somos confrontados com as injustiças desta vida, o mais das vezes sofridas, nem tanto causadas por nós.

Ora o que Sócrates precisamente procura dizer é que o ser humano se encontra por defeito, by default, numa relação injusta com os outros e, na verdade, também, numa relação de injustiça consigo próprio. O que urge fazer é assim perceber o teor de injustiça das nossas relações com os outros. Não somos injustos apenas quando somos injustos, dizemos coisas da boca para fora que não queríamos dizer, mas ferimos os outros, quando ferimos os outros, por os ignorarmos, os magoarmos. Enfim, sabemos como podemos ser injustos com os outros na circunstância mais anódina da vida, quando parece que não temos responsabilidade alguma. O mais enigmático é isto mesmo. De acordo com Sócrates, o simples facto de estarmos vivos pode ter consequências de sofrimento na vida dos outros. Simplesmente, ser pode ferir os outros. Todos os outros. É como se o contrato social se baseasse na compreensão radical e simples, ainda que de consequências complexas, nós somos intrinsecamente injustos uns aos outros. Na raiz da injustiça está uma ambição constitutiva que não é sequer a legítima aspiração ao que podemos ter e ser, mas a ganância completa, a pleonexia de que fala Túcidides como estando na base das guerras entre vizinhos e estados. Se cada ser humano é totalmente perpassado por ganância, ambição e aspiração, à luz destes motores traçam-se as nossas tendências e inclinações, os nossos amores, gostos, interesses: tudo o que nos diz respeito.

Sócrates acha que não somos nunca incólumes à injustiça. Mas di-lo de uma forma que nos deixa perplexos. O melhor seria nunca fazermos uma experiência de injustiça. Mas se for inevitável, então que sejamos nós o objecto da injustiça e nunca os seus agentes. Mais vale sofrer a injustiça do que ser injusto (adikeisthai mallon ê adikein). Mas mais. Diz que se formos injustos devemos repor justiça/pagar a injustiça o mais depressa possível e não ficarmos imunes. Mais vale repor a justiça/pagar a injustiça do que não repor a justiça/não pagar a injustiça (dikên didónai mallon ê ouk).

Estas teses: mais vale sofrer a injustiça do que ser injusto e mais vale pagar a injustiça do que não a pagar são teses que vão contra o senso comum. O senso comum tende a afirmar a natureza do mais forte e não o costume imputado ao humano, segundo o qual os usos e os costumes estão inscritos na compreensão do outro, possibilidade do perdão. Aqui, expomo-nos às injustiças e queremos a todo o custo evitar praticá-las. É melhor ser objecto de injustiça do que tornar os outros objectos das nossas injustiças. Se praticarmos inevitavelmente injustiças sobre outrem, se formos injustos com outrem, então, é melhor pagar a injustiça do que não a pagar. Ora naturalmente, tendemos a querer escapar imunes. Requer coragem acusar-se a si próprio do mal que se fez. Requer coragem aceitar o castigo que repõe a injustiça e transforma eventualmente a situação em que nos encontramos, de remorso e culpa, numa situação de arrependimento e remissão, para usar uma outra linguagem.

Cálicles no diálogo Górgias diz que a tese de Sócrates põe a vida de pernas para o ar, inverte em absoluto o seu sentido. De acordo com Cálicles o homem é por natureza violento. A violência é natural. O mais forte vencerá sempre o mais fraco. A lei está ao serviço dos fracos, porque nunca conseguiriam impor-se numa sociedade naturalmente constituída.

Sócrates diz, contudo, contrariando Cálicles, que nem sendo ele o único ateniense a votar por estas suas teses, contra todos os outros, ele está do lado da vida e da verdade (ousia kai alêtheia).
Será a tese de Sócrates tão difícil de compreender. Mesmo que naturalmente tendamos a compreender que preferimos fazê-las do que no-las façam, preferimos dar e não levar?

Mas as acções ficam com quem as pratica. Tudo o que eu faço, ao agir a respeito de outrem, não surte apenas efeito e não tem apenas resultado no outro. De cada vez que tratamos um outro injustamente, o outro sofre. Causamos-lhe dano. Prejudicamo-lo. Fazemos que sofra. É certo. Ser injusto é causar dano, prejudicar, deixar em desvantagem e em sofrimento o outro. Contudo, a acção injusta sobre outro tem um efeito de ricochete. Vira-se contra nós também. A descoberta de si próprio na antiguidade não é reflexiva no sentido teórico e cognitivo do termo. É a descoberta de que o que quer que façamos não sai de nós para ficar depositado no outro sem consequências para nós próprios. A descoberta de si é feita na amargura e tristeza que abre a disposição da injustiça. A desgraça, diz Sócrates, revela-se na amargura de termos sido injustos.

A tristeza vem da compreensão efectiva de como o outro ficou pela nossa acção. A ira e a cobiça são os motivos que os antigos invocavam para sermos injustos com outros, não os vermos ou então apenas como objecto de vingança e de desejo.

E como repomos a justiça, como pagamos a injustiça? Sócrates diz que a tendência habitual para nos desculparmos e fugirmos a toda a acusação é a nossa natureza, mas a lei obriga a um trabalho interior que nos deve levar o mais depressa possível junto das autoridades ou do tribunal e denunciar-nos a nós próprios. A acusação é o trabalho a fazer e o objecto da acusação nós próprios. Quando julgados devemos fugir de toda a absolvição e querer íntima e intrinsecamente a condenação.

Se toda a vida que temos tiver de ser paga com a própria vida, então temos de nos acusar sempre e querer intrinsecamente um castigo, porque desde sempre de cada vez que damos conta de nós na relação com outro, somos o foco de injustiça, o fundamento abismal do sofrimento causado ao outro.

O absurdo destas teses de Sócrates resultam num mundo às avessas, para usar a interpretação de Hegel do que é a filosofia. Porque, no fundo, continuamos a observar a lei do mais forte, a da desculpa por sermos como somos, a evitar a todo o custo arrostar com o injusto e abominável em nós.

21 Dez 2018

O Mistério da Irritabilidade

[dropcap]D[/dropcap]e onde vem a irritabilidade das pessoas? De onde nasce? Da impaciência, da frustração? Geralmente ando a pé pela cidade de Lisboa e sou confrontado muitas vezes com a impaciência dos peões em relação aos motoristas, quer seja pelo estacionamento que lhes corta a passagem – mas também não há onde estacionar –, quer seja por passarem já com o sinal vermelho. Na esquina da rua de São Bento com a Avenida Álvares Cabral, junto ao Largo do Rato, não poucas vezes assisto à fúria dos peões para com os motoristas, por estes estarem a passar no vermelho. Não há um mínimo de compreensão ou tentativa de o fazer. A situação é muito simples se analisada friamente: no Largo do Rato há vários semáforos e outras tantas direcções; os veículos que descem da Rua das Amoreiras ou da Avenida João XXI para a de São Bento têm os semáforos bastante afastados da passadeira do início da Rua de São Bento – onde os peões diariamente se enfurecem com os motoristas –, o que os leva muitas vezes a passarem o sinal no fim do amarelo e, devido a muitas das vezes terem de passar devagar por várias razões, acabam por cair em cima da passadeira como sinal verde para os peões. Por vezes, bastava que os primeiros peões esperasses dois segundos e tudo se resolvia, mas não é isso que acontece. Se o carro vem devagar, atravessam-se à frente, gesticulam e proferem impropérios, indignados por alguém não respeitar as regras do trânsito. Se o carro vem depressa, não atravessam, mas os impropérios e a gesticulação atingem o seu apogeu. Evidentemente, todos estes peões, que talvez não sejam motoristas ou quando o são cumprem todas as regras de trânsito, estão no seu direito de se indignar. Mas o que está em causa não é a indignação, mas a de saber se uma vida com correcção tem direito a agredir uma vida incorrecta? Neste caso particular é fácil de determinar o correcto e o incorrecto, não padecemos de subjectividade. Mais importante ainda do que saber se a vida correcta tem ou não direito de agredir a vida incorrecta – que evidentemente não tem, embora tenha o direito de se indignar –, é a de saber se quem tem uma vida correcta deve deixar-se perturbar por quem age incorrectamente. Pois parece-me claro que aqueles segundos de altercação afectam o ponto de vista das pessoas envolvidas. O seu humor fica alterado. Quem se alterca com outrem, a não ser que tenha prazer nisso – e há pessoas que têm prazer nisso –, vai ter o dia estragado ou, pelo menos, minutos ou horas depois do acontecido, dependendo do grau de altercação. No fundo, o que está aqui em causa não é sequer um ponto de vista da abnegação ou de perdoar os actos dos outros, mas de se auto-preservar, preservando o seu bem-estar. Esta entrega à irritabilidade, porque no fundo é disso que se trata, de irritabilidade, a pessoa irrita-se com a outra, e muitas das vezes por questões de nada, leva-nos a pensar o que está por detrás disto. Se a irritabilidade com uma situação ou com uma pessoa nos faz ficar perturbados durante um tempo, então porque nos entregamos a ela? Será que somos tão incapazes de agir em concordância com o que é melhor para nós ou a irritabilidade também nos traz ganhos? É apenas uma questão de auto-domínio?

O que é propriamente a irritabilidade? O dicionário diz-nos que se trata de uma resposta excessiva a um estímulo, levando-nos claramente no sentido da medicina. Por exemplo, uma irritação na pele é a resposta (excessiva) que a pele dá a um determinado alimento ingerido ou ao contacto com produtos nocivos (por exemplo, químicos) ou com um ambiente agressivo (por exemplo, fumo ou pó). Assim, a irritabilidade em relação a um acontecimento, a irritabilidade da alma, será um estímulo excessivo na alma em relação ao que se julga ser o justo e que é corrompido. De outro modo, a irritabilidade acontece porque sentimos em nós que o outro comete uma injustiça, um gesto incorrecto. Mas se em relação a uma irritabilidade da pele, nós nos protegemos, porque em relação à irritabilidade da alma a uma possibilidade dela acontecer não fazemos o mesmo? Porque somos tão vulneráveis à irritação? Será isso uma consequência da vida em enormes comunidades ou uma consequencial de se ser humano, independentemente do tamanho da comunidade onde se esteja inserido?

Quantas vezes ao dia somos confrontados com a irritação das pessoas, quer seja na vida “real” quer seja na virtual? É este aumento da irritação que legitima a pergunta acerca de qual o seu significado para o humano, se por detrás do mal evidente não estará também um bem que ainda não descortinámos, como se a irritação fosse uma espécie de equilíbrio, devido à constante frustração dos nossos dias, dos nossos quotidianos.
Aquela pessoa que profere impropérios contra outrem, que seja na passadeira de uma rua de Lisboa, quer se seja no mural do facebook de alguém, talvez mais do que agir devido a um descontrolo de si mesma, aja devido a uma reacção – ainda desconhecida – da sua alma, de modo a equilibrar a sua própria vida. Talvez a irritabilidade lhe seja nesse momento tão necessária quanto um comprimido contra a tensão arterial. Talvez a irritabilidade, contrariamente ao que julgamos, seja uma forma misteriosa de preservação. Talvez o irritar-se com outrem nos salve de um ataque cardíaco. Esta especulação, a confirmar-se, justificaria pelo menos porque é que alguém perde a sua própria vida com tolices. Pois o tempo que se perde na irritação, seja um bem ou um mal, é real e concreto. A nossa vida perde-se ali. Enquanto estamos irritados não fazemos outra coisa. Nem o que tínhamos para fazer, nem o que não tínhamos para fazer e poderia ser apenas não fazer nada. Assim, enquanto a irritabilidade permanecer um mistério, talvez seja preferir evitar entregarmo-nos a ela, porque a vida que se perde entretanto não é mistério nenhum. É a nossa vida.

20 Dez 2018

Um rocambolesco rendez-vous com a história

[dropcap]O[/dropcap] redemoinho das imagens não é coisa apenas do nosso tempo, caro leitor. Recuemos vinte e três séculos e repare-se no modo como elas irrompem nos textos apocalípticos de “Daniel”, chegando quase a atropelar o relato dos acontecimentos: “Considerava eu, na minha visão nocturna, que os quatro ventos do céu se precipitaram sobre o grande mar. Surgiram do mar quatro grandes animais, diferentes uns dos outros” (7,2-3). Esses animais fabulosos são, logo a seguir, descritos um a um: o primeiro “era semelhante a um leão, mas tinha asas de águia”, o segundo era “semelhante a um urso”; o terceiro era parecido a “uma pantera que tinha sobre o dorso quatro asas de ave” e, por fim, o mais “aterrador”, tinha “enormes dentes de ferro (…) e dez chifres” (7,4-8)[*].

Ao lerem-se hoje estas palavras, fica-se a meio caminho entre aquela sensação de burlesco (tipo King Kong no cimo do Empire State Building com Fay Wray na palma da mão) e a possibilidade de tomar as alegorias a sério. Devo dizer, caro leitor, que já o fiz há uns tempos, quando me pus a desfibrilar um doutoramento. Uma década antes, precisamente, passou-se uma coisa na minha vida que me faz sempre evocar esta ‘terra de ninguém’ entre o burlesco e a mais severa das gravidades. Eu conto.

Lembro-me que o dia ia avançado – umas três grolsch com gargalo de pirolito e um gorduroso frikandel enchiam as horas –, quando ouvi o telefone. Era a televisão (holandesa). No dia seguinte, tive que me levantar cedíssimo e lá voei com os operadores de câmara e o ensonado jornalista que fazia um dos programas de actualidade mais vistos na altura (esqueci-me completamente do nome dele). Ali ia eu como tradutor escolhido à pressa, depois de várias tentativas, em Hilversum, para encontrar alguém que não deixasse fugir aquele encontro com a “História” que a AVRO (o nome do canal) tinha subitamente descoberto.

Só soube do que se tratava, quando nos alojámos numa das salas privadas do aeroporto Charles de Gaulle. O entrevistado que, umas horas depois, apareceu na minha frente era um alto responsável da polícia de S. Paulo que estava em discreto trânsito a caminho da Alemanha.

Era um homem alto e magro. Uma seta de marfim com os pés espetados na terra e umas sibilantes que fariam vibrar as raízes dos coqueiros. O cinto apertado dividia-lhe o corpo em dois como se fosse uma almofada de penas atada ao meio por um fio de nylon. Andava com os pés virados para fora e o cabelo liso de risca ao meio levantava no ar uma caligrafia eléctrica. Era um hímen expressivo que avançava com passos curtos, moldando tudo com palavra líquida e aconchegada. Sorria com vapores de sapo de boca larga (e, sim, sim, parecia-se realmente com o personagem de Daniel com os seus “enormes dentes de ferro”).
Na sua maleta metalizada, levava nem mais nem menos do que os presumíveis ossos do nazi Josef Mengele que iriam ser sujeitos a testes de DNA. Lembro-me bem do contraste entre o calvinismo austero do jornalista holandês e o humor desbragado e despropositado do brasileiro. Nunca mais soube nada acerca desta história que se passou há mais de três décadas.

Os acasos, caro leitor, têm sempre unhas de gel: destapam o que parece tapado. Por vezes parecem feitos à medida das nossas memórias mais bizarras. Foi o que me aconteceu, quando, há dias, li uma notícia que dava como certo que os ossos de Mengele tinham passado a ser usados no Brasil em aulas de medicina forense. A iniciativa teria pertencido ao director do Departamento de Medicina Legal da Universidade de S. Paulo, Daniel Romero Muñoz, que, em meados dos anos oitenta, liderou a equipa que identificou o cadáver de Mengele.

Como é sabido, Mengele foi um dos facínoras nazis que, logo após a II Grande Guerra Mundial, conseguiu fugir para Argentina e depois para o Paraguai, tendo-se fixado no Brasil em 1960. Segundo rezam as crónicas, morreu afogado na praia de Bertioga em 1979 e foi enterrado em S. Paulo com um nome falso. Passados poucos anos, devido à intercepção de uma carta do casal alemão que enterrou Mengele com o nome de Wolfgang Gerhard, a verdade veio ao de cima. Daí que, em 1985, o cadáver tivesse sido finalmente exumado e, depois de longa pesquisa, a equipa multinacional que na altura se formou chegou à conclusão que se tratava mesmo do corpo de Mengele.

Foi no decorrer destas perícias que eu voei de Amesterdão para Paris e servi de tradutor à AVRO. Houve, no entanto, caro leitor, um pequeno acontecimento que fez desse dia um dia King Kong.

Quando já nos despedíamos nos corredores do aeroporto, fiquei a sós por momentos com o polícia que, com o seu ar afilado de seta de marfim, me murmurou aos ouvidos por duas vezes: “Isto são ossos de cachorro, isto são ossos de cachorro”. E de seguida rematou: “Os verdadeiros já voaram, já voaram”. Vi-o depois a desaparecer no meio da multidão, ia de costas, cada vez mais pequeno, e imitava com a mão a forma de um avião. O cinto apertado dividia-lhe o corpo em várias escarpas, os pés a serpearem mistério e a cabeça a esfumar-se até se confundir com uma seta, ou com uma lâmina afiada.

Na narrativa de Daniel, a vitória do “filho do homem” sobre as quatro “bestas” funcionava como alegoria para os males terríveis do mundo que, de modo iconográfico, se iam assim expiando. No desfecho da narrativa que pôs o polícia fuinha de S. Paulo a expelir sibilantes no Charles de Gaulle, a alegoria gestual soube-me a fel. Não saberei bem dizer porquê.

Talvez porque conseguir, ao mesmo tempo, dizer a verdade e confundir os sentidos é atracar em ‘terra de ninguém’ (nesse limbo entre o King Kong burlesco e a gravidade da circunstância). Foi aí, em terreno instável, que esta minha história se ficou. Sem âncora alguma. Até porque, para o bem ou para o mal, o apocalipse não passa disso mesmo: de uma visão. E uma visão é coisa que existe por si, sem precisar seja do que for que a explique. O autor anónimo dos textos de Daniel sabia-o bem.

[*] Daniel, Antigo Testamento em Bíblia Sagrada, Difusora bíblica, Lisboa, 2000, Pp.1421-1451.

20 Dez 2018

A Desordem e o Ódio

[dropcap]É[/dropcap] famosa a fúria de Samora Machel quando descobriu que afinal Mutimati Barnabé João (autor de “Eu O Povo”) fora uma invenção de António Quadros e não um guerrilheiro frelimista, morto em combate.

Percebe-se mas denota a ingenuidade do líder moçambicano, nesta matéria. Não se fazem bons poemas por ordem e graça do Espírito Santo. E a poesia não brota da sageza, da espontaneidade, ratice ou boa vontade, mas do domínio, técnico, e duma feliz dosagem entre as valências da memória e da imaginação, e quando a uma certa tradição retórica se conjuga a circunstância e a oportunidade. Ademais, por gracioso que seja António Aleixo não se compara a Fernando Pessoa.

Durante o regime socialista, como aconteceu nos outros países da mesma feição política, Moçambique foi habitado pelo dogma de que toda a gente era poeta ou artista. O que é confundir os iguais direitos que a todos cabe a montante com o que cada um faz disso a jusante.

Do mesmo modo que não me tornei cientista atómico nem escultor, a poesia não é para todos. Embora continue a haver muitos mais imitadores de poetas do que poetas.

O Cartier-Bresson fez dos mais notáveis enquadramentos da fotografia do século xx porque tinha atrás de si um curso de pintura – arte a qual abdicou, depois de ter interiorizado toda a história da disciplina. Não nasceu do nada aquele “vício natural” de enquadrar as fotos como se cristalizasse num clic a harmonia condensada de um universo.

Sim, o desejo é capaz de produzir objectos ou acções que transmutam o saber em novas formulações ou relações, mas para isso é necessário sublimar algo já existente, seja da ordem da sexualidade, duma crença ou de qualquer repertório técnico-discursivo.

Vale o mesmo para a rebeldia política, como movimento capilar, se por um lado fascina o apelo romântico da luta hoje é um crime abstrairmo-nos da história política dos últimos cem anos, pois esta destruiu a idade da inocência, e não foi só para os militantes.

Já estes caracterizam-se por presumirem uma unidade formal para a luta por via de uma transcendência – personificada no comité central do partido, ou nos dogmas da ideologia ou do nacionalismo, como realidades superiores. Depois, com mais ferocidade acrescida exercem as suas tarefas de organização e de exterminação. E os fins valem sempre os meios.

Sempre preferi os rebeldes, aquele que actualizam uma potência sem o filtro de uma filiação, que a uma necessidade visceral de justiça ou de mudança aliam uma causa concreta ou uma reavaliação dos valores. O que por vezes deu mudança de paradigmas, como em Maio de 68.

Mas isso assusta. Daí que Carvalho da Silva, o antigo dirigente sindical, tenha dito sobre os “coletes amarelos”:

“Não há democracia sem estruturas de mediação, os sindicatos, como muitas outras organizações, existem para representar interesses específicos, e a quem a sociedade pode responsabilizar; nestes movimentos inorgânicos perante a ausência de estruturas de mediação, isso torna-se uma bagunça e nega a democracia”.
É uma evidência que a democracia pode ser a primeira vítima do seu próprio sucesso mas esta será uma forma simplista de colocar as questões.

Como não simpatizar com os “coletes amarelos”?

Ainda que a sua força seja a sua fraqueza: a sua recusa de líderes e porta-vozes é eficaz (já foi) numa acção pontual, em prolongando-se pode cair na indistinção e na instrumentalização por grupos radicais.

Macron começou arrogantemente e afinal a sua inflexão neo-liberal dobrou como o junco diante da violência da realidade. Agora, dada a capilaridade da comunicação hoje em dia e os contágios que daí advêm é de perguntar se a reivindicação de que Macron abdique não terá já uma dedada da extrema-direita.

Em Portugal o movimento tem a sua primeira manifestação marcada para esta semana. O poder está apreensivo – foi de cem euros, a cedência de Macron no aumento do ordenado mínimo – e curiosamente a UGT e a CGTP já se colocaram de fora das reivindicações. Não querem estar “fora do sistema”, serem considerados arruaceiros.

Entretanto, o que mais desconcerta e ninguém quer pensar é a atmosfera de uma crispação latente que borbulha quer nas redes sociais, quer no descontrole com que num ápice os comentários dos leitores nos jornais se aproximam da arbitrariedade do ódio. É um sintoma acabrunhante.

O ódio toma conta das sociedades. Com profetas eleitos: Trump e Bolsonaro, que elevaram à legitimidade a arbitrariedade, o espírito arruaceiro e a impunidade. Tudo o que é arcaico, as pulsões mais retrógadas têm agora uma âncora para se assumirem sem vergonha.

A notícia mais simples e anódina é trampolim para exercícios de picardia e de desqualificação mútua entre os comentadores, o objecto da notícia não passa de um pretexto.

Na semana passada, António Lobo Antunes deu uma entrevista em que se afirmava a favor de uma só nação ibérica. Com raras excepções não se trocaram argumentos nos comentários que se lhe seguiram, não se discutiu uma ideia; antes se amontoaram as notas denegridoras sobre o escritor, as sentenças e a condenação sem freio que roça o ódio.

Todavia, há vinte anos, se um Virgílio Ferreira, um Eduardo Lourenço, um Prado Coelho, uma Agustina ou o Abelaira, manifestavam uma ideia considerada controversa havia em primeiro lugar uma suspensão da opinião. Se aquela criatura dizia tal, ponderava-se, porque a autoridade de milhares de páginas escritas por aquele autor pesava.

Agora há uma manifesta falta de humildade e a sentença de um mecânico de automóveis, de um marceneiro, de um polícia, de uma empregada doméstica, de um trolha, de um enfermeiro, parece equivaler-se à de um escritor consagrado. Também as democracias liberais caíram na distorção do socialismo e confundem o justo direito à igualdade a montante com a propriedade da opinião a jusante. Todos pensadores de primeira água, todos são poetas e artistas.

E entretanto esconde-se um fascista não declarado entre cada três comentadores.

20 Dez 2018

O Mundo Animal

[dropcap]A[/dropcap] bem do início desta crónica irei imaginar que algures num arquipélago remoto onde nem sequer um rumor de civilização terá chegado existe alguém que não sabe o que é um meme. E é para esse solitário que destino as primeiras linhas deste texto.

Os memes são panfletos instantâneos, comentários rápidos sobre o estado das coisas. Uma imagem, quase sempre retirada de contexto, a que se apõe uma legenda normalmente crítica e humorística. Funciona, tem graça e dado o espectro de atenção pouco acima de zero que rege a reflexão das redes sociais está quase à beira do ensaio. Mas divago: eu gosto desta forma de expressão (diria mesmo de arte pop) e recentemente deparei com um destes novos posters que me chamou a atenção para além do sorriso. Nele, podíamos ver um indivíduo com um semblante que demonstrava um imenso alívio, olhos cerrados, mão no peito e cabeça erguida para o céu (era o Robert Downey Jr, mas isso é irrelevante); e a legenda era de uma certeira percepção. Dizia: «Quando pensas que atropelaste um cão e afinal era só uma pessoa».

A frase funciona porque é um barómetro do nosso tempo. Quem consegue sorrir por causa dela sabe que é um sorriso triste, pela simples razão de que é verdade. Como também é verdade que muita gente verá uma ofensa no que acabei de descrever. E é isso que hoje é para aqui chamado. Só os mais distraídos não terão notado que há um novo paradigma de olhar para o mundo que pouco a pouco se tem imposto. É um activismo pelos “direitos” dos animais, cada vez mais ortodoxo na sociedade ocidental, onde nesta altura há pouco espaço para dissensão, e que leva a que muitas vezes o humano seja preterido em favor do não-humano. Um pouco de contexto, para que melhor nos entendamos: a expressão “direito dos animais” apareceu pela primeira vez num artigo do Sunday Times em 1965, assinado por Brigid Brophy. Mas foi em 1975 que o filósofo Peter Singer consagrou esta mundividência no livro Animal Liberation, que está na base do pensamento Animalista. Outros se lhe juntaram e sem surpresa o que era uma filosofia tomou contornos de ideologia com o aparecimento do Especismo, criado por Richard Ryder, que defende que, tal como o racismo ou o sexismo, a nossa relação com os outros animais é uma forma de discriminação sem qualquer fundamento, transformando assim os animais não-humanos num grupo oprimido e vitimizado – um pensamento subsidiário da ortodoxia corrente.

De uma forma simplificada, os Animalistas defendem que a sua doutrina é semelhante ao Humanismo (onde o Homem é o centro de todos os valores e dignidade) mas incluem na sua atitude todos os animais não-humanos que consideram seres sencientes e portanto individuais. Aceitam que não sejam agentes morais – isto é, capaz de agir em função de Bem e Mal – mas que isso não significa que não possam ter direitos e que os agentes morais humanos não tenham deveres para com eles. Do outro lado, encontramos filósofos como Roger Scruton ( Animal Rights And Wrongs, 1996) que, seguindo uma tradição que vem de São Tomás de Aquino ou Descartes mas indo para além dos alicerces teológicos argumentam que não sendo agentes morais ou sequer conscientes, os animais não têm direitos – somos nós que temos deveres para com eles sem deixar que o humano seja prioritário.

O que me interessa aqui não é uma exposição das duas filosofias ou sequer a minha opinião sobre elas (mas sempre direi que estou com Scruton): são os sintomas quotidianos que o aparente triunfo do Animalismo vem provocando. Há manifestações inócuas e ridículas, como a recente vigília que um grupo vegan de Bristol organizou por nove perus que foram mortos para o Natal. Mas existem outros sinais mais preocupantes desta tendência: o facto de a PETA – a mais credibilizada organização de defesa dos animais – pedir a alteração ou proibição de provérbios e expressões idiomáticas que, na sua opinião, reflectem a crueldade dos humanos para com os outros bichos. Isto é mais grave do que parece porque na base tem a ver com a manipulação da linguagem para condicionar o pensamento – algo que Orwell previu e que o “politicamente correcto” estabeleceu. De uma forma não institucional, bastará olhar para os comentários online de qualquer notícia que envolva toureiros colhidos, por exemplo: o desejo de morte do homem que “tortura” o animal é quase unânime, com requintes de maldade só equiparáveis aos tempos de Nero. O mesmo para famílias que devolvem cães adoptados às instituições que os recolhem: a família é imediatamente insultada (desejos e ameaças de morte incluídas) mas ninguém se oferece para ficar com o animal.

A nossa relação com os animais merece a atenção que a noção do Bem e do Mal pode oferecer. Deve haver penalizações para quem deliberadamente é cruel com os que de nós dependem ou apenas têm o essencial direito de existir. Mas o fanatismo destes dias é perigoso e insalubre, talvez até um pouco desesperado. Reflecte falta de valores e cansaço de tudo o que nos diz respeito – a nós, humanos. Atribuir características antropomórficas aos bichos faz com que o ser humano seja equivalente em todas as situações. Há um velho problema de Ética, cujo enunciado é mais ou menos o seguinte:“Imagina que numa situação limite onde estão em perigo de morte X e Y só poderás salvar um. Qual salvarias ?” . Um Animalista hesitaria pelo menos um segundo entre salvar um ser humano e um animal. E é esse segundo de hesitação que representa um mundo que eu deploro.

19 Dez 2018

Gardénias Brancas

[dropcap]N[/dropcap]unca gostei de me sentar na parte de trás do autocarro. Já desde os tempos de escola, parecia ser o lugar reservado (reivindicado por eles, até) aos rufias, mal-comportados e barulhentos. Ao longo dos anos, sempre preferi as primeiras filas e os primeiros lugares, na sala de aula e nos transportes públicos. Ando de transportes quase todos os dias, já sem regras muito definidas sobre a parte da frente ou o fundo, mas hoje reflicto muito mais sobre o lugar que ocupo, interior e exterior.

Outro dia respondi a um anúncio para uma curta-metragem. Enviei duas fotografias, o clássico rosto e corpo inteiro, e algumas informações. Em resposta, ouvi que gostaram muito do meu look, e que havia um outro papel para o qual queriam que eu lesse: o de senhora da limpeza, cleaning lady (é uma curta americana), empregada, governanta, como quiserem chamar. Talvez alguns ainda sejam do tempo em que se dizia criada.

Eu não sou malcriada, e como encontro sempre algo de positivo em tudo, lembrei-me de imediato da empregada mais famosa retratada por uma negra: a Mammy, de E tudo o vento levou. Foi este papel que arrecadou o primeiro Óscar alguma vez ganho por um afro-americano. Entre o Óscar de McDaniel e o de Whoopi Goldberg, a segunda a ganhar o prémio de melhor actriz secundária, passariam cinquenta anos.

Este meio século é maior do que o espaço temporal que separa a primeira modelo negra a encerrar um desfile Chanel vestida de noiva, Alek Wek, da segunda, Adut Akech Bior. Este ano, contudo, Karl Lagerfeld voltaria a estar nas bocas do mundo pois, em mais de um século de existência, finalmente a marca contratou o seu primeiro modelo negro, Alton Mason.

Confesso, envergonhada, que nunca pensei muito nos modelos negros masculinos: onde estariam, se teriam trabalho. Talvez estivesse muito ocupada a olhar para Naomi Campbell, detentora de tantas primeiras vezes (primeira modelo negra a aparecer na capa das Vogue inglesa e francesa, e na revista Time) numa carreira que, por momentos, quando era muito nova, pensei seguir. Ser a primeira pessoa a conseguir algo, quando isso acarreta uma afirmação muito maior do que a pessoal, é uma responsabilidade agridoce.

Quando se trata de minorias étnicas, ainda mais. Sandra Oh foi, também em 2018, a primeira actriz de descendência asiática nomeada para um Emmy, prémio que existe há setenta anos. Ser o segundo ou o terceiro ainda pesa muito, sobretudo se os intervalos entre os feitos forem de décadas. Cada conquista é um peso e um bálsamo, um evento e uma revolução, um movimento ou a promessa de mais lugares, visibilidade e igualdade. Hattie McDaniel fez História num hotel segregado, não podendo sentar-se no mesmo lugar que os seus pares. Por não se ter assumido politicamente e ter feito papéis estereotipados, foi criticada pela comunidade negra, ao que respondeu celebremente que poderia ser uma empregada e ganhar sete dólares por dia ou fazer de empregada e ganhar setecentos dólares por semana. Sobre o escândalo de Kevin Hart, e a apresentação dos Prémios da Academia, alguém disse que Hart não deveria pedir desculpa novamente por declarações do passado, pelas quais se achava já redimido, pois a Academia nunca o fez em relação a McDaniel. O tempo passa, mas a hipocrisia não. Se o tivesse, poderia marcar os dias no calendário Pirelli 2018, totalmente protagonizado por negros, com temática de Alice no País das Maravilhas e até um coelho preto.

Aguardo o resultado do casting. Nunca trabalhei nas limpezas, mas sou obcecada por elas. Acredito que é impossível não sorrir e abanar a cabeça ao passar por uma cabo-verdiana a falar alegremente ao telemóvel com alguma amiga, enquanto faz o seu trabalho. Se perceberem crioulo, ainda melhor: têm a experiência completa. O cliché é real e a luta também. Acredito em ter flores no cabelo, em vida e na morte, como foi expresso por McDaniel enquanto desejo fúnebre. McDaniel, que era filha de antigos escravos, e fez o papel de uma; McDaniel, a actriz de vestido azul e gardénias no cabelo, cuja presença em determinados lugares dependia de chamadas, pedidos e favores, devido às leis da altura, e que nem assim pôde assistir à estreia do seu filme. McDaniel, que tinha um agente branco, e também foi a primeira actriz negra a ter o seu próprio programa de rádio, lutou para que os negros pudessem viver na zona das famílias brancas em Los Angeles.

McDaniel, cujo prémio físico, na altura ainda não uma estatueta, se perdeu e nunca foi recuperado. McDaniel, com uma estrela no passeio da fama mas rejeitada no cemitério que escolhera. McDaniel, que sabia quem era quando as câmaras deixavam de gravar e que fez inúmeros papéis sem ser acreditada por eles. Hattie fez a sua escolha e o seu papel num mundo muito mais fechado do que o de hoje. Talvez pudéssemos todos dar mais a cada causa, ou talvez nos vejamos sujeitos a ter de fazer o que abominamos em prol de facilitar as coisas para quem vier depois. Para dizer: estou aqui. Para que outros não tenham de fazer o mesmo.

Gostaria que fossem precisas cada vez menos autorizações para existir. Mas também gostaria que fizéssemos tão mais do que isso. Gostaria de definir o meu lugar e o meu papel. Gostaria de fazer a empregada da limpeza na curta, mas só porque sei que também o faria fora da tela, se precisasse de sobreviver, e que isso não me define, nem define o meu valor. Às vezes, antes de podermos servir a causa, ou para podermos servir-nos melhor uns aos outros, temos de nos servir a nós mesmos primeiro. Ninguém o disse melhor do que Daniel Faria: “Não acredito que cada um tenha o seu lugar. Acredito que cada um é um lugar para os outros.” Ele era mais de magnólias, mas sei que teria entendido a beleza das gardénias brancas.

19 Dez 2018

A vida saudável

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Dezembro

[dropcap]C[/dropcap]ada dor contém enigma que não se resolve assim. Alivia, se me distrair do pé. Por estes dias, demasiadamente muitos, o meu corpo concentra-se algures em torno de um dedo. Tento o diálogo com o dito, também ele já cansado de imprecações, palavrões e outras rimas de quebrar gelo. Não lhe reconheço traço distintivo, além do cansaço de arrostar com quilos e tropeções, toques artísticos em móveis caseiros e mobiliário urbano, quase nunca em bola ou transeunte, apesar dos apetites. Ah, a culpa não lhe cabe. Só um caricaturista, mestre em dores públicas, e nesta privada, podia apanhar a criatura: James Gillray [algures na página]. O ligeiríssimo bálsamo advém da investigação, que permite escapar aos médicos-formados-agora-mesmo-no-google que me atazanam, picando piedade com habitual gozo. Cada passo desfaz-se em impossibilidade que acumula gritos na garganta. O chão ou o lençol, dá igual, tornaram-se instrumento de tortura. Horizontal anuncia-se novo normal, logo agora que preciso de andadura certeira. O bicho acaba de cravar outra unha. Perco a concentração, algo mais se atrasará, agora por razões de tormento. Descubro nos queridos cristais em excesso uma raiz herdada nos cálculos renais que atormentaram, e muito, o progenitor. Depois, o nitrogénio no composto do ácido úrico fraterniza-me com aves e répteis. Alegra-me saber, antes de alegre guinada, que a razão pela qual o guano se faz bom fertilizante está no alto teor de nitrogénio. Nem sempre do excesso resulta desvantagem, mas isso só para os outros. O remédio tinha que ser «um estilo de vida saudável»! Além da actividade física regular, ai!, consta, e cito, a redução («mas não proibição») de alimentos ricos em purinas (carnes, vísceras, marisco e alguns peixes como salmão, truta e sardinhas) e redução do consumo alcoólico, especialmente de cerveja e bebidas brancas. O consumo de refrigerantes e sumos de fruta deve também ser evitado. Em tempos, quando os pobres pouco comiam, a doença era de ricos, pelo que a caça e as carnes jovens são para esquecer. Aquela perdiz desossada, as costeletas de novilho… As conservas, os enchidos e até as sopas, se nelas repousarem caldos processados, estão proibidas. Aquelas anchovas, o bucho! Não sei, mas ou a vida ou o corpo ou ambos andam a querer dizer-me o que já sei: não lhes pertenço.

Horta Seca, Lisboa, 10 Dezembro

Na luminosa desgraça da quadra poucas são as razões de ânimo. E piora quando, na travessia do inominável deserto do novo puritanismo, não páram de chover cometas. Hoje, soube-se de professor universitário nos antípodas que tornou objecto de estudo os 24 filmes de James Bond. Não para lhe descobrir novos sentidos, em modos de dizer, na ideia de aventura, nas invenções entre o mortífero e o salvífico, mas para concluir que o espião ao serviço de Sua Majestade era alcoólico crónico, que bebericava, por filme, umas 109 vezes. Fez outras contas, que davam como resultado ter o homem trabalhado em coma alcoólico. A conclusão maior e indispensável à humanidade está na «irresponsabilidade das chefias» que tal permitiram. A palavra fantasia, estou certo, desapareceu dos dicionários. Por causa das coisas, bebo uma gota (sim, há por aqui uma ironia qualquer) de um maravilhoso Redbreast (12 anos), que mão amiga me trouxe. O que me leva à de ontem, o apelo à censura da célebre canção, «Fairtale of New York», dos The Pogues, lançado por um estudante, editor de um jornal, e logo secundado por um DJ, costumeiros habitantes de sacristia. Causa? A palavrinha faggot. A vida é bastante abusiva, vamos deixar que a arte seja um sítio fofinho onde descansar um pouco a cabeça. (Melhor dizê-lo: há por aqui um sip de ironia.) As boas intenções estão, finalmente, a fazer da vida em sociedade um inferno. Saudável, claro.

Cervantes, Lisboa, 13 Dezembro

Um homem corre em caminho nevado de montanha na direcção oposta de um cavalo amarelado levando na mão cabeça de mulher. Um homem agachado ignora a cena, como o pássaro que depenica. Abaixo e ao centro, um olhar infantil interpela-nos. As colagens de Adriano del Valle, nunca antes vistas por aqui, iluminam «O Ultraismo Espanhol e Portugal – Cem Anos de um Movimento de Vanguarda», breve mas intensa exposição que António Sáez Delgado organizou para celebrar momento importante nos diálogos ibéricos. Importantíssimo, digo eu, no peso dos nomes que ignoraram fronteiras para, para lá de pensarem, fazerem em conjunto. Ramón [Gomez de la Serna], outro núcleo da exposição, e Almada [Negreiros], são disso exemplo maior. Acrescente-se Rogelio Buendía, terceiro núcleo, que, com Adriano, se apaixonaram pela literatura deste lado, logo levando Fernando Pessoa ou Mário de Sá-Carneiro aos leitores ibéricos. Revistas, livros, recortes e correspondência, além de fotografias e desenhos, ajudam a desenhar um mapa que nos permite entrar em território fascinante. Esta vanguarda sabia incendiar gestos colectivos, desmultiplicava-se em manifestos, montava antenas de atenção cristalina ao cosmopolitismo navegante das geografias e dos tempos, e alargou o possível.

Horta Seca, Lisboa, 14 Dezembro

A chegada de provas alegra o dia, ainda que contenham erros ou incorrecções. As novas técnicas fazem com que estejam mais próximas da maqueta inicial, mas, em simultâneo, aproximam-nos mais do livro como ele será. Ou seja, as provas são impressões do documento enviado, sem montagem prévia em acetatos, sem outra intervenção da gráfica, que não o ordenar dos cadernos no formato. (As provas de cor, essas, darão indicações da realidade futura.) Mas o mono pode com extrema facilidade dar-nos emocionante visão do que será o livro, em versão descolorida. Apesar do estrago, em papel e no mais, devíamos trabalhar sempre maquetas tão próximas quanto possível para melhor percebermos a sua personalidade. E detectarmos o que nele não funciona sem o exercício da idealização. Folhei vezes sem conta este «Desenhos em Volta de os Passos de Herberto Helder», belíssimo e perturbador álbum da Mariana [Viana], primeira coedição com a Imprensa Nacional.

Casa da Cultura, Setúbal, 14 Dezembro

De «Fronteiras» se fez a discussão no «Filosofia a Pés Juntos», logo separando as internas das externas, essas mais óbvias, ainda que sem perderem complexidade, ou não fosse o horizonte também ele uma fronteira. Só pelo esforço ultrapassamos em nós limiares, resolvemos fases, vencemos medos e o que mais nos poderá definir. Esforço que ao tempo pertence, enquanto a definição de comunidade se inscreve no território, no espaço. Sem nunca se afastar da antiguidade e das palavras cujos significados sabe fazer explodir como ninguém, o António [de Castro Caeiro] deixou claro que a identidade se torna central nesta construção a cada instante do próprio corpo e do nosso no de todos. Sem fronteiras não nos orientamos, nem que seja para as derrubar. Certos temas insinuam-se com veemência.

Metro, Lisboa, 15 Dezembro

As escadas rolantes da estação Baixa-Chiado estão amaldiçoadas. Findos vários meses de paralisia do primeiro lance, em ambos os sentidos, para substituição dos velhos (20 anos…) mecanismos, ei-los que reluzem. Parados. Um sinal cristalino que nada vencerá a degradação dos serviços.

19 Dez 2018

A virtude dos fora de jogo

[dropcap]N[/dropcap]o nosso tempo, cada desordem anunciada é um vitral a mais da nova catedral gótica que nos narra sempre o mesmo e repetido Génesis. Vejam-se as ruas de Paris. Um Génesis que, no entanto, deixou de ser imagem e reflexão para passar a ser apenas presente. Como uma estrada fechada em si mesma e delimitada, aqui e ali, pelas bermas da correcção ou então pelas bermas da explosão. O presente não é uma imagem; é um vórtice. Na linguagem da actual ministra da cultura, a net poderia ser descrita como uma espécie de tourada que dá a volta ao mundo inteiro. Uma civilização a virar-se do avesso. Deformada pelos bárbaros, mas sobretudo pela velocidade da rede que convoca e desconvoca milagres, bits e estocadas.

Kundera glosou o tema da velocidade no conhecido romance A Lentidão (La Lenteur, 1997), fazendo coexistir tempos e personagens muito diversos que acabavam por contrastar, de modo paródico, com o ‘corre-corre’ ofegante dos nossos dias. Virilio, que morreu no início do passado mês de Setembro, tornou a velocidade na linha de força do seu pensamento, centrando-se nos mais diversos impactos causados pela acelaração da “omniurbe” global. A deformação, de que as fake news são hoje em dia apenas uma pequena parte, é uma das metáforas mais utilizadas para significar esta ruptura, este corte, este império ‘des-fáustico’.

O futurismo já tinha remado, de modo inocente, no sentido deste extravase das formas. Mas o importante (diria mesmo, o objectivo) do vórtice que habitamos seria atingir um grau em que o ponto de partida e o ponto de chegada fossem um único. O fundamental – da instantaneidade tecnológica – seria atingir um grau em que o imediatismo do gesto se redimisse plenamente sem ter que experimentar a iniciação, a travessia, a viagem e a passagem. Estas ‘pontes’, aliás, foram os temas fortes da literatura ao longo de séculos, embora nada nos faça admirar que, daqui a não muito tempo, ela venha a ser evocada enquanto vestígio e prática de uma era entretanto já extinta. A literatura, tal como o amor, sempre foi uma forma de espera e não um clímax logo consumado (ou cyborguisado).

‘Estar aqui’ e ‘estar já lá’ no ponto de chegada, ao mesmo tempo: eis o desígnio supremo. Uma espécie de fora de jogo existencial. Nem mais. Afinal sempre existe um fim último (ou um ‘eschatón’) nos nossos dias. Razão pela qual esperar se tornou numa patologia alimentada pela impaciência. Esperar (pelo paraíso, pela sociedade perfeita, por Godot ou por Ulisses) deixou de ser um modo de percebermos a vida. Em vez dessa postura de miragem e tantas vezes de intolerância, o agora-aqui aparece cada vez mais como um novo patamar de compressão. Uma compressão que deforma, que virtualiza, que confunde o que eu sou com o que eu não sou. Um vórtice que comprime imagens e que nos exila do próprio tempo, o único dom, segundo Séneca, que estaria disponível para a livre fruição dos humanos.

O “fast design” ilustra bem este abismado abreviar de processos. Esgotadas as patentes dos clássicos (um Charles e Ray Eames, um Girard, um Jacobsen, um Nelson, um Panton), não há hoje empresa que não se lance a copiá-las recorrendo a processos de produção e a materiais muito mais económicos. O resultado é uma espécie de ‘fast food’ aplicada a famosas poltronas, candeeiros e mesas que tendem a espalhar-se no mundo com uma celeridade ‘Kitty Cat’. É evidente que o meio cria e recria as suas divisões: de um lado, os que tentam cristalizar um tempo mitificado (como se os Pantons e os Eames fossem referências únicas); do outro lado, os bons anfitriões que reconhecem na economia, na massificação e na acelaração uma espécie de inevitável coerência da vida actual. O ‘fast design’ – que equivale à generalização das narrativas ‘light’ de supermercado – é uma das muitas facetas desta cadência meteórica que faz com que o ‘já’ se sobreponha sempre ao ‘ainda não’. Uma filosofia da impaciência que tende a reger hábitos, expressões e sentidos como se tudo fosse apenas óbvio. Um avesso sobreposto a um outro avesso, dando mostras de estar sempre do lado certo. Um Génesis ‘in media res’ e já não no início do caminho.

Se este afã é um facto no design e nas meta-ocorrências que nos batem à porta, também se faz reflectir no teatro. Quarto Minguante é o título de uma peça que fui recentemente ver ao Nacional. O texto – inscrito numa linguagem forte e sólida – é da Joana Bértholo e baseia-se, como pretexto apenas, no reatar ritual de situações domésticas. Uma das personagens em cena, Lara, surge como uma espécie de ‘peça fora do baralho’. O seu papel passa por estar ‘a mais’ no jogo proposto e tal teria sido outro sobre azul, se, na última parte, ela não tivesse tomado a palavra (e se, ao longo de quase toda a peça, ela não tivesse sido tão interpelada pelos outros personagens em cena). Mas a ideia é, de qualquer modo, brilhante: no meio da azáfama, da velocidade e da desordem corrente da vida, imaginar um figurante radicalmente ‘outsider’ que acaba por nos dizer muito mais do que tudo o resto, simplesmente porque ‘não pertence’ à história. Está aquém ou para além do vórtice (ela, sim, é imagem). Trata-se de um fora de jogo existencial – que diz com ênfase “eu sou” – bem diverso daquele que a instantaneidade tecnológica visa, mas não deixa, certamente, de o metaforizar. A razão parece-me óbvia: estar ‘off’ tende cada vez mais a ser uma patologia e não uma escolha livre. Cada vez há menos lugar para quem sobreponha o ‘ainda não’ a um massificado ‘já’ de teor inevitavelmente compulsivo, repetitivo e hipnótico. E isto não é lenga-lenga teórica, não. O Brasil que o diga.

18 Dez 2018

Alerta Amarelo

[dropcap]F[/dropcap]uncionamos nós por estímulos subliminares muito mais que por qualquer representação racional de modelos definidos e a segunda metade do século XX foi toda ela um código que gerou factos novos, inconcebíveis, a partir da manipulação desses efeitos.

Como bem viu a semiótica, nunca há signos inocentes, sendo que possa haver uns mais inocentados que outros na vertente mágica das suas versões. O tempo que vivemos é sem dúvida uma esteira alarmante – há muitos alarmes – reais, imaginários, possíveis, em fabricação, outros, que nem chegamos a sentir os seus efeitos, mas, e dado que nos alarmam em dimensões nunca vistas poder-se-ia aplicar a formulação de uma atmosfera alarmista que se solta em todas as direcções.-

O «Alerta Amarelo» não é contudo uma vicissitude climatérica em si mesma mas, e muito inconscientemente, o efeito da onda de propagação do Império do Meio que resolvemos nomear através da cor dos nossos receios. Não é novo este medo, mas era dito de forma natural e com laivos de visionarismo, o que não acarretava nomenclaturas de desastres ambientais nem de perigos a chegar às nossas janelas. Eram grandes reflexões acerca da política geoestratégica do mundo. As visões peripatéticas que olhavam já para uma Europa arabizada com tribos entrando pela Andaluzia adentro até Lisboa, perderam subitamente força passando àquilo que apelidamos de tempestade tropical. O que vemos por fim é esse anátema predestinado a consolidar-se sem estrondos ou atentados, o que deixa sorridentes os povos europeus tão fustigados por ameaças fruto dos seus perigosos interesses.

Sejamos suficientemente razoáveis para entender que os perigos que nos ameaçam podem vir sempre de mais distante ou de um ângulo que não imagináramos. Só que, desta vez, cobriremos a estampa civilizacional com a paz amarela, que bem longe de um alarme, é uma marcha lenta do seu próprio sucesso. Quando nos dispomos a ver sabemos que o velho útero, o Império do Sol Nascente, está por todo o lado da nossa vida quotidiana e que as fontes energéticas já são do seu domínio. Não nos esqueçamos que findo o petróleo os países árabes que não desenvolveram uma sociedade científica, o que em termos de tempo, pode agora ser um tempo contado, e que estas diferenças são agora placas tectónicas que vão sem dúvida anunciar quem manobra a Barca dos destinos do mundo.

Para uma Europa sempre tão guerreira vai-lhe fazer bem este abeirar de uma cultura mítica que mais que trazer paz pode trazer formas de abordagem filosóficas e sociais muito interessantes. Talvez tenhamos que experienciar uma contenção desconhecida e formas de colaborar menos vincadas. A nossa supremacia desmorona-se a cada ano que passa, e até nas revoluções em marcha o símbolo delas é amarelo. Coisas que andam nos sinais, no éter carregado de pólvora, nas entranhas dos nossos antigos medos e que saltaram como evidências para as actuais realidades. Longe vão os Alertas Vermelhos! Em todo o caso estaremos no início de uma verdadeira metamorfose e a crer pela nossa frágil propagação demográfica o que se passa é que não é necessário ter nenhum tipo de vidência para o que se segue.

As fontes de produção que permitiram tais factos são tão distintas de tudo o que concebemos que olhamos para a não expansionista China milenar, ainda sem ver o que foi de grandioso uma tal marcha. E se a não ingerência nos seus assuntos internos abala a moral da periferia, isso não será um problema dela, mas nosso, que ao não reflectir numa epopeia humana, acha que tudo fica resolvido através da “linha de crédito” dos seus direitos civis. Seria bom! Mas não ficou. Temos uma herança de famintos às costas com problemas quase insolúveis, criámos as fontes paralisantes deste estertor e sabemos que estamos a dar as boas-vindas a quem nos pode aguentar com a quimérica noção de sermos Estados independentes. A bem dizer, já não somos nada. Pouco mais que a língua que cada um fala e todo o resto vem de todas as partes, e se a terra está gasta e mal gerida, nós também. Enquanto andamos nisto, tentamos que os dias não passem por cima das nossas cabeças ameaçadas até ao tutano, e, descrentes das reformas vamos vendo rebentar em todos os lados o grande princípio da insolvência. As leis sociais obedecem um pouco às leis físicas, a partir de um certo grau de obliquidade, não é em rigor possível que ele se reverta, a longa marcha para o fundo é estrondosa na sucção. Estamos à espera do quando, vendo deslizar pedaços com mais ou menos estrondo.

Derrama-se agora um sabor almíscar dos antigos poemas de Han Shan que tanto influenciaram a vanguarda americana com suas casas na falésia: antigas pedras; as falésias erguem-se abruptas/os livros sobre os imortais / um volume ou dois / sob uma árvore por entre dentes, leio/. Todos nós estamos na nossa civilização à borda da falésia onde abruptamente veremos passar o tempo da nossa desdita, mas, ao invés de se pensar que África ocuparia os lugares chaves, nada disso se deu, nem teria sentido. Manobras extemporâneas de alianças mal começadas e que nunca deram certo. O sentido mercantil mudou as formas e num país ainda movido a ouro nos olhos luzidios dos exploradores não há mais nada do que ir deixando para trás saudades vãs. O alerta é Amarelo e assim irá ficar enquanto for alerta, e toda a Terra se tornar de mansinho uma terna tempestade tropical.

Possamos nós ver os nossos saudosos poemas na versão do Meio e seguir perifericamente o sonho gentil dos vencidos numa visão de transcendência que lhes deu tanto brilho singular.

18 Dez 2018

Um coito que não seja carnal

[dropcap]O[/dropcap]livares, Conde-Duque e grande entre os Grandes de Espanha, todos na corte viam e sabiam o porquê de andar ele de monco caído, de vez em quando suspendendo-se da atenção devida às causas da coroa, que eram assoberbantes e pertinazes além de aturadas, a requererem porfiadamente olho-vivo e mão de ferro sob pena de a caranguejola filipina vir abaixo e os seus inimigos virem ao de cimo. (Como deveras acabou por vir, mas isso foi mais tarde para o que ora interessa.) O que apoquentava Olivares era o caso de a sua idónea e cordeira esposa, embora proviesse de uma estripe de sangue comprovadamente anil e sadio, não lhe fornecer descendente para lhe perpetuar o nome, por mais que no tálamo oficiassem a Príapo.

A ciência destes assuntos à época era indiscutivelmente a teológica. Pelo que Olivares pediu remédio ao frade Villaescusa, ingente doutrinário e de piedade tão severa quanto o escrúpulo, portanto capacíssimo para achar solução à desdita. O beato antes de gastar por inteiro os 50 minutos da praxe da terapia conjugal já concluíra o diagnóstico. Desfazendo-se em louvores à castidade de D. Inês – o valido do Filipe tinha fama de ser figadal e ao cenobita não lhe apetecia torrar na pira da Inquisição – sempre foi dizendo que a Deus vexava muito ela anuir com insofrido e venal regozijo ao sisudo coito matrimonial assim convertido em fornicação animalesca. De modo que o Altíssimo relutava em deferir o livre curso da natureza, obviamente à Sua omnipotência sujeita.

Deu-se então que uma inspiração divina, disse ele, acometesse Villaescusa. O insigne matrimónio haveria de copular no coro da igreja de San Plácido, assistido pelas monjas, de modo a que sobre a união resplendesse a máxima santidade. Aspirava que assim abençoado do exercício procriativo se erradicasse o corpóreo e o mundano e fosse todo ele místico. Estavam destarte os cônjuges nisso, com toda a probidade e cerimónia, e a insidiosa matéria carnal lá descobriu atalho para alardear as suas incontinências. Pejou-se por conseguinte e imensamente o friso de freiras, e o Cristo na cruz pregado há-de ter ruborizado, com os roncos de Olivares a fazerem contraponto aos mugidos de Inês, ambos aos arrancos em cima o altar, e Villaescusa bradou aos céus em desespero – como pode ser que nem no imo do que é mais sagrado os humanos se eximam de pecar?

Esta cena picaresca saiu da imaginação de Gonzalo Torrente Ballester e é lida na novela “Crónica del rey pasmado” (1989), ou vista no filme quase homónimo (“El rey pasmado”, 1991) que o realizador Imanol Uribe deduziu do livro.

E à conta da paródia pinta-se na figura de Villaescusa o retrato escarrado do idealista ou, esticando a corda, do utópico.

Como se reconhece um idealista? É aquele que entende estar a natureza humana inçada de máculas e defeitos. E mais assevera que tentar resolvê-los com melhoramentos e rectificações é panaceia que não embarga recidivas. Há portanto, proclama ele, que extirpar a humanidade dos empecilhos ou inibições que a impedem de atingir a boa aventurança. O idealista é um radical, não crê que o aperfeiçoamento conduza à perfeição.

O idealista é um que já sabe para onde tudo se encaminha ou deve encaminhar. Nem sempre sublimando-se como um iluminado, o idealista é sempre um convicto. Norteado pela lei moral que tem acima dele e não dentro de si – nos tempos que correm os céus estão perpetuamente nublados e não se vêm as estrelas – o idealista tem juízo claro sobre donde provêm dos males do mundo.

Contudo, sucede sempre que as coisas não cabem, têm arestas, criam atritos, enfim recalcitram à evidente pureza, à impecável generosidade, à manifesta beleza dos valores do idealista. Pior ainda: há uns que persistem em não partilhar a visão, os horizontes e o progresso do idealista. Tomando-os por atacado como cínicos, destes ele esmiuçará a opinião de que ou são burros, perdão, ignorantes e carecem de ser instruídos, perdão, educados, que é a maneira de lhes serem inculcados os critérios certos; ou são malévolos, estão de má-fé e merecem castigo, o qual, no mínimo, será a exclusão e o esquecimento.

Ao fim e ao cabo o idealista é um déspota em embrião, à espera de oportunidade para, como o piedoso e caritativo Villaescusa, moldar o mundo à sua forma.

17 Dez 2018

Uma estranheza insólita

[dropcap]À[/dropcap]s vezes, sente-se algo de estranho. É uma atmosfera de estranheza. A estranheza mergulha a realidade exterior e a realidade interior num interior atmosférico. É como um nevoeiro que encontramos num troço da estrada. Não vem até nós. Ou vem. Não se consegue determinar bem. Insinua-se lentamente ou fica espesso, de repente. Em que consiste esta estranheza? Não é algo de estranho que esteja a acontecer e a contaminar tudo o resto que não é estranho. É a própria estranheza, como se fosse uma forma. O rosto do local em que nos encontramos é estranho. É estranho, porque podemos encontrar-nos num sítio conhecido. Nada de inusitado acontece, nem fora do normal. O insólito é isto: tudo está rigorosamente na mesma, mas completamente diferente. Tudo é o mesmo e é diferente. A contradição da formulação não deixa, contudo, de expressar o que se passa. Há um sentimento de estranheza. Um dia, até posso datá-lo senti essa estranheza pela primeira vez. Houve outras situações em que caí ou que se abateram sobre mim, antes e depois dessa, mas quero falar da seguinte.

Estava no Estádio Nacional. Havia um ajuntamento de miúdos de várias escolas e externatos de Lisboa. Era um ajuntamento como tantos outros no pós-revolução. Havia equipas de miúdas e miúdas para disputarem jogos diferentes, vários. Portanto, a miudagem era a população maioritária. Estar entre miúdos, quando se é miúdo é estar entre pares. O Estádio Nacional era o Estádio Nacional que eu conhecia por frequentá-lo com o meu pai. Estava, de facto, mais povoado do que era habitual, mas não é o ajuntamento de miúdos que fazia a diferença. Era como se estivesse num recreio mas mais amplo e com mais miúdos do que habitualmente no recreio da escola.

Abateu-se um sentimento de estranheza. Tudo era como tinha estado no início do encontro, mas agora era insólito. Eu sentia o insólito e não conseguia dizer por quê. Algo não estava bem. Nada batia certo. Se a realidade fosse musical, dir-se-ia que a música deixou de se fazer ouvir ou que eu não conseguia ouvir o que estava a ser tocado. Havia uma surdez na realidade ou, então, a batida não era a certa, a melodia era errada, o ritmo incompreensível.

Quis explicar ao meu pai o que sentia. Não me lembro se o fiz. Não conseguiria dizer na altura nada a não ser. Há algo de estranho, insólito, absurdo naquele momento daquela tarde dos meus nove anos de idade. Não era bem um ambiente. Era mais um clima, um micro-clima que metamorfoseara estruturalmente a realidade geográfica do Estádio Nacional, em Oeiras. Tinha-se aberto uma dimensão paralela da realidade e eu tinha ficado impermeabilizado à realidade vivida por todos os outros miúdos e adultos. Ao mesmo tempo eu percebia que os outros, ninguém, nem o meu pai poderia perceber o que me estava a acontecer. Eu tinha acesso à realidade do Estádio Nacional, ao encontro desportivo de equipas de escolas de miúdos, mas também tinha o pé na realidade paralela que me trazia a estranheza, que me alienava dos outros. Havia o Estádio Nacional de toda a gente e de mim inclusive, com o céu azul, àquelas horas da tarde daquele domingo. Havia também o meu Estádio Nacional, exclusivo. Mas não era a sobreposição que fazia estranheza. A estranheza vinha de uma outra verdade, de uma outra descoberta, de uma outra revelação da própria vida. Como se a vida me estivesse a dizer que estava a acontecer algo de absolutamente insólito, estranho, alienador. A estranheza era o horror atenuado, mas eu não o percebia então. Era o horror de uma situação concreta que estava a manifestar-se e a revelar-se a mim, mas sem eu saber de que se tratava, a não ser pela transformação da realidade. Havia duas realidades: a dos outros todos a quem nada acontecia e a minha a quem tudo estava a acontecer.

Nessa noite, apareceu-me em sonho o R., que era o meu melhor amigo, vizinho e coleguinha de colégio. Aparecia-me e queria dizer-me qualquer coisa. A boca mexia como se estivesse a falar e a dizer-me qualquer coisa, mas eu não ouvia o que ele dizia. Era como se um ecrã estivesse entre mim e o R., mas era um filme mudo ou ao qual tivessem tirado o som. Sentia a mesma estranheza insólita que sentira nessa mesma tarde.

Qual era o significado do sonho? Não o terei perguntado deste modo. Terei experimentado apenas estranheza, o insólito. R. aparecia-me nítido no sonho. Eu não percebia era o teor da situação em que ele me aparecia nem tinha nenhuma explicação para o efeito.

Lembro-me de que estava doente, porque não fui ao colégio, e estava em casa, quando um dos miúdos da rua tocou à porta. A avó atendeu. Era o Tó.

Tinha vindo dizer que o R. tinha morrido num desastre de automóvel. Foi o pai e ele.

14 Dez 2018

Protecção da China aos seus emigrantes

[dropcap]E[/dropcap]m 10 de Fevereiro de 1856, “a galera portuguesa Resolução largou de Macau com destino a Havana, levando a bordo 350 passageiros chineses e 29 tripulantes. No dia 16, à vista de Pulo Sapato, pelas 10 horas da noite, a gente que estava de quarto foi atacada pelos chineses armados com facas de cozinha, que lhes tinham sido fornecidas por um servente do cozinheiro.

A luta durou até à meia-noite, ficando mortos alguns chineses e feridos todos os oficiais e grande parte da tripulação que teve de abandonar o navio em botes, os quais chegaram ao Cabo S. James, na noite de 18, onde encontraram o navio que fora encalhar na baía do mesmo nome. Não julgaram prudente aproximar-se do mesmo e continuaram a navegar para o sul, com destino a Singapura, perdendo-se um bote, nessa noite, com nove pessoas. No dia seguinte, os botes foram cair sobre os parcéis de Camboja, onde se viraram, morrendo dez pessoas, entre as quais os dois pilotos e o contra-mestre.

O capitão e os restantes marinheiros alcançaram as ilhas de Camboja, onde foram presos e maltratados pela gente de terra, e, 25 dias depois, conseguiram embarcar numa soma, que os transportou a Singapura, onde chegaram no dia 5 de Maio. Supôs-se que parte dos chineses que iam a bordo eram piratas que, tendo pertencido ao partido rebelde e vendo-se perseguidos pelos mandarins, se resolveram alistar como colonos, aliciando outros para cometerem o atentado, a fim de passarem a algumas terras dos estreitos, onde se encontravam refugiados os seus partidários e correligionários das sociedades secretas”, segundo narra Luís Gonzaga Gomes.

Tratado não rectificado

Após a Segunda Guerra do Ópio (1856-60), os ingleses forçaram o governo Qing a permitir e regular por contrato a emigração dos cules chineses em todos os portos abertos pelos tratados. Em 1860, pelas Convenções de Pequim, sob a ameaça militar anglo-francesa, o governo chinês “permitiu o recrutamento dos trabalhadores chineses por ingleses e franceses para fora da China e o direito dos chineses a fazerem contratos com os ocidentais e emigrarem, sozinhos ou acompanhados pelas famílias”, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra. Foi esta depois estendida a outras potências.

Pela Convenção da Emigração de 1866, só aplicável aos países dos tratados, “estabeleceu-se a cláusula de que os emigrantes chineses teriam direito a repatriamento gratuito e automático no fim de cumprir cinco anos de contrato”, segundo Beatriz Basto da Silva (BBS). “A implementação da Convenção de 1866 parece ter sido somente desejo do Zhongli Yamen, do inspector-geral Robert Hart e, durante algum tempo, também do embaixador americano na China”, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra. BBS refere, a 15 de Novembro de 1866 “Os representantes da Inglaterra e França, em Pequim, assinam com o governo chinês uma convenção para regular a emigração chinesa mas os governos britânicos e francês, não a ratificam [pois não reconheciam alguns dos regulamentos]. Na verdade trata-se de uma jogada para asfixiar o comércio em Macau, mas os países envolvidos sairiam prejudicados também.”

Assim, em vez de acabar com as irregularidades da emigração e terminar com o tráfico em Macau, para aí se transferiu quase totalmente a emigração por contrato. Tal se devia a não estar ainda rectificado o Tratado de Daxiyangguo de 1862, entre Portugal e a China, pois o governo chinês pretendia voltar a ter em Macau um seu oficial (e não um cônsul), que fora expulso em 1849 pelo Governador Ferreira do Amaral, quando este aí fechara as Alfândegas chinesas. “Embora Portugal tenha conseguido, de facto e unilateralmente, a soberania de Macau, mediante a força, carecia do formal reconhecimento chinês da situação, de modo que o estatuto político-jurídico de Macau (…) continuava por ser esclarecido, o que não permitia aos portugueses exercer com eficácia os direitos soberanos em Macau”, segundo Wu Zhiliang, que refere, “Nesta conjuntura, tornava-se urgente entabular negociações com a Corte Celestial manchu para deixar definido o estatuto político-jurídico e comercial, além de conseguir as mesmas vantagens e interesses comerciais de outras potências com presença na China.”

A 14 de Abril de 1863, o Governo em Portugal aprovara o primeiro Tratado de Amizade e Comércio luso-chinês, Tratado de Daxiyangguo assinado na China a 13 de Agosto de 1862 pelo Ministro Plenipotenciário Isidoro Francisco de Guimarães, então Governador de Macau, e com a proposta de ser rectificado dois anos depois em Tianjin. A 20 de Maio de 1864, aí chegou como Ministro Plenipotenciário de Portugal José Rodrigues Coelho do Amaral, Governador de Macau desde 22/6/1863, mas sem a cláusula do estabelecimento duma alfândega chinesa em Macau, o Governo Qing não aceitou rectificar o Tratado e por isso, após um mês em Tianjin o Governador Coelho do Amaral regressou a Macau.

Venda de Macau

“Desde a não rectificação do tratado luso-chinês de 1862 que as relações diplomáticas bilaterais estavam praticamente interrompidas entre Lisboa e Beijing”, segundo Fernando Correia de Oliveira. O inglês Sir Robert Hart, inspector-geral das alfândegas chinesas de 1863 a 1911, “tinha um problema a resolver com Macau. As alfândegas do território, portuguesas ou chinesas, não estavam sob o seu controlo, e o contrabando de ópio ou o tráfico de escravos (cules) para as Américas irritavam este zeloso defensor dos interesses de Beijing. Primeiro, e sabendo dos apertos financeiros do governo de Lisboa, e dos boatos que circulavam em toda a Europa sobre a intenção de Portugal vender as suas colónias para ganhar a solvência das contas públicas, Hart tentou, com o chamado projecto Emily [1867], que a China comprasse Macau.

O príncipe Gong convenceu-se dos argumentos de Hart e conseguiu do governo chinês o assentimento para o processo. Hart usaria, para isso, o antigo embaixador espanhol em Beijing, D. Sinibaldo de Mas (autorizado, para iniciar o negócio, a dar um milhão de taéis a Portugal, a ficar com 100 mil para si e a gastar 200 mil na ‘compra’ de alguns portugueses influentes; morria em Madrid quando se preparava para a última etapa), e o seu enviado à corte de Londres, Duncan Campbell (que não chegaria a visitar Lisboa nessa altura, porque o Zongliyamen desistiu, entretanto, da ideia de comprar Macau)”, salienta Correia de Oliveira.

O Regulamento de 5 de Março de 1866, conhecido também por Convenção de 1866, visava dificultar a emigração dos cules contratados por Macau. “Os ingleses – a parte forte em confronto com os chineses, neste regulamento – procuravam chamar a si todo o controlo do tráfico, a fim de satisfazer as suas necessidades de mão-de-obra. E os franceses, seus aliados de então, secundaram-nos com a proibição aos seus súbditos de se ocuparem do comércio de cules no porto de Macau”, refere Lourenço Maria da Conceição.

Em 1866, o Governador de Macau, Conselheiro Ponte Horta, recebia instruções para anunciar a resolução de Portugal de aderir à Convenção.

14 Dez 2018

Sopros de paixão

Horta Seca, Lisboa, 3 Dezembro

[dropcap]E[/dropcap]xperiência é a palavra dum viajante em zona estranha, hostil.» Ainda há poucos dias, Fernando Belo (Lisboa, 1933-2018) publicava em uma das pontas da sua intrincada meada de blogues intenso depoimento acerca da entrada enquanto pensador irrequieto no jogo de gato e rato entre espiritual e intelectual. Engenheiro por causa dos números, padre por via de um transe, filósofo em resposta a uma enorme paixão… intelectual.

«Comecemos por distinguir intelectual e inteligente: este é quem compreende as coisas do mundo, além dos seus interesses próprios, aquele é quem sabe jogar com conceitos e literaturas. Há quem sem ter estudos superiores e sem ser intelectual seja fortemente inteligente e há intelectuais académicos que são burros de fazer dó (acontece-me em certos aspectos da vida). […] Também o motivo de ‘espiritual’ tem que ser distinguido de ‘religioso’, que se constituiu como uma forma social englobante de toda a sociedade, desde o nascimento, enquanto que o ‘espiritual’ parte da conversão da vida e rompe com o aparato ritual e doutrinal da religião. Mas também o ‘espiritual’ não é a pôr apenas do lado da ética, que esta também tem incidências intelectuais, ainda que filósofos, cientistas e artistas possam por vezes rebaixarem-se eticamente. Seria tentado a pensar o que chamei ‘respiritual’ do lado do sopro na vida, mais do que da ética de que, melhor ou pior, muita gente dá provas em vidas que não são fáceis: ‘respiritual’ seria o sopro duma paixão que se põe acima do culto dos feitiços habituais, o dinheiro, o poder, as ortodoxias mediáticas, uma paixão que não transige, não se dobra em face do que impera.»

Os seus textos não perdem densidade quando se deixam tomar pela poesia. E, contudo, deu, como poucos, atenção à materialidade e ciência. Lamento muito não o ter chegado a editar. Há que percorrer estas suas paisagens em busca de vestígios de funda linguagem, do ser e do tempo, do corpo e da alma. Como de oxigénio, dedo no ar, tenho que perceber de onde se pode reacender o sopro.

Povo, Lisboa, 3 Dezembro

A cada segunda, a noite estremece: por vezes arrepio, outras relâmpago. Outras nada, mas ainda assim há 274 sessões que Poetas são ditos e celebrados pelo Povo, no Cais Sodré de ancestrais traficâncias. Desta, tratava-se de alguém que ajudou, luas atrás, a definir o perfil do lugar. O mano José [Anjos] não teve como seguir as suas instruções e desaparecer. Dando cor aos seus versos, fez-se presente de guitarra na mão e pedais ao pé, de par com Filipe Homem Fonseca no teremim, que encheu o ar de futuros e distintas coreografias de mãos tocando o nada. O resto deu-se no ziguezague costumeiro das vozes cavas do Vitor [Alves da Silva] e do Pedro [Lamares] e as mais agudas do mano António [Caeiro] e do gordo que se assina.

Nem toda esta poesia nasceu para ser dita, mas em muita a voz fá-la ganhar corpo e respiração. Sou testemunha próxima do amadurecimento do poeta também na sua encarnação de diseur, encenando leituras com rigor extremo e testando sem descanso parcerias variáveis, em busca da companhia e do instrumento exacto para aquela palavra. Estas exibições não dispensarão leituras em modo íntimo, olho na página, mas toca lugares nem sempre visíveis apesar de palpáveis. No que me diz respeito, o mistério acontece na partilha plana da pessoal interpretação, como se a estivesse a ouvir na minha cabeça, sem efeitos de maior.

A voz que se segue logo revela mais possibilidade. E nisto se descobre pelo verso corrido, respirado, suado do Anjos a oculta arquitectura das paisagens.

Nova, Lisboa, 5 Dezembro

Aristóteles teve de ir a casa. O António [de Castro Caeiro] anunciou-o e o Luís [Gouveia Monteiro] explicou-o estabelecendo paralelo entre as personagens do clássico liceu e as tribos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. O Paulo [José Miranda] detectou a estranheza com que o outro, qualquer que seja, nos surge (texto publicado há dias nestas páginas). «As Constituições Perdidas de Aristóteles» continuam a suscitar desafiantes leituras. «No mundo de Aristóteles os elementos têm vontades: a terra deseja cair em direcção ao centro do universo, o fogo anseia pelo céu, a natureza tem horror ao vazio. No nosso também, e ainda nem sequer nos livrámos da ideia de que os deuses nos olham lá de cima sentados numa nuvem, às vezes visitam-nos e podem até, em querendo, pescar-nos como peixes. E as Constituições, produto daquelas escolas, como a academia e o liceu, são um documento essencial para um momento único na história da espécie, uma verdadeira indústria de conceitos, de espírito, que procurou organizar e sistematizar o conhecimento disponível numa espécie de primeira grande modernidade intelectual da espécie.» Mas o Luís foi mais longe e traçou uma genealogia do jogo entre alma e corpo, espírito e matéria para concluir: «E é claro que as coisas têm desejos, como disse Aristóteles, como precisa a metafísica e como a poesia sempre suspeitou. A física contemporânea continua à volta dos problemas daquilo que não é nem espírito nem matéria, ou então é as duas coisas ao mesmo tempo, como a luz. […] O mistério continua intacto e esta tradução enriquece esse mistério, dá alimento ao pensamento e à imaginação.»

Palácio, Queluz, 7 Dezembro

A Divino Sospiro, assombroso projecto animado pelo Massimo [Mazzeo], instalou-se em boa hora no renovado Palácio Nacional de Queluz, lugar de prolongados namoros entre paisagem e arquitectura. E estendeu-se com um Centro de Estudos Musicais Setecentistas de Portugal, que lançou, entre muitas outras iniciativas, um primeiro volume dos «Cadernos de Queluz» (ed. Hollitzer) dedicado à «Serenata and Festa Teatrale in 18th Century Europe», e coordenado por Iskrena Yordanova e Paologiovanni Maione. De grafismo irrepreensível, os dezasseis estudos levam-nos a lugares e celebrações do fausto, mas sobretudo a uma complexa maquinaria teatral que criava mundos nas capitais da Europa. Artifício e verdade, poder e arte dançavam apaixonadamente juntos. Dançavam?

S. Luiz, Lisboa, 10 Dezembro

«Sócrates tem de morrer», certo e sabido. Uma certa ordem das coisas, por exemplo a que diz serem distintas a alma e o corpo, precisa da morte para se afirmar. Mickaël de Oliveira investigou Platão e produziu um díptico, ao qual se soma «A Vida de John Smith», erguendo cenário para questões que nos atravessam, rindo, rasgando e perturbando. Na primeira parte, a lógica do pensamento que garante a sobrevivência da alma depois da morte leva à criação de grupo quase terrorista. E quase apenas por ser o assassinato o seu horizonte, não tanto o terror. A segunda parte revela-se distopia: «a matéria (a linguagem, as texturas, a luz) não é obstáculo ao conhecimento, no qual já não existem segredos, particular ou universais.» É um mundo triste, de onde a poesia está ausente, a custo, diz a personagem, mas ausente. Não radica aí a tristeza, antes na inescapável cedência à lógica de qualquer poder: jamais se questionar nunca. E o fim da linguagem não resolveu os imponderáveis. A ficção científica nacional, subitamente rica, tomou os palcos e neles questiona futuros de maneira aguda. John Smith, em poderosa interpretação de Albano Jerónimo (foto de Bruno Simão algures na página), pega na arma do mais chão bom senso e corta cerce.

13 Dez 2018

Um espectáculo, digo eu!

[dropcap]N[/dropcap]o caminho para a paragem, onde se cruzam eléctricos e autocarros, distraída e com sono, quase piso a passadeira ainda a ser pintada de fresco. Há operários, cones de sinalização, luzes amarelas e coletes reflectores. Alguns metros à frente, os homens do lixo fazem a recolha. Levo a mão à cabeça para ter a certeza de que não trouxe um capacete em vez do gorro. Fico confusa por momentos; poderia julgar que o ensaio acabara e que já não estava em directo do grande auditório do CCB, onde o público aguarda o início de mais uma criação da mala voadora e sim na rua, em Lisboa. O autocarro chega e a viagem é feita aos solavancos. O cheiro a frango assado que o passageiro sentado atrás de mim devora torna tudo mais real. É o descanso do trabalhador, a marmita tradicional, o piquenique em movimento para quem ainda tiver forças para comer a esta hora da noite.

As últimas semanas foram intensas e exigentes, e nesta viagem que nunca começa para todos ao mesmo tempo, apenas termina, encontramo-nos cada vez mais lado a lado para ensaiar, jantar quando conseguimos, fumar um cigarro, tocar piano a quatro mãos, apertar um botão da camisa ou acertar colarinhos no último segundo, mandar calar, matar os colegas cem vezes na nossa cabeça, apenas para depois com eles dançar em conjunto entre cada cena, fazer rir e trocar histórias, para desesperar e zangar. Temos pouco tempo e no entanto há sempre tempo para atrasos, faltas, momentos de diva, para ficar doente, mudar de ideias, perder e reaver objectos, habituar-se a que tudo mude todos os dias e mais do que uma vez por dia, cortar e acrescentar cenas, cimentar e criar amizades, e ainda cobiçar todo o guarda-roupa do director artístico. Não importa como se chegou aqui, agora estamos juntos nisto.

Sábado de tarde: turistas e locais passeiam, fotografam, lancham e apanham sol, como sempre ou talvez com maior fervor, pois afinal é um feriado religioso. Técnicos fazem greve, como é de seu direito. O espectáculo é cancelado. Sucedem-se as mensagens, telefonemas, suspiros e brados de revolta, tristeza, desilusão e frustração. Como manda o figurino, há uma reunião de última hora com quem de direito e com direito a explicação, que sabe naturalmente a pouco, sabe talvez a algum do material usado na construção do cenário. Existe solidariedade de parte a parte, só tenho pena que o “crítico” não tenha escolhido o dia de hoje para vir ao teatro. Provavelmente teria apreciado mais esta versão. Fausto não é para todos, não agrada a todos (de qualquer um dos lados do palco, pois acreditem que é possível fazer um espectáculo de que não se gosta) mas é, inegavelmente, sobre todos e dá um lugar e visibilidade a todos. Sou suspeita mas, pessoalmente, é isso o que me interessa na arte. E o respeito por quem trabalha, claro. Em Fausto, trabalhou-se e aprendeu-se muito.

Um coro, um rancho e um stripper entram num palco… Ganhamos mais do que perdemos. Para trás ficam lantejoulas, folhos, escudos, luvas e cacetetes, azulejos e leques, camas de hospital e os vinte cinco anos do Centro Cultural de Belém. Fica a festa possível, sem esquecer que são as pessoas que fazem as instituições. As recentes greves demonstram isso, sejamos estivadores ou actores na tv ou no teatro. Ou todas as profissões que estes últimos representam, por vezes até fora do blueroom. Alguém disse que a ambição é necessária para a realização. Eu penso nos Apanhados TVI e RTP e em maquilhagem que serve para nos fazer parecer que estamos sem maquilhagem e, de algum modo, tudo isto parece fazer sentido.

Conto, para que vocês acreditem. Talvez este seja o final, o único final possível. Mais irónico e genial do que qualquer um de nós poderia ter criado intencionalmente. Nós, a equipa, saímos de malas e bagagens como tantas vezes estivémos em cena. Talvez a arte não imite a vida, apenas a amplifique, pois em Fausto houve manifestações, revoluções, feridos e queimados, migrantes e desempregados. Talvez esta greve tenha o seu quê de justiça poética, não houvesse também um grupo de juízes em cena. Mas agora é hora de arrumar tudo, apagar as luzes, apanhar novo eléctrico, novo autocarro, e voltarmos a ser as pessoas de todos os dias, sem fronteiras e quase sem limites. Caótica e elegantemente, como um povo e uma família de artistas que se preze.

13 Dez 2018

Lisboa-Porto

[dropcap]N[/dropcap]a plataforma dos comboios da estação do Pragal, a vassourinha da mulher da limpeza empurra heroicamente a beata para a pá de plástico. O pé direito segue o ritmo da canção popular que um aparelhómetro enganchado no bolso da bata emite a plenos pulmões, ainda que roufenhos: Milho verde milho verde, ai à sombra do milho verde namorei uma cachopa.

A senhora tem o ar empanado de não lhe sobrarem ilusões numa única das células e as rugas, só no queixo – cinquenta anos incrustados em setenta e oito de aparência -, desenham-lhe o mapa do metro de Londres. Porém, o pé não se alheia do ritmo, enquanto a pá, focada, atrai as beatas, os recibos, bilhetes, os invólucros dos sugos, e os lábios mimam a música, dando um semblante de vida à sua irrelevância. Muda a cantiga (brega, piorou muito), que ela continua a partilhar com os passageiros: é o seu ponto de equilíbrio.

No átrio da estação, ao balcão do Café Delta, aquele jovem mulato continua a servir bicas. Com o cabelo rapado até à linha da trepanação, de onde desponta um tufo com pretensões a ser onda, num stile japónico mas em carapinha. Ressalta o seu olhar vivo na face macilenta, acostumada a ver repetidos os gestos de uma existência tartamuda. Sem dúvida que o penteado é o que lhe dá ainda um arremedo de identidade, a ilusão de que tem uma ponte para a vida, apesar da merda que ganha, das varizes que lhe ameaçam as pernas.
O nosso ponto de equilíbrio é tão frágil e imaterial. Não vos digo o meu.

Escrevo: «Que dia penumbroso/ e perlado de verde, compreendo/ porque hibernam as abelhas/ enquanto os pés se me enregelam e aqui e ali// reluz o dourado dos olmos. / Belíssima a paisagem,/ paira como um solo de John Surman,/ ou o porfiar da cegonha que perfura/ o mais espesso da melancolia. //Começa a ser tarde/ na minha vida/ e pela primeira vez intuo quem sou:/ o macio intervalo/ entre os pinheiros.»
Seriam olmos, interrogo-me? A impropriedade com que designo a natureza desgosta-me, mas que fazer se sou um rapaz da cidade?

O Camus, nos seus Cahiers refere a nossa inabilidade para designarmos os viventes e os processos na natureza e define-a como um dos cancros do século (XX). Piorou, entretanto.
E recordo um verso do poeta e cineasta António Reis que nunca mais esqueci: “Soletrar olmo como quem ouve um trovão distante”. Que invejável exactidão.

As sílabas do cansaço são mais extensas e friáveis. É o que se sente quando a insónia nos visita, no comboio.
As palavras, que também necessitam de dormir, desprendem-se do corpo, autonomizam-se e impedem que nos acostemos em quietação.

Quem viu os olhos de um insone percebe-os fugitivos e luminescentes como os comboios que cruzam a noite. Por muito que isso torture a vítima, os seus olhos nessa altura não são enjoadamente neutros.
Fui demasiadas vezes atravessado por períodos de insónia e tempos houve em que andava muito de comboio, de Lisboa para o Porto, ou para Coimbra, em viagens semanais a que obrigavam o trabalho.

Pelo menos metade das viagens fazia-as de noite e gastava-as lendo e escrevendo. Escrevia para evitar ser cavalgado pela insónia, imprimindo eu as pausas, os ritmos e os temas às palavras para não ter de enfrentar o nó corredio das frases ininterruptas. E enchia os cadernos de anotações variadas, de ideias volantes e anotações à leitura, de esboços de contos, poemas ou artigos, de crónicas e registos de coisas que ouvia no comboio, etc. Durou três anos esse meu período de viagens consecutivas de comboio.

A esses cadernos julgava-os ter perdido quando me mudei para Moçambique. Afinal deixara-os em casa de um familiar que mos devolveu dez anos depois de me ter tornado emigrante. Guardados numa caixa, dezassete cadernos cartonados de capa preta de linho, que acabaram por se revelar um viveiro.
Os argumentos da maior parte dos meus contos, desde então, nasceram dessas anotações apressadas e até muitos diálogos neles limitei-me a deslocá-los e transcrevê-los, correspondendo a registos de conversas avulsas ouvidas na viagem.

Como agora vivo noutro território desloquei o lugar da acção nalguns deles, como em Cabriolices das catatuas ou em O Triunfo do Amor, cujos enredos no essencial foram-me dados nesses trajectos.

A Arca (publicado na revista Caliban) nasceu de uma converseta anotada entre um pai e um filho, e ocorrida no troço entre o Entroncamento e Santarém, segundo a anotação apensa ao texto. A criança, de uns seis anos, começou por perguntar ao pai o significado da palavra «lotado», para depois passar à dúvida excruciante:

Pai, o Céu nunca fica lotado?

Esse breve diálogo anotado em dez linhas, impeliu-me ao conto quinze anos depois e escrito de jacto.

Este vaivém dos comboios leva-me a um dos títulos que vou apresentar agora ao editor a quem proporei reeditar todos os contos em dois volumes: Comboios Astrologicamente Vigiados.

Rio-me a bom rir quando ouço a avó perguntar às duas garotas gémeas que foram aos lavabos: Então, as meninas fizeram xixi? Sim, responderam as miúdas. E puxaram as “iáguas”, pergunta ansiosa a avó.
Rio-me por dentro, a pensar na Francisca do Oliveira, onde se ouve aquela bela frase, “a ialma é um vício!”, e a lembrar-me que depois um “chato” numa crítica quis explicar que “a fórmula” não passava de um efeito inane de estilo, tendo invertido a frase, para demonstrar a sua insubstancia: “um vício é uma ialma!”.
E não é que todos tinham razão, até esta avó que nunca confundiria iáguas com águias!? E como explicar esta diferença às duas belas ucranianas que viajam no banco ao lado?

Devia sair com elas agora, em Aveiro, para, pelo menos, me banquetear com um dos meus pratos: ensopado de enguias. Despeço-me de tudo.

13 Dez 2018

Parque Mayer

[dropcap]É[/dropcap] o título do mais recente filme do António Pedro Vasconcelos, um drama de costumes, em que através das peripécias do arranque de uma nova “revista” na “Broadway” lisboeta quis retratar a opressão do Estado Novo.

Estamos em 1935, o filme, com um casting com excelentes desempenhos dos actores, não caminha no sentido da construção do grande filme musical e do “glamour”, decide-se por outra abordagem em que o fantasma da policia política é personagem tutelar da narrativa.

É um Parque Mayer com pouco brilho e uma cidade sem chama que o filme nos dá a ver, com poucos e tímidos exteriores, centrado no foco da repressão da criatividade e da vida pela presença da censura e da polícia.

O filme é assim descrito na sinopse: “Lisboa, 1933. Deolinda, uma jovem da província que tem o sonho de ser artista no Parque Mayer, apresenta-se num casting para coristas para a nova revista no teatro Maria Vitória. Durante os ensaios, apaixona-se por Mário, o encenador, mas este está fascinado por Eduardo, a estrela da revista que, por sua vez, tenta seduzir Deolinda… Ao mesmo tempo o Estado Novo começa a apertar o cerco e a liberdade está cada vez mais limitada… Uma homenagem divertida e emocionante ao teatro de revista e a todos os que no Parque Mayer lutaram pela Liberdade”

António Pedro Vasconcelos é um nome de referência no cinema narrativo em Portugal, conhecido do grande público pelos debates sobre futebol onde veste a camisola vermelha do Benfica, e lidera a ARCA – Associação Portuguesa de Realizadores de Cinema e Audiovisual. “Parque Mayer” teve forte comunicação na televisão, imprensa e rádio e, neste primeiro fim de semana e após com 4 dias de exibição, 698 sessões em 58 salas fez 12 078 espectadores, e receita bruta de € 60.628,48.

São raros os filmes de produção nacional que tem acesso ao mesmo número de ecrãs e sessões, como exemplo, neste mesmo fim de semana o filme português mais próximo, Raiva, do Sérgio Tréfaut, apenas pode ser visto num único ecrã numa das 15 sessões.

Rodado nos Estúdios da Plural na Quinta dos Melos em Bucelas onde com a direcção da Clara Vinhais e a equipa da EPC – empresa especialista na construção de cenários para o audiovisual, e em coordenação com Rafael Galdó, responsável pelos efeitos visuais, foram construídos os cenários que permitem o filme viver o Parque Mayer edificado em 1922 com o teatro Maria Vitória, seguido do Teatro Variedades em 1926 e em 1931 o Teatro Capitólio, no espaço até jardins do Palácio Mayer ( prémio Valmor 1902).

As cenas da sala do teatro foram gravadas em Cascais no Teatro Gil Vicente, e de Lisboa exteriores temos a escadaria que leva ao bar Procópio perto Rato e uma rua no cimo do elevador do Lavra.

O mais notável no filme é o desempenho dos actores, e como se reconhece, sem isso nenhum filme funciona na sua relação com o público. Actores seguros na forma e na lógica motivacional das suas acções, dão corpo e vida ao argumento construído com o rigor da construção narrativa clássica dos 3 atos, cenas plantadas, e arco narrativo de personagem, vilões e heróis por força das circunstâncias e as sombras do acaso.

O filme arranca com a detenção de um contestatário ao novo regime que é um dos dois dramaturgos da nova revista em ensaios. A actriz protagonista acaba de chegar de Fátima e vive na sua estreia na revista o primeiro grande milagre da sua vida, o da afirmação da sua individualidade e afirmação do seu talento artístico, vítima de violência por parte do namorado/amante/proxeneta, é salva desse ciclo de inferno por um alto quadro da polícia Política. É este personagem, representado pelo actual director artístico do Teatro Nacional D. Maria II, o Tiago Rodrigues, um fascista bissexual, que coloca o filme acima uma construção panfletária. Notável a todos os títulos é a interpretação do Miguel Guilherme, no papel de produtor, patrão do teatro, pela contenção, sobriedade, tensão e comicidade e humanidade como que vive os acontecimentos com maior ou menor gravidade que surgem ao longo da narrativa. Como já referido, todo casting, está de parabéns serve com grau de excelência o filme, ainda assim é necessário um particular aplauso para a composição histriónica e cliché do protagonista fadista, boémio, marialva, construído pelo talentoso Diogo Morgado. Importa referir a direção segura e focada no desenrolar da narrativa por parte mestre diretor António Pedro Vasconcelos, sem a qual o filme dificilmente sobreviveria.

O Parque Mayer era um lugar excêntrico na cidade de Lisboa, cinema, teatro, boxe, casas de fado, carrosséis, esplanadas, restaurantes. Um lugar de liberdade por natureza, liberdade de costumes e território de artistas. Este filme é no dizer do próprio realizador e do produtor, um gesto de agradecimento a esse espaço de liberdade.

13 Dez 2018

Das boas maneiras

[dropcap]N[/dropcap]a peça O Leque de Windermere, de Oscar Wilde, é dita uma frase que decidi adoptar como lema pessoal: « As maneiras antes da moral» (ou manners before morals, no original). É um aforismo tipicamente wildeano: cintilante, de uma falsa superficialidade e uma subversão com estilo.

A peça em questão é uma comédia de costumes que põe em causa a hipocrisia da moral Vitoriana, a mesma que iria condenar Wilde à sua tragédia final. Mas esta pequena frase contém outra verdade subjacente e cada vez mais esquecida: as boas maneiras são essenciais para as relações humanas.

No passado dia 1 de Dezembro morreu um dos seus grandes defensores contemporâneos, o italiano P. M. Forni. Este professor universitário que leccionava Boccacio e Dante na universidade John Hopkins, em Baltimore, abraçou uma nobre causa: a defesa da civilidade. Nestes dias radicais, dedicar uma vida à observação das conveniências e à polidez entre indivíduos parece uma actividade ociosa; mas precisamente por estarmos a viver neste clima cultural é que se torna ainda mais essencial. Forni escreveu dois livros bastante aclamados nos Estados Unidos: Choosing Civility: The Twenty-Five Rules of Considerate Conduct (2002) e The Civility Solution: What to Do When People Are Rude (2010). «O primeiro livro é sobre como não ser rude», disse a sua viúva ao New York Times, « o segundo é sobre o que fazer quando alguém é rude connosco». Uma formulação simples e eficaz mas que esconde muito do pensamento de Forni.

Para ele as boas maneiras – a civilidade – resultavam em maior produtividade, menos stress e maior potencial de desenvolvimento. Respeitar regras tão aparentemente óbvias como falar baixo ou falar amavelmente melhoraria as relações humanas em todas as situações. Mais: Forni acreditava que os actos de violência eram frequentemente resultado de grosserias que ficavam fora de controlo. Lembrou ao mundo que a palavra “civilidade” tem no seu étimo o latim civitas – cidade, comunidade – e que como tal não podia ser relegada para gavetas de protocolo. A civilidade está ao alcance de todos e a humanidade anda a lutar com isso desde o seu início. Forni criou também o programa de civilidade da universidade John Hopkins em 1997, que ainda funciona e é reconhecido como fundamental por diversas entidades cívicas.

A sua epifania chegou quando leccionava uma aula sobre a Divina Comédia (sim, outra vez): «Disse aos meus alunos que se soubessem tudo sobre Dante e depois maltratassem uma idosa no autocarro teria falhado como professor», afirmou.

Forni era também um crítico feroz da vida moderna, como o proclamou no seu livro The Thinking Life: How to Thrive in the Age of Distraction (2011): «Infelizmente a reflexão profunda é a vítima mais ilustre da revolução digital», escreveu.

O combate de Forni (que outros já haviam iniciado – lembro de raspão o grande ensaísta inglês do século XIX, William Hazlitt ) é particularmente necessário nesta altura. Significa o triunfo do bom senso contra a radicalização e a consequente vontade de atribuir intenções políticas ou sociais para gestos simples e quotidianos. É dizer que abrir a porta a uma mulher não é uma proclamação de uma suposta hierarquia patriarcal nem o resultado de uma mirífica “realidade social construída”, como nos gritam as políticas identitárias. É um acto de gentileza, como ouvir o outro, saudar um amigo, dar prioridade aos cidadãos mais velhos. É, na verdade, uma das maneiras de nos salvarmos uns dos outros.

12 Dez 2018

Banqueiros anarquistas

[dropcap]S[/dropcap]em dúvida há títulos que são agentes directos de actividades laborais e que definem sempre mais umas profissões que outras. A um linguista ficar-lhe-á por vezes mal usurpar ou transgredir os cânones da sua técnica, já um banqueiro tem uma margem de espaço mais abrangente que o coloca muitas vezes como o fazedor da sua própria regra. Se se considerar que possa ser um bom artesão, difícil será contornar o laborioso esquema da sua competência podendo nem ser beliscado na liberdade e bom nome por práticas desmesuradas.

Incrementos vários dão permissão a uma total falta de limpidez àqueles que anarquicamente também se expõem à sua guarda sem desconfiarem de uma maior anarquia por parte da sua capacidade transgressiva. – Referindo-nos sempre ao título de Pessoa, o mais extraordinário está ainda no texto introdutório que abomina a prosa do poeta falho de elementos dialécticos na visão reformista de quem o considera um tributo obsoleto para o pensamento social. Nada disto será surpreendente num mundo de altas instâncias pensantes que por operantes tendências da vontade procuram rasurar tanta coisa, que nem sabem coisificar partes soltas das muitas outras que, e façamos justiça, são por vezes, inomináveis.

Os seres das “ferramentas pensantes” muito severos na marsupial descarga das suas forças criativas estão de ponteiro na mão, prontos a erguer muralhas contra o insólito, que não raro, destrona as suas seguranças fílmicas e ideológicas. A tirania do auxílio (expressão usada no livro) tirou no entanto aos anárquicos banqueiros uma certa e determinante tendência para a usura individual, e eis que, nos prostramos diante dos seus despojos como engolidos por crateras:« ora, qual a qualidade natural das nossas qualidades naturais?» sermos tão naturalmente nós que nada se nos pegue enquanto medida de grupo. Ser-se eminência parda da natural fonte do ser e aperfeiçoar a tirania de grupo para a linha da frente como efeito «Bode Expiatório».

Pois que se não só de grandes sensibilidades se forja um grande poeta, também, não só, de grande massa económica se constroem banqueiros. O distintivo da ambivalência tem de estar presente para que algo de verdadeiramente inesperado se possa dar.

As bombas rebentam não raro nas mãos revoltosas dos “guerrilheiros” que ardentemente munidos usam e abusam da descarga da sua legítima indignação pelo zelo das acções concretas, depois, o tempo que demoram a morrer, tira-lhes ainda aquela liberdade tão boa que é o saber rir-se de si mesmos, e por que não, de tudo o resto. Agonizantes e exaustos o mundo parece até girar na razão inversa dos seus propósitos, e sempre pelo lado que ninguém viu, dá-se então a explosão. As várias leituras de um texto dão-nos o hipertexto, tangente também ele à capacidade de recriação, não o deixando por isso arrumado na sua primeira “extração a frio” e ainda pode enlouquecer os laboriosos defensores da coerência. Por vezes, um qualquer detalhe pode fazer derrubar a causa mais convicta de estar ganha, mas para isso, digamos, será então necessário um imbatível detalhe. E quando tal se dá, caso as calças sejam muito compridas, é cortá-las para pano para mangas, que dos braços se fazem bandeiras para acenar a todas as coisas também elas improváveis. E o mais improvável na vida é o mais caro, o mais rico, o que se levanta como zona de desconforto para “atazanar” o conforto de todos.

Vejamos detalhes mimosos, minuciosos, da grande paródia deste Banqueiro: – Realmente, disse eu, é anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo depois de o ter ouvido, comparar o que V. é com os anarquistas que pr ´aí há… : quando o orgão não conduz com a função há uma tendência para a desorganização, pois que, e também, órgão muito falado é orgão doente, e nestas tentativas perde-se a compostura para analisar em alguns, órgãos novos, por vir. Se não é identificável não será mantido, e combatido vai ser o seu destino, até que, todos de uma assentada guardem para si as funções impróprias, opostas àquelas por que tanto batalharam. E responde então o nosso Banqueiro: então é que vi com que bestas e com que cobardões estava metido. Desmascararam-se. Aquela corja tinha nascido para escravos.

Queriam ser anarquistas à custa alheia. Queriam a liberdade logo que fossem os outros que lha arranjassem, logo que lhes fosse dada como um rei dá um título! Quase todos eles são assim, os grandes lacaios! Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros. Pois que o fizessem os parvos. Eu é que não ia ser burguês por tão pouco.

E quando aquelas coisas deliciosas nos agarrarem intempestivamente há então que não pensar no resultado e deleitosamente subirmos o rio pois que só essas marchas são boas. Nestas, toda a cautela é pouca, ou não fosse a qualidade de Banqueiro uma porta aberta para a tibieza de cada um. Ponham-nos como carcereiros que logo se dará o “pontapé” para dentro das prisões, que dizem estar transitada na lei para lá os meterem e nunca reverte em fechamento.

Retomemos a marcha de leitores imoderadamente anarquizantes colocando um fim às supostas intenções dos autores, pois que nem sempre eles se nos apresentam transversais ao panorama “construtivo” das tão prestimosas sociedades, que uns defendem, outros atacam, e que para eles, pode ser mais a laboriosa oferta de uma boa ficção. E uma brincadeira muito séria chamada lucidez.

11 Dez 2018

A lapiseira amarela

[dropcap]L[/dropcap]apiseiras era o que eu mais perdia na infância. Sempre as achei fascinantes. Eram lápis sofisticados. Não requeriam aparo. As minas eram substituídas. Eram mais grossas do que as que eu agora uso. As lapiseiras tinham uma estrutura metálica em forma de garra para prender as minas. Havia de muitas cores.

Lembro-me em particular de uma amarela. Transportava-a dentro do estojo em forma de chuteira de futebol com borracha Rotring, que ia dentro da mochila. Houve alturas que sublinhava a vermelho e a azul, a lápis e depois a tinta, mas prefiro os livros sublinhados de leve. Ainda não consigo fazer como em Oxford. Não sublinhar os livros não é ainda para mim uma opção. Uso, não minto, os PDF’s para buscar palavras e ocorrências e as ler em contexto, mas cada vez mais estou dependente do papel, seja em livro seja em fotocópia. Vejo mal ao longe e ao perto, mas as letras em tamanho máximo no ecrã não são tão cómodas como as palavras no papel.

Lapiseiras era o que mais perdia na infância. Mas perdia muitas outras coisas. Não sei se eram roubadas as coisas ou não. Quero acreditar que não. Desapareciam. Estavam ao pé de mim. Depois, sem me aperceber de como desapareciam completamente. Como é que a única coisa de que damos falta, que está ausente, em paradeiro desconhecido, passa a ser a única coisa em que pensamos, a que damos consistência. Li mais tarde a formulação latina praesentia in absentia. Quando perdemos uma coisa, não sabemos onde ela está. É o advérbio interrogativo que faz a pergunta. Onde está a lapiseira? Onde deixei a lapiseira? Onde está X? Sabemos ou julgamos saber onde estão todas as coisas ou não nos importa saber onde elas estão.

Não é por precisarmos dela necessariamente que perguntamos onde estará a lapiseira. Pode ser só para saber onde está, para sossegarmos, porque não lidamos bem com a perda de objectos que são nossos. Não lidamos bem com a perda. É simbólica esta perda? Ou não será porque damos valor ao que temos. Damos o valor ao dinheiro que resulta do esforço do trabalho para podermos comprar coisas. Damos valor afectivo às coisas. “As nossas coisas” dizemos.

Queremos saber da sua disponibilidade. Queremos saber onde estão as coisas, as nossas coisas.

Mas aquela única coisa que julgamos perdida é interrogada a respeito do seu lugar. Não achamos que evaporou, mas é como se se tivesse evaporado. Abre-se um campo de latência mais ou menos definido dos sítios onde pode estar. Debaixo das peças de mobiliário da sala de aula, das cadeiras e das secretárias. Revolvo a mochila, procuro em todos os cantos e recantos. Lembro-me de ter tido a lapiseira na mão e depois sobre a secretária.

Não pode não estar senão ali. E nada. Em casa, procuro-a por toda a parte. Afinal, posso ter-me confundido. Não não posso ter-me confundido. E a mãe diz que sou desleixado e distraído. A distração sempre foi uma maleita confesso. Depois mais tarde foi objecto de trabalho aturado, mas está sempre à coca. Mal sinta que baixo a guarda, aí vem ela.

Tantas lapiseiras que tive. “Agora, vê lá se a perdes”. “A” é a nova lapiseira. É amarela e preta como alguns lápis antigos.

Mas onde é que raio foi parar a lapiseira amarela? Assaltou-me agora essa memória da infância. A memória da lapiseira, a memória da perda de objectos do passado. Sou transportado para o Santa Maria de Belém, numa rua onde fui há pouco tempo jantar com o João Paulo Cotrim. Uma rua que tem um externato, onde eu andei. Foi há mais de 40 anos. As ruas são engolidas pelos bairros que não frequentamos e desaparecem da vista e do quotidiano.

Onde estará a lapiseira amarela e a minha infância e tudo o que havia?

7 Dez 2018