Dos balanços

[dropcap]Q[/dropcap]uem abraça este ofício de escrever sobre os dias de maneira regular tem, mais tarde ou mais cedo, dois grandes adversários: a clássica “angústia da página em branco” ou a “angústia da originalidade”.

Sobre a primeira, grandes crónicas já foram escritas (e outras péssimas também): lembro-me de uma belíssima obra de arte do brasileiro Antônio Maria – o padroeiro desta minha casa – com o título Amanhecer no Margarida’s, onde o cronista nos descreve o seu acordar prematuro, o nascer da manhã e a multidão de pensamentos que lhe passam pela cabeça. Termina com uma breve reflexão sobre o método caótico e inesperado que está na base das suas crónicas, o que é normal porque se chama vida. É uma crónica que sem ter um assunto consegue nessa ausência preencher tudo o que nos diz respeito.

Já o desafio da originalidade é mais complexo. Escrever algo verdadeiramente original – isto é, sobre alguma coisa nunca escrita – é, por definição, impossível. O Livro do Eclesiastes já dizia que não há nada de novo debaixo do sol. De outra forma mais literária, e reflectindo sobre o acto de criação, o escritor Blaise Cendrars afirmou de forma certeira: «Se alguma vez me aconteceu ser original foi sem querer». Os temas serão, de uma maneira ou de outra, sempre os mesmos – apenas o tratamento que lhes podemos dar irá variar.

Portanto, leitor, eis o meu drama: tinha um encontro marcado com as palavras e o segundo flagelo que descrevi invadiu-me e aterrorizou-me: o que poderei eu escrever de novo, que combate ou elegia deverei escolher? E foi então que mais uma vez a menina Marina me salvou o dia. Mas estou a ser mal-educado, permitam-me que a apresente: a menina Marina é real. Trabalha no café aqui do bairro, onde tomo o pequeno-almoço, e é o meu primeiro contacto com a realidade exterior. A menina Marina já deixou há muito tempo de ser menina mas aceita esta aliteração cortês com que a saúdo todas as manhãs porque – desconfio – se sente lisonjeada. E em troca dá-me o benefício dos seus comentários. Nada de profundo: se existe alguma especialidade que a sua conversação possa ter são as platitudes. Mas há muito que aprendi a não dispensar tão depressa tudo o que parece óbvio, simplesmente porque muitas vezes é lá que mora o bom senso.

De modo que ignorando por completo estes meus dilemas de escrita a menina Marina me atirou enquanto me atendia: «Ai, senhor Nuno, estamos outra vez naquela altura em que toda a gente faz balanços e se lembra do que aconteceu durante o ano… Para que é que isso serve se já aconteceu ?». E pronto, eis a epifania servida com pastel de nata.

É de facto uma altura estranha, feita de uma festiva melancolia. Recordar o melhor e o pior do que sucedeu durante 365 dias é para mim mais um exercício desesperado contra a nossa transitoriedade. A não ser no que diga respeito a grandes e marcantes acontecimentos a memória colectiva é, sabemo-lo de forma dolorosa, muito ingrata. A nossa, a individual, basta-se a si própria, e as conquistas ou perdas que sofremos durante um ano acompanhar-nos-ão durante toda a vida. Ao olhar para 2018 não vejo grande momento para parar: a natureza humana continua a exceder-se naquilo que tem de pior, agora ajudada por um clima cultural e social de profunda estupidez e perseguição, disseminado a velocidades vertiginosas. Não, não haverá nunca um “balanço do ano” que nos redima.

Esta é e será sempre uma época difícil para um céptico, pelo que prefiro esconder-me atrás de livros e música. E ouvir as sábias palavras da menina Marina enquanto vou saindo do café: «Saudinha é que é preciso, senhor Nuno». Sim, menina Marina, sim.

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