Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasDas boas maneiras [dropcap]N[/dropcap]a peça O Leque de Windermere, de Oscar Wilde, é dita uma frase que decidi adoptar como lema pessoal: « As maneiras antes da moral» (ou manners before morals, no original). É um aforismo tipicamente wildeano: cintilante, de uma falsa superficialidade e uma subversão com estilo. A peça em questão é uma comédia de costumes que põe em causa a hipocrisia da moral Vitoriana, a mesma que iria condenar Wilde à sua tragédia final. Mas esta pequena frase contém outra verdade subjacente e cada vez mais esquecida: as boas maneiras são essenciais para as relações humanas. No passado dia 1 de Dezembro morreu um dos seus grandes defensores contemporâneos, o italiano P. M. Forni. Este professor universitário que leccionava Boccacio e Dante na universidade John Hopkins, em Baltimore, abraçou uma nobre causa: a defesa da civilidade. Nestes dias radicais, dedicar uma vida à observação das conveniências e à polidez entre indivíduos parece uma actividade ociosa; mas precisamente por estarmos a viver neste clima cultural é que se torna ainda mais essencial. Forni escreveu dois livros bastante aclamados nos Estados Unidos: Choosing Civility: The Twenty-Five Rules of Considerate Conduct (2002) e The Civility Solution: What to Do When People Are Rude (2010). «O primeiro livro é sobre como não ser rude», disse a sua viúva ao New York Times, « o segundo é sobre o que fazer quando alguém é rude connosco». Uma formulação simples e eficaz mas que esconde muito do pensamento de Forni. Para ele as boas maneiras – a civilidade – resultavam em maior produtividade, menos stress e maior potencial de desenvolvimento. Respeitar regras tão aparentemente óbvias como falar baixo ou falar amavelmente melhoraria as relações humanas em todas as situações. Mais: Forni acreditava que os actos de violência eram frequentemente resultado de grosserias que ficavam fora de controlo. Lembrou ao mundo que a palavra “civilidade” tem no seu étimo o latim civitas – cidade, comunidade – e que como tal não podia ser relegada para gavetas de protocolo. A civilidade está ao alcance de todos e a humanidade anda a lutar com isso desde o seu início. Forni criou também o programa de civilidade da universidade John Hopkins em 1997, que ainda funciona e é reconhecido como fundamental por diversas entidades cívicas. A sua epifania chegou quando leccionava uma aula sobre a Divina Comédia (sim, outra vez): «Disse aos meus alunos que se soubessem tudo sobre Dante e depois maltratassem uma idosa no autocarro teria falhado como professor», afirmou. Forni era também um crítico feroz da vida moderna, como o proclamou no seu livro The Thinking Life: How to Thrive in the Age of Distraction (2011): «Infelizmente a reflexão profunda é a vítima mais ilustre da revolução digital», escreveu. O combate de Forni (que outros já haviam iniciado – lembro de raspão o grande ensaísta inglês do século XIX, William Hazlitt ) é particularmente necessário nesta altura. Significa o triunfo do bom senso contra a radicalização e a consequente vontade de atribuir intenções políticas ou sociais para gestos simples e quotidianos. É dizer que abrir a porta a uma mulher não é uma proclamação de uma suposta hierarquia patriarcal nem o resultado de uma mirífica “realidade social construída”, como nos gritam as políticas identitárias. É um acto de gentileza, como ouvir o outro, saudar um amigo, dar prioridade aos cidadãos mais velhos. É, na verdade, uma das maneiras de nos salvarmos uns dos outros.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasBanqueiros anarquistas [dropcap]S[/dropcap]em dúvida há títulos que são agentes directos de actividades laborais e que definem sempre mais umas profissões que outras. A um linguista ficar-lhe-á por vezes mal usurpar ou transgredir os cânones da sua técnica, já um banqueiro tem uma margem de espaço mais abrangente que o coloca muitas vezes como o fazedor da sua própria regra. Se se considerar que possa ser um bom artesão, difícil será contornar o laborioso esquema da sua competência podendo nem ser beliscado na liberdade e bom nome por práticas desmesuradas. Incrementos vários dão permissão a uma total falta de limpidez àqueles que anarquicamente também se expõem à sua guarda sem desconfiarem de uma maior anarquia por parte da sua capacidade transgressiva. – Referindo-nos sempre ao título de Pessoa, o mais extraordinário está ainda no texto introdutório que abomina a prosa do poeta falho de elementos dialécticos na visão reformista de quem o considera um tributo obsoleto para o pensamento social. Nada disto será surpreendente num mundo de altas instâncias pensantes que por operantes tendências da vontade procuram rasurar tanta coisa, que nem sabem coisificar partes soltas das muitas outras que, e façamos justiça, são por vezes, inomináveis. Os seres das “ferramentas pensantes” muito severos na marsupial descarga das suas forças criativas estão de ponteiro na mão, prontos a erguer muralhas contra o insólito, que não raro, destrona as suas seguranças fílmicas e ideológicas. A tirania do auxílio (expressão usada no livro) tirou no entanto aos anárquicos banqueiros uma certa e determinante tendência para a usura individual, e eis que, nos prostramos diante dos seus despojos como engolidos por crateras:« ora, qual a qualidade natural das nossas qualidades naturais?» sermos tão naturalmente nós que nada se nos pegue enquanto medida de grupo. Ser-se eminência parda da natural fonte do ser e aperfeiçoar a tirania de grupo para a linha da frente como efeito «Bode Expiatório». Pois que se não só de grandes sensibilidades se forja um grande poeta, também, não só, de grande massa económica se constroem banqueiros. O distintivo da ambivalência tem de estar presente para que algo de verdadeiramente inesperado se possa dar. As bombas rebentam não raro nas mãos revoltosas dos “guerrilheiros” que ardentemente munidos usam e abusam da descarga da sua legítima indignação pelo zelo das acções concretas, depois, o tempo que demoram a morrer, tira-lhes ainda aquela liberdade tão boa que é o saber rir-se de si mesmos, e por que não, de tudo o resto. Agonizantes e exaustos o mundo parece até girar na razão inversa dos seus propósitos, e sempre pelo lado que ninguém viu, dá-se então a explosão. As várias leituras de um texto dão-nos o hipertexto, tangente também ele à capacidade de recriação, não o deixando por isso arrumado na sua primeira “extração a frio” e ainda pode enlouquecer os laboriosos defensores da coerência. Por vezes, um qualquer detalhe pode fazer derrubar a causa mais convicta de estar ganha, mas para isso, digamos, será então necessário um imbatível detalhe. E quando tal se dá, caso as calças sejam muito compridas, é cortá-las para pano para mangas, que dos braços se fazem bandeiras para acenar a todas as coisas também elas improváveis. E o mais improvável na vida é o mais caro, o mais rico, o que se levanta como zona de desconforto para “atazanar” o conforto de todos. Vejamos detalhes mimosos, minuciosos, da grande paródia deste Banqueiro: – Realmente, disse eu, é anarquista. Em todo o caso, dá vontade de rir, mesmo depois de o ter ouvido, comparar o que V. é com os anarquistas que pr ´aí há… : quando o orgão não conduz com a função há uma tendência para a desorganização, pois que, e também, órgão muito falado é orgão doente, e nestas tentativas perde-se a compostura para analisar em alguns, órgãos novos, por vir. Se não é identificável não será mantido, e combatido vai ser o seu destino, até que, todos de uma assentada guardem para si as funções impróprias, opostas àquelas por que tanto batalharam. E responde então o nosso Banqueiro: então é que vi com que bestas e com que cobardões estava metido. Desmascararam-se. Aquela corja tinha nascido para escravos. Queriam ser anarquistas à custa alheia. Queriam a liberdade logo que fossem os outros que lha arranjassem, logo que lhes fosse dada como um rei dá um título! Quase todos eles são assim, os grandes lacaios! Eles não tinham força para combater senão encostados uns aos outros. Pois que o fizessem os parvos. Eu é que não ia ser burguês por tão pouco. E quando aquelas coisas deliciosas nos agarrarem intempestivamente há então que não pensar no resultado e deleitosamente subirmos o rio pois que só essas marchas são boas. Nestas, toda a cautela é pouca, ou não fosse a qualidade de Banqueiro uma porta aberta para a tibieza de cada um. Ponham-nos como carcereiros que logo se dará o “pontapé” para dentro das prisões, que dizem estar transitada na lei para lá os meterem e nunca reverte em fechamento. Retomemos a marcha de leitores imoderadamente anarquizantes colocando um fim às supostas intenções dos autores, pois que nem sempre eles se nos apresentam transversais ao panorama “construtivo” das tão prestimosas sociedades, que uns defendem, outros atacam, e que para eles, pode ser mais a laboriosa oferta de uma boa ficção. E uma brincadeira muito séria chamada lucidez.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA lapiseira amarela [dropcap]L[/dropcap]apiseiras era o que eu mais perdia na infância. Sempre as achei fascinantes. Eram lápis sofisticados. Não requeriam aparo. As minas eram substituídas. Eram mais grossas do que as que eu agora uso. As lapiseiras tinham uma estrutura metálica em forma de garra para prender as minas. Havia de muitas cores. Lembro-me em particular de uma amarela. Transportava-a dentro do estojo em forma de chuteira de futebol com borracha Rotring, que ia dentro da mochila. Houve alturas que sublinhava a vermelho e a azul, a lápis e depois a tinta, mas prefiro os livros sublinhados de leve. Ainda não consigo fazer como em Oxford. Não sublinhar os livros não é ainda para mim uma opção. Uso, não minto, os PDF’s para buscar palavras e ocorrências e as ler em contexto, mas cada vez mais estou dependente do papel, seja em livro seja em fotocópia. Vejo mal ao longe e ao perto, mas as letras em tamanho máximo no ecrã não são tão cómodas como as palavras no papel. Lapiseiras era o que mais perdia na infância. Mas perdia muitas outras coisas. Não sei se eram roubadas as coisas ou não. Quero acreditar que não. Desapareciam. Estavam ao pé de mim. Depois, sem me aperceber de como desapareciam completamente. Como é que a única coisa de que damos falta, que está ausente, em paradeiro desconhecido, passa a ser a única coisa em que pensamos, a que damos consistência. Li mais tarde a formulação latina praesentia in absentia. Quando perdemos uma coisa, não sabemos onde ela está. É o advérbio interrogativo que faz a pergunta. Onde está a lapiseira? Onde deixei a lapiseira? Onde está X? Sabemos ou julgamos saber onde estão todas as coisas ou não nos importa saber onde elas estão. Não é por precisarmos dela necessariamente que perguntamos onde estará a lapiseira. Pode ser só para saber onde está, para sossegarmos, porque não lidamos bem com a perda de objectos que são nossos. Não lidamos bem com a perda. É simbólica esta perda? Ou não será porque damos valor ao que temos. Damos o valor ao dinheiro que resulta do esforço do trabalho para podermos comprar coisas. Damos valor afectivo às coisas. “As nossas coisas” dizemos. Queremos saber da sua disponibilidade. Queremos saber onde estão as coisas, as nossas coisas. Mas aquela única coisa que julgamos perdida é interrogada a respeito do seu lugar. Não achamos que evaporou, mas é como se se tivesse evaporado. Abre-se um campo de latência mais ou menos definido dos sítios onde pode estar. Debaixo das peças de mobiliário da sala de aula, das cadeiras e das secretárias. Revolvo a mochila, procuro em todos os cantos e recantos. Lembro-me de ter tido a lapiseira na mão e depois sobre a secretária. Não pode não estar senão ali. E nada. Em casa, procuro-a por toda a parte. Afinal, posso ter-me confundido. Não não posso ter-me confundido. E a mãe diz que sou desleixado e distraído. A distração sempre foi uma maleita confesso. Depois mais tarde foi objecto de trabalho aturado, mas está sempre à coca. Mal sinta que baixo a guarda, aí vem ela. Tantas lapiseiras que tive. “Agora, vê lá se a perdes”. “A” é a nova lapiseira. É amarela e preta como alguns lápis antigos. Mas onde é que raio foi parar a lapiseira amarela? Assaltou-me agora essa memória da infância. A memória da lapiseira, a memória da perda de objectos do passado. Sou transportado para o Santa Maria de Belém, numa rua onde fui há pouco tempo jantar com o João Paulo Cotrim. Uma rua que tem um externato, onde eu andei. Foi há mais de 40 anos. As ruas são engolidas pelos bairros que não frequentamos e desaparecem da vista e do quotidiano. Onde estará a lapiseira amarela e a minha infância e tudo o que havia?
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasApresentação de um livro perdido e actual [dropcap]V[/dropcap]em agora a lume As Constituições Perdidas de Aristóteles, com tradução do filósofo António de Castro Caeiro. Trata-se de um livro envolto em mistério e polémica. Logo na introdução, Caeiro escreve “Os fragmentos são citações de livros perdidos, imputados a Aristóteles. (…) Os fragmentos foram coligidos a partir de obras de outros autores e cobrem um período de mais de mil anos.” Adiante, o filósofo que aqui faz de tradutor acrescenta: “Aristóteles não escapou ao processo de falsificação.” Estamos, por conseguinte, diante de um livro que levanta inúmeros problemas, mesmo antes de analisarmos o seu conteúdo. Mas os olhares que mais me interessam salientar neste livro são outros e dois: o literário e o político, ambos extremamente contemporâneos, actuais. E começo pelo sentido político que grassa as páginas deste livro. Ao lermos estas Constituições não podemos deixar de ser invadidos pelo sentimento de estranheza que habitava estes povos, que no seu conjunto constituíam a Hélade. Ao lermos o livro vemos bem que o mundo é todo ele constituído de diferenças, de estranhezas. O mundo é um lugar estranho. E é este o ponto de vista que grassa os fragmentos. As palavras mostram esta estranheza que é a verdadeira dimensão do humano. Só quando está a sós e sem pensar é que um humano não é estranho para si próprio. Fora desse momento a estranheza invade-o e tudo para quanto olha aparece como não sendo familiar. Ao se agrupar num mesmo texto estes fragmentos sobre “outros povos”, pois é disto que se trata, está-se a promover a visualização da diferença numa tentativa de compreensão do outro. O tom do livro não é o da crítica ou repulsa do hábito do estrangeiro, mas do espanto e da tentativa de aproximação, de querer entender, de querer ver para além da evidente distância que há entre esse hábito e o nosso. Num dos fragmentos, o 611, III parte, Constituição de Creta, 15, ficamos a ver que a hospitalidade aos estrangeiros não era comum, fazendo dos cretenses um povo à parte. Escute-se esta passagem: “Todos os cretenses costumavam-se sentar em cadeiras. Foram eles os primeiros a partilhar alimentos com os hóspedes. Depois de terem dado uma parte do rendimento aos hóspedes, davam quatro porções ao rei: uma tal como deram aos outros, a segunda para o seu reinado, a terceira para a sua casa e a quarta para as suas peças de mobiliário. Em geral, em Creta há uma enorme boa vontade para com os estrangeiros. Também lhe chamavam o lugar de honra” Há aqui de algum modo, com o elemento que nos parece estranho de mostrar terem sido os cretenses os primeiros a sentarem-se em cadeiras, um elogio aos cretenses, mostrando que eram um povo evoluído, civilizado, e que isso se mostrava também ou principalmente pelo modo como tratavam os estrangeiros. Como se a atenção ao diferente fosse uma marca de civilização, uma marca de evolução, fazendo da aproximação entre os humanos uma mais-valia, um universal desejado e ambicionado. Quero, contudo, deixar claro que este esforço pela anulação da distância não vai promover a anulação da estranheza. Veja-se como exemplo o fragmento 611, Constituição de Esparta, 13: “As mulheres espartanas não tinham nenhum adorno, nem sequer podiam trazer o cabelo comprido ou andar com ouro. Alimentavam os filhos de tal sorte que nunca ficassem saciados, para que se habituassem a ser capazes de suportar a fome. Também os ensinavam a roubar e castigavam com açoites quem fosse apanhado a roubar, para que fossem capazes, como resultado deste treino, a sofrer e a permanecerem acordados se caíssem em mãos inimigas. Começavam logo desde crianças a falar de forma breve e a serem comedidos tanto a gozarem com os outros como a serem gozados pelos outros. As suas sepulturas são simples e iguais para todos. Entre eles ninguém coze pão, pois não têm farinha de trigo, mas apenas cevada.” Mas talvez os fragmentos em que este esforço de entender a diferença, o estranho, apareçam de modo mais claro sejam os fragmento 538 e 539. Vejamos primeiro o 538: “A krypteia era chamada a agência secreta dos lacedemónios – se é que se tratava de um dos órgãos de governação de entre os que foram incluídos na constituição de Licurgo, como nos informa Aristóteles. Como quer que tenha sido, permitiu a Platão formar uma opinião sobre a Constituição dos Lacedemónios e Licurgo. A krypteia agia assim: os comandantes jovens enviavam, de tempos a tempos, aqueles que lhes pareciam ser os mais inteligentes para o campo, apenas com um punhal e ração de sobrevivência. Mais nada. Escondiam-se durante o dia, espalhados por locais desconhecidos, e descansavam. Mas, de noite, faziam-se a caminho e assassinavam todos os Helotas que apanhassem. Aristóteles diz ter sido sobretudo quando os Éforos chegaram ao poder que decidiram declarar logo guerra aos Helotas, para o massacre poder ser praticado sem violação de escrúpulo religioso.” Percebemos claramente, no final, o esforço de Aristóteles em incutir racionalidade a um acto que em si mesmo parece falido de razão. E iremos ver o mesmo no fragmento 539: “Como diz Aristóteles, quando chegaram ao poder, os Éforos mandaram anunciar aos cidadãos que deviam cortar o bigode e obedecer às leis, para não terem de ser duros com eles. Eu acho que propuseram a coisa do bigode para que os mais novos se acostumassem a obedecer, mesmo a respeito dos mínimos detalhes.” Embora este último fragmento tenha um carácter cómico, à luz dos nossos dias, se em comparação com o primeiro, a verdade é que estamos diante da mesma espécie de fenómenos: por um lado a prepotência e irracionalidade dos actos perpetrados e, por outro, uma tentativa de compreensão, de conferir racionalidade ao que nos é estranho. Mas voltando ainda ao espectro da estranheza e da diferença, e neste caso em relação a nós aqui e agora, leia-se o fragmento 542: “Aristóteles diz que na Constituição dos Lacedemónios que estes usavam para os combates um uniforme cor de púrpura e isto por dois motivos. Primeiro, por causa da virilidade da cor. Depois, porque o sangue é dessa cor e assim ajuda a fazer pouco caso do sangue derramado.” Esta ligação da cor púrpura à virilidade soa-nos claramente estranha. Mas imbuídos do espírito do livro, deste exercício de aproximação ao estranho e distante, ficamos presos ao segundo argumento, o de ser duma cor semelhante à do sangue e por isso ter ou poder ter efeitos práticos e úteis. Esta aproximação contínua ao estranho e diferente faz deste livro um livro actual. Actual, porque necessário aqui e agora. Falta-nos hoje, e cada vez mais, este exercitar-nos na aproximação ao diferente e estranho. Aliás, o que temos visto recentemente é o nosso mundo a caminhar cada vez mais para uma anulação do diferente. Caminhamos perigosamente, e na contramão deste livro de Aristóteles, não num conferir racionalidade ao que nos parece carecer dela, mas conferir irracionalidade ao que nos escapa por falta de exercício racional. Isto só por si faz deste livro um livro urgente, um livro que tem um uso actual e necessário. Um livro político, na melhor acessão da palavra. Do ponto de vista literário, estes fragmentos estão repletos de pequenas pérolas narrativas, como se se tratassem de micro-contos, que, no seu conjunto, acabam por nos dar um retrato panorâmico da Antiga Grécia e da sua enorme diversidade. Relatos que nos instiga a querer ver mais do que nos é contado, a imaginar, a fazermos nós uma continuação daquilo que nos é contado, que é a função da grande literatura. E apenas como exemplo disto, vou ler-vos o fragmento 609: “Aristóteles, o filósofo, relata que alguns dos Gregos, quando regressavam de Tróia, foram surpreendidos, ao contornar o cabo Maleia, por uma tempestade violenta. Arrastados pelos ventos durante tanto tempo, vaguearam por muitos mares, acabando por ir dar a um local de Ópica, chamado Lácio, e que fica no mar Tirreno. Contentes por verem terra, puxaram os barcos para aí mesmo passarem a estação das tempestades, preparando-se para partir quando chegasse a Primavera. Então, numa noite depois de o fogo lhes ter destruído as embarcações, sem saber o que fazer para prepararem a partida, a inevitabilidade inesperada obrigou-os a fazerem vida justamente no local onde tinham ido dar. Isto aconteceu-lhes por causa das mulheres cativas que traziam de Tróia. Foram elas quem incendiou as embarcações, com medo da partida para a casa dos Aqueus, porque uma vez lá chegadas iriam para a escravidão.” Estamos assim perante uma versão da fundação da cidade de Roma, mais literária e mais humana do que a versão mitológica conhecida. E ao longo deste livro temos várias pérolas literárias semelhantes a esta. Terminava esta apresentação voltando à estranheza que percorre as páginas deste livro e que não vos deve ter passado despercebido ao escutarem os fragmentos que vos li. De facto, a estranheza está não só no conteúdo, para nós agora e para os povos da Hélade, confrontados uns com os outros nos seus hábitos, mas também na forma, neste confronto entre as línguas gregas que falam nos textos originais e a nossa língua portuguesa. Resta agradecer ao António de Castro Caeiro este livro fazer agora parte da nossa língua.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasDe cavalo para burro [dropcap]Q[/dropcap]uando no outro dia acabei de ver “Broken Lance” (“A lança quebrada”) na TV reforçou-se-me a convicção de que dar atenção aos filmes pela assinatura do realizador, segundo o vigente e peremptório dogma do “cinéma d’auteur”, traz menos benefícios do que prejuízos a quem quiser ver o cinema sem os óculos escuros dos estereótipos. Quase ignoto, pode-se considerar “Broken Lance” como um anódino produto saído em 1954 da linha de montagem de Hollywood. Edward Dmytryk, o seu realizador, nunca se fez digno do pendão e caldeira dos “auteurs.” E se David Thomson, sumo pontífice da história do cinema, o despacha como um que de tanto lhes puxar o lustro as suas fitas redundavam embaciadas e pomposas, também Pauline Kael a insurgente da crítica clássica, além de não ligar pevas ao filme, nunca isenta Dmytryk da sua mordacidade nas escassas referências que lhe faz em 5001 noites de cinema. Estaríamos conversados não fosse “Broken Lance” uma caubóiada lauta e suculenta como um bacalhau com todos. Ora aqui está um belo exemplo de que para percebermos como as coisas resultam convém perceber como são feitas. No período exuberante de Hollywood as obras tanto poderiam surdir da ambição de um produtor em haurir a popularidade de um elenco, como despontar de um argumentista que trouxesse um guião promissor. Normalmente estas e outras mil intenções, em concordando, transitavam para a produção. De modo que realizadores com influência e arbítrio para convencerem os produtores a investirem nos seus projectos eram apenas um punhado, aqueles que tinham o “nome acima do título” – e mesmo estes, as guerras que tiveram para conseguirem, quando conseguiam, meter a unha na montagem final… Há filmes bons e filmes maus e é aqui que tudo vem ter antes e depois de qualquer “ideia de cinema.” E se amiúde um filão de filmes notáveis confere com o nome de um autor, raro é que um determinado autor rubrique sempre filmes relevantes. Ora observar o todo pelos seus particulares e a partir das excepções, dar-nos-á dele o melhor, mas bastante peixe graúdo passa pela malha larga dessa rede. Os eloquentes méritos de “Broken Lance”, que a ele nos prendem, promanam em primeiro lugar do cativante argumento. Veio ele de Philip Yordan, que apesar de vender histórias avulsas, mormente a companhias de 2.ª, o seu estro era sobejamente respeitado pelos pares. Que tenha ganho um Oscar depois de três vezes nomeado, valerá talvez menos hoje do que ter escrito o idolatrado “Johnny Guitar”. “Broken Lance” é um filme com ”mensagem” e está cosido de referências cultas – gato de rabo de fora é a alusão a Rei Lear e seus herdeiros. Mas à boa maneira clássica isto é exposto sem levantar a voz; quem quiser ou puder, vê, e quem não vir não se perde no enredo. Por esta altura já o western não elidia a sua maior inclinação para o trágico do que para o épico. Fanada a suposta superioridade moral da conquista do Oeste o foco assestava agora nos dilemas e nos conflitos impiedosos que aquela terra sem barreiras acicatava. Portanto o argumento de “Broken lance” não poupa esforços para nos inquietar. Merecedor de apreço paralelo ao da história é o elenco. Spencer Tracy, ciente do seu Outono, investe na personagem a altivez e a fúria que ela exige, mas também a convicção e o denodo que a tornam respeitável, traços de só um actor sazonado seria capaz. Com ele contrasta um Robert Wagner a filar o osso da sua crescente celebridade e um Robert Wydmark que por esta altura nunca deixava por mãos alheias os seus créditos como vilão. Com balas deste calibre no revólver Edward Dmytryk tem o tento de não as desperdiçar. Ou seja, não estraga com temperos de “autor” os óptimos ingredientes que lhe deram. E nesta discrição manifesta-se a sua competência. Artefacto de confecção industrial, comparado com os filmes de hoje “Broken Lance” dá-nos boa medida do quanto cinema se desvigorou. Todo o cinema. Quer o de cariz industrial, tributário dos planos de marketing, quer o que se diz independente ou auto-intitula de cultural, inflamado de propósitos ou afectado de estilo, mas que só ocasionalmente se desonera da falta de polimento e da parcimónia do artesanato.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Tráfico de Cules via Macau [dropcap]”A[/dropcap]ntes da Guerra do Ópio, os ingleses e os portugueses recrutavam os trabalhadores chineses através de Macau para as suas colónias, nas diversas partes do mundo. A proibição da emigração não foi cumprida pelos oficiais chineses em Macau antes de 1849″, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, que referem, “Com o desenvolvimento da emigração de cules chineses neste porto, desde 1851, o governo chinês permaneceu ignorante e indiferente ao tráfico humano em Macau, durante um longo período.” Já desde 1844 agentes provenientes da Guiana Inglesa, Cuba e Peru chegavam aos portos chineses e recrutavam cules para ir lá trabalhar. Muitas vezes raptados e contratados à força pelos angariadores, eram mal tratados durante a viagem de barco e quando chegavam ao destino, muitos caíam nas redes de traficantes de escravos. Assim se dá início ao tráfico de cules. Segundo as estatísticas recolhidas por Arnold J. Meagher, “Entre 1851 e 1874 [período em que decorreu o tráfico de cules chineses em Macau], mais de 210.054 cules chineses emigraram através de Macau para vários destinos, como Cuba, Peru, Guiana Britânica, Suriname, Costa Rica, Ásia do Sudeste, Moçambique, Califórnia e Austrália”, sendo a maioria destes para Cuba (122.454) e para o Peru (81.552). Os corretores (angariadores) andavam pelo interior da China a aliciar pessoas para emigrar e em Macau entregavam-nos aos contratantes (agentes), que determinavam as condições laborais e de viagem, sem haver até 1851 conhecimento oficial das autoridades de Macau. “A emigração de trabalhadores chineses para a América – originariamente de Hong-Kong para a Califórnia – realizou-se também em Macau a partir de 1851, principalmente para Cuba. Para restringir os muitos abusos que caracterizavam esse tráfico, o governo de Macau adoptou medidas que, levadas correctamente a cabo, satisfariam os mais caprichosos legisladores e filantropos. Pelas ordenanças de 1853, o governo controlou os barracões ou casas de cules; e tratou das acomodações e requisitos sanitários adequados aos emigrantes, tanto em terra como durante a viagem. Para evitar o transporte clandestino de cules enganados, tornou-se obrigatório, em 1855, o registo dos contratos e o interrogatório dos cules em terra pelo procurador e a bordo pelo capitão do porto. Outra regulamentação de 1856 exigia que os agentes de cules tivessem licenças e caução, além de os sujeitar a sanções por enganar e coagir emigrantes, ou por não custear a passagem de regresso e as despesas dos cules rejeitados pelo governo ou pelos agentes de emigração em Macau; os menores de dezoito anos não podiam emigrar excepto se acompanhados dos pais; e, mesmo depois de terem assinado o contrato, os cules podiam cancelá-lo se o desejassem, pagando as despesas legais custeadas, por sua causa, pelos agentes”, segundo Montalto de Jesus (MJ). A venda de leitões O Governador Guimarães, Visconde da Praia Grande, publicou um edital em Março de 1859 condenando os abusos dos corretores e mandava encerrar os depósitos ilegais. “Para evitar trocas de identidade, passou a ser exigido, dali em diante, que os emigrantes assinassem o contrato perante duas testemunhas”, MJ. Em Abril, os magistrados de Nanhai e Puanyo publicaram uma proclamação contra os corretores da emigração, referindo haver “vagabundos que iam por essas terras enganar os pobres chineses com promessas de chorudos salários no estrangeiro; traziam-nos para Macau e outros portos e vendiam-nos para países estrangeiros. A isto chamavam eles chu-chai (leitões, ou seja, venda de leitões)”, como refere o Padre Manuel Teixeira, “Os culpados deviam ser punidos, os depósitos encerrados e publicado um regulamento claro e firme. Todos deviam indagar se as promessas haviam sido feitas de boa-fé; o contrato devia determinar o salário do trabalho, a duração deste, o local onde eram destinados e se podiam escrever à família e amigos e remeter-lhes dinheiro. Uma vez que se assentasse em tudo isto, não havia objecções contra a emigração”, segundo os magistrados. Mas os abusos continuaram e levaram ainda “o Governador Isidoro Guimarães a nomear por port. de 30 de Abril de 1860, um superintendente da emigração Chinesa, coadjuvado por um intérprete. A prática era a seguinte. Os corretores iam convidar os chineses às suas terras; os que aceitassem tinham transporte gratuito para Macau. Uma vez entrado no depósito, o emigrante declarava a sua idade; tendo menos de 18 anos e não tendo pai ou mãe que o acompanhassem, era rejeitado. Quem não tivesse 25 anos de idade, devia apresentar o consentimento dos pais, tendo-os”, segundo o Padre Manuel Teixeira. Emigração por contrato Pelo Act for the regulation of Chinese Passengers de 30 de Junho de 1855, o governo britânico de HK regulava o transporte de chineses a bordo dos seus navios. Ano em que os franceses contrataram 900 cules chineses para trabalhar em Guadalupe e Martinica. Com a II Guerra do Ópio (1856-60) “Por Hong Kong, só nos três primeiros anos considerados (1856, 1857 e 1858), saíam 56.256 colonos (mais do dobro do que em Macau [20.610 colonos])”, refere Fernando Figueiredo. “A Segunda Guerra do Ópio proporcionou aos ingleses uma oportunidade de forçar o governo Qing a permitir e regular a emigração dos cules chineses. Em 1859, durante a ocupação anglo-francesa da cidade de Cantão, o governador Bo Gui (柏贵) e mais tarde, o vice-rei Lao Chongguang (劳崇光), por requerimento dos ingleses, permitiram a emigração chinesa por contrato. Em 1860, ainda sob a ameaça militar anglo-francesa, o governo central chinês, pelas Convenções de Pequim, permitiu o recrutamento dos trabalhadores chineses por ingleses e franceses para fora da China e o direito dos chineses a fazerem contratos com os ocidentais e emigrarem, sozinhos ou acompanhados pelas famílias. O abandono da lei secular da proibição à emigração, pelo governo chinês, fez parte das mutações que a China teve de enfrentar, perante as novas circunstâncias internacionais sem precedentes. Depois de admitir a emigração por contrato, o próximo passo foi regular e uniformizar esta actividade em todos os portos abertos (dos tratados)”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra. Beatriz Basto da Silva refere, “A Convenção Anglo-Chinesa de 1860, pretendendo regulamentar o tráfego através de contratos legais, foi estendida a outras potências, como a Espanha, e em 1866 aos representantes da França, estabelecendo-se nesta altura a cláusula de que os emigrantes chineses teriam direito a repatriamento gratuito e automático no fim de cumprir cinco anos de contrato. A Inglaterra e a França não ratificaram a posição dos seus representantes e a China recusou-se a consentir a emigração noutros termos. Praticamente com as ‘mãos vazias’, as nações intervenientes resolveram contornar a questão e o fluxo de saídas passou a fazer-se mais intensamente em Macau, que não tinha entrado nas negociações”, pois a China não tinha rectificado com Portugal o Tratado de Daxiyangguo de 1862.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasSujata Bhatt [dropcap]S[/dropcap]ujata Bhatt (1956) é uma poeta indiana que descobri em Nova Deli. Atarantado, esbracejando no escuro com o meu parco inglês, fossei uma tarde nas estantes das livrarias e, sem uma referência confiável de antemão, confiei no faro e apostei em quatro poetas, de quem comprei vários livros: a Sujata, o Vikram Seth, o Aga Shahid Ali e a Eunice Moraes . Tive sorte, são todos extraordinários, e, entretanto, Vikram e Sujata tornaram-se figuras cimeiras da literatura internacional. A Sujata é aquela a que mais regresso e mais vontade me dá de “transcriar”, como diria o Herberto Helder. UDAYLEE Apenas papel e madeira são imunes ao toque de uma mulher menstruada. Então, eles construíram este quarto para nós, ao lado do estábulo. Aqui, estamos autorizadas a escrever cartas, a ler, e este recolhimento dá azo a que se cauterizem as nossas cicatrizes de cozinha. À noite, não posso deixar as estrelas sozinhas. E quando não consigo dormir, desato a marchar ou sonho que marcho, neste quarto minúsculo, de minha estreita rede para a estante aboletada de jornais, empoeirados, e de búzios castanhos brilhantes e uma concha, que fazem de pisa-papéis. Quando não consigo dormir, pego na concha e encosto-a à orelha só para ouvir a torrente do meu sangue, o latejar de uma canção, o rufar lento, dentro da minha cabeça, dos quadris. Esta dor é o meu sangue a fluir contra, apressando-se contra alguma coisa – as ancas nodosas do meu sangue, é assim que me lembro: punhados de algas rasgadas levantavam-se com a espuma, subiam. Em seguida, caindo, caindo na areia abafavam os ovos de tartaruga recém-postos. AS VOZES Primeiro, o som de um animal que tu nunca imaginaste. Depois: o restolhar do insecto, o mutismo do peixe. E então as vozes tornam-se berrantes. A voz de um anjo falecido recentemente. A voz de uma criança que recusa terminantemente tornar-se um anjo com asas. A voz dos tamarindos. A voz da cor azul. A voz da cor verde. A voz dos vermes. A voz das rosas brancas. A voz das folhas arrancadas pelas cabras. A voz da cobra da mina. A voz da placenta. A voz do couro cabeludo de uma caveira cujo cabelo cai atrás do vidro num museu. Costumava pensar que eram só uma voz. Costumava esperar pacientemente que uma voz regressasse e começasse o seu ditado. Estava enganada. Não consigo acabar de contá-las desde agora. Não consigo deixar de escrever tudo o que tem para dizer. A voz do fantasma que deseja morrer de novo, mas desta vez num quarto brilhante com flores fragrantes e diferentes parentes. A voz de um lago congelado. A voz do nevoeiro. A voz do ar enquanto neva. A voz da rapariga que continua a ver unicórnios e fala com os anjos que conhece pelos nomes. A voz da seiva dos pinheiros. E então as vozes tornam-se berrantes. Às vezes ouço-as Rindo da minha confusão. E cada uma das vozes insiste E cada uma das vozes sabe que isto é a verdade mesmo. E cada voz diz: segue-me segue-me e eu levo-te … CIÚMES Vou para a cama e então aquele homem senta-se no quarto ao lado e continua rindo, dos seus próprios escritos. E então eu bato na porta e digo, ‘agora Jim, pára de escrever ou pára de rir! Nora Joyce Uma mulher come o seu coração exposto e a janela de perto de sua cama é muito pequena e não vai fechar correctamente — o seu coração tem um gosto doce, muito, é um muito agradável despiste para a amargura – mas a lua quer lá saber de qualquer maneira a lua parou há muito de ajudá-la. A ópera acabou e uma multidão de passos lépidos, tantos saltos altos, tamborila rente à sua janela. Não há estrelas esta noite. Somente nuvens que se movem muito rapidamente para a porem tonta. Ela vai fechar os olhos mas não vai dormir vai continuar a comer o seu coração exposto a noite toda – e de manhã há-de pensar numa maneira de encaixar a janela. O ESCRITOR A melhor história, é claro, é aquela que não podes escrever, a que não vais escrever. Eis algo que só pode viver no teu coração, não no papel. O papel é seco, liso. Onde está a terra para as raízes, e como faço para levantar aí árvores inteiras, a imensidão da floresta chegada do coração do espírito – transumância no papel, sem perturbar as aves? E o que dizer da montanha em que esta floresta cresce? Das cataratas tecendo rios, rios com multidões de árvores acotovelando cada uma a do seu lado para lançar um relance ao peixe. Abaixo do peixe flutuam nuvens. Aqui, o céu ondula, encrespa no rio os trovões. Como se movem as coisas no papel? Agora observa a maneira como os tigres andam e rasgam o papel. SHÉRDI* E deste modo aprendi a comer cana-de-açúcar em Sanosra: rasga-se com os dentes a espessa bainha da folha depois, às dentadas, arranco as tiras do branco coração fibroso — e raspo, chupo intensamente com os dentes, aspiro até me aflorar na língua o caldo. Manhãs de Janeiro, o agricultor corta a tenra cana verde e vem depositá-la à nossa porta. Às tardes, logo que vemos que os anciãos cochilam, esgueiramo-nos com as longas e leves varas. O sol aquece-nos, os cães bocejam, os nossos dentes crescem vigorosos e deixam os nossos queixos dormentes, por tantas horas a sugar o russ, o caldo que gruda na mão. Por isso esta noite quando me dizes que use os meus dentes para chupar com força, intensamente, vem-me do teu cabelo o cheiro a cana de açúcar e imagino como gostarias de ser shérdi shérdi ali nos campos ali os longos talos se mexem abrindo sendas à nossa frente. *cana-de-açucar OLHAR FIXO E há aquele momento em que a criança humana fixa a cria de macaco, que olha para trás – inocência partilhada inocência no espaço onde o jovem primata não está em cativeiro. Raia aí a pureza orbita uma transparência neste olhar fixo que dura muito tempo… olhos de água olhos de céu tem ainda tempo a alma de cair porque o macaco tem de aprender o medo – e ao humano cabe igualmente aprender o temor e amenizar a arrogância. Testemunhando tudo agora podem-se contar os cílios, contem-se os caracóis na relva, enquanto se espera que os olhos pisquem ou para ver quem primeiro desviará o olhar para longe. Ainda o macaco não olha o humano da mesma maneira que olharia para as folhas ou para os seus próprios irmãos. E o humano fixa o macaco adivinhando-o um ser totalmente diferente de si mesmo. E, contudo, é tanta a boa vontade brilha uma tal curiosidade nos seus semblantes. Gostaria de escorregar para dentro daquele olhar fixo, saber o que a criança pensa o que o macaquito ajuiza naquele exato momento. Esclareço que o garoto está naquela idade em que começa a usar o poder das palavras embora ainda sem a distância dos alfabetos, de abstrações. À menção de pão ele pede uma fatia, com manteiga e mel – imediatamente. Menciona-se o gato e ele apressa-se a correr para despertá-la. Uma palavra é a própria coisa. A linguagem é simplesmente uma música necessária de repente conectada ao batimento cardíaco da criança. Enquanto o macaquito cresce num âmbito diferente, olha uma árvore, um arbusto, a criança humana e pensa … Sabe-se lá o quê!? O que continua a relampejar é esse momento de enlace: as duas cabeças recém-formadas equilibradas em tão frágeis pescoços inclinando-se uma para a outro, a cara do macaco e a cara do garoto, absorvendo cada uma a outra com uma magnífica gentileza …
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasPartir o pente [dropcap]A[/dropcap] minha irmã acha que eu deveria cortar o cabelo, logo agora que recebe mais elogios que nunca. Divertida, faz-me sinais de uma tesoura invisível, sorri e oferece-se, “Se quiseres eu corto”. Não tenho usado muito os bigoudis que dela herdei quando decidiu cortar o longo cabelo bem curtinho, há uns anos. Agora, tem uma afro invejável, com tons entre o loiro e o castanho. Uma vez, numa loja de acessórios, dei por ela a experimentar uma peruca. Retorquiu, “O que foi? Sempre quis saber como ficaria se fosse loira.” É difícil cabermos, e aos nossos cabelos, por inteiro na mesma selfie, mas ambas continuamos, cada uma num país, a lidar com estranhos que insistem em tocá-los. Suspiro. Da raiz até às pontas. Vejo vídeos sobre como fazer a transição capilar, reeducar o cabelo, fazer o big chop total ou parcial, para ter uma só textura, para desintoxicar e recuperar o meu verdadeiro eu. Na série Insecure, Issa Rae e as amigas mudam frequentemente de penteado. Em This is Us, igualmente. Parece fácil e acessível. Em Keeping up with the Kardashians, a royalty da reality tv america é adepta de extensões e perucas. Muitas vezes, a sua origem é indiana ou vietnamita: as primeiras doam o cabelo ao templo milionário e as segundas usam-no para sobreviver e alimentar as famílias mais algum tempo. Cabelo curto, comprido, desfrizado e natural, tranças, caracóis, liso e ondulado: já tive de tudo um pouco, embora nunca o tenha pintado senão de preto. Pouco original, bem sei. No processo, parti muitos pentes, dentes de pentes, cabos de pentes, como qualquer africana ou afro descendente que se preze. Penso que não tenho mais paciência para isto do que para usar maquilhagem. Deixei de desfrisar o cabelo há dois anos, depois voltei a fazê-lo, e já só o fazia uma vez por ano, no momento de maior desespero e embaraço, quando o pente ameaçava partir-se novamente, após logradas tentativas de domesticação. Arrependo-me e penso, agora vou ter de começar de novo. No entanto, trouxe recentemente do supermercado uma escova eléctrica. Apesar de ter um ferro de alisar e uma varinha de encaracolar, que raramente uso. Não tenho secador mas sei que, por uma vez, a explicação não cabe a Freud. Se folheio a Poesia Toda, descubro em Herberto Helder Na cerimónia da puberdade feminina (dos índios Cunas, Panamá). A mesma inclui tesouras, cabaças, água e aguardente, lenços, mulheres e raparigas. Muitas vezes sinto saudades de ter tranças. Permanecem na memória como um ritual sagrado e moroso, em frente à televisão, com pequenas pausas e muita paciência, perfeição e minuciosidade das mãos maravilhosas da minha mãe e da minha tia. Passaram dois anos desde o lançamento do icónico álbum de Solange, “A seat at the table”, e do hino “Don’t touch my hair”. Este single, que obriga a reflectir para além do já expressivo título, assenta muito bem num mundo em que o cabelo continua a ser motor de vítimas e de agressores, com mais ou menos silêncio e assumir de responsabilidades e preconceitos. O responder a uma pergunta que raras vezes é feita. Uma resposta pacífica para um gesto tantas vezes agressivo, se não físico, certamente mental e emocional. A artista explica “Don’t touch my hair / When it’s the feelings I wear”. Nada parece faltar a Solange. E nós sentamo-nos à mesa para pensar e lutar com ela. Também em 2016, a ginasta olímpica Gabby Douglas foi criticada, sobretudo na comunidade afro-americana, pelo seu cabelo que, segundo os comentadores, se apresentou desleixado durante as competições. Gabby, uma jovem adulta digna de admiração, cedeu naturalmente perante tais reacções, quando deveria estar feliz, a celebrar a sua prestação e a medalha de ouro, a primeira ganha por uma afro-americana naquela categoria. Início de 2018: uma mulher de nome Essie Grundy processa a cadeia de supermercados Walmart por suposta segregação de produtos de cabelo e pele destinados à comunidade afro-americana, guardados a chave num armário, como em Portugal vemos tantas vezes com produtos não conotados racialmente, mas que talvez tenham mais tendência a serem alvo de furtos, como artigos de higiene pessoal. Se ando por livrarias ou supermercados, por todo o lado encontro Becoming, de Michelle Obama. A internet delira e ergue as mãos ao céu em júbilo pela sua cabeleira, em estreia natural e encaracolada na capa da revista Essence. Não foi assim há tanto tempo que os Obama deixaram a Casa Branca e o levantar de sobrancelhas que as tranças das suas descendentes causaram. Não foi assim há tanto tempo que, de Beyoncé, ouvimos “I like my baby heir with baby hair and afros.” E se 2016 parece ter sido um dos anos capilares de maior relevo, a uma fotografia de Barack, de cabeça baixa, permitindo a um menino que lhe tocasse no cabelo para descobrir se seria igual ao seu, o devemos. Sou fã de Michelle, mas pergunto: porque é que o cabelo encaracolado não agraciou antes a capa da sua biografia, em vez da revista, e se manteve politicamente correcto, já depois da presidência? Talvez o mundo deva mais a Michelle do que o contrário. Talvez Michelle guarde o seu cabelo natural para a intimidade; talvez tenha sido este o seu sacrifício. Os Egípcios deixavam crescer o cabelo enquanto viajavam. Talvez Michelle, não tendo ainda chegado ao fim da viagem, apenas agora tenha conseguido fazer uma pausa para pensar. Talvez a sua pequena evolução pessoal e capilar ainda venha a tempo de ser uma revolução, talvez ela não seja o seu cabelo (bem, não mais do que qualquer um de nós, pelo menos) e estejam certas as culturas que acreditam que o cabelo é uma das moradas da alma e também o estejam as primeiras-damas que se protegem atrás dele. Talvez este experimentar constante, numa altura em que toda a gente se policia, seja apenas mais uma forma de aprendermos a suportar o nosso próprio peso.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasOs matreiros a ladrar e a banca a miar [dropcap]N[/dropcap]a Primavera de 2010, o deputado Ricardo Rodrigues desempenhou o papel de Luísa Vilaça, a personagem que Eça criou no seu conto, As singularidades de uma rapariga loura. Se nos lembrarmos, Luísa perdeu o seu Macário e o prometido casamento apenas por ter roubado um simples anel. Tentações. O deputado do PS não perdeu na altura qualquer Macário, mas, desagradado com as perguntas de um jornalista da revista ‘Sábado’ que o entrevistava, não fez por menos: fanou-lhe o gravador e, uns dias depois, decidiu avançar com uma conferência de imprensa em plena Assembleia da República (sem direito a perguntas) para explicar o inexplicável. Não sei por que razão retive este caso na minha memória, até porque existem outros muito mais sonantes que desfilam diante de nós, todos os dias, sem que dêem origem a grandes brados. O descalabro da banca em Portugal vale bem mais do que um anel ou do que dois gravadores digitais. Mas a memória tende a reter o frugal e não o essencial. Talvez porque o frugal pode ser sempre metáfora do essencial (porventura será essa a explicação: o apego às metáforas e a outros tropos como modo eficaz de compreender coisas incompreensíveis). Mas vejamos: na escala dos milhares de milhões, os roubos à nossa carteira, só na última década, são de tal monta que é difícil explaná-los através da ciência dos números: o caso BES pode chegar aos nove, o BPN aos sete, o BANIF aos três, sem falar do BPP e dos quase cinco que a Caixa recebeu há não muito tempo. São mais de vinte milhares de milhões, calhando a cada português… (é fazer as contas como no-lo ensinou Guterres nos idos de 1995). E há fontes bem informadas – e impregnadas da linguagem técnica do ‘econometrês’ – que interpelam estes números, jurando que eles estão num forno muito aquecido a expandirem-se no dia-a-dia. Não se sabe até onde. Por vezes, os balões rebentam. E um bom soufflé de garoupa também. Comparado com esta catedral numérica, o roubo de Tancos é uma capelinha simbólica que está mais perto da escala das cleptomanias de Luísa Vilaça e de Ricardo Rodrigues do que da unha afiada dos banqueiros (que se safam sempre com recursos, cauções, pulseiras encantadas e a p. q. os p.). Mas o desvio de Tancos não deixa de tocar num nervo particularmente sensível (a ideia ‘cada vez mais abstracta’ de defesa), ainda que o caso se tenha explicado a si próprio, através de uma mera futebolização: afinal, tudo se resumiria a uma polícia a jogar contra a outra, sendo que esse ensejo (ficcionalmente delicioso e sem árbitro nem VAR) tendesse a encobrir o fundamental: quem foi o autor do roubo? Quem colocou, neste especioso acontecimento, a máscara da loura Luísa Vilaça? A pergunta faz-me escutar umas vozes ao longe. Um bruá metafísico. A memória é realmente um ardil que teima em nunca nos explicar por que raio se lembra de umas coisas e não de outras. Mas estas vozes chegam-me de longe e estão bem vivas: “- Romeiro! Romeiro!… Quem és tu?”. “- Ninguém.”. Garrett sabia do que falava no seu ‘Frei Luís de Sousa’. Repare-se que a figura do romeiro pertence a uma espécie de limbo: ele não é nem um vivo que regressa a Almada, nem é um morto que teria desaparecido de vez no norte de África. O romeiro é sobretudo um ‘zombie’ particularmente actual: uma personagem ínvia e difícil de definir, de encontrar, de acusar. Ele que é a causa de tudo e que, ao mesmo tempo, é um ninguém, uma ausência, um nada. Ao fim e ao cabo, o pobre romeiro representa aquilo para o qual não há resposta, nem explicação. Tanto pode corresponder a alguém que foi trocado por outrem, como pode corresponder a alguém a quem a identidade foi retirada. O povo há muito que aprendeu a caracterizar a diferença entre roubar com espalhafato e desviar com circunspecção. No primeiro caso temos os ladrões inspirados na vozearia dos canídeos, no segundo caso temos os gatunos inspirados na elegância dos gatos. Larápios como Ricardo Rodrigues e Luísa Vilaça pertencem à primeira categoria. Os ‘donos disto tudo’ pertencem à segunda categoria. Os salteadores de pólvora que acorreram a Tancos não conseguem pertencer nem a uma nem a outra. Preferem ser o lado paródico desse ‘ninguém’ que Garrett pintou com sede de tragédia. Arrisco mesmo a dizer que esses secretos salteadores de armas perdidas são quem melhor sintoniza com esta ‘coisa’ de ser português: querer fazer muito a sério aquilo que se transforma sempre numa irreparável ‘opera buffa’.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasFragmentos de um discurso qualquer Horta Seca, Lisboa, 24 Novembro [dropcap]N[/dropcap]ão preciso do fim do ano. A obrigação destas linhas abre, a cada semana, espaço de avaliação, tantas vezes cruel, ou pelo menos, frio que nem mármore como devem ser as ditas, bases de autópsia. Outras vezes, são mesmo as circunstâncias que a isso me obrigam, mãos forçando cabeça, a ver o feito, o desfeito, o prometido, que será sempre devido. Circulou, há pouco, pedaço de entrevista do Orson Welles – vaya huevos – no qual falava do artista que era, incapaz de sacrificar a amizade em nome da arte. O mais importante não é arte, ainda que por ela morra. Isso não disse, mas pro falta de tempo. Valorizava muito aqueles artistas que o faziam, mas no seu caso, não conseguia – silêncio – ser profissional. Ele ia sendo – silêncio – aventureiro. Se fosse arte, o que faço nos intervalos do que vou sendo, seria mais aventureiro do que profissional. E tal não se encontra contaminado pelo romantismo. Nalguns momentos, o que de nós enfrentados na perspectiva espelhada dos autores ganha a carne da dor. O editor-aventureiro está sempre a falhar, algures e com alguém. E o ano foi pródigo em falhanços, alguns tão rotundos que estou capaz de por eles me apaixonar. Horta Seca, Lisboa, 25 Novembro A Lua empurra outra maré e nela marulham páginas e mais páginas a exigir leituras. Alguns textos, com e sem encontros, fazem esquecer o lápis do carpinteirar, despertando logo o leitor, alegrando-o, erguendo-o, sustentando-o até. Metade do meu dia devia ser desta matéria e não de outras. Esta põe-me nas nuvens, as outras atrasam-me, deslassam-me, esmagam-me. Horta Seca, Lisboa, 25 Novembro De súbito e à mesa, um, dois, três projectos. Pressinto sol além do nevoeiro, matinal o dia inteiro. Este, sendo pessoal, talvez me obrigue a escapadela pela criação, tão maltratada. Serei capaz? Aquele, colectivo, colado à poesia, ainda para mais, permite ensaiar a ideia de editora como plataforma de, dizendo com corpos e vocações envolvidos, empresas. Venceremos as oposições que se alevantam? Estoutro, em colaboração estreita, pode satisfazer necessidades e, talvez, trazer algum proveito. Saltaremos os obstáculos? Estou nas nuvens. Até que a chuva me doa. Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro Tenho nas mãos, e não deixo de o manusear, o segundo volume das Obras Completas da Fernanda Botelho, «A Gata e a Fábula», um dos notáveis e dolorosos atrasos do ano que finda, quando me apetecia esmagá-lo – vã tentativa de o mudar. Dói a demora no que afecta das vidas vividas da Joana [Botelho] e da Paula [Morão]. Adiante: outro romance ímpar, pano de fundo intenso e colorido para as deambulações de mão-cheia de belas personagens, esculpidas em carne e osso. Alguns fragmentos iluminam-se peças de teatro, outros desafazem-se em guião de filme ou composição de quadro modernista, ou seja, o romance acontece em todo o seu esplendor e potência. Com extrema subtileza, somos transportados no tempo, em direcção aos encontros e desencontros que nos fazem ser isto ou aquilo, de uma maneira ou de outra. Também o podemos visitar como museu próximo, mas cada um vai onde quer. As plantas carnudas e carnívoras da capa da Maria João Carvalho florescem em luxuriante e (pictórica) metáfora, ou seja, evocação [algures na página]. Horta Seca, Lisboa, 27 Novembro Cedo, recebo a versão paginada do desafiante «Pensar o Trágico», do José Pedro [Serra]. Que gosto, confirmo, o uso cortante que se faz do incandescente adjectivo! O bom gosto de salão rejeita-o liminarmente, na vã espectativa de fazer bolos sem açúcar. A metáfora é propositada, pois a crítica principal está no efeito meloso. Contudo, não há por aqui pântano, antes floresta de lâminas. Interessa-me o assunto, muito por causa deste regresso dos palcos lisboetas ao clássico, que me entusiasma, mas não sei explicar. O destino na mão? O fim do mundo? Está sempre a acontecer em versão Parque Mayer, não será por aí. Para já, estou concentrado na gestão das notas de rodapé, na transcrição do grego, no cultivo dos índices, etecetera. Assim vença eu a tentação do texto, sem o lápis de carpinteiro, cuja ovalidade só se afia com canivete: «A pergunta sobre a tragédia e o trágico é também pujante porque é vital revisitação, cultura sobre cultura debruçada, arriscado olhar incandescente e interessado sobre o nosso destino de seres históricos. Nessa imensa pujança reside também a sua urgência.» Horta Seca, Lisboa, 26 Novembro Na revista Mercurio de Novembro, Diego Doncel, inclui Valério Romão, e o seu tríptico Paternidades Falhadas, nas Voces de la Nueva Novela: «Precisamente en la Francia de la emigración portuguesa nació Valério Romão. Su trilogíaPaternidades falhadas es una de las empresas narrativas más solventes de la última generación. En Cair para dentro (Abysmo) el tema del Alzheimer le sirve para tratar precisamente los sueños, antes y después de la Revolución, fallidos o equivocados, las esperanzas que murieron al mismo tiempo que la política se hacía solo formalmente más democrática. Hay que llamar la atención sobre el recurso narrativo del fragmento que indica el mundo disociado de la enfermedad y el mundo disociado de un país que pulveriza su propia memoria». Curiosa, esta leitura do fragmento como elemento estruturante. E pulverizador da memória. Folgo em constatar que se vai descobrindo o músculo desta escrita, apesar da desatenção – ou será preconceito? – de um certo bom gosto de salão que teima em exclui-lo das comitivas nacionais. Se, por um lado, resulta desagradável comentarmos listas e nomes, por outro, parece de elementar justiça e mínima transparência que sejam públicos os critérios das escolhas. Nem que seja para confirmar o óbvio, a rimada combinação de mediatismo e amiguismo. Horta Seca, Lisboa, 30 Novembro Pela primeira vez, somos visitados pela ASAE, em inspecção de rotina e prevenção em torno do branqueamento de capitais. Pensei e não disse: nesta cave nem os dentes se branqueiam quanto mais capitais. As inspectoras cumpriram a sua missão didáctica, constatando o amarelo sorriso face à ameaça dos crachás policiais, logo percebendo que a arte, por aqui, tem que acumular absurdos para ultrapassar o limite dos mil euros em dinheiro vivo, quanto mais o dos 15 mil que obriga à burocracia. Conferiram a facturação, pelo que ainda nos rimos juntos: o dinheiro aqui está morto. E tal fragmento não se encontra contaminado pelo romantismo. Santa Bárbara, Lisboa, 1 Dezembro Atentemos no título, «Tiempo que Dura esta Claridad» (no colófon, corrige para Soledad, pois o autor adora saudade), que explica muito deste álbum que me puxou ao passado, para logo me atirar ao futuro. O cansaço de ser reside todo no tempo, areia a meter-se por todo o lado, nas dobras da pele, nas margens dos livros, na saliva, nos olhos. Esta banda desenhada vem de um momento em que acreditei, quando revistas se erguiam cidade, amizade e tantas rimas: Madriz, Médios Revueltos. Trata-se da antologia de histórias curtas/fragmentos do querido e pessoano Federico [Del Barrio], de mão dada com os evanescentes argumentos de Elisa Gálvez (ed. Reino de Cordelia). Nenhum autor pratica, como ele, o intenso jogo do não dito, o mais solto dos horizontes para a novela gráfica. O branco a ser preenchido pelo leitor, a matar a narrativa, a desmultiplicar a poesia, cada qual interrogando-se ou crescendo no espaço entre os quadradinhos. E depois, quem como ele, pôs gato a pensar abstracto, como eles a traduzir o mundo em pintura?
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasO triste aroma a realidade [dropcap]E[/dropcap] logo de início uma confissão: pensei muito antes de escrever esta crónica. Não é que não tenha pensado as anteriores, pelo contrário; mas à medida que o tema ia ganhando força e relevância na minha cabeça comecei a duvidar da sua importância. Que quem defendeu valores mais abstractos e ideias mais literárias sobre o que o rodeia iria rebaixar-se a um assunto pequeno – vil, até. Que quem escreve sobre os dias apoiado desavergonhadamente nas muletas de grandes autores estaria a vender-se barato a uma vulgaridade desnecessária (como se alguma fosse essencial). E o mais importante: dada a natureza da conversa, ninguém iria ler. Mas o cronista é um espelho, mesmo que distorcido. Reflecte como pode e sabe o que está à sua volta e nem sempre isso é grandioso, como hoje é o caso. E é assim que esta crónica consegue juntar Natal, crianças, vida e flatulência. Leu bem, magnânimo leitor (ou leitora, para cumprir o clima dos tempos). Se a partir daqui não quiser prosseguir a viagem, creia que compreendo. Eu próprio, como disse, cheguei aqui vindo de um território indesejado. Mas quem quiser acompanhar os meus passos depressa perceberá onde quero chegar. Ao que interessa, então. A aventura começou por causa da quadra natalícia, onde paradoxalmente aquela que em princípio deveria ser uma época de união, fraternidade e olhar para o outro é na verdade o apogeu estatístico de utilização de ansiolíticos e tentativas de suicídio. O stress induzido pelo consumo é enorme e sofre quem nem sequer o pode ter. Mas gosto do Natal, mesmo assim. E há as crianças, destinatárias óbvias e prioritárias de todos os nossos esforços. Assim sendo, e mesmo apesar dos meus filhos serem já jovens adultos, mantenho-me atento ao que a criançada deseja. Tendo como amigos casais com filhos pequenos gosto de lhes perguntar o que está na moda, que caprichos os filhos lhes exigem. Infelizmente é muito raro que seja uma boa edição da Divina Comédia de Dante ou até a Lírica do nosso Camões (brinco: mal seria se fosse). Não: o que a miudagem quer, descobri eu, é uma série de bonecada chamada Reis dos Puns – The Fartist Club. Eu sei, continuem comigo, por favor. Trata-se de quatro bonecos, apresentados de forma majestosa pela publicidade como “os mestres dos puns!” e cujo atributo é, garantem-nos, apresentarem “puns personalizados”. Nem vou comentar a misteriosa razão pela qual se deve pagar por aquilo que qualquer um pode ter de graça, ou seja a “personalização”. Mas interessou-me a tendência escatológica e reparei que há mais: apresento-vos os Flush Force Flushies, pequenas réplicas de sanitas a que se junta água para ver aparecer criaturinhas no fundo e que, oh maravilhosa ideia!, são coleccionáveis. Há sanitas de todas as cores e tamanhos, kits de luxo e tutoriais no YouTube. E não esqueçamos – aliás, como esquecer? – o engraçadíssimo jogo Agarra o Cocó! (juro), em que os miúdos são desafiados a “sentar o senhor Cocó”. Estes são, em suma, os brinquedos em voga neste Ano da Graça de 2018. Antes que me apodem de pedante e reaccionário (epítetos que neste caso específico aceitaria com gosto) deixem que vos diga que de certa forma até compreendo. O chamado humor de casa de banho vem de tempos imemoriais e foi utilizado por sumidades como Aristófanes, Dante, Shakespeare ou James Joyce. O enorme Jonathan Swift escreveu mesmo um panfleto sob o título The Benefit of Farting (escuso-me à tradução). Não é por aí: o que me parece – e posso estar enganado – é que numa sociedade onde parar para pensar começa a não ser possível, infantilizar os infantis (e os seus pais, por inerência de funções) pelo menor denominador comum é um passo previsível. Entre rir das funções corporais ou ser doutrinado sobre o que se pode ou não dizer para não “ofender” a distância é muito pequena. Nada temais, no entanto; a realidade venceu. Acaba de me chegar às mãos um panfleto sobre um novo jogo de tabuleiro português para crianças a partir dos dez anos. É uma variação mais sorridente do velho Monopólio e tem empréstimos, negócios, dívidas, e recebimentos ao final do mês. Chama-se Paga e Cala. E não: quem me dera que estivesse a brincar.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUm candeeiro [dropcap]À[/dropcap]s vezes aparecem-me objectos que não via há muito tempo. Tinha um candeeiro dos anos oitenta. Era verde, de metal, para lâmpadas gordas. Estava sempre com a base coberta de pó. Tinha um botão preto. Tenha de ser fazer força para o pressionar, ligar e desligar. Fui tendo candeeiros depois. Não sei o que tinha sido feito dele. Não lhe tinha nenhum apego especial. Mas fora o meu companheiro de muitas madrugadas. Quando de noite, só estudei de inverno. Nunca até muito tarde. Mas de manhã, sim. E é noite durante muito tempo das cinco da manhã até que pudesse ler à luz do dia. O meu candeeiro verde dava-me luz. Continuava sempre na secretária. Quando não dá luz, o candeeiro enfeita a secretária. Não via há décadas o meu candeeiro verde. Fora um companheiro de jornadas longas, dias e dias, meses e meses e anos. Apareceu numa caixa, onde tinha sido arrumado com outros objectos. Sei agora onde tinha estado todos estes anos. Estava numa caixa na prateleira de uma marquise de casa pequena, que serve de arrumação. Mas o que lhe aconteceu durante o tempo em que esteve guardado, escondido, com o paradeiro incerto. Não andei à procura dele, mas agora que me aparece, como é possível mergulhar-se no desaparecimento velhos companheiros de jornada. Ele não vem só. É um portal, um médium, faz-me entrar em transe, catapulta-me para um outro espaço, uma outra casa, o meu quarto de jovem, partilhado com o irmão. Não me transporta apenas de uma rua para outra rua próxima de Alcântara. Faz ressuscitar madrugadas de leitura até que nascesse o dia, os serões das vésperas com todos vivinhos. Leva-me ao princípio dos tempos. Não à infância, mas quando ainda havia os primeiros começos do princípio. Aqui e agora, enfiado e arrumado nesta caixa, o candeeiro dá-me uma outra luz que se projecta para o passado para onde me transporta. Desaparece do sítio onde se encontra. Desmaterializa-se. Desaparece a caixa, a marquise, esta casa, nesta rua, neste tempo. A porta da percepção fecha-se. Abre-se a porta do passado. Materializa-se naquele quarto, daquela casa, naquele tempo. Ressuscitam os vivos daquele tempo que o viram e que ele iluminou na escuridão, os que eram da casa e os que não eram da casa, materializam-se os livros, móveis, cadeira e secretária, a cama da juventude, a guitarra e o amplificador. E eu também encarno o olhar estranho e duplo de mim aqui e agora e de mim lá, naquela altura. Será que este meu olhar fantástico já estava a fazer-se sentir naquele tempo, ainda que com um intervalo de mais de trinta anos. Contudo, eu não sei bem por que fui buscar aquele candeeiro verde que vi não sei bem onde, em que caixa de que marquise de que casa. Mas aparece-me sempre, vezes sem conta, como se fosse uma lembrança de um símbolo, o portal que nos transporta e faz viajar para outros tempos, já cancelados, para outros já partidos, para nós tubulares e conectados connosco agora, mas perdidos no espaço da ficção.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAs opiniões são piores que os coelhos [dropcap]A[/dropcap] conversa acerca do declínio do jornalismo ultrapassa largamente as nossas fronteiras. Um pouco por toda a parte organizam-se conferências, debates e outros e mil e um enclaves nos quais se revezam no púlpito os profetas do apocalipse, os médicos-legistas e os coveiros. Numa coisa, pelo menos, parecem todos de acordo: o jornalismo de investigação, tal como o conhecemos, está morto. Divergem quanto às causas de morte. Uns apontam o dedo ao aparecimento da Internet, dos motores de busca e das redes sociais, que sorvem a fatia do bolo publicitário que antes alimentava a rotativa, outros ensaiam um mea culpa através do qual tentam arregimentar apoios e adeptos: o jornalismo, para estes, definhou porque o mantra economicista se sobrepôs com tal peso às directivas capazes de estabelecer uma linha entre o bom e o mau jornalismo que tudo acabou por ficar nivelado por baixo; os bons jornais ficaram maus e os maus ficaram piores. A verdade é que ainda estamos demasiado próximos do epicentro da batalha para lhe ver claramente os contornos. Uma coisa é certa, no entanto: independentemente do desfecho, nada será como dantes. Além das fake news, contendo em si o poder e perigo tremendos de se tornarem o Pedro e o Lobo capaz de cravar o último prego no caixão do defunto, existem motivos mais discretos para que o jornalismo se tenha tornado uma espécie de activo tóxico. A Internet teve o condão de despertar uma consciência colectiva cujo modo de funcionamento está longe de ser claro. A imediatez do meio tem tendência a despertar no humano a tentação da resposta pronta. Bem vistas as coisas, isto não é nada de novo. A recompensa que advém da prontidão é imediata. A reflexão é um desporto de fundo; leva tempo, requer ponderação, calma e tempo. É muito mais exigente no trabalho a que obriga e proporciona uma satisfação desfasada do tempo em que se dá. A velocidade a que os assuntos se sucedem dificulta a nitidez necessária para dirimir aquilo que importa daquilo que é puramente acessório. A indignação resultante da morte de um gato por atropelamento pode ser idêntica aquela que advém das atrocidades cometidas num cenário de guerra. Noutra coisa são idênticas: no tempo que duram. São indignações a prazo, reacções cuja intensidade é inversamente proporcional ao tempo e à profundidade a que a elas nos dedicamos. Estamos muito mais focados na sucessão das coisas no mundo do que nas coisas que compõem essa sucessão. É uma corrida de velocidade na qual só fugazmente temos uma ideia de quem é quem na procissão interminável dos assuntos. A Internet tem o condão de nos confundir tanto como de nos reassegurar. Por um lado, tudo acontece a uma velocidade para a qual não fomos obviamente treinados – e alguma poderemos sê-lo? E não estaremos a ver a coisa ao contrário? Não seria mais profícuo para todos desacelerar o mundo? Por outra parte, se tudo está a acontecer e nada nos prende a atenção mais do que umas míseras horas, não se poderá dar o caso de não estar a acontecer nada de importante, de facto? E mesmo que esteja, que posso eu fazer? Há uma tremenda desproporcionalidade entre a quantidade de coisas que me são dadas a ver e o meu limitadíssimo poder de intervenção sobre elas. Parece inclusive uma metáfora de um putativo inferno: o mundo existe, acontece e afecta-me; mas, por mais que me esforce, a minha capacidade de o afectar é praticamente nula. Uma linha de montagem de frustrados e neuróticos. Se o jornalismo é só a vertente informativa, puramente informativa, não tem préstimo social. As notícias, a existirem, devem ser capazes de modificar a realidade. Notícias de corrupção devem originar processos e demissões. Notícias de guerra mandam que a sociedade se mobilize de algum modo. Notícias de abusos de direitos humanos devem provocar reacções de censura a vários níveis. Muito pouco disto está a acontecer. A relatividade instala-se, muito por via da democratização falaciosa da opinião: à liberdade opinativa não corresponde a equivalência valorativa das opiniões. Estamos num caminho muito perigoso. O nosso farol, neste momento, é a irrelevância generalizada.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasCoitado do Zé [dropcap]S[/dropcap]e eu quisesse podia ter tido um caso com Ângela Molina, ela é que não quis. Foi D. Luis, Grande de Espanha e olho de goraz, quem fez de Ângela Molina a Ângela Molina que ainda hoje é. Há-de tê-la medido de cima a baixo com a licença que a idade autoriza, e, embora correndo a desabrida década de 70 a pintainha nem deve ter piado, a despeito dos seus 22 aninhos e de uma natural propensão para o atrevimento. Este Luís, não haja equívocos, é o Buñuel, impenitente e originário surrealista, entomólogo dedicado à observação dessa espécie superior e arbitrária de insecto que é o humano, blasfemo para com a igreja, sacrílego para com as formas narrativas. Um “monstro” como em Espanha se diz dos toureiros de cartel, ou um “monstro” como à portuguesa resmunga quem se benze em face de um iconoclasta. Convencido com o que viu, Buñuel elencou Molina para a metade temperamental e selénica da personagem Conchita, guardando para Carole Bouquet a personificação do seu hemisfério luminoso e plácido. Porque assim e não doutra maneira é que o realizador achou bem, Conchita enverga por conseguinte duas actrizes, fazendo-o sem explicações nem causas, só com o efeito de confundir o espectador mais submisso – ou seja, todos nós – à unicidade entre actor e personagem. Este foi o último e obscuro objecto de desejo que Buñuel filmaria, nos idos de 1977, não admira que quisesse lá saber das regras. 15 anos depois, já éramos todos crescidos e Buñuel defunto, incumbiram-me de pajear Ângela Molina ida e volta de Seteais a Lisboa, convidada pela Cinemateca a confirmar em público que a famosa Ângela Molina não era de facto estrela, mas esplêndida lua que empalidece as estrelas do céu. Ela não arribara ao acaso ou de veraneio ao Monte da Lua, mas viera porque aceitara o papel de cara-metade de Jorge, esse coitado (e coitados de nós, que mal se viu o filme do homónimo Silva Melo, vítima das funestas bolandas da distribuição do cinema português.) Felizmente a memória atraiçoa, de modo que esqueci quem no percurso de regresso ao hotel propôs passarmos juntos parte do dia seguinte em que ela estaria de folga. (Eu? Não me reconheço assim temerário. Ela? A que propósito convidaria aquele galito entufado?) Toda essa auspiciosa tarde de Sábado nunca saímos da suite do hotel e pouco conversámos, discorrendo-a em livre intimidade. Angela Molina folheava revistas, mesmo as que estampavam mais texto do que fotografias, fumava com desprendimento charros do calibre de círios e sem se distrair com a televisão a cintilar de som desligado, olhava longamente para o ar, abandonada no sofá de robe acetinado e estampado como de gueixa, num torpor de felino saciado. Acomodei-me, portanto, a contemplar os seus vagares, apreciando-lhe o corpo – tão próximo que se tentasse poderia tocá-lo – sem a impostura da discrição, pois percebi que estar atento e ser atencioso era a parte que me competia. Porque o silêncio é austero ela queria que eu lhe fosse contando coisas interessantes sem serem controversas, de certo modo que a seduzisse, mas sem esforço ou tensão. Não era entretenimento que me pedia como se pede a um galante ou apaixonado, mas a oportunidade de por uma tarde se libertar da obrigação de ser Angela Molina, a vedeta a quem é devida deferência à qual ela se vê compelida a corresponder. Interroguei-me se não estaria a fazer de mim um marido putativo. Se acalentasse alguma expectativa ou mesmo ilusão de que algo de fantasioso pudesse suceder, um repente que eclodisse da ordem do palpitante e secreto, esta sensação de marasmo doméstico que ela de mim desfrutou foi-me desenganando. Com uma certa regularidade Ângela Molina recaía na figura de Ângela Molina e desanuviava o desapego em que a tarde se consumia apoquentando o room service com caprichos ou minudências. Nada de excêntrico e trabalhoso, apenas para conferir que da porta da suite para fora ainda angariava estatuto de VIP. Angela Molina era toda sexo, mas só de pele. Quando numa brevíssima sortida fomos às queijadas, que eu lhe havia elogiado como uma das delicadezas da vila, pôs um vestido leve com um decote que não mostrava nada e dizia tudo. Cabeças viraram-se nas ruas húmidas de Sintra à sua passagem, não porque a reconhecessem mas porque pressentiram que aquela mulher exibia algum significado indecifrável e queriam ver o resto. Ângela Molina foi a única pessoa com quem deparei – ai de mim, falho de mundo… – que na vida só tinha de ser ela própria. Isto é uma propriedade e uma limitação e conforta-me imaginar que por uma tarde contribuí para aliviar fardo tão pesado. Dei-me à veleidade de semanas depois telefonar um par de vezes para Madrid. Atendia a governanta. Lembrava-se lá Angela Molina daquele pedaço de nada.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasEmigração via Macau e Hong Kong [dropcap]M[/dropcap]acau vivia um longo período de estagnação já desde os anos 40 do século XVII devido à perda do comércio com o Japão, o que originou um declínio económico, de miséria e com períodos esporádicos de maior abastança, até meados do século XIX, segundo Ana Maria Amaro, que refere, “De 1851 a 1874, Macau registou, novamente, um notável surto económico com o tráfico dos cules, que levou certas famílias a reatar os antigos hábitos de luxo e de ostentação. Este surto económico, embora de curta duração, aliado à afluência e refugiados chineses, deram lugar a forte pressão demográfica, que levou à urbanização de parte da área do Campo.” Victor F. S. Sit adita, “Só entre 1847 e 1874 embarcaram mais de 200 mil cules através de Macau. O número de agências estrangeiras sediadas em Macau envolvidas no tráfico de cules aumentou de uma meia dúzia que existiam em 1850 para mais de 300 em 1873. Nesta data, 30 a 40 mil homens, ou seja metade da população de Macau, estava directa ou indirectamente envolvida neste comércio. Dos cules embarcados em Macau 95% foram enviados para Cuba [sob domínio espanhol] e Peru [já independente]. Uma vez que o preço médio de um cule era de 70 patacas, estima-se que Macau terá ganho cerca de 200 mil patacas por ano no tráfico de cules, cinco vezes mais que o rendimento anual das taxas alfandegárias, antes de 1845. Nos locais de destino, os cules eram simplesmente tratados como escravos. A taxa de mortalidade dos cules a caminho de Cuba ou do Peru era cerca de 35%. Os locais de acolhimento dos cules concentravam-se no Beco da Felicidade, Pátio dos Cules, Rua de Santo António e Rua de Pedro Nolasco da Silva. Só em 1895 foi definitivamente encerrada a maior casa de acolhimento de cules (Heshengji).” Emigração por contrato “Em Macau foram os próprios chineses – conhecidos localmente por corretores – que descobriram a lucrativa actividade de contratar os seus irmãos do continente, atraindo-os ao entreposto português. Era comum virem por gosto, mas o problema do voluntariado era secundário, porque surgiram logo inúmeras formas de o contornar, combinando a credulidade de uns com a astúcia e a violência de outros. Redes de intermediários (…) diluíam-se entre a numerosa população da cidade de modo que, apesar de crescer a imoralidade, não estavam criadas estruturas específicas capazes de a reprimir. O ambiente cerrava-se, feio, à volta deste tráfego, cada vez menos defensável, mais distante da contratação de colonos e mais próximo da escravatura”, segundo Beatriz Basto da Silva (BBS). Em Macau, a primeira emigração por contrato ocorreu em 1851 e os primeiros engajadores desses colonos chineses foram dois franceses, Guillon e Durand. Aí embarcaram os 813 cules com destina a Cuba em dois barcos ingleses. “Seguiu-lhes o exemplo o negociante macaísta José Vicente Caetano Jorge, que transportou no seu navio 250 cules para Callao de Lima, sendo contratados para trabalhar por 8 anos com o soldo mensal de 4 patacas”, segundo Manuel Teixeira (MT). Legislar contra os abusos “Até 1851, esta emigração continuou sem conhecimento oficial das autoridades e segundo a maneira determinada pelo contratante. O Governador Isidoro Francisco Guimarães [Visconde da Praia Grande] julgou seu dever intervir, determinando, por portaria de 12 de Setembro de 1853, que os engajadores declarassem o local dos barracões ou depósitos onde recebiam os cules antes de os embarcar e o seu número, devendo os regulamentos desses depósitos ser de antemão submetidos à aprovação do Governo: a inspecção sanitária ficava a cargo do cirurgião-mor, devendo os doentes ser tratados em lugar separado; ao capitão do porto de Macau cumpria visitar os navios para examinar as acomodações, os mantimentos e a aguada. Dados os enormes lucros deste tráfico, surgiu a competição entre os agentes, que se rodearam de corretores, ou seja, chineses que se internavam pelo interior do império a aliciar emigrantes. Os corretores, na ânsia de aumentar a sua remuneração, iludiam frequentemente os pobres chineses com promessas falazes, forçando-os moralmente a emigrar”, segundo MT. Em Novembro de 1855, o Governador Guimarães publicou uma portaria onde “determinava que todos os contratos entre esses emigrantes e os agentes da emigração fossem registados na Procuratura dos Negócios Sínicos” e o procurador até à véspera dos embarques ficava obrigado a visitar os depósitos (barracões) dos colonos, para se informar, se algum chinês fora iludido ou forçado a embarcar contra a sua vontade. Caso deparasse com algum relutante, devia mandá-lo repatriar imediatamente. Como este regulamento guardava silêncio sobre os corretores, estes continuaram a aliciar impunemente os chineses e por isso, segundo BBS em “Junho de 1856, apareceu novo regulamento procurando refrear os corretores: estes deveriam obter da Procuratura uma licença anual, depositando 200 patacas de fiança; pagariam 100 patacas de multa quando se tornassem criminosos de coação ou engano para com os emigrantes ou quando recusassem repatriar os que fossem rejeitados pela autoridade ou pelos agentes.” Em 1856, de Macau saíram 2473 cules. Em HK até à II Guerra do Ópio “O Governo de Hong Kong proíbe [em 1854] gente e navios seus no transporte para as Ilhas Chincha (Peru), porque houve queixas. Mas consente para a Califórnia uma emigração pseudo-livre de corretores”, segundo BBS, que refere, “Não deixa de ser curiosa a cautelosa referência a acompanhar correspondência de John Browing, mencionando que a emigração via Hong Kong, de 1854 a 1855, era livre, não contratada!”. Com a proclamação pelos ingleses do Chinese Passengers Act em 30 de Junho de 1855, procurava-se assegurar o bem-estar e a liberdade dos emigrantes chineses. “A despeito deste decreto não ser estritamente cumprido pelos oficiais de Hong Kong, os mercadores de cules, sobretudo os agentes que recrutavam emigrantes para a América Latina, começaram a mudar-se de Hong Kong para Macau”, segundo Liu Cong e Leonor Seabra. “Em documentos apresentados ao Parlamento inglês em 1855 encontra-se uma estatística da emigração para o Peru, nos anos de 1843 a 1855, onde se vê que de 7356 emigrantes embarcados só 4754 chegaram ao seu destino, sendo mortos a bordo 349”, refere Andrade Corvo, mas BBS indica, de “1849 a 1854, foram embarcados de Cantão para o Peru 7356 cules e morreram 549 em viagem”. O negócio do tráfico de cules em HK ocorreu até 1856, quando o governo inglês, perante os protestos, criou leis e transferiu o problema para fora da sua jurisdição, proibindo o embarque desse porto. “Estas proibições eram levantadas em certas circunstâncias, desde que o capitão da viagem cumprisse com algumas regras severas, excepção que não deixou de ser largamente aproveitada. Na verdade, nunca houve respeito pelas proibições”, segundo Beatriz Basto da Silva que refere, “Em 1860 estimou-se que dos 4 mil cules desviados fraudulentamente, nenhum sobreviveu, tendo muitos procurado no suicídio a morte libertadora.”
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasJulieta na porta de saída [dropcap]L[/dropcap]idas ou ditas, as relações entre ficção e realidade são relações entre palavras. Palavras que semeiam imagens. Imagens que colamos a factos em polvorosa. Factos que, na maior parte das vezes, já perderam o seu entrecho próprio. Só no precipício do imediato essas relações fazem soar as suas turbinas. Talvez por isso mesmo, sejam turbulentas, difíceis de aplanar, de conter, de absorver. Ir a Verona visitar Julieta (“God knows when we shall meet again!”*) ou percorrer um romance e nele entrever uma espécie de ‘self-fulfilling prophecy’ são modos de viver esse tipo de relações como se elas irradiassem (ou forjassem) um fantasma de que não nos conseguimos dissociar. Entre ficção e realidade fluem fantasmas, mas esses fantasmas somos nós próprios. Olho para a porta do pátio e a sua efígie reaparece-me no lóbulo occipital, embora encadeada com outras portas – e com mil ciladas espontâneas cheias de mais e mais portas – que rememoro e conjecturo. A certa altura, o que vejo são maçanetas e batentes em forma de gnomo que não cabem nas palavras (como tudo o que é fundamental na vida). Não saberei nunca onde comecei a ficcionar e a deixar de ver ou onde comecei a ver e a deixar de ficcionar. Uma flutuação sem fim que fez estalar a intenção inicial que me levara até à porta do pátio para onde ainda não parei de olhar (Romeo: “I dreamt my lady came and found me dead”*). Por vezes, não é fácil entender que ‘ter os pés em terra’ não é uma coisa muito diferente de ‘andar sempre no ar’. Caracterizar a realidade é um pas de deux que tende amiúde a esconder o seu rosto inevitavelmente ficcional. Ao falarmos de realidade, falamos de uma foz tumultuosa onde desaguam episódios mutáveis, dando-nos a ilusão de movimento contínuo. Um cortejo com cordão umbilical, pois o mundo e todos nós vagueamos juntos e somos parte também dessa foz em constante deriva tectónica (e onde não há separação entre sujeitos e objectos). Derivar é rastrear todo o hemisfério com uma mão de carne e osso, de um lado, e com uma outra mão que é a desse fantasma que também sou eu, do outro. Se por acaso decidisse silenciar a palavra “realidade” e a palavra “ficção”, o que restaria era apenas a água da foz tumultuosa, bravia e revolta. Apesar de tudo isso, subo ao estrado com ligeireza, continuo a dar as minhas aulas e sei perfeitamente quem sou e que papel estou a desempenhar, ainda que, ao mesmo tempo, esteja a realmente voar. Realizo e ficciono: duas asas do mesmo voo. Todos voamos enquanto desempenhamos. Ser actor não é coisa do teatro. Se, um dia, os humanos se deram ao trabalho de inventar o teatro (Derrick de Kerckove dizia que foi para voltar a unir as pessoas que haviam sido afastadas pela invenção do alfabeto), foi justamente porque ele faz parte daquilo que somos de mais viral e autêntico. Num mesmo pasmo, somos percorridos por essa corrente de ar que nos faz ser autores, actores, partes de cenas quebradas, parcelas de actos que se reabrirão, didascálias solenes, quebrantos murmurados, encenações inteiras (“Juliet: O comfortable friar! where is my lord?/ I do remember well where I should be,/ And there I am. Where is my Romeo?*). Somos um corpo e um ser de tentáculos obscuros feito para construções do mundo que semeiam imagens. Imagens que colaremos a factos em alvoroço. Mas factos que logo se desenrolam e despegam do cardume das coisas vividas e desejadas. Avançamos e as passadas apagam o próprio avanço ficcional em que nos revemos. Sobrará a invisibilidade do espanto, talvez. Foi o que me aconteceu na semana passada. Vi-me atolado pelo espanto em estado puro, se é que isso existe. Eu explico: é no mínimo extravagante uma pessoa escrever um romance há duas décadas e, depois, a coisa tornar-se acontecimento (e, para mais, com um lastro verdadeiramente trágico e displicente pelo meio). Refiro-me ao aluimento da estrada entre Vila Viçosa e Borba, meu trilho de infâncias e de piqueniques na tapada real, mas também cenário do final do meu romance ‘A Falha’ (1998). Bem sei que no filme do João Mário Grilo (que adaptou o romance em 2002), a tragédia era ainda mais clara do que no romance. Confesso que, nos últimos dias, me senti a andar no ar com os pés ligeiramente em terra. Tal como escrevi no dia do desastre, nunca foi minha aptidão insuflar de realismo os meus romances. É coisa que não está em mim e quem me conhece sabe-o. No entanto, quando escrevi ‘A Falha’, tinha a consciência plena de que havia alguma verossimilhança na abordagem. E os factos comprovaram-no. Só no precipício do imediato, esta estranha relação entre realidade e ficção faz soar as suas turbinas, é verdade. Julieta bem podia ser o nome da porta que dá para o meu pátio que, como se sabe, não é em Verona mas sim em Lisboa. O meu pátio que, afinal, é um grande teatro que habita na minha cabeça e em mais lado nenhum (“Prince”: “(…) Came to this vault to die, and lie with Juliet.” (…) / “Montague: But I can give thee more:/ For I will raise her statue in pure gold;/ That while Verona by that name is known,/ There shall no figure at such rate be set/ As that of true and faithful Juliet”*). *Shakespeare, W.; Romeo and Juliet, Simon & Schuster (The Folger Shakespeare Library), Editors: Barbara A. Mowat and Paul Werstine; Washington D.C., 2011, pp. 57, 65 e 294-96.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasUm acto solitário [dropcap]A[/dropcap]terrei em Lisboa. Que amigos vou rever, que livros vou comprar – são sempre as questões que se impõem. Abro a mala em casa de familiares e antes de qualquer outro movimento os meus olhos embatem na lombada da última edição do tomo que reúne toda a poesia do Herberto Helder. Imediatamente me estico na cama, num relance sobre os últimos livros do poeta os Poemas Canhotos e A Morte sem Mestre, que faltam no meu volume, efeito de ser emigrante há década e meia. E relembro um texto que escrevi no Facebook em defesa do poeta: «Várias vezes escrevi sobre o Herberto, nenhuma bem. Também não será desta que melhorarei a minha performance. Porque não basta ter vontade e parafrasear o que nos escapa, nem isso traz consolo à evidência duma inteligência lacunar. Não admira que me espante o carácter peremptório do que leio. Rebato um texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto Helder, saído no I e replicado no seu blogue, crónica de execução, eivada de um tom com que não posso estar mais em desacordo. Não li ainda A Morte sem Mestre e, apesar da curiosidade, não sofro de ansiedade. Acho que quase todos os livros são dispensáveis e creio, com Robert Lowell, que foi um dia feliz para Satã quando Mallarmé declarou que o mundo cabia num livro. Isto deixa-me mais à vontade para dizer que acho impossível que Herberto tenha escrito um “mau” livro, um livro “desprovido de magia”. Há é vários tipos e graus de magia. Um homem envelhece e tem os gestos represos de quem é ultrapassado aos vinte metros por qualquer pintainho zarolho, percebendo finalmente que na sua retorta alquímica fabricou tinta dourada mas não ouro. E di-lo, com toda a honestidade que acarreta o seu verbo magnificado por um uso onde nunca defraudou. Agora, não é plausível que face à sua nova condição lhe exijam que repita o seu reportório ou que seja estanque à experiência de estar acossado pela morte. É um livro rude, direto? Sigamos a sugestão fonética que o remete para Le Marteau sans Maître, de René Char, para entender: desta vez, como um furibundo Nietzsche, o velho vate, resolveu ser intempestivo, fazer poesia à martelada. Golpe contra golpe, jogando contra a noite a insónia, contra a anestesia da sageza a ferocidade da dor. A mim parece-me uma indagação radical, da base e do cimo, uma forma de neutralizar a atracção dos ímanes, e depois vida é isso mesmo: mudança, sob um capitoso desprendimento. As três coisas que me entristecem no texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto: – que ele confunda tão precipitadamente a opinião com o conhecimento – esquecido de que lhe estão ainda vedados os cinquenta anos que o separam do vate e que as modulações inesperadas que a vida inocula na escrita, lhe desenganarão todas as teses; – depois, que, numa projecção algo heróica, exija ao livro que cumpra uma “via correcta” em vez de escutar no livro a sua respiração fanhosa, a materialidade com que é ali exposta uma particular vulnerabilidade; – por fim, o que no Diogo tem sido infelizmente recorrente, que olhe para o mundo a partir da perspectiva de um entomologista – altaneiro, superior, investido pela missão de manter a piolheira sob vigilância e à mercê da lente com que foca o «asco». Eis que o Herberto, coitado, sucumbiu a esta nova zona categorial – encontrou a sua “ascuidade”. Custa-me engolir que, ainda que o livro fosse menor (não sei, não o li), falte ao Diogo a sensibilidade para perceber que o Herberto não merecerá, aos oitenta e picos, que um jovem lhe cuspa na fronha que ele já não passa de um eunuco, de um ouro convertido em lata. Faltou talvez à sua leitura aquilo que, pelo que li sobre ele, é mato no livro: a humildade de reconhecer os limites, que não somos só urdidura, estilo, abstracção, distância, alquimia e acabamento, mas desequilíbrio, pathos, diarreia, carne viva, dor, inacabamento, e por isso palha demasiado humana. Detecta-se no seu texto, para além duma falta de urbanidade, uma ingratidão profunda, mesquinha. Não estará o livro à altura do estatuto do velho leão e do seu lugar na história da literatura? Talvez. Não li. Presumo que o Herberto se deixou de poses e depôs a máscara: é um ser falho e carecido de amor, como todos. E di-lo: até a merda da poesia o trai, a ele que tanto traiu em seu nome. Uma vez perguntaram ao Picasso o que faria se fosse metido na cadeia. Desenharia com a merda que fizesse, disse. Quem não tem cão caça com gato. O importante é o acto de caçar. Quando se fez isso toda a vida, capturar a presa ou não é irrelevante, o alvo é interior e não exterior. Daí que os arqueiros zen, nos seus exercícios, visassem alvos que se situavam a três metros de distância: o fito não era demonstrar a pontaria, mas tornar una a respiração e o acto. O que faria Picasso ao pintar com a própria merda, é o que faz Herberto ao escrever com os recursos que lhe são próprios à lucidez consentânea ao seu actual estado. A merda só dá castanho, mas a expressão no traço não faltaria ao Picasso e isso é que seria preciso captar e não acusá-lo de uniformidade cromática… ou do aroma. O Herberto foi sempre um dos nossos “homens dignos”. Isso merece decoro e nunca que o tomemos como objecto de repreensão e desdém. Nenhuma vaca é sagrada, mas a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur, acusando, imagine-se, o mar de entrar no Amazonas. O irónico é que, inadvertidamente, Diogo serviu o último intento do velho cisne: sacudir, aos 83 anos, o manto da unanimidade. O Herberto deve estar contentíssimo. E eu com ele.» O crítico não tinha razão, o livro do Herberto é um magnífico acto solitário.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasEu também [dropcap]“N[/dropcap]o outro dia chamaram-me bitch e eu sorri.” De cada vez que uma mulher nos conta algo assim existe, certamente e no mínimo, uma história semelhante que devemos partilhar. A geografia pode muito pouco contra o que vai no íntimo das gentes, e fronteiras, muros, géneros e espaços pessoais é fácil e conveniente, tantas vezes, ultrapassar. Muitas vezes não me lembro do que aconteceu. Quer dizer, não penso no que aconteceu, não me surge de repente ao cair a chuva ou ao ouvir uma canção. Sempre tive uma memória demasiado boa até para o meu próprio bem. Não do género fotográfico, pelo menos não completamente, não só: a memória das emoções, da roupa que trazia vestida, de uma ou outra frase que seria insignificante para a maioria das pessoas, mas que se cravou no meu inconsciente talvez para o resto da vida (as frases sim, essas surgem sempre que lhes apetece, não tenho qualquer controlo sobre elas). Isto é diferente, talvez seja o meu próprio corpo a repelir essa memória com todas as suas forças. Porém, ela nunca mais poderá ser completamente apagada, e de vez em quando abre-se essa gaveta do meu cérebro (nunca poderia guardar essa memória no coração, já teria morrido por esta altura) ou talvez não, porque se seguiram outras tão más ou piores. “Are you interested in writing a book?”, foi uma das muitas perguntas feitas por um grupo de senadores homens, brancos, a Anita Hill, professora universitária e activista negra, em 1991, aquando do processo que abriu contra o candidato nomeado para o Supremo Tribunal Clarence Thomas, que viria a ser confirmado juiz, o segundo negro a ocupar um dos cargos mais importantes do país. Negro e negra em lados opostos da justiça, ambos a fazerem história em simultâneo. Este nunca foi o plano. Estamos quase no final de 2018, e continuamos de costas voltadas em relação a isto. Eu deveria ter uns sete ou oito anos. Estava na escola primária e já fazia o percurso entre casa e escola sozinha, embora acompanhada por colegas de turma a maior parte do caminho. Mas eu estava a falar de quando andava na terceira classe. Costumava ir a casa de uma familiar que ficava num bairro a uns quinze ou vinte minutos a pé de nossa casa, brincar com as filhas dela. Elas eram mais velhas do que eu, e na verdade uma delas não era mesmo filha, mas era tratada como tal. Ela tinha, ainda, dois filhos. Todos eram mais velhos do que eu uns bons anos. Era sobretudo para não ficar sozinha em casa, para me livrar de sarilhos e do aborrecimento. “Estou bem triste.” Assim começa uma mensagem de voz tremida. Pouco importa se vem de uma rapariga bonita. “Eu vinha do trabalho hoje, às sete da manhã e três homens começaram a dizer-me coisas, a chamarem-me de puta, vadia, a fazer gestos obscenos. Deviam estar bêbados. Entrei em pânico e comecei a gritar com eles também. Fiquei muito agoniada e comecei a chorar. Eu estava tão feliz, o trabalho tinha corrido bem, apesar de cansativo. Agora vou ficar com medo, agora vou ficar a olhar para todo o lado para ver se vem alguém.” Ele devia ter uns quinze anos. Raramente penso nisto. É só mais uma das coisas que não posso alterar. A maior parte das vezes nem me lembro que aconteceu. Chamava-me ao quarto dele, conversava comigo e dizia que gostava de mim. Fazia-me deitar no chão e deitava-se em cima de mim. Tocava-me, fazia pressão sobre mim e tentava, constantemente, chegar mais longe, e como não conseguia, ficava zangado. Lembro-me muito bem de ter-se rido de mim quando, uma vez, fui até à janela e comecei a recitar os nomes dos meus colegas de turma. Uma das irmãs dele, uma vez, espreitou pelo buraco da fechadura, e disse que sabia o que estávamos a fazer, e que ia contar, mas não o fez. Eu mesma nem sei porque não o fiz. Por medo, talvez. Medo do que todos iriam dizer e pensar. Eu não percebia bem o que se passava, acho que parte de mim via aquilo como uma forma de afecto. É o homem alto e forte com equipamento de ténis completo à porta do campo que fica ao lado de um supermercado onde vais tantas vezes após a escola, e que faz esperas e tenta falar contigo. É o funcionário da junta que varre as ruas e vai deixando pequenos bilhetes caídos no chão, pequenas cartas que entenderá certamente serem de amor para a tua amiga com doze anos, como tu; mais tarde é a história da tua prima aos catorze, e um vizinho e amigo da família. É a tua colega de faculdade num parque de estacionamento, e a amiga dela também, e contar-te isto na esplanada num dia de sol e alguma coisa gelar-te por dentro e te privar de empatia para com ela, como quem diz, faz parte, calha a todas, quem nunca. É aquela rapariga de há muito tempo, e o irmão e o segredo partilhado e calado por todas as irmãs. É a pessoa que admiras e respeitas e te diz todas as coisas que sempre quiseste ouvir sobre o teu trabalho, mas que momentos depois tenta beijar-te. É a pessoa que te procura para uma colaboração mas após uma série de observações intrusivas se propõe ir contigo para casa ao fim de um jantar que, para ti, era apenas de trabalho; é ainda aquela pessoa que justifica, “Se calhar ele estava só muito apaixonado”. E chegas a casa e rebentas num pranto e não consegues dormir, e a vida do outro segue como se nada fosse. É a actriz que se defende não se afastando, chocando e tentando reverter o nojo. É o actor que fala de aguentar o assédio porque são apenas três dias de filmagens, e lutou muito por aquilo, e tem de pagar as contas, e terá o trabalho para mostrar e para se consolar. É quem te julga e recorda que ninguém te apontou uma arma à cabeça, e que és uma desilusão. É quem fala mal de ti e acha que não tens direito a uma voz porque mandaste nudes a este e àquele e ao outro, ou porque és gay, ou porque és latina, ou asiática, ou trabalhadora do sexo, ou todas as anteriores. É a mulher de Thomas, deixando uma mensagem de voz a Hill em 2010 a exigir um pedido de desculpas. Ou o senador Alan Thompson a perguntar, ainda em 1991, “Why in God’s name would you ever speak to a man like that the rest of your life?” Já era adulta quando falei nisso a alguém pela primeira vez. A vida por vezes é muito cruel. Foi um alívio quando a família toda se mudou para Inglaterra. Nunca mais os vi, e ainda bem. Mas nada tira o amargo de maçã podre. Temos tendência para relevar a fruta quando ela está tocada, cortamos e deitamos fora o que estiver manchado, ou oxidado, ou podre. Não queremos, não gostamos de desperdiçar nada, mas naquele caso eu não podia ficar com uma parte e esperar que o todo não estivesse envenenado. Era uma situação da qual só poderiam resultar mais vítimas, e assim deixei-me ser a única. Porque a vergonha e a culpa nos fazem sentir que estamos sós, que ninguém quer saber ou acreditar, que somos, realmente putas, desmerecedoras de compaixão e merecedoras de todas as coisas más, sortudas por haver quem nos queira, mesmo se pela força, mesmo se desta forma, porque nós começámos tudo isto apenas por existirmos. Há pessoas que pedem desculpa e há pessoas que não. Há pessoas que se fecham para o mundo e para os outros e passam a viver como se fossem de cristal. Pessoas que se calam e pessoas que não o fazem. Há pessoas que se magoam mais e se desassociam de si, e entram num pesadelo de miséria e promiscuidade, em detrimento da sua já frágil condição. Que deixam de acreditar em si para acreditar no gaslighting do outro. Para alguns é compulsão e doença, para outros um momento menos brilhante, toldado pelo ego e por algum álcool à mistura. Concluo que será sempre demasiado cedo para poder chegar a qualquer conclusão, a não ser a de que continuamos sem saber como lidar, como conviver uns com os outros, como amar, como respeitar, como entender. “And I can’t explain; it takes an expert in psychology to explain how that can happen, but it can happen, because it happened to me”, disse ela, ainda em 1991. E os Sonic Youth responderam “I believe Anita Hill.” Eu também, eu também.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasSomos ladrões [dropcap]S[/dropcap]e conseguir escapar à proverbial (e desejável) ingratidão que rege a memória da música popular, a Canção Infinita de Manuel Fúria & Os Náufragos irá sobreviver-nos. Nesses seis minutos e dezassete segundos o cantor e autor faz uma viagem ao seu passado afectivo – as primeiras leituras, as primeiras audições, as cumplicidades juvenis que estão na base de todas as descobertas, a sua geografia de adolescente – e à sua condição de criador. Revisita heróis musicais, cita-os, invoca-os. A própria base harmónica da canção é construída deliberadamente sobre os mesmos acordes de Ceremony, tema incluído no primeiro single dos New Order, ex-Joy Division – o primeiro a ser editado depois da morte trágica de Ian Curtis e ainda com as suas palavras. Duas referências de Fúria, que depois de citar os primeiros versos de Curtis lança a extraordinária confissão e constatação: “Sou um ladrão!” , afirmação que pode ser aplicada ao longo da história da arte. Nada vem do nada e a criação artística, por mais rupturas que deseje fazer, não pode fugir a esta condição humana, felizmente humana. Mas Canção Infinita lida também com a memória num estado particular – a nostalgia. Há um passado idealizado e a dor mansa de não lá poder regressar – no fundo o que está na etimologia da própria palavra: do grego nóstos (reencontro) e álgos (dor, sofrimento). E sempre foi algo em que não confiei. Ao longo do tempo, o próprio conceito (que foi outrora considerado condição patológica, como a melancolia) foi adulterado, tornado mercenário e mercantil. O mercado da saudade aumentou e a nostalgia perdeu a sua inocência mais ou menos contemplativa. Por mim, se perguntado, respondo da mesma forma, com um neologismo pateta mas eficaz: sou agnostálgico. Quer dizer, preciso da nostalgia mas não a quero como normalmente me é entregue. O inebriamento de passado é perigoso pelo simples facto de que nos podemos esquecer de viver agora – e isso sim, é imperdoável. Sobre a nostalgia já fui mais inamovível: recusava-a, pura e simplesmente. Manifestações colectivas da coisa, como reuniões de bandas que admirei em jovem, eram evitadas com cinismo e precisão. De certa forma ainda o são. Lembro-me sempre das palavras de Eric Idle, um dos Monty Python, ditas aquando da mítica reunião do grupo de humoristas em 2014:«As pessoas não vêm ver um grupo de velhos a dizer piadas. Vêm para se lembrarem como eram quando eram novas». Ainda acho que Idle tem razão. Mas a agnostalgia, tal como a entendo, não é um dogma mas uma atitude – e como tal falível. O único truque consiste em estar bem com essa falibilidade porque é de imperfeição de que somos feitos e queremos ser feitos. Há pouco tempo tive a oportunidade de pôr à prova esta teoria, durante um concerto em que tocou Fúria e logo a seguir um dos meus ídolos musicais: Johnny Marr, antigo guitarrista dos The Smiths, banda que atropelou a minha vida em 1983 e a de muita gente. Ainda continua a fazê-lo. Preparei-me para o embate com a dignidade possível, mas durou pouco: o som da guitarra de Marr, os acordes de canções que sei de cor e com que ainda vivo deixaram-me literalmente em lágrimas. Nostalgia ou não, sei que é bom isto acontecer. Que uma canção que nos comove é uma canção que nos redime. E assim aceito a nostalgia, nesta perspectiva de tornar a nossa existência menos sofrível. Somos ladrões, sim; mas também ladrões do tempo.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasO grão da surpresa Horta Seca, Lisboa, 17 Novembro [dropcap]A[/dropcap] língua pode ser revista. Traz promessa de passar em revista o alfabeto inteiro começando pela letra primeira, a de Atlântico. Chega-se com nome que não podia ser mais feliz: linguará. Não por acrescentar princípio a língua, toque que amplifica, até porque A de perfil faz altifalante, mas por ser, em algum dos muitos afluentes semeados na outra banda oceânica, sinónimo de intérprete (de branco para índio e vice-versa, na origem, a evitar nos dias correctos). Em tempos brutos, a subtileza com que se anuncia vem portadora de imensa frescura: «uma revista pela língua portuguesa». Com a densa simplicidade do azul, são cadernos A4, que só não voam porque e linha na lombada os mantém próximos da mão. Orquestrada pela Maria José [Amorim] e companheiras, Carla Paoliello e Priscilla Ballarin – que também desenha, com amplitude e afecto, esta edição (http://www.revistalinguara.com) a aventura toca-me pela leveza com que apresenta as múltiplas, fugazes, desafiantes cambiantes da língua. Na vez de publicar ruído, digo, redundâncias tonitruantes, convoca para a frente do espelho fragmentos, restos que, por vezes, nos fazem falsos amigos, noutras nos atiram para longo beijo de língua. Faz tanta falta este amoroso descomprometimento que reúna no mesmo lugar, no mesmo falar, o astrofísico e a o alfaiate, o mecânico e o místico, o malabarista e merceeiro. Ou seja, mais do que longos e académicos ensaios, encontramos pormenores ampliados, ligações avulso que produzem sentido. O artesanato material e o linguajar comum cruzam-se com a pesquisa erudita e a aspiração artística para fazerem primaveras. Andorinha, a palavra ergue-se rainha, mas não desdenha a imagem, como nas fotos de lugares homónimos ou na caligrafia artística em busca de azulejo onde se eternizar. O intérprete faz-se ponte movediça entre tudo e mais alguma coisa. O puro prazer desta recolha não esconde a teoria dos cruzamentos que fazem crescer esta água na boca. Há tradição para descobrir, modernidade para oferecer, maneiras de fazer, ideias à deriva, poesia e filosofia, memória e canção brega. Desconfio que não seja essa a intenção, mas além da mais interessante política de língua comum (ou vice-versa) pode nascer daqui uma outra de promoção a leitura. Diz Adélia Prado, Antes do Nome: «A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,/ foi inventada para ser calada.// Em momentos de graça, infrequentíssimos,/ se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão./ Puro susto e terror.» Uma língua pode morrer na nossa mão. Ou arejar. Horta Seca, Lisboa, 22 Novembro Este voar baixo e cego, de que me cansa falar, impediu-me de saborear devidamente (lamber a cria, diz-se) a chegada do volume III da poesia completa do Antero, permito-me, sem rir, o tratamento por via da convivência. Tacteio a cor da capa do volume mais surpreendente por razões que o Luiz [Fagundes Duarte] não se cansa de anunciar em conferências, mais e menos participadas: há um Antero para além «santidade» fixada. Descobrem-se por aqui, com grão de surpresa, mundanidades, dislates, ensaios, voluntarismos, sátiras, ânsias e fúrias, perfumes do desejo e vapores da política, humanidades, enfim, deliciosas preciosidades, para rimar. Folhear basta para encontrar coincidências com os dias, ainda e para sempre estes nossos: «Bem é falar de tristezas/ Por estes tempos de risos,/ Em que passa a Gargalhada/ Na face dos paraísos […]». As tormentas vêm de todos os horizontes e o poeta leva a Alma pela mão visitando o que se anuncia nos mapas e nos mitos, mas antes esculpe rostos. «[…]A gargalhada do sábio,/ Que se chama… indagação;/ A gargalhada do céptico,/ Que tem nome… negação:// A gargalhada do santo, Que tem nome — fé e crença;/ A gargalhada do ímpio,/ Que se chama… indiferença:// A gargalhada da história/ Que se chama… Revolução:/ E a gargalhada de Deus,/ Que tem nome… Escuridão […]». Resultado? Leia quem possa, que hesito na conclusão. Entrar na boca do demónio que vive desta atroada de possessos ou sonhar com a luz que sairá do peito do condenado. Horta Seca, Lisboa, 23 Novembro «Prólogo a la Invención del Diluvio», assim se chama a antologia do José Luiz [Tavares], com tradução de Diego Cepeda, com que abriu asas e voou a Puro Pássaro, novíssima editora do Jerónimo Pizarro e do Pedro Rapoula, com ninho em Bogotá. Seguiu-se, entre outros, «Las Cosas», da Inês [Fonseca Santos], no caso com tradução do Pedro Rapoula. Edições cuidadas, pequenas no formato de lombos coloridos, com ilustrações, desenhadas ou fotografadas, a quererem afirmar a poesia como o lugar maior da língua. No «Dilúvio» há mesmo folhas em vegetal que propõem versão (sobreposta) do poema no crioulo de Cabo Verde. E cuidadas, sobretudo, no transpôr do verbo, do espelhar da construção, no tento com que se busca o verso exacto. Encontro nestes esforços, de que o Jerónimo se vem fazendo pródigo, solo bem mais fértil que o dos acampamentos de pompa e circunstância nas feiras internacionais (do negócio e da vaidade). Mas isso sou eu, que montei casa em horta seca. «Solo yo no me quedo bien, my señor,/ que espero toda la tarde ele poema/ que no viene, aunque barcos suban/ el tajo aullando a través la niebla». Facebook, algures, 24 Novembro O mano Gaspas, de seu nome inteiriço, Luis Manuel Gaspar, publicou um conjunto de imagens, devidamente legendadas – com as mais dispersivas coordenadas, com se latitude e longitude fossem primeiros passos na viagem – da Maruja Mallo. Digam lá o que disserem, há quem faça das redes um tapete de serviço público, servindo para limpar sapatos antes de entrar ou para sair a correr um direcção ao espanto e maravilhamento. O mano produz sequências em torno dos seus queridos (Almada e Alvarez e Amadeo, Botas e Botto, Herberto e Helder, Wyatt e Waits, Ramón e Ramos Rosa) que espalham informação segura, detalhes explosivos, um gosto feito trepadeira a crescer. Aqui e ali, mostra migalhas das suas detalhistas e cruzadas composições (a isso voltaremos), mas interessa-nos agora a autêntica produção de conteúdos raros e sensíveis. Ando para falar disso há tempos, armado em intérprete-tradutor-ponte, e eis que a pintora, «metade anjo, metade marisco», se faz pretexto. (Algures na página, «A Surpresa do Trigo»). O motivo, para o mano sem acento, raras vezes nasce da actualidade, mas a sua página está sempre a estender-se tapete de museu vivo. No caso, da Maruja trouxe trigo e festas de aldeia, em composições de geometria «fatal» que atiram para a melancolia. Uma colorida melancolia onde os elementos da vida poderiam ainda fazer sentido. Um incerto sentido sobre o qual caminhar.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasSangue na estrada [dropcap]E[/dropcap]ra este o nome de um programa televisivo dos longínquos anos sessenta apresentado com colisão estrondosa – o programa mais não era que um receituário para boas práticas automobilísticas que na altura já fazia correr bastante sangue e cujo desenvolvimento a preto e branco impunha uma maior dramatização. Com a gravidade do tempo se expunham então as condutas erradas e se mostrava exemplos derrapantes pretendendo assim ser útil para evitar o sangramento no asfalto. Ora sem dúvida que o sangue que a todos atravessa em circuito fechado é o mais forte elemento que um ser vivo dispõe: os de sangue quente, está claro. Há quem admita que a terra lhe é hostil e que onde se sangra se gera uma área de esterilidade ambiente, e que seitas maniqueístas como os Cátaros das carnes se afastaram para impedir o pacto que consideravam diabólico, o que faz que ainda hoje os judeus desensanguentem as carnes numa prática ritualística para não incorporarem a estranha força nele contida. O sangue marca assim um ciclo de funções culturais quase xamânicas e também perante ele existe a reverência e o pudor instintivos que fez a Igreja secular separar-se, renegando qualquer fluxo interno que se propaga-se e fosse visto; acariciaram o fogo como medida castigadora. O vinho litúrgico não é mais que a metáfora de um caudal de seiva e gratidão pelos bons produtos da terra, como o pão, os primeiros transformáveis logo que se dá a sedentarização. Noé ao colocar pé em terra firme planta logo uma vinha. E se o sangue ainda apaziguava as Fúrias lá mais para trás, é certo que não foi com os homens dos rebanhos que o canibalismo tomou posse, pondo então fim ao infanticídio infantil com Isaac substituído por um cordeiro.- E as questões de sangue, e o sangue nas arenas que se inspiram nos dorsos gigantes, numa fartura sangrenta de fluído tal… o touro não quer matar, o homem não quer morrer, mas todos sangram e brincar com sangue é a irreflexão mais bravia que podemos conceber. São espectáculos do tempo do «Sangue na Estrada» que os infortunados de natureza sensível viram entrar casa adentro numa atoarda de choques e cornetas, esses que, roeram as unhas até ao tutano e prometeram fazer feitiços para os homens morrerem na prática de coisas tais e desviaram os olhares das chapas retorcidas, que agora são expostos ao clamor indecente de serem radicais bem-pensantes; não sei se pensam bem…na certeza porém, que sentem diferente. Levanta-se uma névoa telúrica ou milenar que até pensávamos estar saldada, mas, olhamos e a estratégia instintiva é ainda a mesma. Até se dizia no tempo destas visitações nas casas de cada um que o chefe da Nação nem gostava de sangue e prometera levar para longe e para as funduras os seus opositores para não assistir a nenhum derrame, o que corrobora que um seminarista é avesso a fluídos internos que se manifestam numa qualquer vertente. Fogueiras do imaginário ainda ardiam quando todos estes sangues se soltaram. Camilo Castelo Branco escreveu uma obra literária chamada «O sangue» onde afirma: estou escrevendo um romance chamado « O Sangue» mas não é bem um chouriço. É uma patacoada. Parece-me que vou queimar os livros para aquecer os quatro pés, os dois são vulgares, deu-nos o frio, e não obstante continuo a tiritar, o que não sucede a todos os burros que têm fogão» Grande Camilo que metamorfoseava em paródia grotesca reais angústias! Veremos também que ao tempo de Camilo as estradas eram fustigadas por salteadores, sendo pouco provável o choque das quadrigas de cavalos, as vítimas que sangram ainda são na sua maioria as das estradas e das arenas. “Chocar” com um Touro é sem dúvida uma experiência incrível! Uma faena é um desdobramento inconsciente de brutalidade incurável tão ao gosto dos paleolíticos cultos de Mitra… que seja cultura… bom, a cultura impõe-se para bem ou para mal, quando se deixa de sangrar. Se tal acontecer são desastres. Espargindo o sangue nos terreiros também as Fúrias, outrora cultos (as) já não se manifestam tanto… e nós, os que tivemos de viver nestas “culturas” ainda somos abusados na cultíssima alma que transportamos. São caminhos de sangue, tudo isto, e olhamos os graus máximos dos bisturis futuros e toda esta seiva está estancada como se olhássemos um rio do outro lado da Galáxia. O Vermelho era tão imperativo que o chefe da Nação o passou até para Encarnado, e com isto, encarnaram formas vivas, troncos de culturas distantes que agora se manifestam de maneiras genuinamente imobilizadoras para estupefação dos demais (os demais, já estavam a mais, antes mesmo de lhes ser dado liberdade para tal). E voltando a Camilo numa supervisão entre plasma e sentimento: «Aquele Manuel a cuja agonia V. Exª assistiu não era meu filho. Adoptei-o no coração extremoso de pai e senti então que o sangue nada é e a nada conclui» . São estas gentes das heranças genéticas, da voz do sangue, que gostam dessas coisas, uma certa fidalguia que à falta de melhores capacidades definitivamente mais culturais e humanas, se entretêm ainda a morrer nas estradas por falta de ocupação fixa, e se regozijam no dorso amigo de uma força, que não esquecemos, mas mantemos transmutada dentro de nós. Admitamos que na longa travessia eles tenham evoluído mais que aqueles que os desafiam nas arenas. Sem dúvida que Camilo seria o primeiro a fazer hoje uma outra crónica de costumes com esse dom raro de provocar o riso e despertar as lágrimas que toda esta questão levanta, e cuja força extemporânea atrai ainda o sangue sem vital função.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDireito de proposta [dropcap]N[/dropcap]a semana passada escrevi uma crónica chamada Make Portugal Great Again. Do título ao conteúdo, era um texto provocatório. Além de pretender causar algum desconforto, dado conter elementos de populismo que nos remetem para outros tempos ou outras latitudes, tinha um propósito ulterior: o de mostrar, por contraste, que o horizonte do populismo e de outros movimentos tendencialmente totalitários, sejam eles de tendência fascista ou comunista, não é sempre claro e perfeitamente identificável. A maior parte das vezes, o corpo narrativo destes movimentos que, na prática, calçam botas cardadas, é composto de mensagens bastante mais cálidas e aceitáveis do que os pontapés e bastonadas nos quais se traduzem nas ruas. Qualquer discurso populista tem que conter elementos de verdade para ser aceite, digerido e assimilado. Normalmente estes são lestos a identificar os problemas que preocupam a fatia maioritária da sociedade sobre a qual se funda o conceito vago de identidade nacional. Alguns destes problemas são-no de facto, i.e., correspondem a um defeito ou a um excesso no modo como o estado dá conta dos obstáculos com que os cidadãos se deparam no dia-a-dia. Alguns destes problemas assentam em deficiências estruturais dos recursos estatais disponíveis ou alocados: é assim normalmente nos incêndios de Verão, nos hospitais e nas escolas públicas, na administração da justiça. A maior parte das vezes não há dinheiro que chegue para tudo e, ainda por cima, o pouco que há é mal desperdiçado, seja por via da incompetência seja por via da corrupção. Outros problemas, porém, advêm da própria concepção de estado, do poder que nele investimos e do que ele esperamos. Mais estado pode equivaler a mais impostos, menos liberdade individual mas, como contrapartida, mais segurança social para todos. Menos estado é commumente sinónimo de mais investimento privado, menos impostos e – não há bela sem senão – menos capacidade de resposta aos problemas dos mais desfavorecidos. O texto que escrevi e que ainda está disponível no site do Hoje Macau é essencialmente caricatural. Propõe diagnosticar uma série de problemas sem na verdade equacioná-los à luz dos factos. Apela sobretudo à inesgotável capacidade de indignação do leitor. E não é assim por acaso. A primeira reacção de qualquer sujeito perante um texto desta natureza é essencialmente emotiva: ou se revê nele e as palavras são uma espécie de espelho no qual surge tudo aquilo que ele gostaria de ter dito e não o soube ou pôde fazer, ou o rejeita porque a mensagem que este veicula fere a matriz de convicções que o norteia. Apenas após assentar a poeira disposicional é que o sujeito se dispõe a ver a coisa pelo prisma racional. Na maior parte das vezes, as convicções de cada um nós são tão fortes na expressão como fracas na estrutura, pelo que o sujeito prefere a sensação de ter razão do que a certeza de o ter. Não lê o texto duas vezes, não admite segunda opinião. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online. Embora as falácias do populismo sejam instrumentos assaz eficazes na manipulação de massas, a verdade é que estas só têm algum efeito quando o contexto sócio-político e económico lhes é favorável. Não surgem Trumps, Bolsonaro ou Salvinis a toda a hora, embora eles não deixem nunca de existir. Apenas o contexto não lhes é favorável ao crescimento. Seja porque a economia vai de vento em popa, seja porque o fantasma de uma guerra recente ainda ensombra a população, seja porque as pessoas decidiram trabalhar para algo que os transcende e que confere um sentido superior aos interesses imediatos que o capitalismo e a economia de mercado estimulam incessantemente. Na ressaca de uma crise económica mundial e com dezenas de problemas em mãos, uns nacionais, outros europeus, a nossa confiança não parece estar em alta. Ninguém arrisca uma previsão a médio prazo. A qualquer momento, uma nova crise económica pode mergulhar o país ou mesmo a Europa no caos. Mais: não parece ninguém capaz de endereçar os problemas que nos tolham os movimentos. Mais ainda: não parece haver ninguém capaz de falar sobre eles e de mobilizar a atenção pública para um debate de vários níveis – a segurança social, a produtividade, a sustentabilidade das contas públicas e o seu modelo de receita, o ensino e as saídas que este proporciona ou deveria proporcionar, o turismo e os custos e benefícios, os salários miseráveis dos portugueses e as diferenças gritantes entre os mais mal pagos nas empresas e os mais bem pagos – que deveria acontecer e que deveria produzir respostas de consenso que ultrapassassem o prazo de uma legislatura. As pessoas estão entre a indignação, o cansaço e a raiva. Não me crêem? Leiam as caixinhas de comentários das notícias online. Estão fartas da política e dos políticos que temos. Estão cansadas de sentir que são permanentemente descartadas do diálogo no espaço público. Sentem que os políticos não falam nem para eles nem com eles. A esquerda portuguesa move-se há algum tempo entre causas de conquista civilizacional – direitos das minorias, paridade de salários entre homens e mulheres, fim da violência doméstica, direitos lgbt e outros temas que são fracturantes até deixarem de o ser – e aquilo que parece ser óbvio em Portugal, i.e., que se ganha mal, que se trabalha demais e por migalhas e que é necessário aumentar o salário mínimo. Mas nem por isso os impostos – directos ou indirectos – baixam. A esquerda é aquele coleguinha de trabalho que está sempre a dizer o óbvio acerca daquilo que está mal e que responde invariavelmente “só estava a dar a minha opinião” quando lhe perguntam o que fazer para resolver as coisas. No melhor dos casos, oferece soluções que esbarram no cálculo mais simples. A direita, por sua vez, é apenas uma piada. Ou os agrobetos do CDS ou o autismo entrincheirado do PSD do Rui Rio. Não falo da aliança do Santana por vários motivos, um deles a indispensável manutenção de uma réstia de higiene mental. Depois temos a corrupção, que nos últimos anos tem vindo a ser posta à luz de diversas formas. Parece ser endémica, tentacular e deveras resistente à exposição do antibiótico da justiça. Fora umas carpas de rio que mal cabem na cova de um dente, nada de particularmente doloroso tem acontecido a capangagem que forrou os bolsos com dinheiro público anos a fio. Salgado, João Rendeiro e tutti quanti ou esperam julgamento sogaditos nas suas vidas milionárias ou foram condenados a penas suspensas. A justiça igual para todos é um dos pilares fundamentais da democracia e um garante de paz social. Por fim, o racismo latente, a xenofobia, o preconceito. A maior parte das pessoas que não gosta de gays não conhece um gay sequer – conscientemente, i.e. A maior parte das pessoas que insistem em fazer piadas de pretos não passa qualquer tempo com pretos. A maior parte das pessoas que… E assim por diante. A ignorância é quase sempre a raiz de todos os preconceitos. Desconfiamos daquilo que não conhecemos, e é muito fácil passar da desconfiança para o ódio quando as coisas não correm bem e temos de encontrar um culpado. O que não é de todo claro que funcione é combater a ignorância com repressão ou de cima de um púlpito moral. A ignorância combate-se com educação, com tolerância. A ignorância não é o fascismo ou o comunismo, mas estes últimos alimentam-se da primeira. De igual modo, a ignorância não se combate de uma posição de superioridade, mas de uma posição de igualdade. Se a conversa começa por repudiar, julgar ou acusar alguém, a conversa não continua. Cada um dos intervenientes numa relação de entrincheiramento acaba mais entrincheirado do que antes. Chamar alguém à razão não é chamar alguém à pedra. E, por fim, temos de aceitar que existem pessoas as quais nunca seremos capazes de modificar quanto às suas crenças, por muito antiquadas e grotescas que nos pareçam, e com as quais teremos de conviver. Podemos punir quaisquer comportamentos ilegais que tenham, podemos tentar minorar os efeitos de contágio das suas convicções, mas não podemos impedir que pensem ou sintam o que pensam e sentem. À ignorância e preconceitos alheios teremos de contrapor a nossa tolerância e aceitação. É difícil, é em muito contranatura, mas é a única forma que temos de integrar uma convicção que repudiamos sem esta nos consumir. Talvez esta crónica hormonada não consiga esclarecer quem na semana passada fez uma leitura literal do texto a que faço referência aqui. Talvez eu próprio não esteja a conseguir articular correctamente a cadeia de pensamentos que me levaram a escrever o que escrevi. Espero, no entanto, que pelo menos desfaça o equívoco segundo o qual o texto era lido como uma apologia do populismo ou era classificado de perigosa e desnecessária provocação. A minha intenção foi sempre a de mostrar que o populismo mistura e confunde para seduzir e não se apresenta de uniforme. O mais importante, de qualquer modo, é sair das trincheiras que cavámos – de boa ou má-fé – e encontrar os consensos sobre os quais se fundam as sociedades democráticas, porque a minha intenção não é a de calar ninguém ou de ter a última resposta: a minha intenção é a de que voltemos rapidamente a falar.”
João Romão h | Artes, Letras e IdeiasA China no turismo mundial [dropcap]S[/dropcap]ugerem as projecções estatísticas da especialidade que em 2030 a China vai ser o país a receber mais visitantes internacionais e que também ocupará o primeiro lugar enquanto “mercado emissor” global, como se diz na gíria do sector turístico, reflectindo as profundas transformações económicas, sociais e culturais em curso no país. O significativo aumento de rendimentos de que tem beneficiado grande parte da população chinesa nas últimas décadas tem implicações directas e significativas sobre as dinâmicas turísticas, como é conhecido de outras paragens: os gastos com actividades recreativas, de lazer ou em viagens tendem a aumentar significativamente quando o rendimento disponível ultrapassa o mínimo necessário para as despesas essenciais e, inversamente, também tendem a decrescer substancialmente quando há perdas súbitas de rendimentos. Foi neste contexto de optimismo generalizadamente partilhado que tive oportunidade de assistir à 12ª edição do Fórum de Turismo da China, na magnífica cidade de Hangzhou, um palco particularmente adequado para se observarem estas transformações da China contemporânea. O Fórum foi organizado pela escola de hotelaria e turismo da Universidade Politécnica de Hong Kong (que lidera nos últimos anos os rankings mundiais de formação universitária no sector) e por uma gigantesca empresa de comércio e serviços em plataformas digitais, que tem em Hangzhou o seu “campus” e a sua base operacional – e também a sua sucursal para o turismo e viagens. Aliás, o sistema de pagamentos online desenvolvido por esta empresa atingiu na cidade uma popularidade e um nível de convergência tão profundo com os serviços offline que é possível aos residentes viverem sem carteira, notas, moedas ou cartões bancários: basta o telemóvel (com o adequado leitor de códigos de barras) para fazer qualquer tipo de pagamento (transportes públicos, cinemas, supermercados, mercearias, restaurantes, lojas de conveniência, pequenos ou grandes estabelecimentos dos mais variados sectores públicos e privados estão devidamente apetrechados para um quotidiano sem notas nem moedas). A inovação, o papel das plataformas digitais, a convergência necessária entre os universos imateriais do ciberespaço e a realidade física dos produtores e consumidores de produtos e serviços, a transformação das gigantescas quantidades de informação associadas a estas transações em processos de personalização de serviços cada vez mais especificamente adequados às necessidades e motivações de cada pessoa, ou o papel da inteligência artificial e outras formas de aprendizagem baseada no processamento de quantidades massivas de informação, foram os temas centrais de um Fórum que mobilizou algumas centenas de pessoas dos meios académicos e empresariais ligados ao turismo na China, com forte presença de jovens dirigentes e gestores empresariais altamente qualificados e escassa presença de gravatas. Esta preocupação com conteúdos de discussão que assinalam e promovem uma certa liderança na capacidade de formulação de estratégias de inovação para economias globais tecnologicamente avançadas teve também a sua contrapartida em aspectos mais formais – e que na realidade acabam por reforçar os conteúdos: o Fórum foi suportado por uma impressionante parafernália multimedia com projeções simultâneas em ecrãs gigantescos baseadas em muito avançadas tecnologias de audio e video e por diversas possibilidades de interacção entre a audiência e os oradores através de reacções e comentários enviados por telemóvel e projectados em tempo real. A modernidade dos processos de comunicação e interacção com suporte de tecnologias avançadas também é visível para quem visita esta fantástica cidade: além do avançado sistema dos mais variados pagamentos de despesas quotidianas, a cidade combina com extrema eficácia e elegância as características culturais, arquitectónicas e paisagísticas da tradição histórica da região, com zonas modernas onde é visível o avanço tecnológico, a sofisticação do comércio ou os graciosos espaços de lazer com uma presença constante de uma população bastante jovem. O grandioso Lago Oeste, recentemente classificado como património mundial da humanidade, com os magníficos jardins, monumentos e espaços museológicos que o rodeiam, ou a bela rua Hefang, onde se encontram as lojas dos produtos mais tradicionais da região, incluindo a comida e os artesãos de várias especialidades, são casos exemplares de preservação do património histórico, que interagem com facilidade e harmonia com a modernidade das ruas do centro ou da “Midtwon”. Não terá sido acidental a escolha desta cidade para acolher o Fórum, tal como não parece acidental a decisão de realizar o Fórum de Turismo da China do próximo ano nos Estados Unidos: em tempo de “guerra comercial” atabalhoadamente decretada, o turismo da China lança-se à liderança dos processos de internacionalização em território “inimigo”.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasO poeta e o seu tempo [dropcap]O[/dropcap] poeta e a poesia não pode ser comparado apenas com as pessoas normais, as suas possibilidades, exigências, precisões, necessidades e precariedades. A poesia como expressão tem de ser comparada com uma expressão que depende de uma possibilidade existencial absolutamente antagónica. Uma tal possibilidade extrema da vida poderia desfazer todos os seus mal entendidos e anular a ambiguidade de que a vida humana está imbuída. “há pessoas a viver numa atmosfera que está alagada por um espaço infinito e frio como o gelo.” (es Menschen gibt, die zu leben vermögen in einer Luft, die von der Eiseskälte des unendlichen Raumes beleckt wird).” Ao mesmo tempo, e isso é um enigma, “há espíritos a conseguir viver continuamente submetidos à pressão monstruosa da totalidade das existências reunidas. Tal como acontece com os poetas (es Geister gibt, die unter dem ungeheueren Druck des ganzen angesammelten Daseins zu leben vermögen – wie ja die Dichter tun.) Se ser poeta é estar submetido a esta possibilidade ele não deixa de estar no meio da vida. “A ciência tomada no seu sentido mais puro como exacta, mais do que rigorosa, a existência no horizonte frio como o gelo do rigor da exactidão científicos não reconduzem à vida. (“aus der Wissenschaft, in ihrem reinen, strengen Sinn genommen, führt kein Weg ins Leben zurück. ”)” Nem nunca o poderiam fazer. “Mas, então, se a palavra poeta, se a manifestação do poeta, têm ainda algum relevo na atmosfera do nosso tempo, não é de modo algum agradável. (“Wofern das Wort Dichter, die Erscheinung des Dichters in der Atmosphäre unserer Zeit irgendein Relief nimmt, so ist es kein angenehmes.”) A que corresponde o ponto de vista do poeta nesta atmosfera do nosso tempo sem cotovelo? Hugo von Hofmannsthal diz que o poeta está onde aparentemente não aparece e de resto encontra-se sempre num sítio diferente de onde ele julga estar. “O poeta habita estranhamente a morada do tempo, a morada do tempo encontra-se no vão de escadas da existência por onde toda a gente passa mas ninguém dá conta dele. (So ist der Dichter da, wo er nicht da zu sein scheint, und ist immer an einer anderen Stelle, als er vermeint wird. Seltsam wohnt er im Haus der Zeit, unter der Stiege, wo alle an ihm vorüber müssen und keiner ihn achtet.)” Mas não são apenas as pessoas desconhecidas que passam por ele, por cima dele, ao subirem e descerem as escadas do edifício da vida, ao passarem por ele na rua, nas esplanadas, nas casas de espectáculo, na praia e no campo, nos sítios públicos, mas também nos recessos privados. Os outros que passam por ele não são os desconhecidos, o mar de toda a gente que é toda a gente e ninguém. Quem passa por ele são os seus, aqueles a quem está ligado por laços indissociáveis mas aparentemente metamorfoseados. “Onde mora o poeta ele ouve e vê a sua mulher, os seus irmãos, os seus filhos: ele ouve e vê como eles sobem e descem, e ouve como falam dele como se falassem de alguém num paradeiro desconhecido, desaparecido, na verdade falam dele como se fosse um defunto e choram-no como se tivesse morrido. (“Dort haust er und hört und sieht seine Frau und seine Brüder und seine Kinder, wie sie die Treppe auf und nieder steigen, wie sie von ihm als einem Verschwundenen, wohl gar einem Toten sprechen und um ihn trauern.”) “E contudo é assim que as coisas são e é assim por isso que ele não se dá a conhecer nem a reconhecer e vive como um desconhecido no vão das escadas da sua própria casa” (“Aber ihm ist auferlegt, sich nicht zu erkennen zu geben, und so wohnt er unerkannt unter der Stiege seines eigenen Hauses.”)” É no vão das escadas do tempo por onde as vidas dos outros passam nas suas vidas. Cada ser humano com as suas próprias atmosferas. E acham que tudo e todos e o próprio existem a céu aberto, às claras, como se o mundo e a vida fossem sempre o mesmo para toda a gente. Apenas o inquilino do vão de escadas do tempo é o portador do abismo dos tempos e do abismo sem apoio nem fundamento nem sequer medida da existência. Só ele se apercebe que cada pessoa é um mundo com uma vida e uma verdade. O poeta é um desaparecido que olha a partir do ponto de vista de nenhures, impermeável à vida dos outros que por ele passam como rios para o mar. O poeta é esse alguém que é referido como desaparecido, de quem ninguém sabe como é nem onde está. O horizonte da poesia está tão completamente metamorfoseado que é como se tivesse já percorrido toda a vida e a antecipasse do ponto de vista da chegada, do esgotamento do tempo, da asfixia do sentido. Mas não se trata apenas do pensamento de ninguém que pensa o outro nas suas vidas impermeáveis a si e que reconhece nos outros alguém que dá conta da sua própria perspectiva. A abominação do seu desolamento é o reconhecimento da abominação do desolamento dos outros que não são outros apenas: da mulher, dos pais, dos irmãos, dos filhos, dos amigos, tal como de todos os outros, de cada um dos outros, nas suas atmosferas e no transcurso mudo ou silencioso das suas vidas. Mas não apenas isto. E esta é a característica mais paradoxal do ser poeta: Também o poeta se assiste a si como um outro. É ele que passa sobre si, sobre o seu si que está no vão de escadas. É o poeta que se assiste a si a descer e a subir escadas, como um outro, não único, mas como todos os outros e ninguém. Sem apego a si, na incompreensão da tarefa de se amar a si próprio como pode amar outro. Os outros que são toda a gente e ninguém sobem as escadas e descem as escadas. Mas o próprio é outro para si, incompreensível, alheio, estranho, estrangeiro, alienado da sua própria existência no horizonte específico em que se metamorfoseia a poesia.