O triste aroma a realidade

[dropcap]E[/dropcap] logo de início uma confissão: pensei muito antes de escrever esta crónica. Não é que não tenha pensado as anteriores, pelo contrário; mas à medida que o tema ia ganhando força e relevância na minha cabeça comecei a duvidar da sua importância. Que quem defendeu valores mais abstractos e ideias mais literárias sobre o que o rodeia iria rebaixar-se a um assunto pequeno – vil, até. Que quem escreve sobre os dias apoiado desavergonhadamente nas muletas de grandes autores estaria a vender-se barato a uma vulgaridade desnecessária (como se alguma fosse essencial). E o mais importante: dada a natureza da conversa, ninguém iria ler. Mas o cronista é um espelho, mesmo que distorcido. Reflecte como pode e sabe o que está à sua volta e nem sempre isso é grandioso, como hoje é o caso. E é assim que esta crónica consegue juntar Natal, crianças, vida e flatulência.

Leu bem, magnânimo leitor (ou leitora, para cumprir o clima dos tempos). Se a partir daqui não quiser prosseguir a viagem, creia que compreendo. Eu próprio, como disse, cheguei aqui vindo de um território indesejado. Mas quem quiser acompanhar os meus passos depressa perceberá onde quero chegar.

Ao que interessa, então. A aventura começou por causa da quadra natalícia, onde paradoxalmente aquela que em princípio deveria ser uma época de união, fraternidade e olhar para o outro é na verdade o apogeu estatístico de utilização de ansiolíticos e tentativas de suicídio. O stress induzido pelo consumo é enorme e sofre quem nem sequer o pode ter. Mas gosto do Natal, mesmo assim. E há as crianças, destinatárias óbvias e prioritárias de todos os nossos esforços. Assim sendo, e mesmo apesar dos meus filhos serem já jovens adultos, mantenho-me atento ao que a criançada deseja. Tendo como amigos casais com filhos pequenos gosto de lhes perguntar o que está na moda, que caprichos os filhos lhes exigem. Infelizmente é muito raro que seja uma boa edição da Divina Comédia de Dante ou até a Lírica do nosso Camões (brinco: mal seria se fosse). Não: o que a miudagem quer, descobri eu, é uma série de bonecada chamada Reis dos Puns – The Fartist Club. Eu sei, continuem comigo, por favor. Trata-se de quatro bonecos, apresentados de forma majestosa pela publicidade como “os mestres dos puns!” e cujo atributo é, garantem-nos, apresentarem “puns personalizados”. Nem vou comentar a misteriosa razão pela qual se deve pagar por aquilo que qualquer um pode ter de graça, ou seja a “personalização”. Mas interessou-me a tendência escatológica e reparei que há mais: apresento-vos os Flush Force Flushies, pequenas réplicas de sanitas a que se junta água para ver aparecer criaturinhas no fundo e que, oh maravilhosa ideia!, são coleccionáveis. Há sanitas de todas as cores e tamanhos, kits de luxo e tutoriais no YouTube. E não esqueçamos – aliás, como esquecer? – o engraçadíssimo jogo Agarra o Cocó! (juro), em que os miúdos são desafiados a “sentar o senhor Cocó”. Estes são, em suma, os brinquedos em voga neste Ano da Graça de 2018.

Antes que me apodem de pedante e reaccionário (epítetos que neste caso específico aceitaria com gosto) deixem que vos diga que de certa forma até compreendo. O chamado humor de casa de banho vem de tempos imemoriais e foi utilizado por sumidades como Aristófanes, Dante, Shakespeare ou James Joyce. O enorme Jonathan Swift escreveu mesmo um panfleto sob o título The Benefit of Farting (escuso-me à tradução). Não é por aí: o que me parece – e posso estar enganado – é que numa sociedade onde parar para pensar começa a não ser possível, infantilizar os infantis (e os seus pais, por inerência de funções) pelo menor denominador comum é um passo previsível. Entre rir das funções corporais ou ser doutrinado sobre o que se pode ou não dizer para não “ofender” a distância é muito pequena.

Nada temais, no entanto; a realidade venceu. Acaba de me chegar às mãos um panfleto sobre um novo jogo de tabuleiro português para crianças a partir dos dez anos. É uma variação mais sorridente do velho Monopólio e tem empréstimos, negócios, dívidas, e recebimentos ao final do mês. Chama-se Paga e Cala. E não: quem me dera que estivesse a brincar.

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