Um acto solitário

[dropcap]A[/dropcap]terrei em Lisboa. Que amigos vou rever, que livros vou comprar – são sempre as questões que se impõem.

Abro a mala em casa de familiares e antes de qualquer outro movimento os meus olhos embatem na lombada da última edição do tomo que reúne toda a poesia do Herberto Helder. Imediatamente me estico na cama, num relance sobre os últimos livros do poeta os Poemas Canhotos e A Morte sem Mestre, que faltam no meu volume, efeito de ser emigrante há década e meia.

E relembro um texto que escrevi no Facebook em defesa do poeta:
«Várias vezes escrevi sobre o Herberto, nenhuma bem. Também não será desta que melhorarei a minha performance. Porque não basta ter vontade e parafrasear o que nos escapa, nem isso traz consolo à evidência duma inteligência lacunar.

Não admira que me espante o carácter peremptório do que leio.

Rebato um texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto Helder, saído no I e replicado no seu blogue, crónica de execução, eivada de um tom com que não posso estar mais em desacordo.

Não li ainda A Morte sem Mestre e, apesar da curiosidade, não sofro de ansiedade. Acho que quase todos os livros são dispensáveis e creio, com Robert Lowell, que foi um dia feliz para Satã quando Mallarmé declarou que o mundo cabia num livro. Isto deixa-me mais à vontade para dizer que acho impossível que Herberto tenha escrito um “mau” livro, um livro “desprovido de magia”.

Há é vários tipos e graus de magia.

Um homem envelhece e tem os gestos represos de quem é ultrapassado aos vinte metros por qualquer pintainho zarolho, percebendo finalmente que na sua retorta alquímica fabricou tinta dourada mas não ouro. E di-lo, com toda a honestidade que acarreta o seu verbo magnificado por um uso onde nunca defraudou.

Agora, não é plausível que face à sua nova condição lhe exijam que repita o seu reportório ou que seja estanque à experiência de estar acossado pela morte. É um livro rude, direto? Sigamos a sugestão fonética que o remete para Le Marteau sans Maître, de René Char, para entender: desta vez, como um furibundo Nietzsche, o velho vate, resolveu ser intempestivo, fazer poesia à martelada.

Golpe contra golpe, jogando contra a noite a insónia, contra a anestesia da sageza a ferocidade da dor. A mim parece-me uma indagação radical, da base e do cimo, uma forma de neutralizar a atracção dos ímanes, e depois vida é isso mesmo: mudança, sob um capitoso desprendimento.

As três coisas que me entristecem no texto de Diogo Vaz Pinto sobre o Herberto:
– que ele confunda tão precipitadamente a opinião com o conhecimento – esquecido de que lhe estão ainda vedados os cinquenta anos que o separam do vate e que as modulações inesperadas que a vida inocula na escrita, lhe desenganarão todas as teses;
– depois, que, numa projecção algo heróica, exija ao livro que cumpra uma “via correcta” em vez de escutar no livro a sua respiração fanhosa, a materialidade com que é ali exposta uma particular vulnerabilidade;
– por fim, o que no Diogo tem sido infelizmente recorrente, que olhe para o mundo a partir da perspectiva de um entomologista – altaneiro, superior, investido pela missão de manter a piolheira sob vigilância e à mercê da lente com que foca o «asco».

Eis que o Herberto, coitado, sucumbiu a esta nova zona categorial – encontrou a sua “ascuidade”.
Custa-me engolir que, ainda que o livro fosse menor (não sei, não o li), falte ao Diogo a sensibilidade para perceber que o Herberto não merecerá, aos oitenta e picos, que um jovem lhe cuspa na fronha que ele já não passa de um eunuco, de um ouro convertido em lata.

Faltou talvez à sua leitura aquilo que, pelo que li sobre ele, é mato no livro: a humildade de reconhecer os limites, que não somos só urdidura, estilo, abstracção, distância, alquimia e acabamento, mas desequilíbrio, pathos, diarreia, carne viva, dor, inacabamento, e por isso palha demasiado humana.

Detecta-se no seu texto, para além duma falta de urbanidade, uma ingratidão profunda, mesquinha.
Não estará o livro à altura do estatuto do velho leão e do seu lugar na história da literatura? Talvez. Não li. Presumo que o Herberto se deixou de poses e depôs a máscara: é um ser falho e carecido de amor, como todos.

E di-lo: até a merda da poesia o trai, a ele que tanto traiu em seu nome.

Uma vez perguntaram ao Picasso o que faria se fosse metido na cadeia. Desenharia com a merda que fizesse, disse. Quem não tem cão caça com gato. O importante é o acto de caçar. Quando se fez isso toda a vida, capturar a presa ou não é irrelevante, o alvo é interior e não exterior. Daí que os arqueiros zen, nos seus exercícios, visassem alvos que se situavam a três metros de distância: o fito não era demonstrar a pontaria, mas tornar una a respiração e o acto.

O que faria Picasso ao pintar com a própria merda, é o que faz Herberto ao escrever com os recursos que lhe são próprios à lucidez consentânea ao seu actual estado. A merda só dá castanho, mas a expressão no traço não faltaria ao Picasso e isso é que seria preciso captar e não acusá-lo de uniformidade cromática… ou do aroma.

O Herberto foi sempre um dos nossos “homens dignos”. Isso merece decoro e nunca que o tomemos como objecto de repreensão e desdém. Nenhuma vaca é sagrada, mas a demanda do Graal não autoriza a soberba, que Lancelot faça cruzada contra o rei Artur, acusando, imagine-se, o mar de entrar no Amazonas.

O irónico é que, inadvertidamente, Diogo serviu o último intento do velho cisne: sacudir, aos 83 anos, o manto da unanimidade.

O Herberto deve estar contentíssimo. E eu com ele.»

O crítico não tinha razão, o livro do Herberto é um magnífico acto solitário.

Subscrever
Notifique-me de
guest
2 Comentários
Mais Antigo
Mais Recente Mais Votado
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários
Luís Filipe Gomes
29 Nov 2018 17:13

O teu texto é extraordinário, mas isso não precisas tu que eu o diga. Deixo-te uma ligação para o que eu escrevi sobre um poema referido. (É possível que te apareçam mensagens a avisar inseguro, acontece isso desde que publiquei música do Victor Jara.) Nesse poema quando ele escreve “- e dizem-me que há tanto gás por esse mundo fora, países inteiros cheios de gás por baixo!” acho que se está referindo a Moçambique, isto porque ficou famoso um furo que se incendiou em Pande perto de Inhambane no tempo das missões Apolo e nessa altura afirmou-se que a sua… Ler mais »

antonio cabrita
antonio cabrita
Responder a  Luís Filipe Gomes
29 Nov 2018 19:19

obrigado luis Filipe, abraço