Deixem-me vos levar pelas mãos até ao sítio das perguntas

[dropcap]T[/dropcap]omo Venlafaxina LP 150mg há cerca de 20 anos. À altura, antes dos genéricos, o nome comercial era Effexor XR e uma embalagem de 30 comprimidos custava mais ou menos 50 euros. Uma pequena fortuna mensal, sobretudo para um estudante cronicamente desprovido de cheta. Antes da Venlafaxina tomei outros medicamentos antidepressivos – moléculas mais rudimentares – e até um pertencente à famigerada classe dos inibidores da monoamina oxidase, ou IMAO, responsáveis por tantos efeitos secundários e interacções medicamentosas e alimentares que tomá-los comportava um risco quase tão elevado como não o fazer, sobretudo nos primeiros dias.

Não tendo nunca feito alarido do meu regime químico, nunca fiz questão de o esconder. Não tenho vergonha de depender de comprimidos para ter uma vida minimamente normal. Às vezes algumas pessoas que se tornam mais próximas perguntam-me: “já experimentaste parar de tomar?”, ao que eu respondo afirmativamente. “E o que é que acontece?” Acontece a merda inominável de cada posição do plano existencial valer exactamente o mesmo que qualquer outra. É uma coisa pela qual a maior parte da população nunca passou, felizmente. No reverso dessa bênção reside a desfortuna de sermos portadores de uma experiência incomunicável, mediante a qual os outros nos olham com o desdém de nos acharem, no mínimo, frágeis e, no limite, mimados. Como vos fazer perceber a todos que uma depressão não é (apenas) uma tristeza tão profunda como a fossa das Marianas mas também (e sobretudo) um estado no qual todas as possibilidades dispostas no xadrez da existência têm valor residual e equivalente? Comer é igual ao litro. Sair à noite é igual ao litro. Trabalhar é igual ao litro. Amar é igual ao litro. A escolha entre infinitos zeros é ilógica. E perdemos a capacidade de escolher, de facto – fazemos quase tudo por obrigação – mas não perdemos a lucidez de nos vermos a nós próprios acantonados num deserto de sombras. Acresce a este inferno o peso de verificar que para os outros, nada mudou. E isto consigo exemplificar-vos. É o que acontece num luto: o mundo, que devia parar em solidariedade para com o enlutado, continua como se nada fosse. Talvez o luto seja a melhor imagem de que disponho para conceber o que pode ser uma depressão, embora no luto exista o conforto – que não é de somenos – de existir um motivo para o baixio sem fim.

E a depressão é só uma pequena fatia do bolo da saúde mental. Temos ainda todas as esquizofrenias, todos os distúrbios obsessivo-compulsivos, todos os desvios da personalidade, os distúrbios alimentares, as manias, o autismo e o seu guarda-chuva generoso de manifestações, as deficiências cognitivas e o resto do DSM-V que me baldo de sintetizar. São muitas pessoas, demasiadas pessoas que, além de se encontrarem numa situação de carência e desfavorecimento, ainda têm de se justificar perante os outros como se os seus comportamentos fossem resultado de caprichos evitáveis e como se os medicamentos acabassem por ser uma espécie de placebos para a criança impossível de que escolheram não se ver livres. A maior parte de nós, doentes mentais, deixaria agora mesmo de tomar os antidepressivos, os antipsicóticos, os ansiolíticos e tudo mais. Não somente porque significaria que melhoráramos como assim evitaríamos os efeitos secundários que decorrem da sua toma continuada e os efeitos sobre os quais não temos ainda dados de longo prazo.

Deixem de perguntar às pessoas que conhecem se já experimentaram deixar a medicação. Deixem de lhes aconselhar desporto, meditação, passeios a pé, mascotes e sexo (de preferência não em conjunto). Já demos com os burrinhos nessas águas todas e se acabámos num consultório ou numa urgência não foi – a maior parte das vezes – por não termos imaginação suficiente para contemplar a panóplia de banalidades que se oferece como escolha ao deprimido quando o problema da depressão é, ele mesmo, um problema de escolha.

Querem ajudar um doente mental? Não sejam paternalistas. Não sejam – infundadamente – assertivos. Mesmo que acabem por perceber que o auxílio é um processo complicado e longo do qual não querem tomar parte – e isso não tem mal nenhum, a vida é só uma e o seu tempo é contado –, pelo menos despem-se do preconceito sobre o qual radicam todas as asneiras que vos ouvimos dizer.

1 Fev 2019

Cinestesias III

[dropcap]A[/dropcap]travessamos a rua, com cuidado. Olhamos para a esquerda e depois para a direita. De facto, estamos a pensar noutra completamente diferente. Sim: apressamos o passo. Movemos a cabeça no tempo certo. Chegamos ao outro lado do passeio. Mas estávamos fora do plano da realidade ou da percepção da realidade. Não por completo. É evidente. De outro modo, não conseguiríamos controlar o corpo para atravessar a rua em segurança. Por outro lado, o descuido, a distracção, leva ao acidente. A distração da realidade pode significar uma concentração num conteúdo de pensamento: uma reflexão, uma memória, uma antecipação, uma fantasia, seja lá o que for. Mas podemos também estar absortos, como dizemos. Ha realidade cria uma pressão sobre nós, uma pressão de cuidado ou de preocupação com o perigo, com o que pode acontecer. Se estiver completamente apagada, estamos à solta num mundo de pensamentos, habitualmente, um mundo interior, mas no qual nos encontramos tão espalhados e dispersos como no mundo da realidade. O mundo da realidade enquanto um mundo de preocupação, cuidado, medo, necessidade de segurança e também de segurança, preocupação resolvida, etc., etc., é um mundo tão interior como os outros mundos. Transitamos com maior ou menor dificuldade entre um mundo aparentemente não coincidente com o da realidade perceptiva e um mundo que antecipa uma preocupação ou um conteúdo cheio de esperança, entre o mundo do passado e o mundo do futuro, entre realidades e fantasias ou imaginações. A alteração entre um mundo virtual, só da “minha” cabeça e um mundo partilhado por outros implica várias interpretações. Também o mundo aparentemente só nosso é um mundo partilhado por outros que aparecem nas cenas do passado, do presente imaginado, do futuro do desespero ou da esperança. São verdadeiros actores e agentes de emoções por direito próprio. Não invento um guião no meu interesse. Não consigo. Os outros lá, são os que inspiram cuidado, aqueles de quem nos ocupamos, com quem nos preocupamos, de quem temos medo ou com quem fazemos experiência da esperança. O próprio mundo da realidade pode ter a realidade pessoal dos outros controlada, se assim se pode dizer: é o que sempre pensamos deles e do modo como se nos inculcam nas nossas vidas, como aí estão. Mas a transição entre o mundo da realidade e o mundo da interioridade dá-se no exterior, na relação extática em que nós nos encontramos tanto no mundo de uma “matrix” que produz cenas irreais mas preocupantes, que não sabemos se acontecem, aconteceram ou acontecerão, mas que irradiam uma eficácia e uma actualidade que não conseguimos despedir. Do mesmo modo a realidade pode estar fechada, mesmo em situações de perigo, como quando atravessamos a rua, guiamos um automóvel com trânsito na cidade ou a alta velocidade na auto-estrada. O mesmo acontece quando na prática de desporto, na dança por lazer, em qualquer actividade motora e somática, nós vemos a realidade no interior de um espaço estrutural onde as coisas acontecem. O ringue, o campo, a pista, o “green”, a piscina, todos os espaços são vistos estruturalmente, habitados pela relação específica, com interrogações e respostas que são dadas, por uma solicitação do próprio desporto: a braçada, o passo de dança, a tacada, a raquetada, o directo, etc., etc.. Nas mais diversas actividades em que nos encontramos podemos estar em atitudes somáticas completamente diferentes. Podemos correr e imaginar-nos na praia em Agosto a apanhar sol. Podemos estar estendidos na praia a apanhar sol e a imaginar um voo de parapente. Podemos estar no verão e imaginar que estamos a refrescar-nos no inverno. Podemos estar no outono e sonhar com a primavera. De dia, antecipamos a noite e de noite, o dia. Achamos que o que vai acontecer é A da maneira “a” e o que acontece é B à maneira de b. Em todas estas circunstâncias sentimos o gosto da vida na nossa imaginação: sentimos a doçura e amargura, o amparo e a desolação, a companhia e o isolamento. Todos os sentimentos da nossa vida são o resultado de cenas que nos situam nos mais diversos contextos em mundos que transitam da percepção para a fantasia, da antecipação para a lembrança. A percepção da realidade só aparentemente não tem um sentimento, porque a sua média, o habitual em que habitamos, nos habituou a uma mesma vibração, nada parece acontecer. É dessa média que acontece o que não esperávamos que fosse acontecer, que o apaga ou intensifica, que trás expectativas preenchidas ou ultrapassadas. A transacção da realidade para cenas imaginadas produz mundos diferentes, mundos que são paralelos uns aos outros, são criados sucessivamente ou coexistem entre si. E o nosso corpo altera-se completamente consoante nascem formas de vida diferentes irrompendo por mundos também eles diferentes. Nós somos essa variedade complexa de mundos e formas de vida. Mas todos estes mundos e formas de vida, toda a nossa imaginação e fantasia que quer apagar possibilidades más e fazer nascer possibilidades boas, tudo é uma propriocepção, uma apercepção do próprio que conecta mundos e vidas numa única vida, com uma duração que permite a transitoriedade de mundos entre si e de fantasias para realidades e de realidades para fantasias. Nós somos este “a ser aberto” de onde saem formas de vida umas fora das outras e onde entram formas de vida para dentro umas das outras, onde coexistem mundos irreconciliáveis e contraditórios, e eus tão diversos que formam a compreensão de todas as formas de vidas possíveis e biografias e decisões. Haverá um sentido para toda esta diversidade que permita a conexão numa única pessoa onde extacticamente eu sou o meu eu pré-natal, infantil, jovem, adulto, velho, ulterior? Haverá um sentido que nos ligue a cada um de nós a todas as outras pessoas que existem aí connosco?

 

1 Fev 2019

Uma gota de glitter (continuação)

[dropcap]C[/dropcap]arey tem sentido de humor e como tal teve gémeos, tem um alter ego, dois álbuns a lutar pelo primeiro lugar e será das artistas com maior número de colaborações de sempre, o que demonstra a sua generosidade e adaptabilidade não apenas social mas também musical. De Luther Vandross a Boyz II Men, de Skrillex a Slick Rick (a quem todo e qualquer rapper terá ido buscar alguma coisa) e Ty Dollar Sign (no mais recente e delicioso álbum, Caution) a Pharrell Williams, Sean “Puffy” Combs, Jermaine Dupri e Mobb Deep nos primórdios da sua carreira, sem esquecer a mítica e disruptiva colaboração com Ol’ Dirty Bastard, Mariah fez e cantou de tudo e com todos, destacando sempre o seu amor por Wu Tang Clan e o quanto aprendeu com Bone Thugs-n-Harmony.

Anitta, a actual mandante do funk brasileiro, inspirou-se no look de Carey que agracia a capa de Rainbow para sua fantasia do Carnaval que aí vem, à guisa do que Beyoncé tem feito com as suas homenagens a Lil’ Kim ou Toni Braxton no Instagram. Beyoncé, que será talvez a única das cantoras actuais que Carey menciona em entrevistas, afirma, “Diva is a female version of a hustler”. Quando lhe perguntaram sobre Jennifer Lopez, Carey respondeu “I don’t know her”, o que ao longo do tempo se tornou uma piada e até merchandising, tomando agora a forma de “I still don’t know her”, cortesia de antigas disputas causadas por supostos roubos de ideias para canções da Columbia Records já depois da saída de Carey, e para beneficiar Lopez.

A eterna rainha do Natal, talvez tudo o que Carey queira este ano seja esse reconhecimento como autora/escritora. Cantora de origens mistas, filha de um casal em que o pai era negro com raízes venezuelanas e a mãe branca, com origens irlandesas, Mariah (a terceira filha de um casamento mal visto pela sociedade da altura, cujo preconceito criaria tensões que levariam ao divórcio) nunca se considerou branca, embora tenha lidado, nem sempre bem, com essa one drop de sangue negro, e embora tivesse lutado para aceitar-se e ser aceite, quando a sua aparência branca com voz negra foi usada para mass appeal. Quando se libertou finalmente, a borboleta de Nova Iorque pôde mostrar as suas influências, que iam desde Jimmy Hendrix a Def Leppard ou à sua mãe, cantora de ópera. O que é um ídolo? Pode Mariah, a cantora que mais me ensinou sobre gangster music, que chegou a alguns número um primeiro nos tops de R&B, antes das demais tabelas, ser definida como um ídolo pop, quando tem canções para todos os sentimentos e situações possíveis, abrangendo uma miríade de géneros? Definitivamente, não.

Receamos sempre o dia em que os nossos ídolos vão deixar-nos. Tal como outros, também chorei Cohen, Bowie, Prince. Mas quando desapareceram Jackson e Houston, foi pela obsessivamente perfeccionista Carey que temi. Se estivermos vivos tempo suficiente, tudo pode, eventualmente, acontecer-nos. Carey não falhou as polémicas do playback, dos colapsos nervosos em público, dos casamentos falhados, dos dramas familiares, das cirurgias e flutuações de peso, dos excessos que um sucesso fora de série parece sempre acarretar, numa proporção assustadora de tão directa. Mas também não falhou a redenção que We belong together ou seu aclamado papel em Precious ou lhe trouxeram. A par de Britney, com a devida salvaguarda do que as diferencia, mas que continua a ter fãs eternos e também passou por um escrutínio que quebraria o mais forte de nós, Mariah será talvez um dos poucos casos de real morte e ressurreição nesta indústria que esquece, permite e perdoa tão mais e mais rapidamente a homens, geralmente com agravantes bem mais negros do que os que estas duas figuras alguma vez poderão ter (veja-se Chris Brown ou R. Kelly e os recentes comportamentos preocupantes de Drake em relação a menores).

Falando em comparações, recordemos o que disse a saudosa Houston (com quem poderíamos fazer um paralelismo com Amy Winehouse ou Lady Gaga): “Mariah is Mariah”, e talvez isso seja a única e a melhor coisa que alguém pode esperar de si mesmo e dos outros. Haverá luta mais dura, importante e recompensadora do que a de nos conhecermos e superarmos? Talvez a humanidade e a imperfeição sejam, a par do carisma e da centelha divina das suas vozes, o que faz um ícone. Como diz o ditado, it takes one to know one e, se Houston é The Voice, Carey é The most. Agora, se me dão licença, vou voltar a João Barrento, um outro tipo de ícone, pois ainda tenho muito que aprender.

31 Jan 2019

A ilusão e as asas da perdiz

[dropcap]A[/dropcap] brincadeira de excelência da minha gata tem o nome dos predadores: coloca as patas da frente em posição de recolher a presa e depois marca os dentes. Não magoa nada, mas passa o tempo nesta ribaldaria. Ela sabe quem é (e ao que vem) e raramente se ilude, mesmo quando anda atrás de um lápis e o coloca em imparável movimento sobre o soalho. Nós, humanos, somos diferentes. Gostamos mais daquilo que não somos e andamos uma vida inteira a tentar perceber quem somos. O desejo profundo de nos iludirmos, o afinco pelo ‘trompe l’oeil’, a entrega àquilo que não somos ficam-se sobretudo a dever ao facto de conhecermos a nossa condição de mortais, facto que inexoravelmente escapa à minha gatinha.

Da ilusão provém quase tudo o que carregamos no nosso marsúpio existencial: deus, cinema, net, televisão, futebol, literatura, games, fantasias, meta-ocorrências e, às vezes, até as amizades. Estas astúcias que adoram misturar ‘aquilo que é’ com ‘aquilo que não é’ fazem os embriões mais profundos da nossa espécie rejubilar. Nascemos convencidos de que uma árvore pode ser uma ideia e de que o bater de asas de uma perdiz pode ser um sinal.

Curiosamente, no mundo pré-moderno, as sociedades viam-se ao espelho através de uma única imagem. As palavras de ordem convergiam e o altar das nações providenciava deveres estritos e claros. A ilusão gravava o rosto do imperador, a crucificação de cristo ou uma imagem da “História” muito bem cimentada e o sentido das coisas ficava assim inscrito. Todos nós provimos deste tipo de mundos. As genealogias ficam registadas na pele. Em criança foi nestas atmosferas que vivi e não foi assim há tanto tempo. Por lá habitava quase tudo o que hoje condenamos e consideramos desprezível, enquanto comunidade.

Nas sociedades abertas da actualidade não há mais espaço para diagnósticos únicos. A visão que uma sociedade tem de si baseia-se em inúmeras imagens não sobreponíveis, por vezes incongruentes, e não numa uniformidade ideal. O que resultará desta liberdade é fabuloso, mas o que decorre da imprecisão remete, por vezes, para o teor da fábula (entendendo-se por fábula uma história possível que apenas existe na minha cabeça em estado volátil, contrapondo-se à ideia de uma narrativa bem definida que poderíamos designar por enredo).

Nesta transição de mundos, a idealidade foi perdendo espaço, mas o mundo da fábula e da errância ganhou terreno (os meus alunos, em fim de licenciatura bolonhesa, mal sabem distinguir a primeira da segunda grande guerra mundial). Em alternativa, também se poderá dizer que a idealidade foi adquirindo novas formas, transpondo-se da imagem única que antes era dada a partir do vértice (damos como exemplo a exposição do mundo português de 1940) para uma espécie de ziguezague, ou de zapping, que tenta preencher os muitos vazios deixados pelo caminho. É por isso que, nas últimas três décadas, surgiram formas de agir totalmente novas que passaram a integrar o mundo quase como uma norma (ou seja; surgiram e trouxeram consigo uma adenda de ‘dever ser’): o mundo dos ginásios, os corpos perfeitos, as utopias ecologistas, os hábitos alimentares, o culto do património, as correcções do género e dos costumes, a perdição da instantaneidade, o mito da interacção, o consumo pelo consumo, os caprichos do chamado “tempo real”, etc., etc.

Neste volte-face em que se perderam referências (os media passaram a reduzir as escalas de tempo à medida dos acontecimentos frugais) e formas de dever rigorosas, ganhou-se em pluralidade e em individualidade, mas nem sempre em subjectividade, pois a formatação e o fluxo permaneceram enquanto medida. Se lermos os romances que integram a Tetralogia Lusitana de Almeida Faria, escritos entre o início dos anos sessenta e o início dos anos oitenta (Paixão, Cortes, Lusitânia e Cavaleiro Andante), percebemos como os grandes acontecimentos nunca saíam de cena (eram realmente referências), apesar de serem sempre desafiados pelos pequenos acontecimentos do dia-a-dia. Esta tensão, no nosso tempo, quase se eclipsou, apesar de o acesso (aparente) aos acontecimentos que escapam à nossa experiência pessoal ter aumentado imenso no último século. Em contrapartida, a natureza dos acontecimentos pouco variou em proporção.

Ainda que, felizmente, as nossas sociedades tenham desistido de caminhar no sentido de um clímax ou de um ponto ómega da “História”, o desejo profundo de nos iludirmos terá praticamente atingido o seu auge. A nossa condição de mortais, a tal condição que escapará à minha gatinha, parece hoje viver apenas na net e na televisão, lá onde têm lugar as guerras, seja noutras áreas reais do planeta real, seja sobretudo nas séries ficcionais mais aplaudidas. Como se tudo fosse feito da mesma massa. A felicidade é, muitas vezes, uma ilusão generosa que é vivida até aos limites sem que estes se dêem claramente a ver. Antes isso, pois a felicidade absoluta, tal como os gatos com asas de perdiz, é coisa que não existe. Nem nunca existirá.

31 Jan 2019

A inocência e a plenitude

27/01/2019

 

[dropcap]U[/dropcap]ma rede de olhares mantém unido o mundo, não o deixa cair. As palavras são forcas onde aos poucos penduro a razão. Pago em goles de sangue pela respiração. Temos sede, pressa e golpeamos com o osso de uma flor na treva. O cervo vai a beber e na água aparece o reflexo de um tigre: o cervo bebe a água e a imagem e torna-se igual ao seu inimigo; só damos vida ao que odiamos.

Todos os que têm pontos de referência no espírito, quero dizer de certo lado da cabeça, em zonas bem delimitadas do cérebro, todos os que dominam a sua linguagem, todos aqueles para quem as palavras têm sentido, quantos crêem que existem alturas na alma e correntes no pensamento, os que são o espírito da época e assim designaram essas correntes de pensamento, penso nos seus trabalhos precisos e nesses guinchos de autómato que a todos os ventos empresta o seu espírito – são uns porcos.

Esta rede de versos e estrofes de diversos poetas que traduzi e que montei acima é a minha rede de caboclo que não deixa cair o meu mundo. Durante dois ou três anos traduzi dezenas de poetas e várias línguas, só para não me exasperar e recuperar o humor nas flutuações da minha vida em Maputo: os poemas funcionam como respiradores. Um terço deles, num volume de quase duzentas páginas, onde antologio vários dos meus poetas hispânicos, vai conhecer edição, pela Letra Livre, que agora me propôs isso. Foi um bom convite.
Aqui deixo dois poemas transcriados por mim e de que gosto muito. O primeiro é de José Ángel Valente:

ÚLTIMA REPRESENTAÇÃO
A parlar d’ira, a ragionar di morte.
Rime:CCCXXXII

Os deuses/ desta Primavera/ não me foram propícios/ e cautelosamente os execro, mãe/
incógnita, blasfémia, fonte do rogo.//

Dispuseram os seus praticáveis negros/ sobre o tablado./ Começa o espectáculo,/ mas só um final se representa. //

Ao centro da cena, um homem/ ou a figura de um homem/ de macilentos zigomas ostenta/ uma pesada cornadura./ Por cada um dos cornos/ faz beber sujos detritos líquidos/ à sua exânime estirpe.//

Excremental o homem./ Nada / com ele nem nele podia/ crescer, multiplicar-se./ Nem sequer o pranto./ Povoai a terra./ Oh deuses,/ desatino sem fim, sem fundo, o deste sonho. //

Fita as lamparinas, deslumbrada,/ a mulher nua que alumia/ com uns límpidos e ofuscados olhos o nada. //

Começa a cair o pano./ A sombra/ ameaça cair outra vez sobre a sombra. //

Só eu aplaudo, na sala apinhada/ de espectadores mortos.

O segundo é de um tremendo poeta flamengo, Hugo Claus:

Sexta, 14 de Novembro, aniversário de Dante,/ laureava no meu jardim, o crepúsculo estava clemente,/ e cismava em Dante. /Sou assim feito, penso em Dante sem parar./
Tenho qualquer coisa dele, acho. Em moderado.//

Então chegaram os dogues voadores numa nuvem de enxofre/ penas e ganidos, mesmo aos meus pés. /Vazados, como num fragmento de Canto, / essa corja abateu-se sobre o meu relvado / e pôs-se a esgaravatar e a gralhar num chavascal / odioso, um verdadeiro pesadelo,/ as penas espalhavam-se ao quintal dos vizinhos/ entre os seus moinhos miniatura e os seus gnomos./ Depois, de repente, eclipsaram-se. Uma verdadeira visão de Dante.//

Escutem, eles deviam evidentemente ter-se contido./ Acreditem-me, uma fúria daquelas,/ aquela crepitação de garras e asas, mais a berraria / e o pivete que se entranhou por semanas no vestuário,/ não, como erudito, aquilo agradou-me pouco.//

Sobretudo, e é disso que se trata, que o meu móbil / tenha passado por um momento tão indigno, que digo eu,/ eles chamaram-lhe um figo – tragaram-no.//

Tinha-o construído eu mesmo, à Calder, airosa e / ingenuamente suspenso em cores primárias,/ um triângulo, um círculo e um quadrado: eis tudo,/ que era também, por acaso, o tudo/ a que eu chamava o meu “Universo”, /pois não simboliza o triângulo o corpo/ físico, oral e mental, / e não é o quadrado a água o ar e o fogo e a terra, / e não é o círculo, digo bem, o círculo, unicamente / a realidade terminal? / Aos três elementos, ligados por um esvoaçante fio de ferro,/ tinha-os pintado de rosa, a dar para o salmão, /com o seu quê de elegante.//

Como eu disse aos polícias: «Essa bicheza / comezinha e irresponsável não apenas demoliu / e se empanturrou com uma obra onde eu in-ves-ti / anos de trabalho manual,
mas também com a projecção da minha alma e da minha ética./ E quem, meus Senhores, me poderá alguma vez indemnizar?»//

«Caro Senhor», disseram os polícias, «o infinito / contém em si múltiplos elementos informes».//
Eles anotaram a minha queixa. Queixa /contra uma grandeza desconhecida /de digestão infinita. / Odeio a minha mulher e os meus rebentos./ Dante é a minha única consolação.

28/01/2019

Escreveu Paul Auster: «Aquilo que admiro em Perec é a rara combinação, na sua obra, de inocência e de plenitude. É raro encontrar estas duas qualidades juntas num mesmo autor. Cervantes possuía-as, Swift e Poe também; e há vislumbres delas em Dickens e Kafka. Por inocência entendo uma pureza de intenção absoluta. A plenitude traduzo-a por uma fé absoluta na imaginação. É uma literatura caracterizada pela efervescência, um riso demoníaco, a alegria. Não é a única experiência que podemos obter com os livros, mas é a experiência fundamental, aquela que rende possível todas as outras», e eis, aliás, o que eu gosto nos dois. E é o sentimento de termos logrado esta feliz combinação que pode tornar jubilosa a conclusão de um romance.

Foi o que me aconteceu agora com A Porta Entornada, o romance que dei por terminado, onde pela segunda vez julgo ter conseguido criar um mundo autónomo, com personagens à altura dessa dimensão “marciana”.
Estou um pouco arrombado, mas feliz.

31 Jan 2019

A amizade que se perde

[dropcap]E[/dropcap]ra um daqueles dias que Lisboa costuma oferecer em Janeiro: um sol de Inverno esplêndido, um azul límpido e com um gume doce que contraria qualquer assomo de tristeza. Estava sentado na esplanada do café do costume com um velho amigo, observando em silêncio quem passa. A amizade antiga tem esta coisa maravilhosa: não se inquieta com o silêncio do outro; compreende-o e partilha-o sem questões ou ansiedades. E assim nos mantínhamos, resistindo ao frio que se fazia sentir até a menina Marina – a sábia do bairro – disparar de forma inatacável: «Está frio».

Pois estava, concordámos nós de forma estremunhada, o silêncio quebrado. Mas o meu amigo pareceu aproveitar a boleia das palavras da menina Marina e sem aviso perguntou-me:
– Conheces alguma canção sobre a perda de um amigo?
– Sobre a morte de um amigo?, indaguei surpreendido.
– Não. Sobre o fim da amizade. Sobre a morte de um amigo mas em vida, amigos que deixam de o ser, que se zangam. Conheces?

Aqui tenho de fazer uma pausa para explicar o porquê do enunciado da pergunta. Gosto e conheço muitas canções devido a, entre outras coisas, ter o inócuo defeito de ver a vida também como um musical – cada emoção, cada situação que enfrento é passível de ter banda sonora apropriada. Esta convicção já me levou a ter de suportar olhares reprovadores em lugares públicos quando começo a trautear baixinho, sobretudo em repartições de Finanças. Enfim, mais uma vez divago. Adiante. De forma apressada respondi com duas canções, uma mais conhecida do que outra: o auto-explicativo We Used To Be Friends, dos Dandy Warhol; e o famoso canto de separação de Lennon e McCartney, Two Of Us. Em ambos os casos são expressões dolorosas, a primeira mediana e a outra genial – mas ambas com um fundo negro de dor por sarar.

E foi só depois de exibir mais uma vez o breviário de conhecimentos inúteis que me habita que percebi: o meu amigo estava a sofrer. Tinha perdido uma amizade que julgava – como tantas vezes julgamos – ser para a vida. Uma zanga por motivos que para aqui não interessam deitou fora um património acumulado de anos, que nada nem ninguém podem substituir. Sei do que escrevo, sei como o olhei porque me reconheci: a perda de uma amizade – essa flor de cristal que exige uma terna vigilância – pode ser e muitas vezes é mais sentida do que qualquer amor. Já me aconteceu, infelizmente, e mesmo enquanto escrevo esta crónica tenho de enfrentar demónios que julgava desfeitos.

A perda de uma amizade não é fácil justamente pela raridade que é tê-la e mantê-la. Muitas vezes dói mais do que a separação amorosa. Num texto magnífico, escrito no século XVII , D. Francisco de Portugal explica a diferença entre amizade e amor: «O amigo pretende para o que sempre ama, e o amante para o que pode deixar de amar. Um cuida de si, outro descuida-se de si». E deixa esta verdade bela como a neve: « (…) a amizade é uma afeição reverente, ou um amor envergonhado, que tem mais de prazer do que desejo.». Isto, quando se vai em vida, é insubstituível. Para os amigos que partem deste mundo teremos sempre a saudade e o fraco consolo de termos sido vítimas de uma lei que um dia também nos irá condenar. Mas a amizade que se perde por afastamento intencional não dói pela distância: magoa pela proximidade, pela impossibilidade de chegarmos ao que já esteve em nós e está agora tão perto. E fica sempre um grão de culpa – improvável, rasteira, insidiosa culpa.

O dia pareceu ficar mais frio. Ouvi os lamentos do meu amigo sem saber o que responder pela simples razão de que nenhuma resposta iria servir. Ao despedirmo-nos, abraçámo-nos sem uma palavra embora ao mesmo tempo estivéssemos a dizer “não me deixes, que a vida já é o que é”. Sim, deveria haver mais canções sobre isto.

30 Jan 2019

De Gritos

Horta Seca, Lisboa, 20 Janeiro

 

[dropcap]C[/dropcap]hegou há dias, mas só agora consigo lamber a cria: «Desenhos em Volta de Os Passos de Herberto Helder», que reúne os desenhos da Mariana [Viana] feitos a partir do célebre livro «em contramão», na feliz expressão da posfaciadora, Diana Pimentel (capa algures na página). Neste volume, o primeiro em parceria com a Imprensa Nacional, incluímos ainda frases soltas, deliciosamente manuscritas pelo Luís [Manuel Gaspar], e carta de HH acerca do trabalho, com que se maravilhou, e na qual confessa o desagrado com «Os Passos em Volta», afinal, com a sua obra, «que, se me ponho a perscrutar, me vai cada vez menos satisfazendo.» Alguns dos bichos da Mariana esticam os pescoços à maneira retrátil dos velhos telescópios. Ora este seu livro resulta do mesmo expediente, estica para surrealizantes imagens o texto incandescente de HH.

Apesar dos espelhos aqui e ali, não procura tanto reflectir o texto, mas interpretá-lo. À maneira de uma encenação, que inclui cenários, falas, gestos e luz. Levou ao limite a animalidade que os contos – ou capítulos de romance, segundo alguns – contêm e escolheu o corpo como matéria. O cão virou marinheiro, mas não se deixou ficar na mera antropomorfização. A genética visual permite as mais díspares combinações e o geneticista enlouqueceu. A copa da árvore pode agitar cabeças de cão, com elegância. Mas os passos da aranha perturbam na sua semelhante com um bebé. De um mamífero pode sair simplesmente um peixe, mas logo dar-se uma obscura transmutação em ser do indizível. Corpos cruzam corpos, mergulham uns nos outros, voam como se se atravessassem, abolindo as matérias, as diferenças entre carne e céu, entre água e exosqueleto, entre ramos e pele. As cenas, apesar de soltas, estão prenhes de energia, movimento e som. Impossível ser assim no silêncio. Nem nos sonhos. Ecoa a frase, que naquela grafia de minúcias parece agora locomover-se: «Serei um colecionador de gritos?»

Instituto Camões, Lisboa, 21 Janeiro

Chego atrasado à sessão dobrada em C, de Camões e Cervantes, mas ainda a tempo de ouvir o Luis [García Montero], director do Instituto Cervantes, primeiro, e logo depois o Helder [Macedo] fazerem o elogio do mau comportamento. Mais: reclamando a sua urgência. As figuras maiores de ambas as culturas foram brigões, sofreram no corpo os combates, enfrentaram as leis, civil e religiosa, experimentaram a prisão, viveram aventurosamente, conheceram a miséria. Opinaram e escreveram, se não contra, apesar da maioria e do seu tempo. Camões anunciou o direito à felicidade na terra. Para desenhar o humano, Cervantes fez da escrita o que lhe deu na gana. A assembleia nem pestanejou, as afirmações não fizeram risco na solenidade. O pretexto eram dois volumes, «Cervantes Y Portugal – Historia, Arte y Literatura», sob organização de Aurelio Vargas Díaz-Toledo, José Manuel Lucia Megías (Ed. Estratégias Criativas), compilando as actas de colóquio de 2016, e «Camões e Cervantes – Contrastes e Convergências» (ed. Institutos Cervantes e Camões), com dois ensaios de Helder Macedo e Carlos Alvar. Do lado castelhano, Alvar recolhe os indícios da relação de Cervantes com Lisboa, sobretudo a partir do seu póstumo «Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda. História Setentrional», relato de uma peregrinação, que começa em mortífera ilha, no Círculo Ártico, e se insere em tradição peculiar e com ecos em certo trabalho que estamos prestes a editar, por coincidência. Não se alonga, Cervantes, mas basta para apresentar os portugueses como grandes na escrita de epitáfios e na morte por amor. Sobra ainda extraordinário pintor capaz de em um dia compor tela… épica. Faz-se hábito, o brilhantismo do Helder nas sínteses, somando como poucos a erudição e o pensamento desafiante. Volta a acontecer neste «Luís de Camões: os opostos complementares», que acaba perguntando se a ilha bárbara de Cervantes, nesta novela póstuma, não será «o reverso infernal da iniciática “ilha angélica, pintada” n’ Os Lusíadas». Mas a correspondência conceptual entre Os Lusíadas e Don Quixote encontra-a, está bem de ver, na utopia. «A épica – ou anti-épica – camoniana remete para o seu oposto arcádico numa idealizada Idade de Ouro recuperável num imaginado futuro. A anti-épica – ou épica – cervantina deriva de uma idealizada ética cavaleiresca que recuperasse valores equivalentes aos arcádicos num presente imaginado.» Apesar destas leituras refrescantes, até em ambiente institucional, cada 10 de Junho parece afastar-nos mais da Ilha dos Amores.

Mymosa, Lisboa, 22 Janeiro

Algumas desatenções podem resultar em explosiva surpresa. Trazendo o assunto Antero para a mesa dos projectos, imaginado futuro que nos dai hoje, sou apresentado pela Manuela [Rêgo] ao Andrea Ragusa. Não tinha dado pelo lançamento destes «Pensamentos», do Giacomo Leopardi (ed. Edições do Saguão), e inopinadamente recebo-os da mão do tradutor (com Ana Cláudia Santos). Folheio-o e logo ressalta que «o mundo é uma liga de malandros contra os homens de bem, e de vis contra os generosos». Apoiados nestas reflexões curtas, entramos, qual caminhantes, em plena natureza humana. Descrição de costumes, observação aguda, digestão da experiência, reflexão livre, eis perfume do que se encontra nestas páginas bilingues e tratadas que nem jardim barroco. Contrariando alguma filosofia, tropeçamos no tédio, apresentado como «o mais sublime dos sentimentos humanos», já que «o não poder contentar-se com nenhuma coisa terrena, nem, por assim dizer, a terra inteira; considerar a amplidão inestimável do espaço, o número e a mole maravilhosa dos mundos, e achar que tudo é pouco e pequeno para a capacidade do próprio espírito […] – parece-me a mim o maior sinal de grandeza e de nobreza que se possa ver na natureza humana.» Chega o Carlos [Morais José] e evoca, de imediato, a cena do «Amarcord» onde a comparação de Leopardi com Dante se faz frase de engate. Valha-nos S. Fellini, padroeiro das grandes verdades! E depois encontram-se pérolas de auto-ajuda (editorial). «Diz la Bruyére uma grande verdade: que é mais fácil um livro medíocre ganhar fama em virtude de uma reputação já adquirida pelo autor, do que um autor ganhar reputação por meio de um livro excelente. A isto pode acrescentar-se que talvez a via mais directa para adquirir fama é afirmar com segurança e pertinácia, e de todas as maneiras possíveis, tê-la adquirido.”

30 Jan 2019

A utilidade do min tói

[dropcap]“N[/dropcap]ão sei. Falta-me um sentido…”. E é com esta frase de Álvaro de Campos a martelar-me as têmporas que me afasto do tempo irreal dos cronómetros insensíveis à real passagem das horas. Tenho para mim que é inútil a reza fria e sem sabor nas papilas gastas e, por isso, pouco temerosas. A língua enrola as palavras, desdobradas em suspiros, sombras destacadas de paredes de quartos interiores.

Ajoelho-me, contudo. Não para meditar que sou ossudo e pouco afoito à concentração. Menos ainda em súplicas ou lamentos, estranha disciplina de mulheres, arrojadas nos templos mas temíveis nas brigas. Ajoelho-me enquanto me dirijo a um sítio perfeitamente conhecido, não vá o sentido esvair-se também do próprio quotidiano. Faço-o em silêncio, enquanto gracejo para o lado. E reservo para mim, só para mim, essa “oscura noche”. E com que deleite me repito: “Não sei. Falta-me um sentido…”

Pagaria caro, neste momento, a menor ousadia, o corpo calibrado de medo, ajoelhado, vergado, verdascado e — porque não? — sangrento. Rio-me, contudo, dessa minha odisseia de atravessar ruas, calcorrear passeios, olhar para dentro de lojas afáveis, servir-me dos gestos alheios para compor um mundo.

Só os outros me fazem o sentido, na certeza plena de cada gesto. Não pensam e são belos como os gatos, respiram e são pujantes ainda que a sua respiração seja roufenha, desde que não saibam que respiram e assim escapem à repugnância de duas frases articuladas e com sentido ainda que vago.

Vagueio e só assim advém o esquecimento, pelo cansaço dos músculos e a acção lenta do frio (“Não sei. Falta-me um sentido…”), até me recolher nos braços tépidos de algum min tói.

29 Jan 2019

Algodão na lua

[dropcap]A[/dropcap] China inaugura com êxito a sua era espacial. O lado oculto da Lua, esse recanto galáctico que alude à sua própria redundância, é no entanto uma expressão inglesa que remonta a 1959 nos anais da expansão espacial e quando a nave Lune 3, “darque side”, uma sonda soviética transmitiu as primeiras imagens de um ângulo lunar nunca visto na Terra. A China chegou agora a esse local ainda não transmitido e levou já peculiares visitantes como sementes de algodão. É efectivamente um momento de relevo pela audácia de pensar um solo plantável, e pela analogia do algodão, algidez, brancura, maciez… É um convite a coisas idênticas e inaugurais estes primeiros flocos de branco lunar.

Vivemos hoje um tempo com vias de transporte desconcertantes, pois que é mais barato ir de avião ao norte da Europa em duas horas do que apanhar um comboio para o Porto, ou mesmo apanhar um táxi em Lisboa, ou ir de barco até Cacilhas. Como o dinheiro, e sobretudo o dos jovens, é sempre pouco, eles preferem, e bem, ir para longe. As redes de transporte são tentáculos maciços que dão já a volta ao mundo em modo subterrâneo e aéreo e dos excessos acolchoados tão do agrado de uma inativa meia idade, parece também agora esmorecerem neste labirinto onde entre céu e subsolo nos encontramos a preços módicos e até confortáveis.

São temas que devem ser concertados com a inaugural viagem da China ao lado oculto da Lua, e o seu talento rápido de colocar em marcha uma fonte produtiva. Ela, que sempre nos pareceu um gigantesco útero sem perfil expansionista, é sem dúvida neste instante o nosso mais formidável luar de Janeiro. «Minha pequenina décima oitava irmã tu és a chuva no meio do céu», canção popular chinesa; dezoito é mesmo número de Lua e parece-nos já daqui uma vasilha de água cristalina prateada com flocos de algodão no nosso céu de antanho tão parecido com o que está para vir.

Voltaremos à parábola do semeador, um roteiro previsto pela voz de Isaías (terceiro de Isaías 10-11): «a palavra do Senhor é semente». Vejo então hoje que a semente morreu. As condições não estão ainda preparadas para a nova seiva e é preciso uma nova componente que prepare estes chãos para lançarmos os bens da Arca. A China não tardará a recuperar a marcha destas descobertas com sucessos tão garantidos como as árvores trepadeiras, e a facultar uma aceleração de acordo com a urgência humana, pois que os desígnios terrenos a prepararam para nobres missões. Juntas, vão outras, para iniciar a do algodão que não resistiu ao frio da noite lunar. A algidez das suas sombras oculta desassossegos, e os seres vivos precisam da sua fonte de calor e alguma travessia nos levará de ora em diante a outros sóis.

Da lã, nem falar por enquanto. A natureza dela exige comunidades agrárias bem mais estruturadas e modelo animal em rebanhos, mas deixemos que se instalem outros frios para que um ovular bicho da seda se misture algures nas dobras planetárias de locais remotos. E que poderemos fazer então num corpo vazio de ocultos labirintos? Ainda não se sabe bem, e o que não se sabe só a ciência dirá como contornar. A Lua, essa, terá sempre no imaginário os dons dos feiticeiros e dos xamãs do mundo que reservam as suas fases para o equilíbrio dos campos energéticos. O país do Sol Nascente estará menos preparado para esta alba onde não nasce a alvorada? Não está. Penso que estará a transformar as condições de uma possível fonte de progresso onde imóvel perante críticas saberá desenvolver os campos futuros a desocultar. Talvez campos de arroz e enxertos de cerejeiras, o que levaria em trafego, anos luz de produção em série para a outrora faminta humanidade escravizada sob o peso da necessidade. As fomes neste estado são outras, e a capacidade de as governar, um trunfo sem igual. Peregrinaremos sempre em torno de qualquer coisa, ora inspecionando, ora tirando dividendos da conquista, e se a Terra já treme é muito bom que se preparem as bases da partida e da escalada mais larga pois que giramos em torno a nós como um mecanismo cego.

Sentada numa tartaruga, a China chegou bem mais longe que a Lebre que se vê agora a braços para dar sentido ao movimento de um novíssimo propósito. Enrolada no labirinto dos dogmas e pouco audaz em escalar etapas, começa a soçobrar a um excesso de diálogo de surdos em várias línguas espalhadas, que em coro, produz o ruído que afugentará os fazedores. O futebol é uma missão remissiva nos tempos vindouros, o jogo acabará breve, e os campos vazios falarão de nós bem mais que a política, bem mais que a saturada economia que numa ânsia de fome lunar desertificou o que havia de vida e de doce algodão também aqui na camada terrestre.

Por isso a Terra se cobre da sua seiva e nos convida agora a ir deixando de mansinho os seus beirais.
Para 2020, a China preparou um satélite de iluminação oito vezes superior ao brilho da Lua e ela sempre estará nestes anos conectada com o satélite que a fará desdobrar-se à sua quimérica natureza de multiplicadora de factos e de condições. Se as alcateias correrem para lá o seu escarlate terá efeitos mais sombrios pois que duas Luas progredirão para um coro demasiado bravio num presente onde se escuta já o ribombar dos tambores.

29 Jan 2019

Emigração chinesa sob monopólio britânico

[dropcap]A[/dropcap]ntes de ocorrer a proibição da emigração contratada por Macau, marcada pelo Governador Visconde de S. Januário para 27 de Março de 1874, nos três primeiros meses desse ano embarcaram colonos, não para Havana, mas para o Peru. Seguiram 1905 chineses para Callao de Lima, a Superintendência da emigração repatriou 371 e 127 colonos foram retirados pelos parentes. Os corretores, já sem conseguir com facilidade colocar nas entrevistas substitutos dos culis raptados e assim iludir as autoridades da emigração, somaram a cifra de 17 punidos por abusos contra os regulamentos e 432 colonos preferiram ficar por Macau, em vez de serem repatriados.

Até à proibição do tráfico de cules, “calcula-se terem saído de Macau nesse quarto de século 500 mil cules, o que rendeu enormes fortunas”, refere A. Corvo.

“Hong-Kong felicitou Macau pela suspensão dos abusos e calamidades e, tendo assegurado o controlo exclusivo do tráfico, dispensou as drásticas regulamentações, que foram então substituídas por uma ordenança consolidada. A partir daí emigrantes chineses contratados e baratos foram praticamente monopolizados para o desenvolvimento das colónias britânicos perante a perspectiva de Macau retomar o tráfico na mesma linha que Hong-Kong, mas com estalagens para cules em vez de barracões. Enquanto o cônsul britânico em Cantão comunicava o facto ao seu ministro em Pequim, o vice-rei de Cantão enviou um funcionário militar a Macau com a ameaça de que, se os barracões fossem restabelecidos como estalagens, enviaria canhoneiras e tropas com ordens para destruir tais estalagens e trazer para Cantão as pessoas implicadas, para castigo – ao que o Visconde de São Januário, Governador de Macau, respondeu sarcasticamente que, em caso de tal eventualidade, as tropas portuguesas cooperariam na supressão do ilícito tráfico. Espantosamente, todos os clamores humanitários cessaram por completo, como por magia, com a completa supressão do odioso tráfico em Macau, como se fosse apenas ali que os cules passavam mal…”, segundo Montalto de Jesus (MJ), que refere, “A hipocrisia não podia esconder uma verdade evidente. Independentemente dos abusos no tráfico de cules de Hong-Kong, posteriormente caracterizado também por frequentes raptos de mulheres, podia-se igualmente ter averiguado se os plantadores cubanos, cujo interesse era manter os cules saudáveis, conseguiriam ser mais empedernidos do que os senhorios de Hong-Kong, cujo sistema de rendas exorbitantes levava a classe dos cules a viver como manadas, em abominavelmente superlotadas e insalubres espeluncas, viveiros dos subsequentes horrores das pragas; e se a escravidão nas plantações de cana-de-açúcar das Antilhas, ou mesmo nos depósitos de guano das Ilhas Chincha, era mais deplorável do que a ruína física e moral infligida pelos antros de ópio de Hong-Kong, ou mais lastimável que o trabalho, próprio de mulas, dos cules das cadeirinhas, de vida curta, que arfando e transpirando transportavam a sua carga humana pelos montes de Hong-Kong acima …”

Tratado com a China

Após a proibição da emigração contratada por Macau, “a Espanha procurou defender os seus direitos, obtidos por tratado, de contratar trabalhadores chineses para as colónias espanholas e a China foi aconselhada a reconsiderar cuidadosamente o assunto”, segundo MJ. O Governo Qing, para substituir a Convenção de 1866, celebrou em 1874 convenções com o Peru (independente em 1826, que entre 1849 e 1874 recebera 90 mil cules) e com a Espanha para Cuba, [ambas ratificadas em 1877] e desde então, todos os países para recrutar emigrantes chineses eram obrigados a assinar acordos com o governo chinês, que para aí enviava representantes diplomáticos para proteger os seus cidadãos. Segundo Victor F. S. Sit, têm eles no local de destino o apoio dos serviços consulares chineses, onde os havia, e de Portugal para os procedentes de Macau.

O Independente em Maio de 1874 relatava a estranha amizade do Governador Visconde de S. Januário com o agente peruano Sr. Nicolas Tanco Armero, que pelo Regulamento dos Passageiros Asiáticos e seu Transporte pelo Porto de Macau, se preparava “para continuar a fazer a emigração e se escudava no artigo 11.º que diz: – O capitão do navio assinará um termo obrigando-se a apresentar ao cônsul português do porto do seu destino, se o houver, etc..” Outros artigos desse Regulamento de 1874 referem não ser permitido aos navios destinados ao transporte de passageiros asiáticos estarem munidos de grades, cadeias, ou de quaisquer aparelhos com o fim de encerrar ou de tolher a perfeita liberdade aos passageiros e o artigo 9.º diz dever o número de passageiros regular-se à razão de 3 m³ para o alojamento de cada passageiro adulto, ou para dois menores até 12 anos.

Em 1883, O Correio de Macau refere: “… a reabertura da emigração livre por Macau abre na imaginação vastos horizontes de movimento comercial e de prosperidade para esta colónia. A ser realizável a emigração livre, não há dúvida que os projectos, hoje imaginários vinguem um dia. É necessário ter em vista a oposição acintosa que a China fará à emigração por Macau”.

Ministro plenipotenciário na China, Japão e Sião, Tomás de Sousa Rosa tomou posse como Governador de Macau a 23 de Abril de 1883 e segundo Fernando Correia de Oliveira, “Após análise da situação que foi encontrar, Sousa Rosa conclui que ela era insustentável e podia, de um momento para o outro, colocar Portugal numa posição muito crítica. A questão de um tratado com a China era uma premência absoluta. Foi ajudado pelas circunstâncias. Robert Hart visita Macau em 1886. Tendo desistido momentaneamente do projecto da compra do território [de Macau] aos portugueses, estava agora mais interessado, como inspector-geral das alfândegas chinesas, em controlar o tráfico de ópio para o continente e da mão-de-obra chinesa para as Américas. Também a ele, agora, interessava convencer Beijing a assinar um tratado em letra de forma com Portugal. [Com ele, o Governador conseguiu as bases desse futuro tratado com a China]. Além disso, circulavam boatos de um acordo secreto entre Portugal e a França (a grande rival da Inglaterra) sobre a troca de Macau e da Guiné portuguesa por território do Congo sob soberania francesa.” Lembrar terem os franceses conquistado a Cochinchina em 1862. Ainda Governador, Sousa Rosa acedeu ao pedido do Vice-rei de Cantão para Portugal se manter neutral caso a França entrasse em conflito com a China e tentasse atacar Cantão.

Exonerado de Governador a 12/3/1886, tomava posse do cargo a 7 de Agosto de 1886 Firmino José da Costa, mas ao contrário do que era normal, em vez do Governador de Macau foi em 1887 Tomás de Sousa Rosa nomeado Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário em Missão especial à Corte de Pequim. Após longas e penosas negociações, assinou a 1 de Dezembro de 1887 um novo Tratado de Comércio e Amizade com a China, onde era reconhecida a perpétua ocupação e governo de Macau por Portugal.

28 Jan 2019

Até já, Joana

[dropcap]A[/dropcap] minha Joana tinha cerca de quinze anos quando morreu. A Joana era uma gata. Minto. Era “a” gata. Um bicho único. Porventura, e chegado apenas à segunda linha desta crónica, exagero. A minha mãe, que não se cansa de repetir alguns ditados capazes de sintetizar a vida e as suas experiências num conjunto bem medido de palavras, seria lesta a dizer “não há zorra a quem lhe pareça os filhos feios”. Para quem não sabe, zorra é uma raposa velha e matreira. Ao contrário de nós, citadinos, a malta do campo aquilatava a beleza dos animais pelo préstimo. A raposa, típica assaltante de galinheiros, não granjeava a simpatia – estética ou outra – dos donos das galinhas.

A verdade é que, embora goste muito dos dois gatos que neste momento me permitem morar com eles, a Joana era especial. O Rim e o Croquete são fantásticos. Tão diferentes um do outro como dois irmãos e capazes de em conjunto exprimir inteiramente a paleta dos comportamentos felinos. Mas a comparação é injusta, Rim e Croquete são dois magníficos exemplares da espécie Felis catus. A Joana era algo mais, estava mais próxima do humano do que dos gatos. Como diria a minha mãe, do alto da sua proverbial sapiência, “só lhe faltava falar.”

A Joana teve uma única ninhada de gatos. Gata de apartamento, não saía de casa. O que não impediu um gato Cardinali de entrar pela janela da cozinha (ainda não sabemos como) e de nos trocar a visita de médico por três gatinhos. Há vinte anos, eu tinha o sono muito mais pesado do que agora. A Joana (ainda não sabemos porquê) decidiu parir em cima de mim. Eu estava a dormir e só acordei na terceira e última prenda.

E quando acordei, encharcado de líquido amniótico, imaginei por momentos que com 24 anos tinha feito o meu primeiro xixi na cama. Passadas as formalidades de lamber copiosamente os filhotes e de comer a placenta (a Joana, note-se), decidi instalar mãe e filhos numa caixa de cartão ao lado da cama. A Joana, despeitada, passava o dia a levar os gatos pelo cachaço da caixa para a cama. Eu passava o dia a fazer o movimento inverso. Ela, que sempre dormira comigo, não percebia: renegas os miúdos?

Quando o Guilherme nasceu (este sim, meu) tive algum receio. É comum falar-se da ciumeira dos animais de estimação em geral e dos gatos em particular. A Joana não ia para nova. “You can’t teach an old dog new tricks”, pensava. Para minha surpresa, a Joana adoptou o Gui. Velava-lhe o sono e avisava-me quando ele acordava. Zangava-se comigo quando eu me zangava com ele. Mordia-me se lhe falava mais alto (também me mordia se cantava, mas isso compreendo muito melhor).

A Joana ainda passou por três mastectomias (as vantagens e desvantagens de ter oito mamas). São muitos meses com uma espécie de copo de Dry Martini à volta do pescoço. Felizmente para ela, o óbice de ver mais longe do que o presente estava do meu lado. Para a Joana, o incómodo da situação resumia-se às visitas ao veterinário. Não tinha – exceptuando os derradeiros dias – dores. Apesar de muito humana, não lograva compreender a inelutabilidade do futuro. Os dias da Joana eram os dias de qualquer gato: dezoito horas de sono, repartidas entre o sofá e um vaso desabitado na varanda e meia dúzia de refeições diárias.

O papa Francisco esclareceu-nos: um céu sem cães não é propriamente um céu desejável. Ainda não se pronunciou acerca dos gatos. A despeito disso, estou confiante de que, em havendo um quintal supra-terreno, a Joana lá esteja a desperdiçar tempo. Espero que ainda me conheça à chegada. Até já, Joana.

25 Jan 2019

Redução. Construção. Destruição. 1

[dropcap]H[/dropcap]á tantos métodos quantas as filosofias desde que se pretendeu fazer filosofia, fundar uma filosofia. Mas mais. Ao pretender-se constituir uma filosofia, o constituir uma filosofia é uma formulação que expressa o método, o encaminhamento, o processo que leva à formação de uma perspectiva que dê acesso ao que existe aí no mundo connosco, um mundo de coisas e um mundo de pessoas. Assim, as respostas positivas dos pré-socráticos à pergunta pelo princípio que causa todas as coisas, a pergunta concreta pela forma maciça como o ser e a vida nos confrontam consigo, resultam de métodos, de processos de formação do caminho que procura a genealogia do não ser até ao ser. Se as respostas parecem ser ingénuas: água, ar, fogo, éter ou os quatro elementos em simultâneo, postos em interacção pelo amor e pelo ódio (Empédocles) ou qualquer coisa de indeterminado, apeiron (Anaximandro), a pergunta que as fazem ser dadas não é. A ideia de Platão, a substância de Aristóteles, a representação de Kant, são despistareis concretas que visam a constituição de uma filosofia com os seus métodos próprios e interpretações. Há uma diferença de acesso às coisas que existem na realidade, se as considerarmos que resultam de uma ideia que se projecta sobre elas ou se é nelas que se encontra de forma não explícita a sua essência ou se o nosso acesso ao mundo das coisas e a nós próprios é uma representação de uma representação. Uma coisa é certa: há uma diferença entre o método do que consideramos ser filosofia e do que conhecemos como ciência positiva. As ciências positivas têm como objecto de investigação entes, coisas que existem na realidade. Recortam da realidade por abstracção o seu objecto, o tema específico do seu estudo: espaço, número, tempo, elementos químicos, física, psique, etc., etc.. e consideram-no isoladamente de todas as abstrações possíveis para o porem positivamente sob foco de evidência e estudo. A filosofia de acordo com uma das suas interpretações, a fenomenologia, têm como tema o ser do ente. O ente é compreendido no seu ser, quando se compreende o sentido do ser do ente específico que de cada vez está a ser estudado. O sentido do ente é compreendido a partir do ser que se projecta sobre o ente na sua inteligibilidade.

É no ser que tudo aparece. Ser é o aparecimento de tudo o que aparece: sujeito e objecto numa das suas formulações. É a cada um de nós como portador do acesso que o ser aparece. Ao aparecer o ser, aparecemo-nos a nós, uns aos outros, as coisas a cada um de nós. A nossa compreensão das coisas, a própria inteligibilidade das coisas, é dada no ser, isto é, numa das suas formulações na vida. A vida é condição de possibilidade de compreensão da própria existência humana e da inteligibilidade das coisas que existem.

Uma das compreensões que temos para “ser” tanto do verbo como do substantivo é precisamente o aparecer, o aparecimento e o desaparecimento de pessoas e coisas, mas também o nosso próprio aparecer em cena na vida e como aparecemos na vida aos nossos olhos e aos olhos dos outros.

O aparecer altera a relação que temos com o que aparece. Podemos ter uma antecipação relativamente ao que vai aparecer, enquanto algo ou alguém ainda não apareceu. Ao compararmos esse algo ou alguém no momento em que ainda não apareceram com o momento em que já apareceram e fazem corpo de vida connosco, verificamos que as coisas não são, de facto, como pensáramos que eram. Esperamos sempre por pessoas na vida. Não sabemos se virão ou não, nem quando nem como. Mas há uma diferença entre o pensamento na pessoa possível e a relação concreta que transforma retroactivamente o pensamento e a pessoa pensada ainda abstractamente. A história do aparecimento de alguém joga-se na imaginação entre a realidade e a possibilidade. O mesmo se passa com o agente do aparecimento, quem faz aparecer alguém para nós como possibilidade concreta e também já como realidade transforma-se pela sua própria essência.

O ser que faz aparecer altera-se como altera a pessoa a quem faz aparecer alguém e o próprio sentido com que alguém nos aparece. Toda a relação afectiva ou, antes, pessoal é histórica, biográfica, auto-biográfica. É intransponível em certo sentido, mas compreende-se que é em geral assim para o universo humano!

A transposição da relação pessoal, da história da nossa vida na vida dos outros, para o mundo dos objetos, altera a sua compreensão objectiva. Mesmo uma “natureza morta” é muito mais do que a realidade objectiva do corpo espácio temporalmente, física e materialmente, determinados. Todos os lugares que antecipamos no seu ser são diferentes, quando lá vamos. Mesmo a própria antecipação em imaginação e fantasia de sítios a que nunca fomos e se calhar nunca iremos nas nossas vidas tem a sua própria estória a sua própria afectividade. Paris antes de lá termos ido existe como ficção literária ou cinematográfica. É diferente de Paris quando lá fomos. Uma qualquer parte da China antes de lá termos ido inunda-nos oniricamente. É completamente diferente da realidade, quando lá estamos. Mas também trazemos em nós os sítios onde vivemos como as pessoas que conhecemos. Algo ou alguém que nos apareceu desaparece para um sítio que é diferente do “sítio” em que se encontravam antes de nos terem aparecido.

Mas nem todo o aparecimento é confrontado com o não aparecimento. Nem se perspectiva sempre o aparecer do aparecimento enquanto tal. O ser é agente do aparecer. O aparecer faz que algo ou alguém, todas as coisas e pessoas, simplesmente, sejam, existam, apareçam. O facto de tudo estar desde sempre aberto de alguma maneira faz que tudo nos apareça no contexto específico das nossas vidas singulares. Há diversos contextos ao longo da vida que permitem perspectivas e aspectos diferentes com que cada coisa ou pessoa nos aparece. A situação originária do aparecimento e do desaparecimento é o tempo. O horizonte do aparecimento aparece todo ele por atacado, de uma só vez, e é aí que tudo aparece. Mas é ainda no horizonte em que tudo aparece que tudo desaparece, cai para um plano de fundo. O que se define, perde definição, o que se forma deforma-se, o que aparece desaparece. O horizonte temporal vai-se constituindo à medida que o tempo passa. O tempo que passa, é o tempo que veio antes de ter passado.

Antes de termos nascido, na nossa situação pré-natal, como lhe chamaria Platão, éramos já tempo. A “matéria” de que o ser humano é feito, universalmente, é tempo. É do tempo que nascemos, com ele vivemos e com ele morremos.

O a priori como lhe chama a filosofia é o anterior não cronológico, mas ontológico que nos antecipa no ser especificamente humano. Mas o que quer dizer que o meu ser era já na sua essência antes de eu ser na minha existência? Há uma predeterminação ou sou livre para ser o que eu quiser?

O ser de uma cadeira era já na sua essência antes de uma cadeira, da primeira cadeira ter existido, feita pelo carpinteiro. Mas eu sento-me numa cadeira real e não na essência da cadeira. Mas a compreensão anatómica das ancas em que o tronco se encontra sentado, a compreensão anatómica da possibilidade de nos sentarmos de cócoras ou de pernas cruzadas ou sobre o rabo de pernas dobradas, a possibilidade de nos sentarmos em qualquer sítio que sirva para o efeito dá-nos a condição de possibilidade de pensar a cadeira como uma prótese: sentar e levantar, sentar e levantar dos mais diversos modos possíveis é o ser da cadeira que primeiramente é experimentada a partir do e no corpo próprio. Mas a compreensão da possibilidade está já na morfologia do corpo, a compreensão do seu ser é anterior à primeira vez que nos sentamos?

Ser é ser do ente. Tal quer dizer que o ser é co-tematizado, está concomitantemente aberto mas de forma pré temática. O poder sentar-me, o poder da cadeira de deixar sentar-se nela, no assento e no encosto e de deixar levantar-se dela não está dado da mesma forma que os seus componentes materiais, a sua configuração. A cadeira é os seus componentes e a sua configuração e design, mas essas entendidas reais e objectivas por si não fazem o ser do ente que é uma cadeira. As ancas são o que são na sua constituição, mas sem músculos e articulações não poderia actuar sobre elas, o mesmo quando flicto os joelhos e fico de cócoras ou me sento sobre as nádegas ou cruzo as pernas. A possibilidade de actuar anatomicamente implica uma interpretação complexa da possibilidade com que conto, que acciono e activo mas que não está já de forma elementar na consideração meramente anatómica.

A redução fenomenológica é a recondução do olhar que vê só objectivamente o ente para chegar até ao seu sentido. O sentido é a manifestação primordial do ser de todo e qualquer ente. A possibilidade é o que possibilita um ente vir a ser o que é. Ela é expressa pelo infinitivo: “a ser”, “para ser”, com que todo e qualquer ente é compreendido na sua inteligibilidade.

Quando vejo uma cadeira, não vejo apenas o plano do assento perpendicular ao plano das costas, nem assento e costas de uma cadeira sobre as pernas e eventualmente com braços para apoiar os meus, vejo um ente que é dado na sua possibilidade que me é oferecida: sentar-me e levantar-me, estar sentado e olhar para a cadeira ocupada com alguém que nela está sentado ou livre para que alguém se possa sentar nela.

Nós não vemos os infinitivos: levantar e sentar; vemos só o objecto onde nos podemos sentar e de onde nos podemos levantar.

Segundo momento do método: construção fenomenológica: projecção do ente para o seu ser e compreensão do ente à luz dessa mesma projecção. Não apenas desvio do olhar do ente, do objecto, da coisa, do corpo para o seu ser, mas compreensão à luz do sentido que se projecta a partir do ser e do sentido do ser sobre o ente assim compreendido.

A filosofia está implicada assim em três momentos decisivos (Heidegger). É uma redução, uma construção (projecção) e uma destruição.

25 Jan 2019

Uma gota de glitter

[dropcap]T[/dropcap]enho um trabalho de casa e queria que João Barrento o fizesse por mim. Estou a ler o seu conjunto de crónicas, Uma seta no coração do dia, cujo belíssimo título me recorda Huxley e o seu Brave new world: “Words can be like X-rays, if you use them properly – they’ll go through anything. You read and you’re pierced.” Gostaria de pensar que serei uma escritora melhor depois de ler Barrento, cujo A chama e as cinzas aguarda a sua vez na minha pilha de livros, recomendação do meu amigo Ricardo Falcão. Mas não venho falar de Barrento, nem de Huxley, e sim de Mariah Carey, que ouço muitas, muitas, mas mesmo muitas vezes enquanto leio ou faço outra coisa qualquer. Há alguns anos, imaginei uma Batalha dos Advérbios, Aldous Huxley vs Mariah Carey. Huxley: expressionlessly, startlingly, imploringly, inconspicuously, revoltingly, reassuringly, terrifyingly, despairingly, patronizingly, piercingly. Carey: abandonedly, painstakingly, consequently, incessantly, inadvertently, unendingly, threateningly, convincingly, subconsciously, consequently. A meu ver, Carey ganha. Mas talvez porque eu sou uma assumida freak de Mariah Carey, que o é, claramente, de vocabulário. Quem nunca acordou e se preparou energicamente para um novo dia ao som de Emotions ou rodopiou pela cozinha de braços estendidos desafinando melancolicamente I still believe?

Quem nunca chorou ao som de Petals, I don’t wanna cry, Love takes time ou se sentiu melhor depois de ouvir Someday, Everything fades away, Obsessed ou Everytime you need a friend? O escritor islandês Sjón disse, numa entrevista: “We should not be afraid to work with the things that impressed us when we were at our most impressionable. (…) Very few of us grow up in a castle and have private tutors who teach us Greek before noon and Latin in the afternoon and then we take piano classes and learn about classical painting or something. All of us come to culture through trash. And there are so many people who are embarrassed about what excited them. If you came to storytelling through the Spice Girls, then this is how you got introduced to storytelling. Work with it.”

Eu cresci a ouvir Spice Girls e Sade (The best of Sade é o álbum que ouvi mais vezes em toda a minha vida), mas também Tabanka Djaz, Os Tubarões e Bob Marley. Não sei tocar piano mas gostaria. Carey não cresceu num castelo mas tornou-se a moça pobre por quem um príncipe se apaixona e a leva para o seu reino onde vivem até ela sair da discográfica. E então a moça pode começar a ser feliz quase para sempre e, até, comprar o piano do seu ícone, Marilyn Monroe, cujo nome inspiraria o da sua filha ou versos das suas canções mais recentes. Um dos meus temas preferidos de Carey é Make it happen, poderosamente autobiográfico e inspirador, e um pequeno mantra para todos os dias, os difíceis e os outros, relembrando que persistir é preciso, mas não sem uma fé que por acaso partilhamos, e nos mantém por cá quando tudo se desmorona. Para muitos, os que sabem ou não negam saber quem ela é, Mariah será uma diva pop louca, gasta, irrelevante e irritante, com decotes exagerados e uma obsessão por sapatos (compreensível, para quem conhece a sua história). Para muitos mais ainda, um ícone merecedor de um movimento como o recente #justiceforglitter, empenhados como estavam os seus fãs em fazer chegar ao primeiro lugar um álbum que, após ter sido um fracasso, tal como o filme de que era banda sonora, se tornou um objecto de culto, com a sua vibe de anos oitenta, talvez pensado à frente do seu tempo. Só o amor dos fãs para destronar o álbum mais recente de número um por outro mais antigo. Mariah a vencer Mariah, ou será Bianca, o seu alter ego que encontramos nos vídeos de Heartbreaker com Jay Z e do seu remix com Snoop Dogg no papel de noivo e Da Brat e Missy Elliott como madrinhas? Heartbreaker que, originalmente, foi pensado para ser parte de Glitter, mas cuja inclusão no álbum anterior, Rainbow, se tornou uma benesse na época mais sombria da carreira da cantora, compositora, produtora, actriz e, agora também, mãe.

Crescer com Mariah Carey é conhecer Mariah Carey e conhecê-la é, sem dúvida aceitá-la e amá-la até ao fim dos nossos dias, perdoando todas as falhas e celebrando todos os intermináveis sucessos. Num mundo em que já não restam muitas das lendas originais, tendo perdido Aretha Franklin (uma das suas principais influências) ainda tão recentemente, e com as demais figuras míticas tão perto da terceira idade, Carey, que viu partir tantos dos seus talentosos amigos da velha escola, com quem colaborou ao longos de décadas, estará, talvez, aos quarenta e oito anos, a meio caminho de algum lugar (ainda mais) importante. Nomeada, com outra das suas amigas próximas, Missy Elliott, e inspirações, Chrissie Hynde, para o Songwriters Hall of Fame, lutou sempre para ser vista como a escritora de canções que é, sendo que escreveu todos os seus temas, excepto as covers e o dueto com Trey Lorenz, I’ll be there, e When you believe, dueto com Whitney.

Temos outras grandes cantoras também autoras de muitos dos seus sucessos (pessoalmente, destaco Tori Amos, Kate Bush, Alanis Morissette e Fiona Apple, esta última creditada por Diddy como uma das que mais o influenciou), mas só Mariah ultrapassou Elvis enquanto artista solo com o maior número de canções a chegar ao primeiro lugar. À sua maneira, lutou para que houvesse esse reconhecimento e multidimensionalidade, a par com o que era dado tão facilmente a outros, bastando que fossem homens ou, sendo mulheres, tocassem regularmente algum instrumento. Ora, Mariah assume tocar mal o piano e poucas vezes a vemos dançar, em palco ou num videoclip. Mas esta é a mulher que uniu o pop com o hip hop e o rap e será, ainda, quem melhor continua a fazê-lo. Num mundo de artistas como Ariana Grande (também capaz de fazer o whistle de Minnie Riperton, que começou a carreira com covers de Carey no Youtube até ser descoberta, assídua colaboradora de Minaj e, infelizmente, também com um atentado terrorista a marcar a sua carreira), não podemos esquecer que foi Carey a primeira grande artista a colaborar com uma ainda pouco conhecida Nicki e a incluí-la no vídeo, antes mesmo de Minaj ter lançado o seu álbum de estreia, e ainda longe do estatuto que depois se lhe atribuiu de rainha do rap, discussões no American Idol à parte. Não podemos esquecer que Mariah teve um mega hit com o título Shake it Off dois anos antes de Taylor Swift, e que só não chegou ao primeiro lugar porque, bem, Mariah já lá estava com a canção que seria a sua segunda a ser considerada canção da década. Nem tão pouco podemos esquecer que Glitter foi lançado no pior dia possível, o dia do atentado contra as torres gémeas, que mudaria o mundo para sempre, e que também Carey lida com doença mental e insónia desde tenra idade, tendo demorado muito para assumir e, consequentemente, tratar a sua bipolaridade.

(continua)

24 Jan 2019

Ética e dignidade

[dropcap]E[/dropcap]m 2012, em Navarra (Espanha), no final de uma corrida de corta-mato, o queniano Abel Mutai, que fora medalha de ouro nos três mil metros com obstáculos numa semana anterior, em Londres, estava a pouquíssima distância da meta mas, confuso com a sinalização, parou para posar para as fotos, pensando que já a havia cortado. Mesmo atrás vinha outro corredor, o espanhol Iván Fernández Anaya. E que fez este? Gritou para que o queniano reparasse na sua falta e, como este não entendesse que não havia ainda cruzado a meta, então, o espanhol empurrou-o em direcção à vitória.

O fair-play do espanhol foi reconhecido; ninguém esperaria o que se passou depois. Um jornalista perguntou-lhe: “Por que é que o senhor fez isso?”. O espanhol não compreendeu: “Isso o quê?”. Ele não entendeu a pergunta, pois não imaginava que houvesse outra coisa a fazer além do que tinha feito. O jornalista insistiu: “Por que deixou que o queniano ganhasse?”. “Eu não o deixei ganhar. Ele ia ganhar”. O jornalista continuou: “Mas você podia ter ganho! Não estava fora das regras, ele distraiu-se…”. “Mas qual seria o mérito da minha vitória, qual seria a honra do meu título se eu deixasse que ele perdesse?”, continuando: “Se eu ganhasse desse jeito, o que ia dizer à minha mãe?”

Quem nos reporta a este episódio maravilhoso é o pensador brasileiro Mário Sérgio Cortella, que lembra que a mãe, como matriz de vida, fonte de vida, talvez seja a última pessoa que se quer envergonhar, e pergunto-me se as mães, pedagogicamente, não poderiam ser recuperadas para a tarefa de esclarecer que o foco obsessivo nos resultados pode não ser o mais correcto.

O foro da discussão ética tem sido excessivamente deslocado para a escola, como um tema que esta tem de assumir, quando a ética, antes de tudo, é da alçada da família. Os exemplos nascem em casa – e o ideal é que um dia possamos almejar um tipo de vida comunitária em que a pergunta feita pelo jornalista ao corredor espanhol não seja mesmo entendida.

Em tudo o que fazemos na vida quando a ânsia pelos resultados se sobrepõe ao prazer e à especificidade do processo há uma dimensão humana que se perde.

Há um filme italiano de 2008, Si Puo fare/ Pode fazer-se, de Giulio Manfredonia, que é muito engraçado e fala deste problema em situação. O filme incide sobre as cooperativas sociais que se organizaram em Itália – em articulação com um novo entendimento para a reforma psiquiátrica – e que integravam doentes mentais. E conta-nos a história de um sindicalista, Nello Treddi, demasiado honesto e demasiado reflexivo que está sempre envolvido em sarilhos e a quem o Sindicato propõe, como última oportunidade, a gestão de uma Cooperativa, a 180, que tem sede num hospital psiquiátrico e cujos membro são todos esquizofrénicos.

– “Mas que produz a cooperativa? – pergunta Nello ao director da instituição, o Dr. Del Vecchio.
– “O que é que você quer produzir? Para o município, eles colam selos. Para os supermercados, colocam os preços nas azeitonas.”

As coisas mudarão com a direcção de Nello. Para Del Vecchio, o director, “a doença mental isola do mundo”, Nello não concorda que os pacientes não sejam capazes de assumir as responsabilidades de um trabalho. A sua posição resume-se assim: “Eu não sou médico, eu não sou um director de hospital, eu estou aqui para executar um trabalho cooperativo, e dado que estou aqui vou tratá-los como trabalhadores.”

Nello acidentalmente descobriu que alguns pacientes têm uma capacidade especial para projectar figuras simétricas, e que essas figuras podem ser transformadas numa vantagem para o desenho dos pisos de parquet. Enquanto para o psiquiatra a produção dessas imagens tinha um valor mecânico e compensatório da desordem interna, Nello reconverte-as em desenhos artísticos exclusivos para vender. Tratando-os com dignidade, incitando-os a que tenham prazer no trabalho, Nello consegue transformar a cooperativa num caso de sucesso no ramo do “pavimento artístico”.

Em dois anos a empresa dá lucro e resolvem arranjar uma outra sede e sair da tutela do centro psiquiátrico de Del Vecchio. Os membros são instalados numa nova sede, onde agora são os “inquilinos” (e não internos) e outro psiquiatra controla a redução da medicação para 50%. E todos se comprometem em assembleia a viver exclusivamente para “satisfazer o mercado com o seu próprio trabalho, o seu próprio sacrifício e a sua própria capacidade”.

A meta da cooperativa é atender a demanda mas oferecendo as diferenças que as habilidades específicas dos “doentes” têm para oferecer ao consumidor e que rompem com os padrões normativos do mercado.

A crise começa quando, movido pelo entusiasmo, Nello decide que a cooperativa deve crescer e concorrer a um grande concurso para uma nova estação de metro de Paris. E aí, começando a olhar mais para os resultados, o sucesso no trabalho, do que para as pessoas que os produzem induz a “normatividade” no comportamento do colectivo, com saídas programadas à noite. Do que advém o enamoramento de alguns membros da cooperativa por mulheres de fora daquela pequena comunidade e a breve trecho, o desajuste fatal e o suicídio de um deles. Nello na mira dos resultados, esquecera-se da especificidade de cada um e como não estavam preparados para enfrentar uma decepção. As pessoas – a singularidade de cada uma – devem estar primeiro e ser ponderadas e não abstraídas em função dos resultados, é a lição do filme.

Contudo, a ética e a dignidade estão sempre no eixo do filme, que por isso contribui de algum modo para a reflexão sobre a relação entre a política e a subjectividade.

Este filme pode ver-se inteiro no Youtube.

24 Jan 2019

Ler e escrever foram invenções tramadas

[dropcap]A[/dropcap] escrita e a leitura são episódios recentes. São invenções que conheceram os seus inícios em meados do quarto milénio a.C.. Ocupam menos de 2 por cento de toda a história do ‘Homo sapiens’ que conta já com cerca de 350 mil anos de vida. A neurocientista Maryanne Wolf escreveu sobre o tema e sublinhou, há uma década, que estas aquisições se ficaram a dever ao uso de potencialidades genéticas originalmente destinadas a processos de outra natureza. A história da escrita e da leitura é, portanto, também, a história do hábil aproveitamento de certas aptidões em benefício de práticas inesperadas. Ler e escrever ter-se-iam transformado, nesta linha de ideias, em dispositivos eminentemente artificiais que, ao contrário da visão, por exemplo, requerem aprendizagens e monitorizações individuais.

Maryanne Wolf, directora do ‘Center for Reading and Language Research’ da Tufts University (Boston) tem trabalhado ao longo dos anos com leitores de todas as idades, especialmente com leitores disléxicos, condição que, segundo a autora (em obras de 2007 e de 2018*), comprova que os nossos cérebros nunca foram geneticamente preparados para o acto de ler. Para o conseguir com o sucesso que todos conhecemos, foi necessário fazer uso da extrema plasticidade da mente humana que é capaz de forjar ligações inopinadas, visando sempre novos desafios. Somos, pois, seres geneticamente permeáveis às rupturas e dispomos de uma capacidade ímpar de alterar o que nos é dado por natureza. Daí, também, talvez, termos alcançado o comprovado epíteto de maior predador do planeta.

Há, no entanto, uma estranheza nesta descrição de M. Wolf que decorre do facto de uma transformação tão artificial ter acontecido em todo o globo em fracções temporais relativamente próximas. Bastará recordar que as mais distintas culturas e linguagens naturais geraram formas de escrita bem diversas, tendo cada uma delas mobilizado conexões neurais próprias (escritas verticais com vaivéns diferenciados ou escritas horizontais, movendo a atenção da esquerda para a direita ou da direita para a esquerda). O alcance desta plasticidade foi assim levado aos limites em todo o mundo com uma eficácia estonteante como se existisse, de facto, uma aptidão universal que o justificasse.

A questão não deixa de ser fascinante e entronca na discussão sobre os nomes que Platão pôs em marcha entre Crátilo e Hermógenes, o primeiro reivindicando uma origem natural para os nomes e o segundo reivindicando um legado puramente artificial. No caso da escrita e da leitura, as provas que M. Wolf sustenta para demonstrar um cariz artificial falam por si, embora a sua aplicação universal nos faça pensar que a propensão genética para as incorporar não fosse, afinal, tão desconforme.

A intimidade e a co-naturalidade entre os humanos e a escrita foi tal que, praticamente em todas as culturas humanas, ela veio substituir as mediações da transcendência que existiam até então. No mundo semítico, a escrita e a leitura proporcionaram aos deuses (ou a um deus único) um discurso próprio e atribuíram-lhe até o papel de emissor e de criador do “verbo”. A escrita e a leitura possibilitaram a normalização da imagem da transcendência e possibilitaram que a memória abandonasse o seu nomadismo no tempo (um ‘passa-palavra’ irregular) para se fixar ou sedentarizar com uma outra regularidade de tipo orgânico. Não deixa de ser curioso que, no mundo judaico, por exemplo, a fixação por escrito do grosso da tradição oral só tenha tido lugar, de maneira sistemática, após o exílio (538 a.C.), ou seja, depois de uma prova de nomadismo forçado.

O nosso tempo está vertiginosamente a abandonar toda esta herança. A tecnologia tem-nos fornecido novas aproximações e captações (no tempo e no espaço) e também novas escritas. Se a imagem móvel do século XX vivia da conjunção entre o princípio de persistência retiniana e a ideia de projecção, as imagens digitais, baseando-se em algoritmos e não em originais reduplicados, implicam uma plasticidade sem fim que se aproxima do modo como a mente processa as suas imagens. Esta virtualidade sacraliza a tecnologia, dilui a função clássica da memória orgânica (histórica) e faz do futuro um continente a ser vivido no agora-aqui (sem grande idealidade para os chamados fins últimos). A redenção na nossa era passa pela invenção de capacidades genéticas (tendo o cyborg, para já, como meta) que se adaptem às novas escritas e não o contrário, tal como sucedeu há 5.500 anos.

Quando, em 1974, Barry Leiner e Vinton Cerf criaram o protocolo TCP/IP, pouca gente se apercebeu da dimensão histórica do facto. Como Cerf referiria mais tarde: “A única coisa que queríamos era que os bits fossem transportados através das redes, apenas isso”**. O alcance deste protocolo foi, e é ainda hoje, radical e os seus impactos podem ser resumidos em três grandes linhas: proeminência à mobilidade dos dados, garantindo liberdade aos conteúdos e às escritas; dissociação da rede (e das suas escritas) da ideia de propriedade e, por fim, adopção da rede enquanto espaço auto-organizado e vocacionado para o crescimento espontâneo, imprevisível e não-regulado. Estas três linhas persistiram nas transformações que o mundo foi conhecendo nas últimas décadas: a superação das dicotomias ideológicas nos anos oitenta, o optimismo tecnológico dos anos noventa, a ‘quebra de vertigem’ na primeira década do século XXI e a imersão definitiva dos ‘pós-millenials’ no aquário da rede já nesta segunda década. Daí que as futuras gerações vão, com toda a certeza, deixar de se baralhar com a diferença entre escritas naturais e artificiais e ‘lerão’ as investigações de Maryanne Wolf como um estimulante testemunho arqueológico. O que já não seria nada mau.


*Vale a pena recorrer às ciberlivrarias para encomendar os dois livros de Maryanne Wolf. O mais conhecido é Proust and The Squid. The Story and Science of The Reading Brain (Harper, New York, 2007) e o mais recente, escrito cerca de uma década depois, é: Reader, Come Home: The Reading Brain in a Digital World (Harper, New York, 2018).
**V.G. Cerf and P.T. Kirstein: Issues in Packet Network Interconnection. IEEE Proceedings, Vol.66, No. 11, November 1978, pp. 1386-1408. /30/ L. Evenchick.

24 Jan 2019

O mito do primeiro amor

[dropcap]H[/dropcap]á dias em que o mundo nos exige que paremos, que pousemos as armas e as angústias nem que seja por um instante. Contemplar apenas o que está próximo e, se for necessário, escrevê-lo sem ambições de falar de temas maiores. “Há um certo meio de começar uma crônica por uma trivialidade”, escreveu Machado de Assis aos 38 anos. E depois prosseguia, explicando que bastaria dizer, por exemplo, “Calor! Que desenfreado calor!”. O genial brasileiro escrevia em 1877 sob a canícula do Verão do Rio de Janeiro: percebe-se como a trivialidade se torna essencial naquele momento.

Estando muitíssimo (e infelizmente…) longe dos escritos do autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas esta crónica tende a ser trivial. Fala de amor, do amor dito romântico; e o amor é trivial porque é comum e existe. Não porque não seja precioso mas porque não é raro. Pode é não nos acontecer – e isso sim, é tragédia maior. Mas de todas as matizes amorosas que experimentamos na vida – e agora sim, chegamos ao cerne da conversa – a mais sobrevalorizada é a força irrepetível do primeiro amor.

A ideia de que não há amor como o primeiro é publicidade enganosa. O primeiro amor é um princípio normalmente titubeante que nos prepara para a montanha-russa das paixões – isto se tivermos sorte. George Bernard Shaw dizia que o primeiro amor é apenas um pouco de tolice e muita curiosidade e o aforismo parece-me que acerta na batata. É verdade que a arte e a literatura em particular ajudaram à difusão deste mito; mas pensem em Romeu e Julieta: será que o desfecho da história seria tão trágico se os amantes tivessem um pouco mais de bagagem amorosa de experiências prévias? E por outro lado: como poderia Camões ter escrito o magnífico soneto “Tanto do meu estado me acho incerto” se não soubesse bem do que falava? Como poderia Sinatra cantar com tanta verdade o que cantou se não tivesse atravessado por inúmeras vezes o coração negro das paixões verdadeiras?

Admito que se trate de uma posição radical mas no primeiro amor não vejo inocência e candura – apenas medo do desconhecido e do terrível momento em que tudo se irá esboroar. A revisão nostálgica dessa época que parece perfeita a tanta gente está contaminada por uma idealização que pode aleijar. Num livro de que todos conhecem a magnífica frase inicial (“The past is a foreign country; they do things differently there”), o protagonista de sessenta anos relembra o seu primeiro amor e a consequente perda de inocência que o irá marcar para o resto da sua vida. Não é uma história optimista e romântica – antes pelo contrário.

Pela minha parte lembro-me bem do meu primeiro amor correspondido (e generosamente deixo de fora as paixonetas que me consumiram em silêncio até lá chegar). Vejo um rapaz desengonçado e aterrorizado a tentar ganhar coragem no whisky-cola e a falar bastante depressa. Lembro um desespero optimista, um suspiro de alívio mesmo antes do apocalipse. Felizmente chegou o segundo amor e alguns outros depois desse. Foram necessárias várias provações para poder chegar à pequena sabedoria com que hoje vivo: a modesta ambição de quem ama outrem não é ser o primeiro mas o último. E é nisso em que todos os dias me empenho.

23 Jan 2019

Raízes e copas

Web, nenhures, 5 Janeiro

[dropcap]O[/dropcap] meloso natalício não muda grande coisa na folhagem das árvores despidas, menos ainda nos múltiplos brancos contidos na neve que nem tomba na cidade. Com a estação chegam os tiques próprios das ditas, como este de comprar a correr disquito ou livrito para oferecer, à falta de melhor.

Multiplicam-se as listas dos melhores do ano, fingindo que se lê por cá ou ao menos que se respeitam os livros. Enfim, a miséria habitual, que apesar de costumeira se amisera mais e sem piedade. Contudo, brilham excepções. A mais divertida, atenta e reveladora de extremo amor ao livro encontra-se no blogue do Henrique [Manuel Bento Fialho], «Antologia do Esquecimento»: http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.com/2019/01/o-melhor-dos-livros-em-2018.html A melhor lista dos melhores contém mais de trinta itens confirmando que, para o seu autor, o livro é um mundo a ser abordado de todas as perspectivas, por menores que sejam. Não creio que inclua livros de cujo conteúdo não tenha gostado, mas pega-lhes pelas minúcias do contentor: capas e contracapas, primeira e segunda badana, cortes superior, dianteiro e inferior, lombada, guardas, sobrecapa e cinta, formato e impressão, folha de rosto e índice, cólofon e notas de rodapé, mas também título, texto de contracapa ou epígrafe ou dedicatória ou agradecimento, além de prefácio e posfácio. Isto além das mais tradicionais capas, ilustrações, fotografias, colecções, tradução ou… livro do ano, que no caso foram dois e de imagens. Um divertimento, que nem por isso deixa de desenhar panorama dos mais completos.

Horta Seca, Lisboa, 6 Janeiro

Falho redondamente, como convém aos anafados, os desejos: descansar e planear. As urgências, ainda elas, muitas que resultam do incumprimento do planeado. Desprezando a electrónica, a minha arrumação assenta em papel, profusos papéis, que desenham do ano ao momento. O electrocardiograma dos meus dias sai em folhas A6, nas quais assinalo rugas, ideias, afazeres, telefonemas, pagamentos, nomes, projectos, gatafunhos. Não seria mais fácil em cadernos, que também frequento? Talvez, mas estes fragmentos são portáteis, podem tanto gritar-me o imediato como sussurrar o horizonte. Consigo juntá-los para harmonizar um mapa, uma hierarquia de prioridades. Embora resulte dissonância, alegre, mas dissonância. Ler os que foram sobrando relembra-me o óbvio. Afinal, não evitam o atropelo ou o esquecimento, menos ainda o acumular de irresolvidos. Pela simples razão de que não esticam o tempo. Quanto perdi com esta inutilidade?

Casa da Cultura, Setúbal, 11 Janeiro

Esta sessão da «Filosofia a pés juntos» tinha a Justiça por tema e logo a radical arqueologia do António [de Castro Caeiro] revelava uma surpresa. Para o grego, a injustiça resulta da humana ambição de querer ter mais, de fazer disso o seu horizonte. Até ao ponto ganancioso do meu tudo metamorfosear em nada o do outro. Injustiça continha, então e sobretudo, a ideia de denúncia. E pessoal. O processo visava que o injusto entendesse o erro e o confessasse publicamente. Dizê-lo era meio caminho para a resolução. O acento punha-se no trabalho interior do próprio, mais que em acusação externa. Daí a conclusão maior de que melhor seria sofrer uma injustiça do que cometê-la. A conversa expandiu-se, e muito, mas este pensamento-raiz ainda brilha que nem copa.

Acácio de Paiva, Lisboa, 12 Janeiro

Manhã de sábado em Alvalade, com uma luz de fazer esquecer o frio. Ambiente ideal para espreitar os trabalhos mais recentes do multi-talentoso Simão [Palmeirim]. Não falo agora nem da música, nem das investigações em torno da geometria ou sobre Almada [Negreiros], mas das pinturas. Vi-me em paisagens de tom negro onde o monumental não abafa a minúcia, o gesto, a composição. Entrei no miolo de máquinas, transmudadas do absoluto concreto para um abstracto contido. Cada pasta parecia mala devolvida de mundos por haver. Depois o papel rasgou-se janela, e surgiu um contínuo de umbrais feitos de cor e paciência. A repetição não tem que ser o igual multiplicado. Bebemos longo café e falámos ainda de Philip Glass. Vem aí exposição.

Povo, Lisboa, 14 Janeiro

Para sessão em torno da «Poesia do KWY», o Alex [Cortez] chamou-me ao microfone. Em ambiente aprimorado pelo Nuno [Miguel Guedes], e comentado propiciamente pelas cordas do [Vítor] Rua, que transliterou e pensou encontrar-se em Bukoswki, ouviram-se as vozes da Paula André enquadrando o relâmpago que foi projecto único, que dizia o portuguesinho Ká Wamos Yndo com letras que não havia, do tonitruante Manuel João [Vieira], brincando com anónimos e o episódico João Garcia de Medeiros, e do Miguel [Feraso Cabral] a evocar Manoel de Castro. Pensando nas contaminações (imagem, palavra, nomes) levei nos lábios para estragar o Helder [Macedo], capaz de descrever como ninguém o que foram aquelas lúcidas noites, o António José Forte, com sorrisos a doer-lhe nos lábios, e o José Manuel Simões: «Um quadro, como um poema, é demasiado pequeno para conter um coração. Por isso ele cresce, ilude os limites estreitos do caixilho, expande-se e fica a flutuar, qual cúpula, globo ou aquário, palpitante e rubro, exposto aos olhares clínicos e turísticos de quem se aproxima e contempla.»

Teatro da Rainha, Caldas da Rainha, 15 Janeiro

A noite aconteceu, enorme. E lúcida. Os que se afastem do convívio com os palcos (de teatro, que os de concerto são outra música) perdem, sem o saber, contacto com a realidade, com o oxigénio. Por isto. O Henrique [Manuel Bento Fialho] resolveu recomeçar o ciclo lunar do «Diga 33 – Poesia no Teatro» com os supermanos, António [de Castro Caeiro] e José [Anjos]. A singeleza da encenação (foto na página de Graça Ezequiel) potenciou a cumplicidade entre os dois, com leituras, comentários e música. O Henrique manuseou a curiosidade como ferramenta e pôs o António a explicar-nos que o destino se faz corda de ringue nas nossas mãos, sendo o boxe apenas uma das possibilidades, cada qual tendo na mão a escolha de modalidades, combates, até de adversários. Ilustrou depois os versos ditos do Anjos à viola, antes de o fazer com lanterna, no fecho: «um quadrado de terra na cidade/ um verão de amendoeira/ uma flor, uma pedra luminescente no peito/ da igreja/ a respiração ainda quente de uma boca derrotada/ um dia cruel/um gato de sombra que nasceu da invenção/ de uma escada/ e a sombra de um gato que morreu/ como a divisão de uma casa// a dor à volta da qual tudo se constrói.»

Horta Seca, Lisboa, 18 Janeiro

A Escola de Escritas do Luís [Carmelo] abriu «Crateras», colecção que recolhe textos dos que se vão cruzando aquela ideia. Começou com o «Tenham uma Boa Vida», do Francisco Resende, que evoca experiência do lugar, e a Ana Margarida de Carvalho, que em «Primeira Linha de Fogo», investiga o (sem) sentido das fronteiras em que nos entrincheiramos.

23 Jan 2019

Sabendo como e porquê

[dropcap]N[/dropcap]ão há facilidade em nenhuma escrita que se interrogue, não somente sobre o seu objecto como sobre si própria. E, nessa estranha dança entre formas e conteúdos, joga-se mais que uma vida: um momento de discernimento ou um mergulho na boçalidade. E seja: um momento pode valer por uma eternidade.

Aliás, será também a eternidade um momento, por exemplo para Deus, como o é para quem já abandonou este espaço de efemeridades. Tijolo a tijolo, página a página, palavra a palavra, beijo a beijo, aparentemente o tempo passa, embora seja apenas visível no nosso corpo ou na face enrugada da Terra.

Valha-nos a invenção da idade para podermos ir compreendendo um pouco mais as coisas, ao mesmo tempo que o saber acumulado se transforma numa espécie de corrida pela cegueira. Crescer significa, afinal, deixar de ver.

E, sabendo como e porquê, existe o advento da morte, essas pequenas mortes que diariamente nos rodeiam, as mortes ínfimas. De seres e trajectos. De ideias. De mistérios.

Sabendo como e porquê, abandonamos para voltar a encontrar. Existem metamorfoses do descanso no sono insatisfeito. Há um ruído, de dentes rangidos, de onda agigantada para nunca rebentar. Voltaremos a casa e aos espelhos familiares. Ao calor do forno onde se consome a lenha amável. Ao charco fétido, à lama de chocolate onde na infância se reflectia a esguia lua, às cabanas silenciosas, às estradas por asfaltar. A isso tudo voltaremos.

Sabendo como e porquê.

22 Jan 2019

Vasco de Lima Couto

[dropcap]L[/dropcap]embro-me dos desenhos à Cocteau com poemas em pratos brancos e recordo o quanto gostava deles, das frases, dos poemas, de tudo aquilo. Depois, olhei-o, e pareceu-me inesperadamente belo e associando temas musicais soube que era ele. Cocteau parecia-me muito menos interessante e infinitamente menos poético do que este Vasco, com seu perfil daquela portugalidade de homem do seu tempo, como Adriano, de belas cabeças imperiais que passaram entre nós para lembrar que uma cicatriz na beleza define os homens. Ele, que passou quase indelével no registo literário, tinha no entanto uma espécie de instinto admirável pela natureza do acto poético, sabia distinguir a qualidade, o sentimento trágico, e tinha uma disposição progressista num maravilhoso perfil romântico.

Foi actor, um actor exigente e prolífero, representou peças de Miller, António José da Silva, Steinbeck, Ionesco, e ainda teve o seu maior êxito no «Mercador de Veneza». Divulgador da poesia contemporânea num programa de rádio chamado «Cantar de Amigo» em Angola, creio que todas elas perdidas numa urdidura em que não achou uma defesa à altura das suas múltiplas capacidades . A sua obra poética deve-o muito ao retiro em Constância onde talvez usufruísse da calma necessária para o diálogo consigo mesmo, parecendo de sólidas amizades e de confiantes dias de camaradagem, é quase sempre um homem afável, porém distante de um centro de reconhecido e justo mérito, o que o deve ter sujeitado a uma tristeza qualquer que ao invés de o azedar adensou a sua rara sensibilidade.

A sua obra poética reparte-se por quase uma dezena de títulos, como « Canto de vida e morte» 1980, o «Silêncio quebrado» 1959, «Recado Invisível» 1950, «Bom dia meu amor» 1974, «Deixando discorrer os dias» 1991, já póstumo, e outros, mais antigos, uma vez que o poeta nascera em 1924 no Porto e dele se foi desamarrando aos entraves burgueses de um país severo e parado para a sua ânsia de viver e de expandir. «Um Pássaro contra as grades» ele – que precisava de espaço para ser feliz – um poema belíssimo que só uma alma larga, com asas, pode ter escrito, um legado de liberdade e de respeito por aquilo que são as relações humanas, esses contactos espaciais que por tão rotineiros quase não dão conta da invasão que provocam. E vale a pena transcrever alguns excertos:

ter palavras certas no sol do caminho e beber, a rir, o doirado vinho. Misturar a vida, misturar o vento… E, nas madrugadas quando o povo abraço, para estar contigo: PRECISO DE ESPAÇO!

Fluía nele também um lado quase religioso sentia-se que não estava deslocado dessa fina teia da indagação teológica que firma os efeitos de uma consciência poética, e são de grande beleza muitas das suas ora indagações, ora gratidão, ora silencioso desespero face ao enigma incognoscível da palavra quando o verso adeja, em Oração, encontramos esta inquietação sempre total:

«Senhor, eu não te peço felicidade…seria condenar a minha vida/ a uma inútil graça de ilusão/ nem te peço que faças dos meus versos desejos de cantigas para os outros/ …… O que te peço é que me dês o alento/ das frases que eu não sei se tu disseste! »

Coisas estas demasiado belas para esquecermos. Quase que por um trilho na percepção entende uma alegria nova, a Revolução dos Cravos, mantém-se entusiasta e envolvido, mas nem antes nem depois a sua situação de homem melhora, e acaba sempre por viver como pode aceitando os trabalhos que lhe dão, há na nova ordem um descaso que certamente o magoa e entende isso talvez com pesar, por isso morreu cedo, e por isso talvez não tivesse tido ensejo para a manutenção da vida que requer tantas concessões. Viveu como um poeta, pois são estes os poetas, os que correm o risco também de viver poeticamente. É sempre, quando dele nos acercamos, alguém com grande coerência e uma elegância quase desaparecida, aquela parte que faz dos poetas esses seres aristocráticos e estranhos, é um rejuvenescimento, de ternura, de despreendimento. Nós, vamos esquecendo, o tempo apaga, fulmina, estrategicamente encobre…mas o que é bom é sempre subitamente belo, bem o disse Safo. E neste súbito e inaugural renascer ele aparece tão novo como se fosse um propósito por vir:

minha mãe, eu canto a noite porque o dia me castiga; minha mãe eu grito a noite, neste amor em que me afundo, porque as palavras da vida minha mãe, já não têm outro mundo, minha mãe eu grito a noite neste amor em que me afundo.

Sabemo-lo boémio, amante das noites e dos cantos, sabê-lo por aí, o Fado, mas poucos sabem que passou por aqui, este homem tão especial que deu por concluído o seu testemunho antes mesmo de ter um florescente recomeço. Nestas vidas encontra-se o melhor. Não estão presas a si mesmas e tudo neles parece sempre novo, contemporâneo, quase eterno, agora mesmo o sinto tão próximo como um anjo de asas frescas sussurrando um canto protector:

Vive… que eu no pensamento viverei contigo/ Sonha, que no meu sentimento te darei alento/ Sofre… Que no meu sofrimento, terás toda a minha alma, a dizer-te um Poema/ – Mas não penses nunca neste meu dilema!

Hoje, estamos plenos de palavras, Vasco, e nenhumas são tão bonitas como aquelas que disseste para que eu as diga de ti neste momento. Não precisamos de muito. Mas temos saudades daquilo que no dizer se imortaliza. Sente-se uma imergência sadia de liberdade e uma zona sempre de espaço alargado no movimento de uma natureza que suporta mal o dirigismo das sociedades, e isso, é a sua marca mais conseguida de homem livre:

Outubro de 68

Que Povo é este, que Povo,
que é Poeta e se alimenta
de tanta maré vazia.
no mar que ele próprio inventa?

Que Povo é este, que Povo,
que tenta um sonho esmagado?
…É o Povo de onde venho
todo por dentro amarrado!

São de Amor todos os poemas.

22 Jan 2019

Fim da emigração por contrato em Macau

[dropcap]O[/dropcap] Regulamento de 1872 sobre a emigração fora elaborado por uma comissão composta por Jerónimo Pereira Leite, Júlio Ferreira Pinto Basto, Lúcio A. da Silva, P. G. Mesnier, Hermenegildo Augusto Pereira Rodrigues e J. E. Scarnichia, sendo esse uma compilação de disposições dispersas em portarias e regulamentos, harmonizadas e acrescentadas conforme se julgou mais próprio para combinar a liberdade do emigrante com as garantias que deve dar o contratador.

“Macau ficou com o monopólio do fornecimento de trabalhadores chineses para algumas repúblicas americanas; triste e precário resultado, para nós, depois de três séculos de trabalhos e lutas. Uma população numerosa, activa e inteligente, esteriliza-se em especulações sem futuro, vivendo com pouca dignidade à sombra de capitais estrangeiros (espanhóis e peruanos). A instrução pública vai-se anulando porque tais empregos, os únicos que se oferecem, não demandam cultura intelectual, e a população portuguesa de Macau achar-se-á reduzida à mais triste incompetência no dia em que a América disser: Não precisamos de mais cules>. Nesse dia, que todos julgam mui distantes, há-de forçosamente chegar e é tempo que principiemos a tomar precauções. É necessário que a emigração chinesa se torne pouco a pouco a mais insignificante fonte de receita para os habitantes de Macau, desenvolvendo-se quanto for possível os recursos comerciais desta colónia que melhor lhe podem assegurar um futuro estável”, segundo a Gazeta de Macau e Timor.

Ainda neste semanário aparece transcrito do jornal The Weekly Herard de New York de 5 de Outubro: Havana, 27 de Setembro de 1872. Quinhentos cules, com $70.000 de suas economias voltaram para os seus lares na China. “Naturalmente estes chineses já terão chegado, ou estão a chegar às suas terras, tendo vindo pelos paquetes da companhia de mala do Pacífico, como já têm vindo muitos outros. Quando ardeu recentemente em Yokohama, o vapor America, se conheceu que muitos passageiros chineses traziam consigo grandes somas de dinheiro, tendo alguns até mais de 3000 patacas. Regressavam eles naturalmente de Havana ou de Peru, tanto assim que um deles era casado com uma peruana. À vista destes factos, se atreverão ainda a dizer que os chineses que vão para Havana e Peru, não voltam mais à sua Pátria?”

“Em 1873 fez-se uma emenda a favor dos trabalhadores contratados, reduzindo o prazo do seu contrato de oito para seis anos [e findo este, a condição de terem a passagem de regresso]. Além disso, os cônsules portugueses em Cuba e no Peru comunicavam ao governo de Macau as condições dos emigrantes à chegada e, tanto quanto possível, velavam pelo seu bem-estar lá”, Montalto de Jesus (MJ).

“Os governos europeus de Hong Kong e de Macau aperceberam-se claramente da necessidade de acabar com a rede de intermediários e com a satisfação de interesses internacionais assentes na emigração contratada. Os tempos e os modos de reacção foram diferentes, como diferente tinha sido o começo da actividade. Hong Kong proíbe primeiro a emigração por contrato, para fora do Império Britânico, em 1866, confirmando a lei em 1868, 1870 e 1873. Macau mantém por mais uns tempos a situação, disciplinando-a com múltiplas advertências do Executivo”, Beatriz Basto da Silva.

Em 1873, o governo de Hong Kong promulgou três portarias, Ordinances “para cortar a ligação de Hong Kong com o tráfico de cules em Macau e para proteger os emigrantes chineses, dos dois sexos, que partiam de Hong Kong”, segundo Liu Cong e Leonor Diaz de Seabra, que referem, “a 24 de Agosto interditou que se abastecessem e equipassem os navios de cules no porto de Hong Kong e ordenou a sua expulsão, levando estes a mudarem-se para Huangpu.” (…) “Até Setembro de 1873, Macau ficou bloqueado pelos navios de guerra chineses e por ordem do vice-rei, todos os navios que entravam e saiam deste porto eram inspeccionados pelos oficiais chineses. Se fossem descobertos cules a bordo, os navios seriam levados para Huangpu.” O Vice-rei de Cantão então proibiu todos os barcos com cules dos países com ou sem tratado de fundearem nesse porto e em Setembro ordenou ao inspector interino da alfândega de Cantão, H. O. Brown, a expulsão de Huangpu de sete navios peruanos e em Outubro, de um belga e outro italiano.

Pousadas em vez de barracões

A 20 de Dezembro de 1873 o ministro da Marinha e Ultramar, João Andrade Corvo comunicava a proibição da emigração contratada por Macau e a 27, o Governador publicou a portaria fixando para daí a três meses [27 de Março de 1874] o seu termo definitivo. No Boletim de Província de 31/1/1874 foi promulgado o Regulamento dos Passageiros Asiáticos e seu Transporte pelo Porto de Macau, a entrar em vigor a 1 de Abril, por não se poder “negar a nenhum indivíduo em pleno gozo de liberdade, o direito de tomar passagem neste porto para outro qualquer a que se destine, devendo todavia velar pela sua conservação no estado livre e assegurar-se ao mesmo tempo das boas condições a todos os respeitos dos navios que tenham de transportar um crescido número de passageiros”. Em 18 de Março foi extinta a Superintendência da Emigração Chinesa, criada a 30 de Abril de 1860, assim como se acabam com “os depósitos e só serão permitidas para alojamento e pousada de transeuntes chineses, simples hospedarias devidamente licenciadas e registadas na procuratura dos negócios sínicos.” No B.O. dessa data, o Governador Visconde de Sam Januário declara que os denominados corretores, ou quaisquer outros indivíduos chineses que se empregavam na emigração, por acordo feito com o Vice-Rei de Cantão e por sua declaração oficial, “podem voltar livremente ao território chinês sem que sejam perseguidos pelas respectivas autoridades pela intervenção que tiverem tido nos negócios da mesma emigração, até à data do seu acabamento definitivo.”

“Todo ou quase todo o pessoal estrangeiro envolvido na emigração desapareceu com a extinção desta”, segundo Almerindo Lessa, “Os 5534 indivíduos que o recenseamento de 1871 mostra terem afluído ao Bazar, em 1878 desaparecem daquele bairro, deixando-o na cifra que tinha em 1867.” MJ refere, “Em Macau, o resultado dessa medida altruísta foi simplesmente catastrófico: várias ramificações de comércio legal extinguiram-se, milhares de pessoas foram atiradas para o desemprego e, face ao êxodo que se seguiu, as propriedades foram seriamente desvalorizadas.”

Assim, desde 27 de Março de 1874 estava proibida a emigração por contrato a partir do porto de Macau, mas fora aprovado ainda em 31 de Janeiro um novo regulamento para a emigração livre, julgando o Governador “pôr-se a coberto das graves acusações feitas quando deu o seu consentimento para a emigração para Costa Rica”, como refere José da Silva no Independente. Alguns agentes, escudados por esta nova ordem de coisas, prepararam-se para promover a saída de passageiros asiáticos e restaurar o tráfico de cules, apenas substituindo os depósitos em barracões por estalagens.

21 Jan 2019

Elogio dos filmes longos

[dropcap]H[/dropcap]á um famigerado, sacramental e tácito postulado entre os “dealers” e leiloeiros de arte nova iorquinos segundo o qual qualquer quadro terá de caber nos elevadores dos edifícios de apartamentos de Park Avenue.

Também no cinema é princípio consuetudinário que a duração dos filmes se inscreva entre os 80 e os 120 minutos. Em ambos os casos o propósito é o mesmo: não afastar consumidores por motivos meramente logísticos. Tanto um filme demasiado curto como um desmedido desorganizam os horários das salas de cinema impedindo-as de realizar a habitual quantidade de sessões às horas do costume.

A extensão dos filmes foi o combustível de uma “cause celebre” que definiu de vez a relação de poderes da indústria cinematográfica. Em 1925 o realizador Erich von Stroheim das 85 horas que havia filmado insistiu numa versão final de “Greed” com cerca de 8 horas e o jovem Irving Thalberg, há pouco tempo posto à cabeça dos estúdios da MGM, tirou-lho das mãos, mandou-o remontar sob a sua supervisão e deu à luz uma cópia com 140 minutos. A queda em desgraça do primeiro e o prestígio do segundo consubstanciaram-se com tal desfecho, mas além desta consequência imediata o que definitivamente ficou estabelecido foi assegurar que o produtor é quem na verdade imprime a sua marca no resultado final de um filme.

De modo que os filmes longos, muito longos, passaram a ser uma raridade circunscrita a um cinema de distribuição marginal. Até porque, é uma evidência, ninguém tem vida para se enfiar numa sala durante mais de 5 horas – ou bastante mais…

Há porém outra e menos referida causa para tal raridade, que não se detém na paciência do espectador, sequer nas dificuldades de produção. Um filme de longa duração exige uma segurança e uma maestria invulgares na manipulação do elemento mais volátil, impertinente, indómito, implacável, unívoco e, no fundo, essencial do cinema – o tempo.

Na verdade o rabo é o grande sensor da capacidade de envolvência de um filme, ao qual produtores e realizadores costumam – ou deviam – dar atenção. Quando as sinapses trazem ao cérebro sinais de incómodo do rabo no contacto com a cadeira é porque o enfado está a tomar conta dos nossos sentidos. E o enfado, como se sabe, é irreversível.

Quer isto dizer que duração não é demora. Sobram por aí curtas-metragens ditas de autor que abrem num plano estático e por lá ficam. Vasculhamos com o olhar os quatro cantos do enquadramento, tornamos a dar a volta e aquilo ainda ali está sem nada mais para dizer mesmo quando tem árvores batidas ao vento. Ao cabo de um punhado de prolongadíssimos minutos percebe-se que tanta e tão pretensiosa solenidade comparece unicamente para remediar o vácuo, que a coisa tem bazófia de sinfónica, mas é composição de uma nota só. A sensação de morosidade de um filme depende, portanto, da sua redundância, não do comprimento.

Fomos acostumados a que os filmes nos exijam concentração e esperteza para seguir as subtilezas do enredo, palpitação emocional para viver as alegrias e tristezas das personagens, contemplação ou deslumbramento perante as vistas e panoramas que ele nos dá a ver. Em troca é suposto devolverem um troço de vida condensada; em 90 minutos podem passar lá dentro décadas de história ou uns intensos momentos de drama.

Um filme verdadeiramente longo obriga à disponibilidade de uma viagem de avião intercontinental, sem mais nada que fazer senão estar ali. Ora isto tem potencial para originar um enorme prazer, equivalente ao de uma imersão total num universo paralelo. Estou em condições de afirmar que me custou sair de “Satantango” (1992) de Bela Tarr com 7h30m ou do documentário “Near Death” (1989) de Federick Wiseman com 6h, porque em ambos já me havia integrado neles e acomodado a permanecer ali dentro.

Noutros casos são filmes oceânicos, nos quais mergulhamos e vamos nadando durante um tempo, sabendo que não poderemos ir até ao seu fundo nem atravessá-los com as nossas pequenas braçadas – são muito maiores do que nós. A experiência de assistir a “Hitler” (1977) de Syberberg com 7h22m ou de “Le Soulier de Satin” (1985) de Manoel de Oliveira com 6h50m é a de começar a sentir que “aquilo” subsistirá para sempre independentemente de mim.

Ver um filme longo, tal como a difícil arte de ficar um ínterim sem fazer nada, oferece-nos um benefício precioso e cabal, que é o de ganharmos uma percepção do tempo doutro modo inalcançável.

18 Jan 2019

Recomeçar, sempre

[dropcap]T[/dropcap]odos os dias a vida recomeça. Dormir marca o reinício do nosso sistema operativo. No sono e no sonho, embora sentados na cadeira de comando, não somos nós que pilotamos. Melhor: é outra instância da identidade, uma à qual só temos acesso abdicando da lucidez e do controlo. O sonho tem a consistência da vida. Tudo quanto nos acontece no sonho nos parece tão real como aquilo que, de facto, tomamos como o sendo. Na verdade, não podemos afirmar com certeza não estar a viver um sonho. Não há nenhuma prova de que estamos acordados que não possa ser produzida num sonho. Esta é a premissa de muitos filmes de ficção científica, nomeadamente do Matrix.

Outro dos problemas filosóficos equacionados no filme é o da relação entre a lucidez e a felicidade. Tendo em conta que passamos mais de um terço da nossa vida a dormir, se pudéssemos controlar os nossos sonhos, e tendo em conta o absoluto valor de verdade que lhes emprestamos quando os vivemos, que seria preferível? Estar acordado e sofrer ou sermos felizes a sonhar? Os sonhos não são normalmente sequenciais, como a vida o é. O adormecer e o acordar estão ligados por uma continuidade de sentido a que damos o nome de vida. Cada sonho, por sua vez, é um acontecimento fechado. E se não o fosse? Ao contrário do que acontece agora, os sonhos podiam ter o formato narrativo da vida. Poderia dar-se o caso de nos vermos confrontados com a escolha de Cypher, do filme supracitado? “Sabe, eu sei que este bife não existe. Eu sei que quando o ponho na boca, a Matrix está a dizer ao meu cérebro que ele é suculento e delicioso. Após nove anos, sabe o que é que percebi? A ignorância é uma bênção.”

A maior parte de nós passa por tormentas na vida cuja resolução é improvável ou difícil. “Quem me dera dormir e acordar com tudo bem”. Já dissemos e/ou já ouvimos isso mais que uma vez. Alguns de nós não descartariam inclusive passar uma boa parte da vida numa simulação na qual pudéssemos ser tudo o que não fomos ou, pelo menos, felizes. Entre um estado de lucidez e um sonho, a diferença é unicamente o estatuto.

No entanto, temos dificuldade em aceitar a possibilidade de estarmos equivocados quanto ao estatuto da nossa experiência. Até podemos escolher viver na mentira, desde que tal corresponda a uma decisão nossa e saibamos onde começa um estado e acaba outro. O que não conseguimos aparentemente tolerar é a possibilidade de estarmos na ilusão sem saber a que corresponde a realidade. O nosso ponto de vista está calibrado, nas palavras de um professor de ontologia que tive, na “precisão indespedível da verdade”. O estatuto da experiência vital não nos é acessório. Pelo contrário, este apego transcendental à verdade ocupa uma posição mais central e decisiva do que felicidade. Sucede é que na maior parte do tempo pensamos estar na posse de uma compreensão adequada do que se está a passar. Por isso nos parece que a felicidade é o ponto arquimédico sobre o qual assenta o edifício da existência. Querem uma prova? Experimentem acordar num quarto fechado, sem se lembrarem de como lá foram parar. Qual é a primeira pergunta que se imaginam fazer?

A realidade é demasiado perseverante, demasiado ubíqua. Está por todo o lado. Há dias em que gostaríamos de lhe fechar a porta e a ela voltar remendados, refeitos, curados. Mas quando fechamos a porta, seja ela qual for, o que fica do lado de dentro não difere em nada daquilo que fica lá fora. Mesmo que diminuta, a realidade restante ainda nos consegue esmagar. Deveríamos saber como dormir mais e melhor. Como encadear os sonhos ao jeito de contas num fio. Ou como tornar cada recomeço “o dia inicial e limpo” da Sophia.

18 Jan 2019

Cinestesia 2

[dropcap]O[/dropcap]bjectos parados parece que estão em movimento. Objectos em movimento parece que estão parados. A nossa perspectiva influencia o aspecto das coisas. Ganho perspectiva que me permite ver uma coisa que antes não via, antes de a perspectiva ter sido constituída. Levanto-me da secretária e vejo o livro que caiu. Sento-me. De novo, perco o livro do horizonte da visão, mas sei que está junto à parede, onde caiu. Perco a perspectiva, perco o alvo em mira. Abaixo-me e estico-me para apanhar o livro. O livro parece aumentar de tamanho. Só no tacto é do mesmo tamanho. Pequenas são as coisas ao longe. Não: parecem pequenas. Não: parecem menores. À medida que nos aproximamos delas ou elas de nós parecem ser maiores. As coisas parecem aumentar e diminuir de tamanho: tão perto que não percebemos as suas formas geométricas e tão longe que deixamos de as ver. Há um cânone: entre o longe e o perto, entre a quantidade máxima com que nos surgem e a quantidade mínima com que nos podem surgir. Mas as coisas têm sempre o mesmo tamanho, a mesma forma, a mesma configuração. É com essa identidade em vista que achamos que as coisas não se deformam, nem mudam de configuração, não se transformam. Também sucede que julgamos bem quando dizemos que as coisas estão paradas ou estão em movimento, quando aparentam estar em movimento ou paradas. Na estrada, vejo lá ao fundo as bermas intersectarem-se mas sei que a largura da estrada é a mesma, aqui onde me encontro e lá ao fundo onde estarei daqui a breves instantes.

Tenho a percepção tácita de que para trás a base do triângulo também não se alarga, mas mantem exactamente o mesmo paralelismo. Se olho para trás, tenho a sensação de que lá ao fundo de onde venho também as linhas paralelas das bermas se encontram. Não há o acompanhamento do juízo lógico: a base do triângulo alarga. Antes estreita. Mas as linhas paralelas definidas pelas bermas da estrada não se encontram apenas aparentemente. Tenho a sensação de que a estrada lá ao fundo está mais elevada, que é como se estivesse a subir uma alameda. Eu encontro-me num plano inferior relativamente ao plano superior da estrada lá ao fundo. Olho para trás e não tenho a sensação de que a estrada no ponto de partida esteja num ponto ainda mais inferior. Antes pelo contrário, verifico que o ponto de partida como o ponto de chegada estão em planos superiores. O que sucede é então provocado pela perspectiva criada pela distância. Tudo o que está ao longe está à frente ou atrás num plano mais elevado, superior. O longe tende a conglomerar as coisas. Os pontos onde as coisas se encontram não são tão dispersos pelos diversos planos que definem entre o ponto em que nos encontramos e o plano de fundo criado pela linha do horizonte. Os pontos são atraídos, sugados e puxados pela linha do horizonte, pela abóbada celeste, tendem a estar no plano definido pela abóbada, lá ao fundo: pontos concentrados e colados todos eles pelo longe. Todas as coisas que se encontram em pontos que definem planos entre o nosso ponto de vista e o plano de fundo estão espalhados.

Cada coisa em cada ponto, no seu ponto, define um plano. Mas há muitos mais planos do que os que são definidos pelas coisas que realmente aparecem. Eu estou no meio de uma esfera, de uma atmosfera, de um horizonte hemisférico que define potencialmente planos em todos os pontos em que eu possa focar a visão.
Há tantos hemisférios quantas as perspectivas que se abrem no horizonte. Posso olhar absorto para o horizonte, como quando estou no lugar do morto e alguém conduz o carro ou como quando estou a olhar para a frente sentado no banco do autocarro. Mas quando fixo o olhar na estrada, é no carro da frente ou no outro a seguir. Ou então olho para a frente para o ponto em que de modo aparente as linhas definidas pelas bermas da estrada se encontram. Mas posso olhar também para o céu ao crepúsculo e ver as estrelas do céu ou as nuvens que passam. Deixo de olhar para a frente que noto que o faço através do vidro do carro. Olho para o porta luvas para apanhar um CD ou então um lenço de papel. Entrego-o à J. que conduz. Olho de novo em frente. Constitui sempre alvos diferentes. Consoante os sítios em que se encontram percebo que estão definidos hemisférios diferentes. O plano de fundo pode ser o interior do carro, sem que perda a noção do seu exterior. Quando olho de novo para o horizonte, o exterior do carro é o campo extremo da minha percepção que engole não apenas o interior do carro mas a estrada com todas as viaturas que aí transitam. É também interior o céu e as nuvens que passam ou as estrelas espalhadas e distribuídas pela sua vasta extensão. Para onde quer que olho, frente, trás, cima, baixo, direita e esquerda, dentro e fora, percebo sempre um plano de fundo Relativamente a esse plano de fundo defino potencialmente diversos planos onde as coisas estão distribuídas. Fixo os meus óculos, e os olhos e o nariz e parte do bigode. Entre o aqui muito próximo em que me encontro e o ali há todo um conjunto de planos definidos entre o mais próximo coincidente comigo e o mais longínquo longe. Tudo é sempre frente. Eu tenho a noção da nuca e da parte de trás invisível do meu corpo, das nádegas, das costas assentes na cadeira, tenho noção do interior, mas eu vejo apenas de frente. Tenho noção dos objectos que vejo de frente, mas percebo que só vejo deles o lado deles que está virado para mim: não vejo nunca o interior dos objectos e não vejo o lado deles tapado por outros objectos. Entre nós e as coisas só há o plano definido pelo espaço intermédio entre o aquém e o além de nós e dos objectos. Tenho noção de coisas atrás de mim. Elas não desaparecem apenas por deixar de vê-las, elas não desaparecem quando passo por elas. O lado dos quartos que não vemos não desaparece e está a fazer sistema com o lado dos quartos para que estamos a olhar. Eu não vejo o quadro na sala atrás de mim e posso ver a porta lá ao fundo. Não vejo a porta porque estou a olhar para o ecrã do computador. Ainda assim, penso na porta lá ao fundo como uma ausência tão completa para a visão como o quadro que sei que está pendurado atrás de mim. Olho para a porta e deixo de ver o computador. Olho para trás e vejo o quadro.

Deixo de ver tudo o que estava a ver. Estamos continuamente a poder deixar de ver tudo o que estamos a ver ou poderíamos ver, ao olhar de frente, quando mudamos de enfoque. Se da esquerda passamos para a direita, se de cima para baixo, se do longe para o perto, se do interior para o exterior: e tudo continuamente ou nunca. Mesmo que nunca virasse a cabeça ou fixasse pontos diferentes do espaço, nunca faria a ideia de que as coisas desapareceriam se eu deixasse de me focar nelas e passasse a focar outras noutros planos. Do mesmo modo se estivesse continuamente e mudar de enfoque, a alterar a perspectiva, a constituir aspectos diferentes às coisas, não me perderia na velocidade estonteante com que tudo se altera convulsivamente. E o que se passa com a atenção prestada e não dada às coisas?

18 Jan 2019

Os inadaptados

[dropcap]N[/dropcap]ão sei como passei de uma coisa a outra, é sempre inesperado o que desencadeiam as sinapses. Leio a correspondência de Artaud, aquelas missivas em que ele falava da perda de potencial e de energia do pensamento, e de como espíritos lhe esburacavam a vontade e roubavam a lucidez, drenando-lhe a capacidade para incarnar o raciocínio, e veio-me uma vontade irresistível de rever Misfits/ Os inadaptados, de John Huston. Assim, num estalar de dedos. À cabeça, que tem a boneca-de-Hollywood, Marilyn, a ver com o cabide-Artaud?

E no entanto, revisto o filme, tudo se conjuga, até o “teatro da crueldade” que se delineia na espantosa sequência da caça dos mustangs, em que um Clark Gable a cair da tripeta tem a última grande cena da sua vida.

Tem graça a trajectória de Gable, desde o começo quando Darryl F. Zanuck o testou para o papel de Little Caesar (em Alma de Lodo), de 1931, para o rejeitar, alegando: “Não serve para o cinema. As orelhas são grandes e lembra-me um macaco” (e não é que Zanuck não estava longe da verdade?), até essa sequência em que num só lançamento laça o cavalo e uma histérica Roslynd, de sensualidade détraquée.

Marilyn tinha-lhe uma admiração de morte e como detestava o guião de Misfits (assusta-a o desespero de Roslyn, o papel que lhe estava reservado), do seu então crepuscular marido Arthur Miller, só aceitou fazer o papel de Roslynd depois de Huston ter convidado Gable para o seu canto do cisne – o actor faleceria de infarto nos dias imediatos ao termo da rodagem e a viúva haveria de culpar Marilyn pelo desgaste que lhe teria causado.

E assim foi Marilyn, que de comum precisava de cabeleireiro, maquilhador, camareiro, manicure, massagista, e de Paula Strasberg, para os calores do Nevada.

Gable não percebeu nada de Marilyn e do seu comportamento na rodagem (até uma tentativa de suicídio de Marilyn – que fora rejeitada pelo seu ex-amante, Yves Montand, houve) embora esta confessasse mais tarde que quando ele a beijou ela ficou com pele de galinha, ou seja, excitada. Mais do que, hélas, ele obteve de Scarlett O’Hara/Vivien Leigh, em Tudo o Vento Levou, que era frígida. E, no entanto, Vitor Fleming filmara-o como se ele fosse um garanhão, e aí aparenta ser duas vezes mais alto do que no seu derradeiro desempenho como Gay, o intrépido vaqueiro cheio de momices faciais e que encolheu para encarnar a caricatura das suas glórias do passado, as quais só nas cenas finais se resgatam. Talvez por influência do uísque que lhe mordia as entranhas, a interpretação de Gable é toda aos sacões – resta-lhe apenas uma energia intermitente, falha, ou a reserva-a de todo para a cena em que doma o mustang e que nos faz confiar que afinal talvez ele consiga fazer um filho à rapariga?

E Roslyn? Desde o princípio que está cansada e ferida e as suas neuroses, o seu sentimento de orfandade, são certamente as da actriz. Depois, tal qual lhe diz Gay, é ensurdecedora a sua tristeza. Como foi dito, Marilyn não faz o papel de Roslyn, ela é Roslyn, e o filme «é a autópsia de uma mulher ainda não inteiramente morta».

Roslyn, a bela ex-striper, logo no início, não hesita em divorciar-se e acusa o marido de quê? De ausência. Para bom entendedor. E de ausência sofrem todos os personagens do filme, de Gay, o cowboy que ultrapassou já a meia-idade, a Guido o aviador, ao patético Perce/Montgmorey Clift, ou a Isa, a amiga mais velha: gastam a vida a tentar colmatar esse hiato, essa nostalgia irreparável.

Afinal, a que se resume Misfits? A Roslynd e a três cowboys pelo beicinho, cada um deles a procurar mostrar-lhe que é o mustang de que ela precisa? Engano, o filme trata antes, diria Artaud, da vida espectral, quando não acodem ao corpo os órgãos do discernimento.

Na primeira vez em que estão a sós, Gay pergunta-lhe pelo grau académico, e ela responde que abandonou cedo a escola, ao que ele se regozija. Ela estranha e Gay explica o que lhe aborrece nesse tipo de mulheres: “as mulheres que se formaram querem sempre saber o que estou a pensar”. Como se pensar fosse uma demasia infinita para uma conta de que não se sabe a cifra. Gay, pelo contrário, identifica-se com os mustangs que caça, imagina-se enredado em pura energia, não tendo, até encontrar Roslynd alma fora do corpo.

Estes cowboys insolentes e fora de uso, foram moídos por uma vida que pulsa, embora sem foco (não se queixa o traumatizado Guido, piloto de avião, de que na guerra “bombardeou às cegas”?) e que os obriga a rodopiar de rodeo em rodeo para medir a energia que lhes resta, são “corpos sem órgãos” porque desvitalizados do livre arbítrio que na maturidade inscreve um ganho em toda a perda – aqui, uso a expressão e não o sentido que Artaud lhe dá.

É o que o atarantamento de Roslyn acaba por transmitir a Gay, a vontade de «adquirir um sentido para a vida» e de mudar os valores. A coragem, por exemplo, em Gay deixa de ser a inclinação cega de dominar o mustang e de exibir o seu troféu, para significar, numa reviravolta, o gesto de abdicar do troféu, decidindo pela vida do mustang. Conquistar passa a ser o equivalente do seu oposto, a dádiva.

Corolariamente, metáfora do triunfo da vida terá o seu epítome na promessa de um filho com que o filme acaba, esse transcendente que dominou por fim o indomesticável.

Apesar de um pouco moralista – o sexo é, no filme, o mau estratagema para curar a solidão própria ao homem, e só o amor rompe a clausura – The Misfits é um daqueles filmes imperfeitos que tem tudo para ser imortal.

Como aliás o falho pensamento de Artaud.

17 Jan 2019