Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasDas perguntas que se vão [dropcap]À[/dropcap] medida que o tempo avança existem perguntas que ficam para trás, soterradas sob o escombro de modos e olhares em permanente mudança. E agora que já consegui ganhar o prémio de Melhor Truísmo do Dia, deixem-me que vos ofereça esta história. Há perguntas que se vão, que se despedem ou se desvanecem sem sequer darmos por isso. Lembro-me desta: quantos de nós, jovens ou com mais vida, ainda perguntam: “Vamos hoje dançar?”. E aqui dançar não se refere a uma ida a uma discoteca para efectuar movimentos espasmódicos, individuais e aleatórios que mais ou menos seguem um padrão rítmico; para isso inventou-se um eufemismo fracote que é “Vamos hoje sair?” e que contempla um número mais abrangente de actividades. Não: dançar, juntos e agarrados, o simples acto raro e festivo que significava “ir dançar” modificou-se com a sua banalização e a chegada de novos gostos musicais que não requerem grande aprendizagem de movimentos para exibição na pista e ao parceiro. E isso está certo porque simplesmente não há um valor oposto, moral ou ético, que se possa colocar (estético talvez, mas isso sou eu que tenho mau feitio). Era nesta e noutras perguntas extintas em que pensava sob um calor primaveril (vamos, por uma vez, fazer um brinde ao aquecimento global), na esplanada do costume. E mais uma vez surgiu a menina Marina – a sábia do bairro, já vos disse -, que, reparando no livro que estava pousado na minha mesa, disse: “O senhor Nuno lê muito. O que anda a ler agora?”. Magnífica, proverbial, divina menina Marina! Ofereceu-me, ali e então, mais outra pergunta que há muito não ouvia ser feita – nem a mim nem a outrem. Admito que a questão exista e seja praticada em rituais reservados a iniciados ou em clubes de leitura; agora de um modo quotidiano a pergunta já não se aplica como dantes. Mas a dificuldade da resposta permanece, sobretudo perante um interlocutor que mal conhecemos: ao referir o que andamos a ler as reacções podem variar do interesse por cortesia ao julgamento em silêncio (quase sempre aplicável se estivermos a ler poesia). Neste caso obtive o primeiro; mas a minha felicidade não diminuiu por isso. Sobretudo porque o livro que ando a ler – já que não perguntaram – é dos mais belos hinos à leitura, aos livros e aos leitores com que deparei há muito tempo. Chama-se The Uncommon Reader ( A Leitora Real, na versão portuguesa) e foi escrito por Alan Bennett, um dramaturgo e argumentista inglês de que gosto muito. É uma pequena fábula cómica de pouco mais de cem páginas – mas com tanto para dar! Publicado em 2007, só agora o descobri, num timing perfeito e da melhor maneira – quando passeava o olhar pelas estantes de uma livraria. Bennett imagina a rainha Isabel II de Inglaterra a descobrir por acaso a biblioteca ambulante de Westminster, estacionada perto de uma das portas do palácio de Buckingham. E com a colaboração de um leitor apaixonado que é ajudante de cozinha, a rainha entra na odisseia extraordinária da descoberta dos livros e dos mundos dos autores, a ponto de descurar as suas funções oficiais. Os comentários da rainha ao que lê são maravilhosos, um prodígio de economia humorística e inteligente. Mas o que nos fascina é a sua viagem: sem mapa, estrada ou teorias, lê pelo prazer de ler, sem qualquer espécie de preconceito. Da biografia de Sylvia Plath (de que não gostou) passa sem medo para as memórias de Lauren Bacall (de que gostou e por quem sente uma ponta de inveja); a análise psicológica de Henry James maça-a, bem como os autores que convida para uma recepção no palácio; não consegue compreender bem o humor subtil de classe social dos livros de Jane Austen porque simplesmente viveu sempre acima deles… E mais, muito mais que não irei estar aqui a desvendar. O que queria dizer é isto: dificilmente os livros – ou a leitura – nos fazem melhores pessoas, moralmente falando. Mas são uma aventura necessária, a que nos devemos entregar sem reservas nem bússola para podermos traçar a nossa rota. O espanto da rainha de Inglaterra é belo e acessível a todos. E ajuda a salvar perguntas extintas e de porte imponente. Vamos a ele, vamos a ele.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasCom os corpos Horta Seca, Lisboa, 31 Janeiro [dropcap]P[/dropcap]or esta altura, obriga-nos a soberana lei fiscal a inventariar cada volume sobrante, em repouso nos armazéns, perdido nos esconsos das supostas livrarias, entregues aos mais desconformes cuidados. Mais adiante pagaremos imposto sobre este fracasso. Os livros por vender são activos, mantêm potencial de monta, afirma o ultra-sensível fisco, ainda não pesando valor literário ou outro. Não tarda, hão-de apurar o interesse, a influência e a cintilação dos textos com vista ao apuramento de taxa respectiva. O momento deprime invariavelmente, por tornar claro que os livros, ainda que circulem, demoram a atravessar para o lado de lá, continuam nossos em mãos alheias, por via da tóxica figura da consignação. O pior é que os apuramentos, por mais esforço investido, não chegam nunca a ganhar corpo de rigor. O que era compra sólida acaba por revelar-se miragem gasosa. Estou para encontrar negócio mais tolo que este. >Horta Seca, Lisboa, 4 Fevereiro Chegou-me «Rossio», primeira d’ «As 4 Estações» d’ «O Gajo». Não podia começar melhor esta viagem, logo recebendo um cais de partida. Calcando qual cavalo de ferro as linhas do horizonte, os dedos do João Morais nas cordas da viola campaniça desenham paisagens. E despertam desejos, tanto mais que não consigo desligar sul do som. Vejo cores. Em geometria performativa, os andamentos impelem ao movimento, dispõem-nos ao caminho, que é poema, diz o mano [José] Anjos, na terceira faixa: «uma linha lenta, sempre recta, sempre certa, para onde quer que se vire». Nem sempre recta nas volutas de aconchego, nem sempre certa na poeira que se levanta. Gosto muito de comboios, com a sua fala que liga terra ao coração e olhos largos a riscar a superfície das árvores e das nuvens. Esta viola faz-se gazua de arroubamento. Horta Seca, Lisboa, 6 Fevereiro Para não variar, muito antes da oficial, circula a oficiosa lista de candidatos ao Prémio Casino da Póvoa/ Correntes d’Escritas, dedicado nesta edição à poesia. Da dúzia, quatro pertenciam a autores da abysmo. Cada prémio literário levanta maremoto tipo lençol de comentários e gritos e choros e indignações, até alegrias difusas. Continuam sem me despertar grande interesse, embora me veja obrigado a navegá-los sem carta de patrão de costa ou alto mar. Para o melhor e o pior, talvez ajudam o corpus a definir-se na neblina do sistema literário. Para brutos abalroamentos ou suaves atracagens. Escolhidas por Ana Paula Tavares, Maria Quintans, Marta Bernardes, José António Gomes e Almeida Faria, as nossas vozes díspares e canoras foram a Inês Fonseca Santos (Suite sem Vista), o João Rios (Não É Grave Ser Português), o José Luiz Tavares (Rua Antes do Céu) e o Luís Carmelo (Tratado). Lá canta o nomeado Rios, sem o ponto de interrogação, maneira assaz nossa de morrer na praia: «a pata no meio/ e a pátria num canto/ se a pata for astuta/ e a pátria tiver recheio/ canto ou não canto.» Facebook, 7 Fevereiro Nunca fui ao México. Tenho medo de não voltar. Quem mais celebra os mortos que somos, caminhantes, às tantas festivos, daquela maneira? Recordo-te Albert Finney (1936-2019), na mais elegante das bebedeiras, caindo da tela, em tropeço, para a cadeira ao meu lado. Saltitando entre o castelhano de Buñuel e o inglês de Potter, fizemos festas ao cão tinhoso, evocámos a contragosto o Lawrence da Arábia perdida, ressuscitámos o frio Lázaro, só não perdendo a cabeça por um fio, bebericámos juntos até cair sob o vulcão, citando versos que diziam da sagrada bebedeira. Chorei por não te ter visto vez que fosse no palco, partilhando o ar que me faria crer que não eras inventado, antes lugar de tornar possível. Quantos corpos se sabem fazer palco? Facebook, 8 Fevereiro Depois dos mexicanos, só os franceses sabem desenhar a minha amiga morte. Desta vez, a da gadanha tapou os olhos ao Tomi Ungerer (1931-2019) sem lhe dar tempo para responder (ver algures na página desenho do autor). Ele sabia. Quantas vezes apanhou os modos que a dita tem de nos fixar em carne os contornos? Não chegam os ossos dos dedos das mãos, falange falanginha falangeta. Conta, isso sim, o modo como nos deu a ver aquilo a que o corpo pode aspirar, farol e antena. Ora recebendo os raios da fantasia, pondo no papel a maravilha da infância. Ora atirando a luz da sátira, quando nos perdermos no mar do quotidiano abstruso. Ora, entre coisa e outra, dar e receber, reinventando a boa «adultância» que não perde o instinto de brincar quando se atira às correntes alterosas da lascívia. Não sei se me oriento sem Tomi. Alecrim, Lisboa, 11 Fevereiro Bela que seja a rua, o nome devia coincidir com uma praça. O lugar do homem está em rua paralela, das que descem em direcção ao rio-quase-mar, não longe da Trindade. O homem é Bernardo Trindade e não se distingue dos livros, não apenas das lombadas e das páginas, do pó que a tudo toca, mas dos typos e das ilustrações, da linha com que se cosem, das sobrecapas protectoras. Por teimarem as coisas em se ficarem pelo que parecem, andava adiado este encontro que doravante não mais deixará de partir. Assinale-se em folha (persistente) de árvore-calendário. Ainda nada lhe ofertei e já recebi «The Blue Guitar», prodigioso álbum de gravuras de David Hockney ilustrando poema de Wallace Stevens, que parte de «The Old Guitarist », de Picasso. E onde o contorno procura a forma, o traço a cor, a palavra a canção e por aí fora: «So that’s life, then: things as they are?/ It picks its way on the blue guitar.// A million people on one string?/ And all their manner in the thing,// And all their manner, right and wrong,/ And all their manner, weak and strong?// […] And that’s life, then: things as they are,/ This buzzing of the blue guitar». Politécnica, Lisboa, 14 Fevereiro «A Gata e a Fábula» merece leitores assim. Jorge [Silva Melo] brindou-nos, por junto com as leituras da Maria João Luís, com visita guiada não apenas ao proscénio do romance, entre obscuridade e holofotes, mas aos seus bastidores, carpintaria e adereços. Sacudiu personagens, demonstrou a mestria da narradora no inesperado tecer do contar, enquadrou os temas e acertou o passo ao tempo. Declarou, afinal e de modo contagioso, grande amor à escrita «bisturica» de Fernanda Botelho. O resto deste lançamento há muito almejado, tendo pelas costas o palco dos Artistas Unidos, celebrou o encontro com uma família exemplar no esforço de pôr a obra nas mãos e olhos de novos leitores, tornada visível na energia da Joana Botelho. E ainda de um encontro «inquietante e vivo» com a Paula Morão, do Centro de Estudos Comparatistas. CCB, Lisboa, 14 Fevereiro Grande festa se encena ali naquele palco, cheio de actores e adereços e temas queridos! À primeira vista parece algumas que eu cá sei. A partir de mergulho em apneia em escritos e personagens de Fiódor Dostoiévski, a Carla [Maciel] monta, nestas «Confissões de Um Coração Ardente», uma girândola vertiginosa na qual a palavra nos puxa aqui para dentro e nos atira ali para fora de nós, das nossas interrogações, certezas, deslizes. Pode o amor resgatar-nos da miséria?
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasElenchos: passar vergonhas e submeter a tratos [dropcap]A[/dropcap]filosofia é uma obsessão compulsiva com a transparência. É uma paixão. É uma forma de erôs. Pode acontecer a partir de episódios de espanto em situações extraordinárias. O maior espanto é de segunda ordem: um espanto com a ausência de espanto, o que quer dizer que a trivialidade causa espanto por si, porque torna trivial o que não é trivial, o facto de as coisas serem em alternativa a não serem e serem precisamente como são e não de outra maneira. A filosofia é método: modo de fazer o caminho, viajar, fazer uma jornada. Não é uma deslocação. É uma mutação em que nada fica na mesma, ainda que a força do quotidiano e da atitude natural se possa sobrepor às paisagens visitadas. Muitas das palavras usadas pelos filósofos para descrever o seu método estão pejadas de violência. Na famosa alegoria da caverna de Platão, onde se encontram os humanos, prisioneiros das sombras, aquele ser humano excepcional que vê a luz passa faz uma experiência violenta, aparentemente contra a sua vontade, de uma forma inesperada. Ele é agarrado, empurrado e puxado para cima. Da posição de sentado é atirado para a superfície do poço em que se encontra. Lembro-me como na Florida num campo de diversões fui arremessado, sentado numa cadeira, para o alto, uma centena de metros: da escuridão de uma sala para o dia de sol sob a abóbada celeste. Na verdade, fui puxado e empurrado. Não sabia ao que ia, como o prisioneiro. Muda o quadro da situação, muda o plano de fundo da escuridão, da noite, do interior, para a luz, o dia, o exterior. E, ainda assim, terá de voltar para o interior, para o fundo, para a escuridão, porque tem de regressar para os seus e tem de contar o que viu. Comunicar não é apenas informar, por mais meritório que seja. A comunicação é constitutiva do ser humano. Mais do que uma forma de expressão é a possibilidade não anulável de aproximação ao outro, de neutralização da solidão. Mas do mesmo modo que custa ouvir as verdades também aos outros custa escutá-las. Custa tanto que podemos nem sequer perceber do que se trata. As palavras como procura, inquérito, processo denunciam, por outro lado, a linguagem jurídica que perpassa toda a história da filosofia. A abertura de inquérito, contudo, nem sempre é pensada num estado democrático com boas práticas cheias de humanidade. Na verdade, a prova de fogo ou a pedra de toque são os critérios que os antigos usavam não apenas para testar metais, designadamente o ouro. Mas, se o inquérito for policial, os métodos antigos não são ortodoxos. São a violência pura da tortura. O elenchos (refutação) e o basanos (pedra de toque) são os operadores utilizados para o apuramento da verdade. Em parte, pode perceber-se que a interrogação se pode fazer às cegas, sem ter nada de concreto. Por outro lado, o inquérito é como um interrogatório a que se submete alguém. Mas somos nós que nos submetemos a um interrogatório, sem sabe bem a que chegaremos, e, de facto, submetemo-nos a um interrogatório de um modo violento, submetemo-nos a tratos. o elenchos quer dizer argumento que visa a refutação, uma redução ao absurdo. Não se trata de uma prova por defesa mas uma acusação que visa a descredibilização de alguém ou da opinião de alguém, visa dizer que a opinião de alguém é infundada e que alguém não é digno de crédito. Uma vez mais, se nós formos o sujeito submetido a inquérito tal quererá dizer que não somos dignos de crédito e que as nossas opiniões são infundadas, quando achamos exactamente o contrário: que somos dignos de crédito e que as nossas opiniões são oraculares. O exame cruzado, o teste, a submissão a escrutínio implica precisamente uma forma de pensar que sai verdadeiramente de si. Pensar por si não é apenas pensar para si. Pensar por si desvincula-nos do alto conceito que temos de nós e põe-nos em questão, põe problemas ao que pensamos, faz-nos perguntar sobre se o que pensamos é fundado ou não, obriga-nos a dar conta da nossa própria vida e em última análise dá-nos a oportunidade de nos retratar. Por outro lado, temos de fazer prova primeiro contrária do que achamos saber e depois para defender o que achamos que é uma opinião saudável. Tal como num processo judicial do ponto de vista da acusação, temos de fazer prova que leve à condenação do arguido. A defesa procurará provar a inocência. A condenação e a inocência dependem do processo judicial que o júri avaliará para ditar a sentença. Mas o arguido, o réu, o condenado e o absolvido, a acusação e a defesa e o próprio júri são a mesma pessoa. A filosofia age em prol da verdade do ponto de vista da acusação. Procura mostrar que tudo o que sabemos assenta num julgar que se sabe. Julgar é apenas subjectivo. O saber pode depender inteiramente desse julgamento opinativo e nada ter que ver com a verdade. Julgar saber é privado, subjectivo, e não pode ter pretensão de verdade, quando a tem em absoluto. Mas como submeter tudo a exame? São todas as nossas opiniões de um ponto de vista teórico? A palavra elenchos quer também dizer passar por uma vergonha, passar por um vexame. Tal quer dizer que se trata de uma experiência violenta, extraordinária, excepcional, eventualmente episódica. Significa que o que fazemos é mal feito, do ponto de vista moral, psicológico, atenta contra a nossa integridade física, psíquica e pessoal. Mas ao passarmos por um vexame somos postos em causa, por termos feito qualquer coisa às escondidas, que não queríamos que se soubesse que a tínhamos feito, e é denunciada, somos apanhados em falso. A forma: fazer em privado qualquer coisa às escondidas, em que não queremos ser apanhados, e seremos denunciados é a forma da vergonha, do atentado ao pudor, do vexame. Não é qualquer coisa pela qual gostaríamos de passar. Era a última coisa que queríamos que se soubesse independentemente da sua causa ser moral, psicológica ou o modo como avaliamos pessoalmente quem nós somos e o que fizemos. Mas uma coisa é passarmos involuntariamente por uma vergonha e outra coisa é queremos passar por uma vergonha, confessarmos à última pessoa a quem queríamos confessar a única coisa que fizemos e não queríamos que ninguém soubesse. É justamente aqui que a filosofia encontra o seu método. Como se tivéssemos cometido um crime e fossemos rapidamente à polícia para nos confessarmos e sermos julgados o mais depressa possível, para sermos condenados e assim purgados desse crime. O crime na filosofia é a opinião, termos uma opinião que não sabemos de quem é autoria, sermos o resultado de preconceitos, vivermos pejados de preconceitos contra os outros, contra as coisas, contra nós próprios. É preciso uma prova de fogo ou como os antigos diziam um basanos, uma pedra de toque para identificar o ouro. Quando passado o ouro por essa pedra, nela ficava uma linha amarela que indiciava que o metal não era falso mas era ouro. Do sentido literal do termo ficou um sentido figurado: teste, tentativa de verificação da autenticidade ou da genuinidade de qualquer coisa ou de um testemunho. Era também a palavra em Atenas para tortura que visava extorquir evidências a escravos, para testemunharem contra os seus senhores. Aqui, somos nós que nos submetemos a tratos, à tortura violenta que nos leva a abrir mãos dos nossos preconceitos, dos juízos prévios e irreflectidos, tudo o que nos envergonha, tudo o que é ignóbil, tudo o que nos desonra e nos deixa seres menores ou desprezíveis ainda que só aos nossos olhos. E para quê? A hipótese que nos lança neste projecto é-nos imposta tal como o espanto, numa primeira instância. Mas pode constituir-se em necessidade intrínseca, como um modo de vida, como a maneira de fazermos caminho. Não há caminhos sem nos fazermos ao caminho. O caminho faz-se andando. Tal como o método para os antigos. Saber é fazer. Saber é explicar. Na mais longa viagem que é a nossa vida, na jornada terrível e admirável que temos cada vez mais curta pela frente, o real é menos do que o possível, o sonho é maior do que a realidade concreta, mas a possibilidade remete para a realidade como o sonho para a vigília. E vice versa. A escuridão define-se relativamente à luminosidade, a noite para o dia, a morte para a vida. Nada do que nos acontece está fora do horizonte aberto, irreversível, mutante da vida continuamente a deixar de ser. Nenhuma opinião é fora deste contexto. O que achamos que é para sempre é caduco, quem nós achamos que não desaparece nunca está a deixar de ser. Também nós não percebemos o ridículo das nossas opiniões e do nosso saber. E também saber que é ridículo o que sabemos e que é ridículo repeti-lo é uma forma de passar pelo vexame e pela vergonha de ousar submeter-nos a tratos para passar vergonhas. Mas o longe é possível assim, somente.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasLojas dos trezentos [dropcap]C[/dropcap]omeçou por ser no fim do século vinte a mais acessível fixação para o mercado oriental a Ocidente, não escudando – ainda em escudo – uma invasão há muito predestinada para o escoamento dos produtos mais baratos e descartáveis, a superabundância de uma estrutura capitalista vinda da China ascensional. As lojas têm topos fixáveis, as maçónicas, definem os graus pela iniciação, as origens, essas, são como as raízes, tornando-se por isso, invisíveis. Os Trezentos! Quem são, onde moram? – Treze, o número daqueles que escolhem os membros, sentados em mesas nas ceias de Hotel. – Aqui chegados, o ensaio fortemente polémico de Pessoa esclarece numa cadência também ela repleta de fórmulas herméticas (umas mais do que outras) a não arbitrariedade da vida que nos fora afinal dada viver: há planos que seguram outros como fios de aranha cujas reuniões, foram, e continuam a ser, nos “castelos” dos Condes Drácula. Debruçado sempre no mito civilizacional da Europa constatamos do propósito de uma acção secreta que rompe paulatinamente com a herança grega e prepara terrenos móveis para aplicar medidas em todas as frentes da organização social. Dito assim, será mais explícita a frase profética: «perdido todo o sentimento de harmonia, o europeu, não sabe como agir sobre dois bandos de loucos, opondo-se furiosamente, mas falsamente, parecendo obscuramente combinados para a ruína da civilização». Estamos assim, perante uma noção de crises estipuladas e fabricadas, cujas razões ficam muito além da vociferação geral. Das vagas de governos (não tantas quanto as marés) fica-nos a sensação da estratégica escolha, um teatro de marionetes que se suborna bem pela vaidade e através do culto do muito pagão bezerro de oiro, mas que em suas várias facetas também não passam de vítimas minoritárias. Em tudo isto devemos no entanto ser audazes, a «bússola» por onde nos norteamos deve no entanto estar limpa para não encorpar a demencial teoria da conspiração que é retábulo de insanidade, também ela programável, que tende a desintegrar de dentro para fora, de modo a ficar-se pouco reactivo frente a um momento de grande impacto. Creio, e não é nada de imponderável, que estamos neste instante a passar por aqui com a grande avalanche de informação que perdura nas consciências o módico tempo de vinte e quatro horas. Mas os Trezentos no primeiro impacto mercantil, quando a mercadoria era muita e a preços módicos, entreteve bem o mercado e fez do próprio lixo um motivo de prazer. A «estrutura e a resistência dos materiais» que são os povos, aguenta quase tudo, pois que sempre carregam fardos que equilibram as secretas reuniões que lhes ditam e lhes fornecem o apreço. Aproximando a realidade ao conceito, ou a uma supra realidade, acorre perguntar sempre: quem são os Trezentos? E diz assim: «A nós e feita a pergunta, logo nos ocorre que a sua origem seja oriental, “nós” era um deles, Walther Rathenau (alemão, fim do século dezanove) acrescentando «A Europa é governada por trezentos homens». “Cozinhavam” já o fascismo, e acrescentaram: «o fascismo não vai ser de raiz espiritual, cairá com facilidade, deixando de si apenas um fermento revolucionário cuja desordem aproveita mais do que desconvém». Quem nos conversa com tanta certeza no meio do olho do vulcão tem diálogos amenos, consensos fáceis, pois que um mundo repartido por tão poucos fará naturalmente belas camaradagens. E diz que é comum a fila dos que se aprumam para entrar, sendo ao que parece “monitorizados” consoante a sua utilidade. Felizes, por irem até ao altar do Minotauro, muitos não passam das escadas e crêem estar ao colo da Organização. Deve ter escadas como as do sonho de Jacob! Entram descalços e saem ministros, coisas que bem pensadas, só com silêncio se sabem fazer, nada existindo aqui de aparente maleficio face à utilização de personagens com ambições ascensionais. Cairão no entanto, finda a sua utilidade, e muitos serão repasto ainda para as feras. Este é o número de uma das Centúrias, e a descrevê-lo, é melhor então que entre subliminarmente pela tralha, que por jazidas de ouro, o que levantaria certamente suspeições. Diz servirem-se do baixo judaísmo mais do que dos degenerados europeus, dado que o judaísmo é uma organização universal e a candência da Europa um conjunto amorfo de sociedades, numa similitude: tal como o judaísmo se infiltrou na Maçonaria para operar na sombra, assim os Trezentos se servem do judaísmo de baixa natureza para operar na treva. Estamos talvez em presença de grandes universos paralelos que se entrosam muito bem, mas saibamos então clarificar um pouco este instante: as dores fantasmas de que sofre agora a Europa são naturais ou implantadas? Os membros arrancados querem crescer de novo… batráquios com memória aquática? Que preparam para breve, e agora sim; quais são para eles, e para nós, as consequências? As castas foram abolidas, mas os grupos são perenes. Talvez tenhamos uma data-chave ao trecentésimo dia do Ano que incidirá a 28 de Outubro o que resumidamente foi sempre apelidada de data estranha: o nascimento de Adão! Muito bem mencionado, aliás, até num conto de Eça de Queiroz. Se as peças parecerem soltas, podemos invocar um alto dignitário, também ele invisível, que nos ajude a decifrar melhor o que sentimos estar para já a acontecer. Tardámos a recuperar lucidez mas não estamos ainda mortos, e muito longe de pedir audiência a um canal tão estreito, por ora basta-nos o sabermos que existe. Talvez seja a próxima função poética, o salvar da penumbra a sua deidade adormecida e colocar tão vilipendiado mérito a desocultar as inquietantes manobras de verdadeiros Estados insuspeitos para a cega marcha dos povos. A razão fabrica-se, não sendo uma condição natural.
Rita Taborda Duarte h | Artes, Letras e IdeiasSaudade burra [dropcap style≠‘circle’]M[/dropcap]eu tão certo secretário, vinde cá e imaginai uma pedra; e que alguém atira essa pedra a um charco. Ao charco da poesia, digamos; da margem observamos a propagação concêntrica dos círculos: dura uns momentos, só. Primeiro o embate, com muito estrondo, alarde e bulha, depois a leve ondulação que alastra, em simetria perfeita; de seguida regressa o paul à acalmia inicial. Tudo como dantes! Tudo? Não, agora, no fundo do charco, há mais uma pedra; há uma pedra no meio do lodo. É isso, portanto, que me proponho ir fazendo por aqui: atirar pedradas a poemas e livros que vou lendo, sem regra e ao calhar de andanças, passeios, e caminhadas, consoante as margens que me embicam o passo e os seixos que por lá vou encontrando: a leitura como este este entretém viciante de atirar a pedrada e ficar, pasma, a ver a breve onda a propagar-se, cada vez mais longe do centro. Vezes ou outras, a pedra há-de resistir a afundar-se e só cede após dois ou três ricochetes rasando a superfície das águas. Tudo depende da pedra, tudo depende do charco. Uma coisa é certa: As pedradas dão-se amiúde em charcos, não em águas límpidas. Assim a poesia: agitá-la é sempre agitar um pouco o lodo da linguagem. Atiro uma pedra à nova edição aumentada, pela «Tinta da China», de A Musa Irregular (manteve-se, ainda bem, o singularíssimo título!), reunião poética de Fernando Assis Pacheco, editada pela «Hiena», em 1991. A edição resgatada de um parêntese editorial, onde vem sendo hábito manter suspensos os grandes, acrescenta à original Musa Irregular, o livro Respiração Assistida, editado postumamente, em 2003, e um «Suplemento ao Lote de Salvados», composto por poemas dispersos, inéditos, plaquetes, dez poemas-colagem, publicados aqui e ali, ao correr dos anos. No final, um ensaio de Manuel Gusmão arromba as portas da poesia de Assis Pacheco e oferece o mote que define, de uma penada, a sua escrita, colocando-a num patamar situado «na amizade entre escrita e leitura»; no fundo, num certo desprezo relapso pelas chancelas editoriais de cunho marcado, aliado à generosidade da escrita enquanto dádiva: dar a ler — a quem, na verdade, importa– certa perplexidade face ao mundo. Por isto, as plaquetes que FAP distribuía entre amigos: a necessidade de partilha do seu excesso de humanidade, a transbordar de uma humildade galhofeira de quem fareja à distância a «pesporrência», dedicando-lhe, por exemplo, a ironia de um soneto. A escrita de Assis Pacheco é sobretudo comunhão do espanto, enquanto crónica necessidade de dialogar, como quem traz para as Bermudas da poesia o triângulo que une os vértices da ternura franca, da nostalgia inquieta, do humor irónico; é o estilo de quem tempera o real com uns bagos de pimenta, além do granus salis. Será este o especial estatuto do poeta que se enfarda de mundo: que com uma mão lhe dá e com outra lhe tira a paga, porque, na verdade, escrever é dar a ler; uma forma de partilhar a vida, porque, por si só, «a solidão é um lugar difícil de habitar». Assis Pacheco é a voz do escritor que comunica tanto nos altifalantes dos média, como na vozeada do café, ou até num oaristo tímido, quase ao ouvido; que tão depressa se faz cronista e jornalista, como poeta, e em simultâneas de afecto, atingindo os pináculos do espírito, mas de pés enraizados na terra, numa relação de corpo a corpo com a realidade. Assim, de igual para igual, que Fernando Assis Pacheco é da cepa dos cronistas poetas, com um olho no chão sólido da calçada, e outro a derramar-se lá para os horizontes. Num repente, juntaria eu no mesmo bouquet três dos que nos fazem mesmo falta, mais a sua humanidade e auto-ironia; cada qual dos três, sempre e conscientemente, a viver a sua condição de «poeta no supermercado», a resgatar as palavras-pão do dia a dia, com equilibradas doses de indignação e brandura: Assis Pacheco, Manuel António Pina e Alexandre O’Neill. Com uma ressalva, só. O O’Neill não ia tanto à bola com o futebol. Já nos fazia falta a obra poética por inteiro do escritor que, num poema, como numa crónica, ou vice versa, identifica, num relance o mal da pátria, a lusa, entenda-se: MAL DE PÁTRIA Se temos nove dez poetas à escala europeia ou quatro ou mesmo talvez com muito boa vontade três aflige-me bastante menos que o problema do Serra: Quantas queijeiras restam fiéis à rude bordaleira? Para onde vai Portugal? Em suma, comecei ameaçando a pedrada, mas deixei-me, queda, a amodorrar na margem apreciando a paisagem: não lancei o calhau rolado, as águas não se agitaram, nem se amotinou o lodo ao fundo. Só uma breve nota persiste a flutuar à superfície do livro: é importante resgatar os poetas que põem um naco de queijo no papo seco da poesia.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasUm pingo de sangue da Dinastia de Bragança A Quarta Dinastia de Portugal, a dos Bragança, ou Bragantina, contou com quinze reis, não tendo o título de Duque de Bragança os reis D. Pedro II, D. Miguel, D. Luís e D. Manuel II. Também os bens da Casa de Bragança estiveram sempre separados administrativamente dos da Casa Real, como impôs por Carta de Lei D. João IV, o primeiro rei dessa dinastia. A Casa de Bragança teve origem durante a Dinastia de Avis (1385-1581), com D. Afonso (1370-1461). Filho bastardo de D. João I, em 1401 casou com D. Beatriz Pereira Alvim, filha única de D. Nuno Álvares Pereira, que lhe deu um grande dote e o condado de Barcelos. Assim, D. Afonso ficou a ser o oitavo Conde de Barcelos e só em 1442 se tornou o primeiro Duque de Bragança. Houve ainda mais seis duques de Bragança, até a Casa de Bragança chegar em 1640 ao trono de Portugal. João (1604-1656), filho de D. Teodósio, o sétimo Duque de Bragança e da Duquesa espanhola D. Ana de Velasco e Girón, em 1630 tornou-se D. João II, 8.º Duque de Bragança. Com sangue meio português, meio espanhol, foi pelo povo aclamado Rei de Portugal a 1 de Dezembro de 1640, com o nome de D. João IV (1640-56), O Restaurador, inaugurando assim a Dinastia de Bragança. Casado com D. Luísa de Gusmão, filha do Duque de Medina Sidónia, grande de Espanha, teve quatro filhos: D. Teodósio (1634-1653), cujo rei em 27 de Outubro de 1645 lhe deu o título de 9.º Duque de Bragança, mas por ter morrido antes de seu pai, sucedeu no trono o irmão D. Afonso (1643-1688). Logo em 1656 D. Afonso II, 10.º Duque de Bragança, sendo durante a sua menor idade regente D. Luísa de Gusmão. Como Rei Afonso VI (1656-67), O Vitorioso, casou-se em 1666 com Maria Francisca Isabel de Sabóia, filha do Duque de Nemours, que no ano seguinte requereu a nulidade do matrimónio, alegando incapacidade física do monarca. Abdicou em 1667 para o irmão mais novo D. Pedro (1648-1706), que ficou regente do Reino entre 1667 a 1683. Ainda estava vivo D. Afonso, quando D. Pedro se casou com a francesa Maria Francisca, ex-esposa do irmão, de quem teve D. João (1689-1750), nascido era já Rei D. Pedro II (1683-1706), O Pacífico. Com sangue meio francês, um oitavo português e três oitavos espanhol, D. João, desde 1689 D. João III, 11.º Duque de Bragança, e depois Rei D. João V (1706-50), O Magnânimo. Casou-se com D. Maria Ana, filha do Imperador da Áustria, de quem teve, entre outros, D. José (1714-1777) e D. Pedro (1717-1786). O Rei D. José (1750-77), O Reformador, desde nascença 12.º Duque de Bragança, casou-se com D. Mariana Vitória, filha de Filipe V, Rei de Espanha, de quem teve como filha primogénita D. Maria (1734-1816). Esta em 1750 tornou-se Duquesa de Bragança e em 1760 casou-se com o tio D. Pedro, pois filho do Rei D. João V e irmão do Rei D. José, que viria a ser o Rei D. Pedro III pela aclamação em 22 de Fevereiro de 1777 da Rainha D. Maria I (1777-1816), A Piedosa. Tiveram três filhos, D. José (1761-1788), D. João (1767-1826) e D. Mariana. Já D. Pedro III tinha morrido em 1786, assim como o filho primogénito D. José, que desde 1777 fora D. José II, 14.º Duque de Bragança, quando em 1792, por sofrer de doença mental, a Rainha D. Maria I foi afastada dos negócios públicos ficando estes entregues ao Príncipe D. João, o segundo filho. Pela morte do irmão mais velho, em 1788 tornou-se D. João IV, 15.º Duque de Bragança, e após a morte da Rainha no Rio de Janeiro a 20 de Março de 1816, foi nesse dia aclamado Rei D. João VI (1816 -1826), O Clemente. João, ainda apenas como Duque de Beja, casara-se em 1785 com D. Carlota Joaquina de Bourbon (1775-1830), filha de Carlos IV, Rei de Espanha, de quem teve, Francisco António (1795-1801), D. Pedro (1798-1834), D. Isabel Maria (1801-1876) e D. Miguel (1802-1866). João VI, Rei do Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, antes de regressar a Portugal continental a 22 de Abril de 1821 nomeou o filho D. Pedro Regente do Brasil. Este tinha-se casado em 1817 com a Arquiduquesa Leopoldina Josefa Carolina (1797-1826), filha do Imperador da Áustria, e entre outros filhos nasceu a primogénita D. Maria da Glória (1819-1853). Após 13 anos no Brasil, D. João VI a 3 de Julho de 1821 regressou a Lisboa com a família e a corte, ficando apenas D. Pedro, que a 7 de Setembro de 1822 declarou o Brasil independente, sendo a 12 de Outubro aclamado Imperador D. Pedro I (1822-1831). Em 1826, com a morte do Rei D. João VI a 10 de Março, o Imperador D. Pedro I do Brasil (1822-1831), já como 16.º Duque de Bragança e também Rei D. Pedro IV, abdicou do trono de Portugal em 2 de Maio de 1826 a favor da filha de sete anos D. Maria da Glória, que então se tornou Duquesa de Bragança e Rainha D. Maria II (1826-1828). Miguel, segundo filho do Rei D. João VI e irmão de D. Pedro, usurpou o poder à sobrinha, com quem estava prometido casar quando esta atingisse a maior idade. Rei D. Miguel (1828-34), O Absolutista, de Junho de 1828 a 27 de Maio de 1834, nessa data definitivamente derrotado pelo exército liberal de D. Pedro. D. Miguel, que nunca teve o título de Duque de Bragança, a 1 de Junho foi expulso de Portugal, sendo a sua linhagem perpetuamente banida do país. De volta ao trono, a Rainha D. Maria II (1834-1853), A Educadora, casou-se com o príncipe alemão Fernando de Saxónia Coburgo Gota, de quem teve entre outros filhos, D. Pedro (1837-1861) e D. Luís (1838-1889). Pedro, pela morte da rainha sua mãe, em 1853 tornou-se D. Pedro II, 18.º Duque de Bragança, e Rei D. Pedro V (1853-61), O Esperançoso, mas sem filhos sucedeu-lhe o irmão D. Luís. O Rei D. Luís (1861-89), O Popular, casou-se com Maria Pia de Sabóia, filha de Victor Manuel, Rei de Piemonte e futuro Rei de Itália, de quem teve D. Carlos (1863-1908), que em 1863 se tornou 19.º Duque de Bragança e em 1889 Rei D. Carlos (1889-1908), O Martirizado. Casou-se com D. Amélia de Orleães, filha de Luís Filipe, Conde de Paris e pretendente à coroa de França, tendo dois filhos, D. Luís-Filipe (1887-1908) e D. Manuel (1888-1932). O Príncipe D. Luís-Filipe, desde 1889 20.º Duque de Bragança, foi por elementos da Carbonária assassinado conjuntamente com o Rei D. Carlos a 1 de Fevereiro de 1908. Daí ser Rei D. Manuel II (1908-10), O Estudioso, mas por pouco tempo, pois deposto a 5 de Outubro de 1910 pela implementação da República. Fugiu de Portugal com a mãe D. Amélia e em 1932 faleceu no exílio sem descendência. Assim, o sangue do último Rei de Portugal, D. Manuel II, mais de metade era francês, um quarto italiano, um oitavo alemão, um pouco menos de 1/13 austríaco, 1/24 espanhol e 1/683 português, sendo este último apenas proveniente de quem deu início à Dinastia de Bragança, D. João IV.
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasDa eternidade em vida [dropcap]S[/dropcap]omos fracos juízes do nosso tempo, sobretudo quando pretendemos adivinhar a eternidade no pedaço de história em que nos coube viver. 1. Em 1884 o jornal “O Imparcial” de Coimbra organiza um inquérito entre os seus ilustres leitores para que escolhessem a grande figura literária do seu tempo. Em 1º lugar ficou o velho Camilo, em 2º Pinheiro Chagas e em 3º Latino Coelho. Por estes dias já Camilo se arrastava meio cego no solar de Ceide, arrepiado pelos guinchos do seu louco filho Jorge. Foram só mais 4 anos disto até se suicidar, mas ainda deu para o escatológico “Vulcões de Lama”. O preito dado pelos leitores a Camilo seria assim aquele que se presta por mera reverência às individualidades histórias que calha ainda estarem vivas. Porque dos 3 nomeados o mais reputado nos círculos instruídos e decentes da capital, o que marcava o passo das letras coevas, era, sem dúvida, Pinheiro Chagas. Tudo que publicava fazia furor, “O Terramoto de Lisboa” e “A Mantilha da Beatriz” foram best sellers instantâneos e a crítica jurava pela perpetuidade literária destes romances. A sua escrita fresca e optimista sem prescindir de um módico de erudição, permitiu-lhe uma “História Alegre de Portugal”, acolhida como a prova evidente de que os grandes problemas e entendimentos do século podiam ser divulgadas com sucesso popular. Contra Pinheiro Chagas, ou contra o seu patrono Castilho, ainda rabiou Antero na famigerada Questão Coimbrã, ao passo que Ramalho Ortigão e Camilo, nunca o desconsideraram. Eça, esse, invejava-lhe largamente o prestígio e ambos não se coibiram de trocar acrimónias. Jornalista, deputado, ministro, tradutor de Verne, professor de Literatura Clássica na Universidade de Lisboa, Secretário-Geral da Academia das Ciências, fundador da Sociedade de Geografia, tudo isto além de escritor; quem poderia duvidar que Pinheiro Chagas seria laureado para todo o sempre como o maior vulto literário do final do século XIX? 2. Se calhar ainda hoje há quem se lembre de “A Ceia dos Cardeais”. Foi talvez o maior êxito teatral de um autor português. Sobre ser um escritor de sucesso, Júlio Dantas foi uma figura pública sumamente respeitada. Duas vezes ministro: da Instrução Pública e dos Negócios Estrangeiros; professor no Conservatório Nacional; Presidente da Academia das Ciências desde 1922; fundador da instituição percursora da actual Sociedade Portuguesa de Autores; Doutor Honoris Causa pela Universidade do Brasil e depois pela de Coimbra, terminou a carreira em glória como embaixador de Portugal no Rio de Janeiro. Júlio Dantas cortejou a monarquia, aclamou a República e foi deferente sem meias-tintas com o Estado Novo. Sendo insubstituível e incontornável não houve quem o tomasse como oportunista. Contestou-o apenas uma pandilha de rapazes neuróticos, snobs e insolentes, infectados pela fugaz moda do modernismo da primeira década do século XX, que inspiraram a sua truculência em Marinetti ou Mayakovsky e se acoitaram atrás do insano Almada Negreiros. O indecoroso e tremendo ultraje mais confirmou, a quem estivesse em seu perfeito juízo, que a História guardaria Júlio Dantas como a quintessência da intelectualidade portuguesa do seu tempo. 3. Fernando Namora enalteceu-se como figura de proa do neo-realismo, um movimento que pretendeu libertar as letras portuguesas da grandiloquente mas balofa retórica do Estado Novo, utilizando uma prosa simples e naturalista para não só denunciar a miséria em que Portugal vivia, como exibir a irreversível verdade histórica para que a humanidade caminhava. Ao plinto de Namora apenas se avizinharam Alves Redol ou Soeiro Pereira Gomes, uma tríade cuja sombra se projectou na literatura portuguesa durante os anos 50 e 60 e ainda um pouco na década de 70. Fora deles, dizia-se, havia pouco a considerar e quaisquer notas destoantes eram remetidas para um limbo. Ainda hoje não deve ter havido escritor português mais traduzido do que Fernando Namora, pelo que, além de uma certeza científica, parecia uma evidência que lhe caberia ser consagrado à posteridade como o grande farol das décadas em que presidiu à literatura portuguesa, ofuscando quaisquer outras luzes. 4. Hoje, o panorama literário de Portugal é dominado por duas figuras quase intangíveis, autênticos clássicos em vida. Manuel Alegre e António Lobo Antunes são as incontestadas eminências das nossas letras contemporâneas, os mais autopsiados pela academia, os mais consagrados pela crítica. Não se vê ninguém que lhes denigra o mérito nem alguém que lhes pise o manto da preponderância. Será possível haver quem lhes negue assento entre imortais e memoriosos como Chagas, Dantas e Namora?
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasCinestesia IV. Razão ou paixão? [dropcap]A[/dropcap]modernidade projecta o humano a partir de uma presença incipiente da razão no horizonte individual e procura expandir o humano enquanto indivíduo para a maximização da racionalidade. A essência do ser humano é em Descartes: mente, ou espírito ou entendimento ou razão. Se o composto humano: animal + racional, na fórmula de Séneca, procurava identificar a racionalidade e a animalidade como características constitutivas do ser humano, agora, com Descartes, afirma-se a preponderância da racionalidade sobre a animalidade. A história deste “composto” é difícil de perseguir, se a reduzirmos apenas às formulações. Homo = animal rationale é uma equação diferente da que encontramos em Aristóteles: to zôon logon eckon: o ser vivo capaz da palavra – uma tradução possível. Diferente é também a formulação Kantiana: vernunftbegabtes Lebewesen: criatura dotada de razão. Em todo o caso, relevante, para nós aqui, é a identificação da essência do ser humano com a razão, na verdade, a redução do humano à racionalidade e, por outro lado, a extirpação da animalidade, da vida instintiva, das pulsões e impulsos, dos afectos, emoções, paixões etc., etc. A razão é virtualmente desprovida de afecto. Dizer sim e dizer não, dizer como são as coisas e como elas não são, dizer que elas existem e que elas não existem depende exclusivamente da razão. A forma essencial do acesso é, na formulação técnica de Descartes: percepção clara e distinta. O que não pode ser acedido por uma percepção, ou por uma intuição, não permite obter evidência, isto é, clareza e distinção. No limite oposto, temos objectos que não são percebidos nem clara nem distintamente. São mal percebidos ou intuídos de forma deficiente. No extremo, temos objectos que não são, de todo, percebidos. No entender de Descartes, epítome de uma longa tradição, tanto a vontade, o querer e o querer que não ou o não querer, os actos voluntários, nada têm que ver com a esfera da razão teórica nem. Por maioria de razão, os actos da esfera da afetividade: o sentimento de prazer e de dor, gostar de… e ter aversão a… só podem perturbar tanto a razão teórica como a razão da vontade. O projecto de investigação da verdade em Descartes fixa-se, assim, num fundamento inabalável em que apenas o acesso perceptivo e intuitivo da razão, sob os auspícios da axiomática euclideana, proporciona clareza e distinção, as características da evidência. Tudo o mais, está envolto em formas obscuras e indistintas de “representação” dos objectos. A ideia reguladora da evidência funda a descoberta da verdade, circunscreve, de forma severa, a sua possibilidade ao domínio teórico, o que propriamente é racional. Se invertermos a intenção cartesiana, podemos compreender, pelo menos na sua formulação exterior, que Nietzsche propõe o contrário. A inversão dos valores ou a sua transmutação implica a predominância da animalidade, do instinto, da paixão, das emoções, do eruptivo, do episódico, sobre a racionalidade. O que tradicionalmente se chama corpo, o horizonte somático, afirma-se em detrimento do espírito, do que é mental. Se no limite o homem cartesiano existe sem corpo, sem extensão, sem divisão, sem matéria, por outro lado, o homem nietzscheano é corpo, o horizonte onde nos aparece aquilo para o que nos dá, onde vemos e sentimos nascer em nós vontades, apetites. Mas não é apenas a inversão do que em nós é mais eficaz: a perseguição inflexível do prazer ou a fuga contínua ao sofrimento ou a formulação patológica contrária: fuga contínua ao prazer e perseguição inexorável do sofrimento. Tudo isto é mais eficaz do que a razão, cuja presença não se faz sentir. Nem tão pouco importa saber se a característica eruptiva de um coup de foudre é mais poderosa na sua eficácia do que a razão que nos impermeabiliza às paixões, aos amores, desejos, apetites, veleidades, caprichos. Há com Nietzsche, claramente, uma afirmação do ser que nos expõe a si, quando nos abandona e deixa a lidar a sós com o que patologicamente nos acontece. Mesmo a razão é “fria”. A razão é desprovida de sentimento, mas tem uma relação com o emocional. A razão afirma-se pela neutralização da vontade e do sentimento, mas numa outra perspectiva. Cria o pathos da distância. O afecto transforma o corpo, por outro lado, de tal forma que não é apenas eruptivamente que nos deixa com apetites, faz sentir fome e sede, desejo sexual, de vingança. E também nos deixa transidos de medo, tristes e angustiados. Será que a razão nos deixa serenos, com o corpo em paz, tranquilos no nosso ser, mas, também, a uma distância absolvida de tudo o que pode irromper, invadir, controlar-nos? (Continua)
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasAy, Carmela! Ay, Carmela! [dropcap]T[/dropcap]odos sabemos que a experiência do mito é a experiência do indubitável. Não lhe atribuir sentido seria insensato e atribuir-lho – como se atribui geralmente às coisas simples – seria redundante. Digo isto porque o mito não é apenas a memória invisível das sociedades, é-o também das comunidades e existências mais insignificantes. Uma evocação familiar como a que se segue (e que teve a sua origem em relatos que me foram amiúde contados durante a infância) partilha o mesmo excesso de sentido que povoa o mito: cria também o seu firmamento próprio por cima do horizonte, deixando em frente um lugar de ouro para que o olhar o possa daí observar e nele infinitamente crer. Passemos então ao coração da história que teve lugar há um século: Estou a vê-lo já cansado da poeira e do selim da bicicleta, pois há quase uma hora que segue de Évora na direcção da vila do Redondo, corre o ano de 1918 e o armistício de Compiègne que porá fim à Primeira Grande Guerra Mundial ainda está por vir. Traz consigo alguma bagagem e um remoinho de memórias difícil de contar e de conter. Ao fim e ao cabo, antes mesmo de chegar são e salvo a casa, já foi rezada missa pela sua alma e, apenas por sensatez, é que não terá levado a cabo o sonho de fazer uma grande surpresa e… aparecer, sem mais, perante os seus, quando estes já o consideravam a viver noutro mundo. A aventura tinha começado meses antes, no próprio cais de embarque dessa Lisboa ainda a cheirar a Odes pessoanas e ao fado castiço dos Boqueirões. Por ordens superiores, afastara-se durante algum tempo da azáfama dos dois grandes navios, já de vapores ao rubro e com escadas quase içadas, para ir cambiar dinheiro. De regresso, verificou que apenas o barco reservado à cavalaria permanecia ainda encostado ao cais. O outro, onde devia viajar, deslocara-se, entretanto, na direcção da barra para evitar uma iminente revolta a bordo. Seguir-se-ia a travessia no barco errado, embora, segundo ditam as crónicas, tivesse sido calma e muito mais rápida do que o previsto. No porto de Brest, descontraído e ao sabor do vento, é ele quem acaba por receber no quebra-mar o barco que transporta o contingente português com destino à fatídica região da Flandres. As altas patentes já o davam, a essa hora, como desertor, mas também como actor de possível sumiço. Afinal, compreendidos os factos, tudo se compõe e ele acaba por cumprir, como previsto, no árduo corrupio das transmissões, um serviço vital para aquela longa faixa que ia do sul de Lille, ocupada pelos alemães, até Laventie e à Boulogne marítima. É nesse teatro de guerra que os gases entram subitamente em acção, lesando-o de forma irremediável. Na galeria dos feridos, por artes de sortilégio, o destino troca o código das macas e ele acaba por seguir, na sua mudez involuntária, para o hospital dos ingleses. É muito bem tratado nesse território onde o ‘não dito’ supera tudo aquilo que se poderia augurar, ou tão-só dizer. E é apenas quando recupera a lucidez da voz que, finalmente esclarecido o novo sentido dos acasos, ele acaba por regressar aos cuidados, aliás escassos, do exército luso. Durante este tempo todo, em Portugal, é dado como desaparecido, mas, num fim-de-semana de sortilégios (que nunca me foram revelados totalmente), com a preciosa ajuda de um general, consegue finalmente obter a autorização de regresso a casa. Anda pela Paris de Abel Gance e de Louis Delluc, galanteia uma loura de echarpes magrebinas no consulado português, provavelmente amiga de Colette, desce no Sud Express até à terra que Buñuel ainda não havia trocado pela França e, por fim, reentra no país pobre e sidonista que é o seu. Em Lisboa, decide enviar um telegrama para o Redondo a anunciar que está de volta (ou seja: da morte imaginária para a vida). E de vez. Parte do Terreiro do Paço para Évora e daí, numa bicicleta de que desconheço a origem, atinge, entre negrumes e solilóquios perdidos, a sua vila natal. O feitiço de pródigo andarilho levá-lo-á, não muito tempo depois, a Vila-Viçosa. E é aí que começa parte de uma outra história que é, hoje em dia, também a minha. Diga-se que este foi – e é ainda – um dos mil enleios aventurosos do único avô que não cheguei a conhecer em vida, de seu nome José Carmelo, primo, entre outros, do tenor e também viajante Tomás Aquino Carmelo Alcaide que, três anos mais tarde, poria igualmente fim à vida militar para abraçar uma singular carreira no mundo da ópera.
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasO que fica [dropcap]T[/dropcap]alvez haja de facto uma misteriosa ordem das coisas que se reflicta na nossa existência. Não falo de desígnios divinos ou extraordinárias influências planetárias úteis para sedução pirosa e charlatanice sortida. Não: será mais algo que a dado momento nós atraímos por dedicarmos tanto do nosso tempo a pensar em silêncio sobre o assunto. Explico: os meus dias mais recentes têm sido assolados por perdas mais ou menos próximas, mais ou menos públicas. O livro – extraordinário, por sinal – que me ocupa agora é Nada A Temer, de Julian Barnes, uma reflexão filosófica e autobiográfica sobre a mortalidade que deve muito a Montaigne. Há uma semana esta página falava-vos da partida de um homem livre. Senti que seria necessário fazer uma pausa nesta anatomia da perda mas não sabia como fazê-lo nem como escrevê-lo. E de repente, lá está: a tal ordem misteriosa das coisas a entrar pelos minutos dentro. Há alguns dias fui convidado para dizer alguns poemas num jantar cujo tema era “A Noite Poética de Nova Iorque”. Imediatamente pensei num dos autores que associo a essa cidade: Ron Padgett. Assim, ao percorrer mais uma vez os seus poemas deparei com um de que gosto muito e já não me recordava: O Agrafador (que foi traduzido de forma esplêndida pela Rosalina Marshall). Nele o poeta fala do que ficou depois da perda da mãe: roupas velhas, trocos, pratos, quase nada. E um agrafador, que o seduz. Nesse objecto, que o poeta reaprende a apreciar e a usar está a sua mãe, como uma aragem. Este poema lembrou-me outro (são melhores do que cerejas, sim), também belíssimo. Chama-se cazaquistão e foi escrito por Rosa Oliveira. A mesma perda, a mesma memória, um objecto: um casaco. O poema perde força e beleza se o truncar mas sinto necessidade, para o que aqui quero dizer, de repetir os últimos versos: “O casaco era da mãe/ A mãe estará sempre no casaco”. Percebi: é altura de escrever e de pensar sobre o que fica, esta indizível permanência que tanto pode confortar como desesperar ou mesmo revoltar. O legado, mesmo assim, parece ser o pouco que dá sentido a este breve passeio pelo mundo. O que fica de nós – um gesto, um filho, uma obra-prima, o que for – irá sempre transcender o que ambicionamos. Essa linha invisível ajuda-nos a lidar com a ideia de finitude. E, para quem como eu prefere a herança à mudança, leva a um tipo de atitude que vai do político à escolha mais trivial ou quotidiana. Direis: mas há quem deixe legados terríveis. Sem dúvida, e uma breve visão da história da Humanidade chega para alimentar esse cepticismo. Mas esse confronto com o horror que herdámos tem de servir para fortificar o que queremos deixar. A vida, além de despesa, é investimento. Precário, desconhecido, inseguro, de altíssimo risco – mas investimento. Talvez a famosa lenda da morte do grande poeta chinês Li Bai (701 – 762) consiga ajudar-me a dizer o que pretendo. Segundo ela, este poeta – grande apreciador de prazeres sensuais e especialmente etílicos – resolveu percorrer o rio Yangtze, ébrio depois de uma festa. Escolheu uma pequena embarcação e olhou para o céu: estava uma noite de luar perfeita. Li Bai não terá resistido à extrema beleza da Lua e ali mesmo escreveu um poema sobre isso. Fascinado com os reflexos que a Lua projectava no rio, o poeta ter-se-á debruçado na ânsia de os recolher; caiu à água e afogou-se. A pequena embarcação seguiu o seu caminho, levando apenas o último poema que Li Bai escreveu, até gentilmente encalhar numa das margens, onde alguém o recolheu. Foi assim que o poema sobreviveu até aos nossos dias. Parece-me uma bela metáfora para como pode ser o que fica: apaixonarmo-nos pelos dias, fazer tudo o que for possível para os tornar mais fáceis e graciosos. Assim para que no dia em que o barco seguir o seu caminho, à deriva e vazio, poder haver uma margem e alguém que possa salvar o poema.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasUm dia [dropcap]“O[/dropcap] dia fútil, mais que os outros dias”: o dia das “discretas ironias”. Saberei fazer um dia que importe, um dia que marque a passagem do tempo e não se esvaia simplesmente, como se os relógios não existissem, na sua existência circular e monótona? O tempo só tem, na verdade, um lugar e um templo que é o corpo. Tudo o mais nada nos diz sobre ele. E os dias andam sedentos de um qualquer acontecimento. Uma ruga de memória no cérebro, algo de memorável, amorável. Um daqueles eventos que o esquecimento não varra. Um padrão implantado no continente verde das horas. E que o dia não seja de “discretas ironias”, mas um frenesim de trombetas e rufar de corações. E que o dia seja mais e seja mais cego de tanta velocidade, uma lição de condução em estrada de montanha, os olhos rasos de precipícios e a mente ávida de abismos. E que o dia seja de estrondosa certeza, de pão e de vinho sobre a mesa e, sobretudo (ó sim, sobretudo!), sem hesitações. E que não seja um dia fútil e já passado antes de se aconchegar no manto da noite. E que algo aconteça de extraordinário, de brutal. E que nos faça uma daquelas fomes capazes de comer a areia dos desertos e haurir num sorvo a água dos mares. E que seja salgado. Apimentado. E que se desfaça na boca com um riso crocante de dentes. E que nos escorra quente na garganta, sabendo a metal acabado de forjar. E que seja isso e que seja tudo. Mas não fútil. Não de pequenas e discretas ironias.
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasII O espanto [dropcap]U[/dropcap]m dos problemas postos no interior da actividade filosófica, da acção do filosofar, é o da motivação, o da fundamentação complexa que desencadeia o filosofar. Tanto mais assim que toda a filosofia procura a transparência relativamente ao seu próprio acontecimento. A obtenção de transparência relativamente a si próprio enquanto filósofo procura sempre obter inteligibilidade sobre esta possibilidade humana. A hipótese com que sempre nos teremos que ver a respeito da filosofia é a de que lhe corresponde um modo inteira e radicalmente diferente de vivermos a nossa vida com os outros no mundo. Isto é, o modo como habitualmente nos encontramos depostos nas coisas, a maneira como nos relacionamos com os outros, a forma como damos conta de nós próprios, pode ser diferente. Para que esta hipótese não seja académica e afastada da nossa realidade, tem de se perseguir vestígios da possibilidade de haver um mundo diferente daquele em que vivemos, de o mundo poder apresentar-se, se não, como é em si, pelo menos numa apresentação diferente daquela de que ele se reveste, que nós próprios podemos ser diferentes, outros, irreconhecíveis para nós tal como somos, que os outros também nos podem aparecer sob uma outra luz completamente diferente. Uma coisa é certa. É extraordinariamente difícil abrir mão do preconceito fundamental que nos faz aderir à compreensão que temos das coisas, na verdade, que a nossa compreensão nos permite interpretar as coisas tais como elas são em si, impermeáveis a qualquer tonalidade privada e subjectiva. O primeiro passo é o da auscultação da diferença. Como perceber que a interpretação do mundo de coisas e dos mundos que são os outros bem como do nosso próprio mundo enquanto a vida que é é a que temos é precisamente a nossa interpretação. De uma forma mais precisa: a minha interpretação. Sou eu o agente e o protagonista da vida. És tu o agente e protagonista da tua vida. É ela e ele o protagonista da vida dela e da vida dele. Somos nós, sois vós, os protagonistas das nossas, vossas vidas e eles das vidas deles. Os gregos encontraram no espanto a possibilidade concreta de encarar a sério a possibilidade de as coisas não serem como nos aparecem ou como nos parecem ser. A palavra thayma descreve um objecto espantoso, uma experiência espantosa, uma afectação que provoca um estado mental de espanto. A palavra exprime um sentido que excede o conteúdo do objecto enquanto tal. O que é espantoso no objecto não é, a bem dizer, nada. É o modo como se dá a ver, como se apresenta, como nos afecta que é espantoso, agente provocador de espanto, o próprio resultado de espanto. A par da palavra espanto, pasmo, encontramos as palavras admirável. admiração, admirador, maravilhoso, maravilha, emaravilhamento, maravilhado. A experiência do espanto, do espantar-se com algo ou alguém e até o ficar espantado consigo é complexa. Há dois vectores afectivos que podemos determinar. Por um lado, produz-se uma atração na direcção do que provoca espanto. Queremos olhar para o espantoso, o que está presente no étimo de admirar: mirar, olhar para. Por outro lado e pelo contrário, espanta, põe em fuga, desperta aversão ou um respeito que não nos deixar encarar olhos nos olhos nem arostar com o que é espantoso. Fazemos uma experiência de perplexidade. Por um lado de emaravilhamento e por outro de espanto em sentido estrito. Um pode ser preponderante em relação ao outro, pode haver sensações sucessivas dos dois sentimentos, pode dar a sensação que maravilha e espanto estão a acontecer ao mesmo tempo. Todas as coisas maravilhosas do mundo vinculam-nos num olhar para as ver e estar a ver. Todas as coisas espantosas do mundo podem ser medonhas e terríveis. Metem medo, receio, terror e horror. Podemos perceber que a experiência implica objectos que são assim caracterizados: a beleza de uma pessoa, a linha do horizonte, o Atlântico, o pôr do sol, o cume de uma montanha, o jogo da luz a criar as luminosidades do dia, as estações do ano, etc., etc.. Há também coisas que metem medo: o olhar frio do assassino, o poder demolidor de um exército, de catástrofes naturais, tsunamis, incêndios, desastres. Há coisas que são dignas de admiração tal como pessoas. Há coisas e pessoas que espalham o terror. Em qualquer dos casos e qualquer que seja a combinação entre as disposições que são despertas em nós, fazemos a experiência de perplexidade, somos acordados violentamente do sono quotidiano, do modo como nos encontramos habitual e normalmente. É o que acontece no fenómeno da paixão, da “filia”, da obsessão compulsiva com um determinado objecto, na relação perplexa com um conteúdo erótico no sentido mais lato do termo, com aquilo que mexe connosco, de que gostamos muito, que constitui a nossa identidade. Na paixão, sentimos uma invasão total, avassaladora, com a presença de alguém, que muda simplesmente a nossa vida. Mas não se trata apenas da alteração do estado da consciência provocado pelo amor erótico ou pela amizade profunda e amor que sentimos por pessoas. A alteração provocada pelo estado de paixão pode ter como objecto a ciência, a arte, a religião, tudo aquilo a que nos dedicamos, as nossas devoções, o que nós somos e o que nós fazemos. Tudo pode resultar de uma espécie de entusiasmo, uma invasão do divino em nós, que permite escutar o que as musas têm para dizer e que o dizem como se estivessem a ditar o que temos para escrever. É como se sentíssemos a inspiração que “sopra” uma brisa ou um vento que cria uma dimensão diferente daquela em que habitualmente nos encontramos. O que sucede nestas variações disposicionais complexas é a criação de mundos paralelos que estavam adormecidos que eram como se não existissem e passam a ser despertos, mantidos acordados. E nós transformamo-nos para podermos habitar esses mundos e existir nessas outras formas de vida. Há uma metamorfose do objecto e uma metamorfose dos próprios. O músico é diferente quando vai de pagar impostos e quando está tomado de um transe inspirador que o transporta para a dimensão intrínseca do horizonte musical. O mesmo se passa com o actor, com o pintor, o escultor, o escritor, o poeta, o sacerdote e o professor. Temos estado a referir experiências radicais, recalcitrantes, que testemunham a diferença entre a vida de todos os dias de que não despegamos ou que não nos demite e uma outra possibilidade de vida mais intensa, radical, que depende da existência de inspiração, entusiasmo, espanto, admiração, respeito, interesse. O espanto filosófico é, contudo, diferente. Ou antes assume um rosto diferente também. Não é apenas o episódico e o extraordinário que permite compreender a diferença entre o mundo criado pelo entusiasmo e o mundo sem entusiasmo. O destino da filosofia está em compreender que os maiores problemas se encontram depositados nas coisas mais banais e aparentemente triviais. O espanto não é com o diferente é com o igual. Como é que a mesma coisa, a mesma pessoa, nós próprios, tudo é o mesmo objectiva e realmente e, contudo, completamente diferente, tudo pode ser completamente diferente. Podemos apaixonar-nos por uma pessoa que nunca vimos, como por actividades de que não tínhamos nunca feito a experiência. Mas podemos também ver uma pessoas 2000 mil vezes e apaixonar-nos por essa pessoa à bilionésima primeira vez. Podemos dar conta da maravilha daquilo a que nos dedicamos e do que propriamente fazemos, décadas depois de o termos iniciado, já estafados e sem o entusiasmo sequer de principiante. Aristóteles dizia que era espantosa a incomensurabilidade do triângulo, as fases da lua, os eclipses do sol e da lua. Mas mais espantoso é isso ser espantoso, porque é assim que esses fenómenos extraordinários são. Mas tudo é extraordinário. Estar vivo e ser é espantoso porque há ser e não nada, estamos vivos e não se dá o caso de estarmos mortos. Espantoso são todos os objectos, todas as coisas, todas as pessoas por que sob plano de fundo existe o horizonte relativamente ao qual tudo é forma, no qual tudo está distribuído numa coexistência de sequências temporais que entroncam num mesmo e único tempo que se está a fazer ao mesmo tempo que ele próprio passa e com ele todos os conteúdos que são no seu todo.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOvídio – Uma arte de amar [dropcap]O[/dropcap]tema eterno torna-se agora bastante desertificador. Até porque o amor enquanto ideia é o elo transformador mais profundo da consciência humana, aquele que proporcionou na espécie a estrutura do fenómeno da transcendência. Elevá-lo à categoria de arte foi sem dúvida a tarefa mais feliz da Humanidade e é preciso ir mais longe para buscar a sua excepção e uma maior mestria, igualdade e contemplação, dado que os séculos posteriores embora ricos da sua seiva não correspondem a uma linguagem entre pares na sua forma comum. Heróides dá-nos sobejamente a ver que longe do amor épico pela voz do conquistador existe o diálogo amoroso do entendimento feminino que nunca ocultou o fracasso e a desdita da tormenta, num diálogo poético que faz do tema um estreitar entre pares. Ora estamos aqui na presença de mulheres que numa intervenção linguística se expressam com e para o amado, e onde se acrescenta formas literárias novas, participações sem as quais o amor na sua totalidade parece ferido no seu receptáculo. Elas estão na posse da chave do entendimento completo redobrando de efeitos perante as graduações de intensidade. Ovídio conseguiu reunir todos os géneros e mostrar na sua base elegíaca um tema que se aperfeiçoa da sua própria matéria. O amor descarta assim o seu aspecto de função e passa a trilhar o caminho da busca espiritual, o que encaminha o ser para novos atractivos, numa busca sedutora e civilizada que contribuiu para “secar o pântano” do instinto como guia. E talvez não seja por demais lembrar a frase poética e enigmática do próprio Camões: “…vereis pois, que quanto mais amor tiverdes tereis o entendimento de meus versos”. O amor entendível não é o amor partilhado, mas aquele que se alcança por evolução da mente que busca na sua génese qualquer coisa muito para além daquilo com que se factualiza. O nosso tempo é falho daquela memória onde nos leva o seu coro, a sua função semântica e o que nele pode, abastece em nós graus de entendimento e cruza agora na crueza dos suportes dos amantes terrenos bravios. Talvez que por descaso se afaste e busquemos então um efeito opulento sem resultados gratificantes, pois que é um tempo com um deficiente sentido amoroso que se permite glosar das suas múltiplas variações em derrocadas também elas civilizacionais. Mas os nossos tempos não amorosos têm no entanto apelo amoroso: estamos receptivos e cremos crer. Como arte, falta-nos a via do meio para o defender dos aglomerados e do transtorno da fabricação de pares sem futuro e com presentes inférteis, falta-nos um caminho ou uma luz condutora e, enquanto sentimento, falta saber se a sua sombra nos enriquece na nossa estreita humanidade. A voz que em Ovídio reclama transportam-nas essas mulheres cultas do seu tempo que se articulam com os conhecimentos e o mito para uma transfiguração face à grande força que sobra ao herói e dizer da grande força que existe no amar e se com ele os melhores se apaixonam. Não é improvável que os pares se saúdem na sua riqueza enquanto portadores de atributos admiráveis. Começa uma igualdade nunca vista entre aqueles que se dão na esfera comunicante. Tudo isto, posteriormente, e por paradoxal que nos pareça, viria a ser posto em causa mas, neste percurso que nomeia a fábula e a cimenta como legado, é das paixões dos homens e das mulheres de que trata esta temática delicada. Desde a Arte de Amar, às Cartas de Amor, às Heróides, é provável que tudo se tenha encaminhado para a grande metamorfose que terá o seu epicentro na fusão dos amantes, o glorificar do deus adormecido. Epistulae Heroidum (Cartas de heroínas) que deu Heróides, são vinte e um poemas em dísticos elegíacos que colocam a voz feminina no topo de uma construção bastante complexa e apaixonante como tema. Hoje, que se celebra o amor romântico, esse fruto de uma batalha pela cultura dos pares, nada encontrei de mais festivo que esta sugestão cuja noção ultrapassa em muito um melódico e divertido entendimento. Sem estas obras estamos condenados a ser o par de alguém, esse inimigo predestinado, mas com tais dádivas talvez possamos saber o mais importante daquilo que subjaz ao factor intrínseco da paixão. Convém lembrar do esmagamento logístico em que o dito amor firmado se afunda, sem a consciência de que apenas amar é o propósito e, se aos bons sentimentos não faltam também motivos práticos, nem mesmo a prática deles nos absolve de uma usurpação. Em cada idade, cada era, as coisas mudam e os efeitos variantes se adaptam, mas negligenciar a sua natureza tem custos que a razão das boas práticas nunca poderá colmatar. Perder alguém é mais que um acontecimento, é uma tragédia interna que tem o tempo a seu favor para o curar das feridas e com feridas abertas podemos abrir crateras nas carnes inadvertidas em busca da sua deidade, que é o quê? Esse não entendimento compensado por fabrico de respostas científicas de lugar comum, não darão jamais a resposta. E antes que tarde na nossa memória de séculos o muito tempo que foi preciso para tão vasto diálogo, talvez que reaprendendo a amar a vida nos mostre por fim outros caminhos. Estes tratados são do fim da era pagã, aquela em que parecemos agora entrar por outra porta, e se alguns apenas pegaram na forma da libertinagem e nos atavios que deviam presidiar à função (uma espécie de revista feminina para a obtenção de efeitos vários acerca do prazer e do espaço que ocupa nas situações mais lúdicas) em Heroídes há a diferenciação, a mulher amante com a voz que explora toda a sua complexa teia de emoções por ela transmitida e que fazem do amor um momento alto e grave, a mulher entra a ocupar o seu próprio mistério com toda essa voz que enriquece o ainda frágil modelo humano. «Estou ferida por minha própria beleza» nele se lê essa consciência de que não se entra na combustão desta força sem a lucidez de uma culpa qualquer que deve ser cultivada com a mestria de se saber fazer anunciar.
Carlos Morais José Antropofobias h | Artes, Letras e IdeiasAntigamente… [dropcap]Q[/dropcap]uando o imperador falava até os burros baixavam as orelhas, porque existia uma antiga tradição no Império do Meio segundo a qual o Filho do Céu podia controlar os Dez Mil Seres. E assim acontecia, um pouco por todo o império. Cada édito do imperador era distribuído por todas as províncias, mesmo as mais remotas e em menos tempo do que, hoje, podemos pensar. Os canais de comunicação imperiais na China eram céleres porque estavam montados de tal modo que as mensagens nunca paravam. Mas não se trata apenas de uma questão de velocidade. Peso, isso sim, peso era o mais importante porque em risco estava a vida, não apenas a vida dos indivíduos mas de toda a família. A palavra do imperador surgia assim imbuída de um especial poder porque carregava sempre em si a ameaça de morte. É como se o carácter imperativo dos éditos derivasse de algo sagrado, algo que não se fita a face, que se obedece sem discutir, que se executa sem pensar. E, ao longo da História da China, assistimos muitas vezes às mais flagrantes mudanças de opinião, de posição, de atitude, de pensamento. O que hoje era azul, passava a ser laranja; o que ontem era verde, rapidamente resplandecia do mais brilhante dourado. Nesses tempos, era assim. Vivia-se o terror do império, o povo era subjugado pela vontade férrea dos tiranos, muitos deles regionais. Contudo, estes raramente se atreviam a não cumprir as imperiais ordens, esforçando-se mesmo por as julgar sábias, recitando-as com fervor, dignas de inscrição em pedras colocadas sobre dorsos de tartarugas, como ainda hoje podemos testemunhar nalguns museus e templos mais importantes. Claro que estes procedimentos limitaram o desenvolvimento da China, na medida em que nem sempre o imperador estava certo, joguete que por vezes era de alguns dos malvados eunucos que o rodeavam. Ainda assim, aos homens de virtude das províncias distantes, outro remédio não havia se não obedecer-lhe. Felizmente que hoje já não é assim e a China avança determinada no caminho da modernização e desenvolvimento. No entanto, nem sempre o imperador se enganava e muitas vezes dava as ordens certas que contrariavam a ambição dos senhores feudais, em prol do povo. Tenho para mim que, aliás, algumas das directivas dos imperadores impulsionaram a China no bom caminho, porque contornavam o desejo de imobilismo egoísta dos senhores locais, ciosos de que nada mudasse para conservarem, a todo o custo, o seu desmedido poder e satisfazer a sua insaciável luxúria.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasPressão de Hong Kong na emigração por Macau [dropcap]A[/dropcap]pós um resumo da História da emigração chinesa, regressamos ao episódio com que iniciamos este tema. A Companhia Metropolitana do Rio de Janeiro, a fim de promover a emigração chinesa para o Brasil, começara nos finais de 1892 por abrir uma agência em Hong Kong, mas sendo as leis locais desfavoráveis a uma tal empresa, o local de operação foi transferido para Macau. O vapor alemão Tetartos, fretado para transportar os emigrantes, em Julho de 1893 foi detido em Hong Kong acusado de ter infringido a ordenança da emigração chinesa de 1889, mas foi absolvido pelo júri e solto. Em Setembro de 1893 veio o Tetartos a Macau e a 17 de Outubro partiram os 475 emigrantes chineses, para no Brasil trabalharem na agricultura. No relatório do ano de 1893 de Mr. Hippisley, comissário da alfândega da Lapa, que viveu durante anos em Macau, este fala da expedição dos emigrantes chineses para o Brasil, o que era de esperar pois, na sua estadia em Macau para receber os emigrantes, fez por repetidas vezes trabalhar o telégrafo para pôr ao corrente o governo chinês. Quando esse relatório aparece no Echo Macaense, já Camilo Pessanha está em Macau. Apesar de os jornais de Macau considerarem Alfred Hippisley um funcionário chinês zeloso pelos direitos e interesses do governo chinês, logo se atiram contra ele por acharem o relatório tendencioso, “pois coloca uma arma muito apreciada nas mãos dos que declaram guerra à emigração pelo porto de Macau”. Pergunta O Independente, por que motivo não teve o Sr. Hippisley uma só palavra para malsinar a emigração de Hong Kong? Não se faz por lá também? Não é sabido que tem ali dado lugar a alguns dramas dos que outrora se apontavam em Macau? Será mais livre e de menos perigos para os emigrantes? “Já ninguém se ilude com as declarações de que a emigração por HK é para colónias inglesas, onde os chineses ficam a coberto das leis da humanitária Albion. Levas e levas de cules têm ido para países que não são ingleses, pelo menos por agora, e bem se sabe que Singapura [onde a emigração chinesa será proibida a 24/4/1895], por exemplo, recebe de Hong Kong número considerável de colonos que aí embarcam para onde querem e nas condições que querem, porque os regulamentos de lá o permitem. É como se nós disséssemos que de Macau só podem ir emigrantes chineses para Timor, permitindo que aí os esperassem os navios para os conduzirem ao Brasil, ao Congo, a toda a parte. Não sabe o ex-comissário da Lapa que isto se passa assim na vizinha colónia? Magoa-nos pois que, tendo sido testemunha do modo como se operou o embarque dos chineses no vapor Tetartos e sabendo portanto que não há em Hong Kong nem mais escrúpulos, nem maiores garantias de liberdade, se revestisse o Sr. Hippisley de uma atitude hostil à emigração pelo porto de Macau, secundando a guerra que as autoridades inglesas nos começaram a fazer, depois que viram baldados os seus esforços para conseguirem realizar pelo seu porto do Sul da China o que lhes parecia feio pelo nosso. O relatório na parte da emigração podia muito bem ter a assinatura de um funcionário inglês. Entende o Sr. Hippisley que Macau não tem o direito de deixar embarcar colonos chineses para o Brasil, porque esta república não tem tratado com a China a esse respeito. O que asseguramos ao Sr. Hippisley e a todo o humanitarismo inglês é que, se a emigração do Tetartos não foi livre, também não a há livre por Hong Kong, nem por nenhum porto chinês, onde os regulamentos não são melhores nem mais escrupulosamente observados do que em Macau.” Julgamento parcial As autoridades chinesas protestaram contra esta emigração e as objecções contra ela eram muitas e sérias. É verdade que um tratado negociado entre a China e o Brasil em 1881, nada estipula sobre a emigração. Essa “insuficiência e a necessidade de uma especial convenção suplementar a fim de obter os trabalhadores que se desejam, foram reconhecidas pelo Brasil, que enviou à China para este fim um enviado especial, que se achava em caminho. O Brasil não tinha representante na China, nem a China tinha algum agente acreditado junto ao Brasil, para velar pelos interesses dos emigrantes.” E continuando no Echo Macaense, “O facto da companhia se recusar a esperar pela vinda do Enviado e pela conclusão das negociações que o seu governo julgou necessárias, naturalmente despertou a suspeita sobre a boa-fé.” Mr. Hippisley insinuava ter a Companhia Metropolitana, ou o seu agente, agido de má-fé ao promover essa emigração para o Brasil e inserir no contrato uma condição que tornava transferível o emigrante e o contrato, de modo que o emigrante perdera a sua personalidade e liberdade e se convertera em coisa ou mercadoria, sujeita a passar à disposição de qualquer indivíduo, sem o consentimento do próprio emigrante. Acusação encapotada de escravatura feita à companhia promotora dessa emigração. O redactor do Echo vem em socorro dessa Companhia argumentando, “nem o governo português permitiria que se abusasse do porto de Macau para fazer semelhante emigração, nem o Brasil que ainda há pouco tempo aboliu a escravatura sem dar compensações aos patrões, consentiria em tal abuso.” O Sr. Benavides, agente da Companhia Metropolitana do Rio de Janeiro, “mostrou-nos a cópia do contrato celebrado entre ele e os emigrantes e não vimos aí a clausula de que fala Mr. Hippisley. Os emigrantes apenas se obrigavam a trabalhar nos lugares, isto é, nas fazendas, que a Companhia havia de indicar e não se sujeitavam a ser transferidos a um terceiro, como diz Mr. Hippisley. Mesmo o regulamento chinês de emigração de 1886, no seu artigo 22, providencia acerca da distribuição dos emigrantes na sua chegada pelas diversas feitorias ou plantações. É claro que não se pode esperar que cada fazendeiro que precise de braços venha à China pessoalmente para contratar trabalhadores, mas é natural que a associação promotora da emigração distribua os emigrantes entre os diversos fazendeiros que os quiserem empregar, o que está de acordo com o regulamento sancionado pelo próprio governo chinês.” “Por ventura o artigo 1º do Tratado brasileiro-chinês não garante a liberdade de poderem os chineses emigrarem para o Brasil, bem como o seu bom tratamento aí? Com quanto seja muito de desejar que haja um convénio especial sobre tal assunto, é certo porém que a falta de tal convénio não autoriza a lançar suspeita de má-fé em quem promoveu a emigração franca e legalmente. É certo, porém, que, se os ingleses, que fizeram mil esforços para que essa emigração chinesa para o Brasil se fizesse por via de Hong Kong, chegando até a mandar Mr. Lochart a Londres para trabalhar neste sentido, tivessem conseguido os seus fins, nem o vapor Tetartos teria sido detido em Hong Kong, nem as insinuações de Mr. Hippisley teriam aparecido; e a emigração chinesa para o Brasil seria a operação mais pura e mais justa do mundo. É contra esta parcialidade inqualificável que nos insurgimos e protestamos.”
José Navarro de Andrade h | Artes, Letras e IdeiasParis blues [dropcap]P[/dropcap]ara o jazz, Paris era uma constante Primavera. Um sentimento de aconchego e desprendimento insuflava nos músicos ali chegados em digressão, fosse do bulício dos boulevards, da joie de vivre que pairava na atmosfera, da comida mais sápida e das refeições demoradas, da elegância blasé efluída de todas as coisas, ou mesmo das francesas, que olhavam sem subterfúgios e galanteavam sem acanhamento. O céu dos outros é sempre menos turvo do que nosso, mas esta sensação de limpidez e desafogo tinha causa tangíveis. Em Paris os músicos de jazz apanhavam-se longe da pressão em partes iguais de dealers, agentes, promotores e editores. Usufruíam por uma vez de um abrandamento que lhes instilava o gosto raro da liberdade – tudo ali lhes corria com folga e gentileza. Outra razão mais incisiva e pungente os encantava em Paris; resumiu-a Miles Davis. “Aqui não me tratam como um grande artista negro, apenas como um grande artista.” Aos 22 anos e ainda com tudo por fazer, porque toda a criação que o perpetuaria veio depois, Miles Davis já impressionava quem o escutasse e ninguém duvidou que era estelar o seu brilho. Foi em 1949 que pela primeira vez levantou voo de solo americano e pela primeira vez abriu asas em Paris. Ao cabo de um par de concertos de sala cheia Miles foi acolhido por Boris Vian e Jean-Paul Sartre que nele exultaram o artista informal porém veemente, sofisticado mas livre de sofismas, que se afirmava a contracorrente sem ser adversativo, desmarcado do sistema contudo isento das complacências da marginalidade. Estigmatizados por uma espécie de complexo de Caim viram em Miles um alter-ego. Vian e Sartre professavam o inconformismo como norma, todavia em vez de se verem expulsos do Éden académico, assim legitimando a sua rebeldia, tão-só haviam arrombado uma porta aberta e ficaram com as chaves do meio intelectual na mão. Miles Davis ostentava, portanto, uma integridade original que eles haviam institucionalizado e da qual tinham saudades. E se Miles nunca ouvira falar de Sartre e Vian de imediato percebeu a envergadura e o alcance deles. Arrastaram-no para os círculos da boémia de Saint Germain e apresentaram-no, por exemplo, a Picasso, também ele interessado em conhecê-lo. Nas longas e animadas conversas até altas horas da madrugada Miles escutava e era ouvido sem que por uma vez se lembrasse, ou alguém o lembrasse, que era um negro entre brancos. Em 1949 as úlceras da ocupação ainda segregavam pus, a França oscilava entre a vingança e o recalcamento, numa espécie de guerra civil em banho-maria. Mal supurada a cicatriz ficaria para sempre, mas na Paris desse tempo ninguém sabendo que cartas se escondiam em que mãos, o jogo estava em aberto e tudo era possível. Que mais poderia acontecer a Miles Davis em Paris senão apaixonar-se?Mesmo que só mais tarde o cognominassem de “Prince of darkness” já então Miles irradiava reputação de bera e mercurial. A velha história: arreganha os dentes para que não te ponham o pé em cima. E já entendia, por experiência própria, que vida e a música, o génio e o valor, o reconhecimento e o respeito, não cresciam juntos. Na sua atitude, porém, não havia máscara mas armadura. De modo que na Paris fervilhante de 1949 o existencialismo que então pulsava nos espíritos e corações acometeu Miles de modo subcutâneo e não apenas como uma volúptia epidérmica. E por quem haveria este príncipe das trevas de se apaixonar senão pela musa dos caveaux, a feiticeira da nova chanson, sempre de vestida preto, Juliette Greco? Arrebatadamente usufruíram de todas as prendas que os amantes cobram de Paris: passeios de mão dada ao entardecer pela margem esquerda do Sena, jantares íntimos num bistrot à luz das velas, confidências e beijos num banco do Jardim do Luxemburgo. Haveria nisto a puerilidade e a diminuição do cliché se não estivessem eles precisamente a instaurá-lo (a célebre foto de Doisneau, “Le Baiser de l’Hôtel de Ville” é de 1950) e sobretudo se fosse minimizado que ninguém virava a cara ao ver um negro retinto e uma branca muito pálida a trocarem carícias em público. Quanto ao resto que é sólito verificar-se entre namorados, Greco, que jurou em canção de tudo se lembrar, admitiu numa entrevista, guardando recato nas palavras mas escapando-lhe um sorriso de plenitude, que ambos estiveram à altura das tórridas promessas. Revelando uma insólita vocação para padrinho Sartre perguntou-lhes de boa-fé porque não se casavam. Miles poderia ter redarguido com escrúpulo: “porque nos EUA vivo com Irene Cawthon de quem tenho dois filhos” ou respondido com lucidez: “o que se passa em Paris fica em Paris.” Preferiu a verdade: “Se casássemos Juliette nunca seria considerada nos EUA uma grande artista, mas apenas a minha ‘white bitch’”. E assim foi que Miles Davis provou o travo amaro da renúncia, que nem a graça do altruísmo mitiga. Quem sabe se desta inacabada paixão, agora lendária, remanesceram os indícios de cepticismo e retraimento que ecoam no timbre da sua música.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDo trabalho [dropcap]P[/dropcap]ermitam-me dizer que ao fim de vinte e tal anos de trabalho percebi finalmente que as coisas não têm qualquer tendência para melhorar. Eu nunca gostei da ideia de trabalho, isto é, de posto-com-horário-para-ser-cumprido-ao-modo-de-um-castigo, até porque sempre achei que a vida era demasiado curta para que aceitássemos a ideia de lhe amputar um terço sob mando alheio apenas para não morrer de fome. A maior parte das chefias que conheci estava inebriada com o poder – mesmo que pouquíssimo – de que dispunha sobre os outros. Muitos dos colegas que tive davam infinitamente mais importância ao aspecto formal do trabalho (pontualidade, absoluto respeito pela hierarquia e aspecto) do que ao conteúdo do mesmo (produtividade, inovação e competência). O trabalho é um local e um modo de vida odioso onde prolifera e se premeia sobretudo a incompetência e irrelevância. Um chefe cretino e inseguro fará de tudo para proteger a sua posição periclitante e não hesitará em rodear-se de cretinos e de bajuladores. Um chefe competente dificilmente será levado a sério pelas restantes chefias, até porque imprime uma marca e um ritmo pouco condizentes com a mediocridade geral e põe a nu, por contraste, a incompetência alheia. No trabalho quase tudo é mau, ou não derivasse o nome de um antigo instrumento de tortura do tempo dos romanos, o tripalium. Um tridente de madeira usado primeiramente na agricultura e logo convertido em acessório sado-maso com tónica exclusiva no sado. Percebo a utilidade social do trabalho. Não fosse o trabalho e as pessoas teriam de encontrar um sentido para a vida ou pelo menos buscá-lo com um resíduo que fosse de avidez. Não fosse o trabalho e as pessoas teriam de ficar com os putos o dia todo – pelo menos nas férias escolares –, ou deixariam de ter desculpa para faltar à festa de final de ano, à quermesse da páscoa ou ao teatrinho do sexto ano. Não fosse o trabalho e as pessoas teriam tempo para fazer todas aquelas coisas que dizem querer fazer – e que, na verdade, não querem – e cujo tempo escasseia para as fazerem. O trabalho, em certo sentido salva. Ou pelo menos ajuda a manter um estado-de-coisas, sejam estas uma paternidade sem acidentes domésticos ou uma relação que sempre ajudar a pagar a casa e a compor o frigorífico. Mas no mesmo período de tempo em que estamos a trabalhar podíamos estar a fazer coisas muito mais interessantes. Ou menos, mas ainda assim a escolha seria nossa. Nos países maximamente capitalistas a cultura do trabalho atinge proporções religiosas. Lembro-me de ler uma entrevista a um daqueles magnatas do petróleo que por cupidez ou tédio resolvem se candidatar a um lugar de congressista ou de senador, na qual o entrevistador perguntava ao bilionário o que pensava este das consequências da automação e da inteligência artificial na vida dos seus trabalhadores num futuro não muito distante. O entrevistado, pelos vistos, não só nunca pensara seriamente no assunto (bilionário old school, pré Silicon Valley) como não conseguia sequer conceber a possibilidade de um mundo no qual as pessoas não tivessem que trabalhar. Acabou por atirar, tão enojada como contrariadamente, qualquer coisa como “it would be a godless world”. Não só o trabalho ocupa as mãos que, como se sabe, são o recreio do demo quando desocupadas, como escalona o tecido social: quem ganha mais tem uma posição moralmente relevante e quem ganha menos tem de se ater à sua própria insignificância. No limite, os pobres são-no porque estão pejados de vícios morais. O seu sofrimento na terra é já ele um o primeiro prato de um castigo divino de que não se antecipa o fim. Sem a bússola do trabalho, como destrinçaríamos o bem do mal, a excelência da mediocridade, o necessário do supérfluo? Mais a mais, que faríamos com todo esse tempo recuperado das nossas vidas? Em relação à abundância de tempo e de dinheiro sempre tive como certa a frase de um reclame da saudosa Vox: “dá Deus vozes a quem não tem implantes”.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAlzheimer in memoriam patris, José Augusto Caeiro [dropcap]A[/dropcap]demência está na minha família. É herança do lado do pai. A minha avó morreu com demência senil em estado avançado. Vivi com o meu avô nos últimos oito anos da sua vida e também o vivi degenerar, mas não ao ponto a que a avó chegou. Portanto, é dos dois lados que vem o testamento. Lembro-me de que se falava de arterioesclerose, mas era demência, loucura. Cedo o meu pai teve medo de que lhe pudesse caber o mesmo destino. Com “cedo” quero dizer logo após a morte de sua mãe. Tinha à época a minha idade, pouco mais de cinquenta anos. Decorava páginas e páginas do dicionário, que depois invocava em passeios a pé de Alvalade, até onde ia de meio de transporte, até casa, na Junqueira em Alcântara. Punha-se sempre desafios à memória a que sempre respondia com sucesso. Eu nunca tive a memória do pai. Para ele, cada pessoa tinha um nome de que se lembrava. Conhecia as ruas de Lisboa por tu e os nomes próprios ou pelos quais são conhecidas. Ia diariamente à Cinemateca ver filmes, sem nunca descurar a ficha técnica, que lia e aprendia de cor. Lia os jornais diários, sempre dois. Mania que deve ter preservado do tempo em que havia jornal de manhã e à tarde. Por mais que ficasse comprovado que a memória dele era excelente, o medo de ficar como a mãe não atenuara. Houve sempre uma sombra que aumentou de volume e de negrura. Era com horror que sentia a loucura já dentro de si, a demência, o Alzheimer, seja lá como for designado o eclipse do espírito, o esquecimento, a perda de identidade que resulta da lembrança das pequenas coisas: como alguém se chama, qual o nome da rua, quem dá nome a uma rua. O esforço de preservar a memória não era cognitivo apenas, nem resultava de uma resistência a um quotidiano com buracos, furos, lacunas, para que fosse preenchido. Era outra coisa. Era o medo de perder identidade pessoal. O desconforto de não se lembrar de um nome depressa se espalhou como um fogo exposto ao vento. Passa a ser um déficit de diversas ordens: cognitivo, sim, mas também com deficit de acuidade de atenção, desorientação no espaço e também no tempo. Numa das saídas do Corte-Inglês de Lisboa para o Metro, revelou um desnorteamento total. É difícil perceber qual a entrada do Metro, mas não para alguém que estava habituado a ir lá ao cinema durante tantos anos e também a apanhar o Metro. A partir de determinada altura, era difícil dar com locais habituais, como restaurantes. Dava-se o caso de se lembrar das zonas de Lisboa percorridas por Eléctricos, já desactivados. Queria saber onde era a paragem de Eléctrico, quando já não existiam sequer carris. Chegou sempre, mas não conseguia reconstituir o caminho, nem sabia há quanto tempo tinha saído de casa. A hora da saída estava envolvida numa nebulosa que invadia também o local por onde passava. Tudo era como um sonho. Não sabia mesmo como chegava. Houve um dia que fui envolvido pela atmosfera pessoal do meu pai. Era um nevoeiro espesso. A presença desse clima era amplamente justificada ou assim me parecia. Às sextas-feiras o pai juntava-se a um grupo de amigos para jantar. Daquela vez, eu também ia. Era em Alvalade num restaurante conhecido. Fomos de autocarro até à praça de Londres e depois fomos a pé, porque não conseguíamos apanhar nenhum táxi ou outro meio de transporte. Chovia e já estava escuro. Lá fomos até Alvalade. Quando me dirigia para o interior do bairro, o meu pai disse que não era aquele, mas outro, também de dois irmãos. Subi a norte de Alvalade. Fui dar a bairros onde nunca tinha estado na vida. Acreditei piamente no pai. Segui-o. Depois de uma boa hora, achei que devia ligar para os amigos, coisa que não tinha feito ainda, porque estava absolutamente convencido de que o pai sabia o que estava a fazer e para onde ir. Percebi logo, à conversa com um dos amigos, que estávamos muito longe e que o sítio era onde eu inicialmente achava que era. O surto tinha durado muito tempo, tempo demasiado para não dar conta de que havia uma clara deterioração das condições mentais. As perdas e o desnorteamento em Lisboa eram por demais evidentes para não serem percebidas com alarme. Nunca mais as coisas foram diferentes e tudo se precipitou em pouco tempo, muito pouco tempo, em direcção à ruína. Um dia mais tarde, saiu às 17h00 para fazer tempo até ao jantar, ia à Mexicana. Pelas 21h00, recebo um telefonema de um amigo do pai à procura dele. Sai em pânico, para o ir buscar, calcorreando o que achava que podia ter sido o seu caminho. Em direcção à Mexicana, como se ele ainda lá estivesse. De casa, recebo um telefonema a dizer que o pai tinha aparecido. Procurar um pai em Lisboa, andar à pergunta de uma pessoa cujo paradeiro é desconhecido é qualquer coisa. Tudo é resistente, nenhum sítio é o que nos permite encontrar alguém e todos os sítios são sem esse alguém, sem ninguém, sem aquela pessoa que queremos encontrar. Se uma casa ficar revirada à procura de chaves e de óculos, a cidade fica inerte, nada diz na sua mudez, onde alguém se encontra. Ninguém nos ajuda. Tudo é vazio. É um vazio cheio de um nada insuportável. Não sei como conseguiu chegar a casa por sua alta recriação. Não consegue explicar como se perdeu ou não se lembrava de que tinha um jantar ou onde era o restaurante do jantar. Um segundo episódio, ainda mais complexo, ocorreu. Os meus pais viviam a pouco menos de mil metros da CUF de Belém. A mãe manda-o para casa, enquanto ia aviar uma receita à farmácia. O pai foi numa direcção completamente diferente. Apareceu nas Docas de Alcântara sem saber como ou o que lá terá ido fazer. Ainda conseguiu dizer a um polícia que estava perdido. O polícia chama um táxi que o leva à morada que entretanto estava à vista na carteira. Foi o pânico enquanto não aparecia. A mãe não se apercebia do estado em que estava, mas eu sabia perfeitamente que o pai não podia ser deixado só em nenhuma circunstância, nem mesmo a pouco menos de um Km de casa. Tomei a minha decisão de não o deixar andar só e de lhe cercear a sua liberdade individual. Ainda me dói. Não o fiz só por ele. Fi-lo para o ter debaixo de olho, sob a minha alçada. Um dia a minha mãe pergunta-me onde estava o pai, porque não estava em casa. Tinha ido à CGD actualizar a caderneta. Nem tempo tive para me angustiar. Era sempre assim: medo de que se perca, medo que seja roubado ou espancado ou atropelado, medo indefinido, um medo indeterminado: o medo. Vivia em casa dos pais, para o que desse e viesse. Senti-a o pai atrás de mim, à espera para irmos passear. Parecia um menino de colégio com um bibe e uma pasta à tiracolo. Não dizia nada para não perturbar o que quer que eu estivesse a fazer ao computador. Depois, olhava para ele e dizia-lhe: “vamos embora?”. Comprava-lhe dois jornais a meio caminho entre casa e o café onde íamos. Íamos e vínhamos a pé, para ele andar. Era assim que gastávamos a manhã. Depois de almoço, ia dar aulas. Encontrava o pai sempre sereno, excepto no último ano umas duas vezes, em que esteva “com a neura”. Íamos ver o rio Tejo, o sol a pôr-se, adivinhar o Atlântico. Depois era jantar e recolher para a cama. Esperava sempre que fosse tranquila. Vezes sem conta acordava, tomava duche e fazia a barba, tudo na mesma noite. Dizia-me: “sabes que gosto sempre de tomar banho e de fazer a barba”. Pressentia-o sempre atrás de mim. Ficava sem dizer nada, para não me desconcentrar. Depois pedia-me para pesquisar qualquer coisa na internet: o nome de uma canção ou de um actor. Ouvíamos Andy Williams ou Sinatra de quem ele tanto gostava. Lembro-me de ver o meu pai a caminhar na avenida da Índia. Estava sozinho. A figura de um velhinho pouco agasalhado a andar por ali sozinho num sábado de manhã, assola-me. Eu passava de carro também para ir para casa, porque não fui eu ter com ele, naquele dia? Eram só mais umas horas de convívio. Ah! que falta me fazes, ainda que nunca te apagues, enquanto eu for vivo.
Luís Carmelo h | Artes, Letras e IdeiasI love Thelma & Louise [dropcap]H[/dropcap]á já mais de dois séculos que os jornais se habituaram a preencher diariamente um conjunto de páginas originalmente em branco. Tendo em conta certos critérios, diagnosticam o país (ou o local) onde vivem e atribuem o grau de notícia a alguns acontecimentos que aí ocorrem. Com o tempo, aditaram a essa amálgama ritual outros registos, tais como reportagem, opinião, efemérides, ludemas e outras rubricas que se viriam a consolidar. Nos últimos dez anos, talvez por mimetismo próprio da espécie, as pessoas comuns passaram a fazer precisamente o mesmo nas redes sociais, entendendo-se a si como países, partes do mundo ou até como o mundo todo. Os ‘posts’ tornaram-se em notícias de um ‘eu’ que hasteia toda a latitude do cosmos. Fotografa-se a celebrar a existência, dá a ver familiares em descontinuada operação lol, exibe efemérides como se toda a gente delas se lembrasse e não se esquece, é claro, de opinar sobre todo o espectro de temas e matérias do universo Multiplicando por muitos milhões este tipo de cardápio, é hoje possível ter acesso a um somatório de registos que, em uníssono, visa sobretudo uma única coisa: chamar a atenção (abrindo o nexo das coisas privadas, de lés a lés, até às dobras do infinito). As multidões dos nossos tempos padecem de antropofobia e para suprir os males desta tarefa delicada que é existir lá vão contando os ‘likes’, um a um, para depois se entregarem a conjecturas e a mil fantasias e assim se imaginarem a exceder o inadiável. As multidões do nosso tempo andam francamente mais atentas à gazeta dos cardápios que produzem do que a notícias que se referem a coisas ditas reais, do género “só em 2018, registaram-se 18 tiroteios em escolas norte-americanas de que resultaram a morte de mais de cem jovens”. Na maioria destes casos, curiosamente, pelo menos é o que dizem os peritos, os assassinos só pretendiam chamar a atenção sobre si. Sinal de uma era que carece de caixa de velocidades, já que tudo converge nesse apressado passo de sentido único chamado Narciso. Passemos então a um veículo ainda com mudanças e embraiagem e recuemos três décadas, pois faz bem sair do casulo dos ‘posts’ que, coitados, nascem e morrem em menos de 24 horas (lembremo-nos de que os seres vivos do nosso planeta com a vida mais curta são uns microinvertebrados aquáticos de nome gastrotrichas que, apesar de tudo, vivem três dias). Convido-vos, pois, a entrar num filme intitulado ‘Thelma e Louise’, realizado por Ridley Scott (1991). Para possível espanto de todos nós, eis que as duas protagonistas, logo no início da fita, decidem tirar uma “selfie”. Na altura, esta palavra ainda nem sequer existia e a espontaneidade com que o acto decorre nas imagens em movimento pode hoje ser interpretada através de um contexto que na altura toda a gente ignoraria. A polaroid tinha nesta época uma única virtualidade: a revelação imediata em papel sem ter que esperar pelos ofícios da impressão. Era um aceno mágico, lembro-me bem. No filme, a fotografia testemunha a decisão das duas mulheres em cena. “Estamos aqui e decidimos partir em viagem”, diria o balão se estivéssemos a bordo de uma narrativa gráfica. As personagens redescobrem-se a si mesmas de modo autónomo e estão decididas a fazer o que for preciso para chamar a atenção de quem as vê. Aquele é o seu momento. Mal podiam Thelma e Louise imaginar que, um quarto de século depois, as “selfies” se iriam tornar no símbolo maior deste narcisismo epidémico que faz dos adultos crianças a desintricar os muitos acervos de fases como a oral, a anal, a genital e outras latências que deixariam Freud a quebrar bilhas de barro na feira do relógio (‘hello hello, I´m here, look at me please!’). Tal como escreveu André Gunthert*, a “selfie” é o ídolo por excelência da “ideologia da desconexão”, na medida em que ilustra o absurdo de uma vida excessivamente documentada que contrasta com os vazios de um tipo de comunicação que jorra a partir da auto-promoção forçada. A “selfie” traduz ainda o colapso actual da ideia de contexto e propõe, ela mesma, contextos próprios como forma de incitar à interacção pela interacção. É verdade que a tentação de o fotógrafo se tornar no fotografado surgiu com os ‘self-timers’ no início do século XX, tendo a Kodak Retinette, umas décadas depois, criado o temporizador automático. Após as muitas e ruidosas ufanias do Plano Marshall, o turismo estimulou a exposição dos fotógrafos viajantes ao lado das contingências geográficas como se os dois fossem um único super-alarve. Daí até hoje, um vulcão imenso explodiu. A novidade dos nossos dias é que o tremendo excesso de captação fez com que o espaço fotografado se confundisse com uma verdadeira metástese planetária. A fotografia, o fotógrafo e as coisas diluíram-se de tal modo que a fotografia, como sempre a entendemos, quase deixou de existir. O mesmo se pode dizer das antigas gazetas, dos jornais e de outros media. O espaço em branco que diariamente preenchem também se transformou em redundância. O rumor do rumor dos acontecimentos excede em muito tudo aquilo que virtualmente os fez (e faz) existir. As meta-ocorrências estão de tal modo a diluir-se na imaginação global das pessoas que as notícias quase, também, que deixaram de existir. Com raras e preciosas excepções, restará um fluxo ensurdecedor (com a palavra “fake” a pronunciar-se cada vez mais, apenas para que se possa conceder algum sentido às obstinadas quebras de lógica). O mesmo se pode igualmente dizer das pessoas comuns – todos nós, afinal – que se diluem nas redes sociais no dia-a-dia como forma de dizer ‘eu sou’/‘eu estou aqui’. Quase que deixam de existir todos os dias, para voltarem, na manhã seguinte, a tentar ofegantemente respirar de olhos arregalados num novo post. Os Toltecas faziam igualmente sacrifícios para que o sol nascesse depois de cada noite. A fé impunha a morte, mas agora o “temor e o tremor” parecem repetir-se. Compreender a fé é na realidade um absurdo, mas ainda mais absurdo é praticar uma fé (dir-se-á que é o caso dessa fé cega que consiste em ‘comunicar por comunicar’) num mundo que dela radicalmente se apeou, para dar lugar à liturgia da atenção inebriada. GUNTHERT, André. The consecration of the selfie. A cultural history, L’image sociale [Em linha] Nº 23 (Janeiro 2019), Disponível em http://imagesociale.fr/1413 [Consult. 23 Jan. 2019]
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasAs ministras suecas 11/02/2018 [dropcap]E[/dropcap] às vezes o mundo diverte-nos muito para lá das preocupações que lhe concernem. O maior inimigo do rinoceronte é um minúsculo insecto que lhe sobe narina acima e se instala nas circunvoluções do cérebro paquidérmico onde começa a escavar túneis, o que deixa a criatura aos pinotes e de péssimo humor. O maior inimigo do muro do Trump é um cemitério de índios que, providencialmente, se localiza na fronteira entre os EUA e o México, ao longo de muitos e muitos quilómetros, e, meus caros, contra os ancestrais não há pai, nem narina férrea que os dobre. A mostarda começa a chegar ao nariz dos Tohono O’odham e o Trump que se cuide, pois mesmo que ele não acredite em bruxos, que os há, há. E os invisíveis sobem pelas narinas acima mais soberbas. A reserva dos índios fica no Arizona e estende-se por mais de cem quilómetros na fronteira do México e vivem nela 2000 dos seus 34000 membros. Como explica o vice-líder da tribo, “Cada animal, cada pedaço da terra é sagrado, tudo tem um propósito neste mundo, e quando começamos a brincar com a mãe natureza acontecem coisas”. Por isso os terrenos da comunidade não estão à venda e construir o muro seria profanar os ancestrais. E os ancestrais não se deslocalizam, é inegociável. Portanto, aqueles fartos quilómetros com cemitérios (e alguns deles secretos, contam os líderes índios) funcionarão como o buraco de muitos molares na dentadura de crocodilo que o Trump quer implantar ao longo da fronteira. Ou ele expropria e aí profana, ou mata os índios, o que é impensável, ou corrompe-os e aí atrairá a ira dos “espíritos”. O que já estou a adivinhar é muitos túmulos a servirem de receptáculo do contrabando e muitos trilhos secretos apontados pelas linhas brancas da coca. 12/02/18 A Suécia, para além do frio e do génio de Ingmar Bergman, de quem organizei um ciclo para começar dia 19, em Maputo, tem uma mão cheia de poetas notáveis, entre os quais um senhor chamado Gunnar Ekelof, de quem adoraria traduzir a trilogia Diwan/ sobre o Príncipe de Émghion, um duplo que lhe teria sido revelado numa sessão de espiritismo, aos trinta anos, mas ao qual ele não ligou peva. Até que aos 58 anos, em 1965, Ekelof se deslocou a Istambul, e assim que entrou no quarto do hotel foi, como ele disse, forçado por um anjo a escrever a trilogia que conta as lendas em torno desse príncipe que participou na batalha de Mantzikert, em 1071, e foi feito prisioneiro, tenho-lhe sido arrancados os olhos. São poemas belíssimos, como explica Marianne Sandels, na magra antologia saída em português, «um hino à inocência, compaixão e dignidade humanas em tempo de caos e sofrimento», o que me parece ser a receita ideal para a torcida realidade actual. Um mundo heterónomo e soberbo se revela na trilogia que tenho em francês, publicada com o aval do autor, que as discutiu à sílaba com os seus tradutores. Transcrevo, entretanto, este pequeno exemplo vertido pelo Vasco Graça Moura: «SOZINHO, SOZINHO, Sozinho, sozinho, dizes que estás sozinho -/ mas o príncipe de Emghion diz: / Primeiro eu amava Xerezada/ e os seus contos/ depois Dinazarda, a sua irmã mais nova/ depois a criada dela, / depois o amante da criada, um núbio / e então o seu engraxador/ E quando me pus de joelhos/ e lambi a graxa dos seus dedos / amei a poeira/ E bebi-a tanto e tão profundamente/ que tudo para mim enegreceu». Mas veio-me isto à lembrança ao deparar com o grande debate que agora ocorre na Suécia por causa do penteado rasta da sua actual Ministra da Cultura e da Democracia. Como se sabe na Suécia metade do elenco governamental é feminino e a idade dos ministros também espanta. Antes dela ter entrado no governo, neste Janeiro último, o cargo era ocupado por, Alice Bah Kuhnke, uma afro-sueca que ocupou de forma tão competente o cargo que foi promovida a candidata para as próximas eleições europeias, mas a escolha de Amanda Lind, de 38 anos, e do Partido dos Verdes (tal como a anterior ministra), está a levantar engulhos por causa do penteado, que a “jovem” (cf. a foto) não está disposta a mudar porque o usa há vinte anos. Políticos da direita sueca, cronistas vários ou até um jovem artista e comunicador negro, Nisrit Ghebil, referem que o seu penteado é indevido. O artista acusa-a de “apropriação cultural”, sem lhe ocorrer que quando lê a Estética de Hegel ou usa um ipad Huawei talvez esteja também a fazer “apropriação cultural”. Eu preocupar-me-ia mais com as políticas que a ministra pretende desenvolver no seu mandato e que lhe ocupam o miolo sob a caixa craniana, mas este é um mundo em que o líder do país que representava o “mundo livre” diz aos jornalistas “vocês têm os vossos factos, nós temos os nossos que são factos alternativos” e por isso o que conta é o penteado. Atalhando lágrimas e suspiros, sou absolutamente fã das ministras suecas e até acho que a Amanda Lind, uma amante da BD, tem um laivo profundo de Mona Lisa que a torna providencial para o seu papel. Ainda hoje sonhei com ela. Era Verão e à beira de um rio eu tentava pescar trutas. Ela passou, viu que no meu balde já se recolhiam três trutas e sorriu, como quem diz, Convida-me para jantar. Tirou as sandálias e molhou os pés na água. Ficou aquele rio roto no calcanhar do pé dela, é o que vos digo e a mim passou-me o hábito de viver folheado em angústias.
Gisela Casimiro Estendais h | Artes, Letras e IdeiasNê 30/01/2019 [dropcap]M[/dropcap]ostro-lhe o meu livro pela primeira vez. Observa-o muito atentamente. Olha-me, pergunta: “És tu, a Gisela Casimiro?”, como se esse ser impresso fosse um alter-ego e não eu mesma, a pessoa que para ela é a Gisela, apenas, mas também “A” Gisela. Respondo que sim. Diz que acha o livro bonito. Não há nada melhor do que ir buscar uma criança à escola. Pelo menos para mim, que as não tenho. Hoje, a “minha” está calada. Pergunto como está, nada bem, uma dor num dente que manteve secreta desde o acordar, achando que iria passar. Levo-a ao lugar de que toda a gente gosta, o Kaffeehaus, e após muito torcer o nariz, lá se delicia vezes sem conta com a limonada de framboesa, sem gelo nem rodela de limão. Água a rodos. Hoje não há bolo para ninguém, tal é a dor, até de comer, mas fica a descrição do mítico sachertorte, promessa para a sua segunda visita. Mais tarde, abraçadas a ver Ladybug, à espera da mãe, pergunta a minha idade. Creio que se vai esquecendo, de vez em quando, ou é o tempo que se vai esquecendo de nós, deixando o que nos liga cada vez mais forte, uma ternura que nunca ganha pó, talvez apenas umas rosinhas brancas há muito tempo, ou uma única, cor-de-rosa, desta vez; amigas de longa data que, sem se verem há muito tempo, ainda ontem estiveram juntas nalguma realidade paralela. Mas depois os cabelos: tão longos como não me lembro de alguma vez ter visto. Quando lhe digo que são trinta e quatro, deleito-me com um “És muito nova.” É por isso que gosto tanto de conversar contigo, Nê. 23/01/2017 Falávamos de balões. Sobrara um, laranja, perdido na minha mala, que a Nê encheu pelo caminho. Falávamos de balões com vias lácteas e com orelhas, os balões da nossa infância. Ela, que ainda a vive, disse que, em casa, têm balões em forma de coração. A mãe observou, “Mas os corações rebentam com muita facilidade.” E eu respondi, “Infelizmente, não só em sentido metafórico.” 04/10/2016 Não sei como é que ela conseguiu, mas estávamos ambas em pé e a Nê fez-me festas na cabeça. Os que não têm seis anos vão dizer que foi por causa das escadas, mas não estavam lá, pois não? Depois, espetou o indicador ao de leve na minha barriga e apontou para a sua, já de camisola levantada. Tenho de voltar ao exercício físico, disse-lhe. Podes vir fazer educação física na minha escola. Achas que ninguém iria notar? Agora temos lá uma tartaruga bebé, ela é tão fofa, estamos sempre a olhar para ela. E já tem nome? Não. Têm de votar e depois decidir. Vou chamar-lhe Gisela. Vai ser a tua cópia. Não, vai ser a minha homónima. Entre homónimos, doppelgangers e sósias, contou-me de duas gémeas amigas, não me recordo agora os nomes, mas uma era a da camisola rosa e, outra, a da camisola azul. Coitadas, nunca mudavam de roupa? Ou vestiam sempre a mesma cor? E se trocassem de camisola, como é que fazias? Falámos da natação, do piano, do Daniel, da professora de inglês e de como ela descobriu, durante a apanhada (diferente da do meu tempo, agora apanha-se mesmo) que é mais forte do que um rapaz do quarto ano. Quando nos despedimos, pediu que a levasse comigo; abraçada a mim, dizia, não vais sair daqui, vou colar-me a ti. Menos cabelo, num corte que lhe fica tão bem, menos dentes, num sorriso que, num dia como o de hoje, especialmente como o de hoje, eu não esperava ver e que ela tem sempre para me dar. Ouvi, quando cheguei, a Catarina dizer, olha ali a Gisela. E a Nê, mesmo à minha frente, olhava para todos os lados e perguntava, ainda sem me ver, onde, onde? No meio de muitos abraços, ouvi, a minha filha está a olhar para uma das suas pessoas preferidas. Ela também é uma das minhas. Nunca quero esquecer as coisas bonitas que ela me diz. E só agora percebi o tanto que ainda tinha para lhe contar. Não sei como, mas tenho ali uma grande amiga. Duas, na verdade. E que saudades eu já tinha. 19/07/2016 Outro dia, – Gisela, qual é o teu vestido preferido? – Não sei, Nê, eu… – Eu acho que é esse que tens agora, porque já te vi muitas vezes com ele. No mesmo dia, “Quando tu me conheceste eu já tinha seis anos. Eu pensava que riqueza era ter muito dinheiro mas riqueza afinal é ser inteligente. Ó Gisela, tu disseste que ias para a natação, já começaste? Eu não sei por que é que o laranja é uma fruta e uma cor.” (E eu só consigo dizer “Ó Nê tu és linda.”) 25/06/2016 Das manhãs felizes, com encontros combinados que se sobrepõem aos casuais e tudo resulta em bonita sintonia. E há lá coisa que nos desarme mais do que, depois de sermos cumprimentados com um longo abraço, recebermos um outro, assim do nada, inesperado, ainda melhor do que o primeiro? Talvez nas crianças coisa alguma venha do nada. A Nê vem da Catarina, em parte. Ela disse à filha que os cockers são cães de veludo. Algum tempo antes, o Fred disse, “As minhas referências Disney são limitadas. Por isso é que eu sou são.”
Nuno Miguel Guedes Divina Comédia h | Artes, Letras e IdeiasElegia para um homem livre [dropcap]J[/dropcap]á que aqui estamos para nos conhecermos melhor, permitam que vos confesse, outra vez: é-me difícil levar alguém a sério, a começar por mim – levar a vida a sério. Não é um defeito nem será uma qualidade: é apenas uma característica condicionada pelo conhecimento do desfecho que todos iremos ter e que portanto é passível de tudo relativizar. Não me interpretem mal, por favor. Não se trata nem de leviandade nem de morbidez senão de um esforço titânico de manter alguma lucidez perante a injustiça que será sempre viver. Reconheço e admiro atributos como a bondade, o talento ou a honra, entre outros. Levo a sério os que amo porque os meus afectos serão, se tiver sorte, o meu parco legado. Cumpro as responsabilidades que me exigem da maneira que posso. Gosto da vida, sobretudo quando considero a alternativa. “It’s a hell of a ride”, canta o meu ídolo Paddy McAloon dos Prefab Sprout, para logo a seguir concluir “but a journey to dust”. Isto para vos dizer que, apesar do seu sorriso e da sábia e impenitente desfaçatez, a morte levou há algumas semanas um poeta. Mais, bastante mais: um homem livre, sabedor do preço e do valor que custa manter essa liberdade e sobretudo da diferença entre estes dois substantivos. Rui Caeiro – é este o seu nome – deixou entrar finalmente quem sempre conheceu e com quem sempre dialogou num misto de troça e de reconhecimento. Não vou mentir e dizer que o conhecia; mas dizendo-o não minto, porque o li. Porque os versos que escreveu eram palavras-espelho para tanta gente, para mim. Tratou por tu a sua mortalidade e de caminho ofereceu-lhe versos como estes: “Porque a verdade é esta: se tu levas a vida / a sério a morte vence-te com a maior das limpezas// Se a levas a brincar ela vence-te à mesma /porém sem glória: o que é vencer um brincalhão?”. Bastariam estas palavras que ecoam como uma gargalhada de condenado para fazer de Rui Caeiro um exemplo – coisa que o próprio, suspeito, desdenharia. Caeiro combateu a morte da única maneira possível: vivendo. Era homem de amizade fácil, de saber enciclopédico mas nunca ostensivo; assim disseram os que com quem ele privaram e beneficiaram da sua generosidade e acutilância. Nós, os leitores, conseguíamos pressentir isso mesmo nas notáveis traduções que fez – lembro uma de Cesare Pavese, outro que andou às voltas com a morte até se apaixonar por ela – e sobretudo na sua poesia. O excelente (e auto-explicativo) Sobre a nossa morte bem muito obrigado é um conjunto magnífico de ensinamentos que não ficariam mal a um moderno Séneca que estivesse armado de ternura e de ironia: « A morte, provavelmente.», escreve Rui Caeiro. « O tempo que falta até lá. O que ainda resta. Sentir, degustar o tempo esse como um percurso: de aprendizagem. de exaltação, de sabedoria. Diante da morte o importante é estar.» Custa-me muito ver partir homens livres por ser a condição a que mais aspiro e o valor que mais defendo. Mas talvez a morte seja a derradeira liberdade; não sei. Até lá, e seguindo o que aprendi, diante dela estarei.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasMão cheia Horta Seca, Lisboa, 21 Janeiro [dropcap]O[/dropcap] mundo continuará a triturar o que agora se faz aqui, para quê tentar capturar a sensação? No dia em que todos assuntos acordam, vejo-me amiúde ainda a avaliar por palavras os meus dias falecidos ontem. Vale o quê, nos múltiplos contextos que se agigantam? Precisava apenas que se instalasse ao meu redor o silêncio mínimo para estender frases, que são agora tapete de entendimento, tentativa de não derrapar. Mas tudo parece convergir no agora mesmo. Eu a fechar-me e o telefone ininterruptamente a abrir-me, ostra. Eu a fingir sentido e o banco a dizer-me buraco. Eu tentando a concentração e todos-cada-um cobrando atraso. Nada mudará o ter escrito isto. Mymosa, Lisboa, 22 Janeiro Boto aqui sob a data o que vai acontecendo, digo eu, dia após dia, contra isto e o resto. Mas pode não ter sido bem assim ou aqui, por conveniência de prosa. E nem precisava acontecer, bastava o meu registo e a tua leitura – vergo-me respeitoso –, tantas são as formas de uma árvore dar fruto. Nas nossas mãos. Beba-se o suco da ideia. Impossível, como todas antes de tentadas. Palpável, esta, exaltante a outra. Do contexto mastigável, da interpretação saborosa, da construção lúdica. Ei-las até comerciais, urgentes e necessárias, afinal dispensáveis. Ninguém m’acredita, mas além da criação acontece trabalho. O jardim infantil apresenta-se belo conceito, capaz de ser regado. Pulei, mãos no ar, frente ao ministério da economia. Não devia? As companhias contam no despertar das abstrações, mas nem todas saltam. Horta Seca, Lisboa, 24 Janeiro Não concebo o erotismo sem que, coisa de geração, seja desenhado. Ou dito. Já nasci na fotografia, mas o tráfico do proibido fez-me com a importação de quadradinhos que nos diziam um prazer por descobrir. Desenhado, insisto, antes de dito pela palavra e nas ausências entreditas. Mas desvio-me do que não devia. Morre outro clássico não celebrado. O caricaturista, sobretudo o da ressaca do 25 de Abril, merecia a atenção dos jornais, por exemplo, o Diário de Notícias, em cujas páginas semeou as figuras e os figurões da política, que era tudo, então. Em várias revistas humorísticas, e até no Jornal do Exército, praticou com bonomia e traço anguloso a crítica de costumes, o registo das modas, a piscadela de olho. José Manuel Domingues Alves Mendes (1944-2019), nome que se encolhia em Zé Manel, desenhou a mulher com uma elegância e candura que não seria possível hoje. Uma pequena antologia dos seus corpos daria muito que conversar. Saravah, Zé Manel. Horta Seca, Lisboa, 25 Janeiro Mundo Fantasma, estimada galeria, no Porto, cumpriu dez anos. Para dizer o mínimo, mostrou o máximo de ilustrações e quadradinhos oriundos dos vários continentes, os dos mapas e os do gosto. Não foi agora, mas no ano passado, só que o pretexto destas linhas andou perdido. Júlio [Moreira], irmão dos mais antigos, disfarçando a timidez com a câmara, fingindo que não, fixou dez olhares de entre os muitos milhares em que a década se desfez. Nas fotos, que o José Rui [Fernandes] transpôs em risogravura, conservam-se leituras de quem olha: os artistas ou a sua arte, que as imagens perderam protagonismo, ficando-se por desfocado pano de fundo, luminosa razão de ser. O volume confidencial, pasta A3 dobrada, traz por nome «10» e expõe, em murmúrio, o grão da memória. Projectos-projéctil, que vão sabendo ferir o tédio dizendo das margens. Horta Seca, Lisboa, 26 Janeiro Tomba na coincidência descobrir que Tom Zé, este feiticeiro da minha língua, gravou para celebrar os seus 80 anos um álbum supostamente destinado a crianças, pega na minha mão que te mostro: «Sem Você Não A». As palavras dão corpo ao manifesto costumeiro de esfusiante criatividade. Não consigo parar de ouvir: ele se apresenta de f na mão para o colocar em afaga na vez de apaga. E depois o carinho revela a cidade de cada um. Ele há jardins infantis que, bem regados, inventam futuros. Oiça-se «O Forrobodó do ABC», um hino à palavra, portanto à edição. Isto sou eu, que oiço vozes e em tudo vejo lombadas. Possíveis. Horta Seca, Lisboa, 28 Janeiro Na feitura do livro, os momentos mais compensadores têm raízes nas primeiras leituras, a inicial e a seguinte, já de lápis de carpinteiro na orelha. Falhámos o prazo que nos tínhamos imposto para este «Anastasis», do Carlos [Morais José], cujo detalhe de capa, desenho do enorme Rui [Garrido], aqui se mostra, não por acaso. O livro não deixou ainda de me surpreender, parece brilhar no escuro. Sem fronteira de género, cruzando poesia e relato de viagem, aforismo e reflexão solta, leva-nos em peregrinação às fontes, aos lugares sagrados da mescla de civilizações que somos por esta altura. Para matar sedes, claro. Diz ele, já a meio, que «a primeira palavra desfez o mundo. Ainda hoje nos entretemos, com as suas irmãs, no trabalho de o recriar». Garanto que acontece nestas páginas, e tenho que inventar modos e maneiras de que não venha a perder no ruído (não é invariavelmente esse o desafio?). Possui uma poderosa voz poética, devidamente alheada de modas e outras práticas. O peregrino não foi sozinho, levou deus, que chama ao ininterrupto diálogo com o transcendente, encontrando nas plantas e nas pedras, no chão e no azul, na poesia, nas figuras concretas de hoje ou nas míticas de antanho. Onde quer que se encontre, está só. Estamos todos. E a conclusão dificilmente poderia ser outra. «Por vezes é o mal que sobra. É o que levamos para casa, nos bolsos da alma, sem o conseguir espantar. […] Não amamos: avaliamos; não usufruímos: possuímos para esquecer. Não há exorcismo. O mal será o leal companheiro de um percurso finito». Deixo-me pairar, com frequência, nas minudências tratadas com cuidados de jardineiro-cirurgião. Extraía daqui, com facilidade, um catálogo de descrições da luz, descrições das que fazem acontecer. Este livro pode bem mudar quem nele se atreva. «Cada dia tem a sua espuma própria. Rarefaz-se ao anúncio das sombras, esvai-se nos gestos hipnóticos da noite. Depois reaparece nos labirintos dos sonhos ou no encontro da vida com a morte.» Horta Seca, Lisboa, 31 Janeiro O escritor moçambicano, Ungulani Ba Ka Khosa, em polémica azeda com [António] Cabrita começa por me oferecer a estima, anunciar o respeito pelas pequenas editoras, para logo nos fixar sede «num botequim lá para as bandas do Bairro Alto.» E pergunta mais adiante, a propósito de disciplina de trabalho: «alguma vez te adjectivaram por teres uma editora a funcionar num botequim?» Curioso, o Ungulani achar que nos insulta por vivermos muito nas tascas, gostando de comer e beber. (E a sede não pode ter sede?) Não o adjectivarei mais, antes o convidarei. A ver se da próxima não nos põe num quartinho do Ministério de Economia. Horta Seca, Lisboa, 1 Fevereiro De súbito, como convém ao inesperado, imagens e palavras chegam dançando uma língua que fala do âmago, do ser. A Bárbara [Fonte] ofereceu esta pérola: https://www.barbarafonte.com/words Gosto de mãos, por nelas ver uma das janelas para o obscuro de cada um, mais do que ferramenta de possíveis. Contudo, aqui, o assunto cresce além dos membros amados, vai à violência e à morte. «As minhas mãos são mais velhas que eu», assim começa esta narrativa, com Debussy ao longe, que me transfigurou o dia. Poderosíssimo micro-espectáculo, como se a vida se medisse aos palmos.
António de Castro Caeiro Filosofia a pés juntos h | Artes, Letras e IdeiasUm itinerário [dropcap]O[/dropcap] João Paulo Cotrim com o anfitrião José Teófilo Duarte e eu, decidimos animar com filosofia o magnífico espaço da Casa da Cultura de Setúbal, às segundas sextas-feiras de cada mês. O João Paulo Cotrim, com o seu jeito, inato e trabalhado, para títulos, é o autor deste. Agora, temos como anfitrião o Carlos Morais José, que nos abriu a porta do Hoje Macau. Não se fará a transcrição do que tem acontecido e irá acontecer, até mesmo porque não temos gravado todas as sessões. O que lá se tem passado resulta de uma preparação dos temas em conjunto com o João Paulo Cotrim que não é mero entrevistador, por mais elevada que seja a prestação do entrevistador. O João Paulo Cotrim é um actor protagonista que comenta, resume, lança e relança os pontos que temos previstos no alinhamento e itinerário para cada tema. É disso que em certo sentido se trata: oferecer aos leitores do Hoje Macau aquilo a que os alemães chamam protocolo das aulas. As aulas dos seminários começam com um resumo da aula anterior. A partir daí retoma-se a própria aula. Dividirei tanto quanto possível o assunto de cada mês em quatro partes. Cada uma delas corresponderá a uma parte do protocolo da sessão inteira. Esta primeira procura esclarecer o sentido do título a pés juntos ligado explicitamente à filosofia. “A pés juntos” explica adverbialmente o modo de saltar, entrar, jurar. Mas também podemos atirar-nos de pés juntos, num movimento ofensivo, para cair em cima de um adversário. Ou, apoiar pés juntos, para esticar as pernas e nos afastarmos do fundo do mar, para vir à superfície. A expressão dá ênfase ao sentido do verbo. O que será então a filosofia a pés juntos? É um modo como podemos abordar a filosofia. Fincar pé e, enfaticamente, procurar saltar para ela, entrar nela, num movimento que vai na sua direcção. Pode significar, também, se a tomarmos como sujeito, que é a forma como ela acontece, ao assaltar-nos ou ao entrar dentro de nós. As sessões a decorrer na Casa da Cultura de Setúbal terão este mote. Soltaremos filosofia para que nos ajude a saltar para o âmago de temas que nos assolam. Despiremos a sua roupagem técnica. Deixaremos que cerque, abalroe e invada tudo quanto nos preocupa. É assim também que lidaremos com ela. Como se fosse um animal que nos serve de defesa e, por isso, não pode estar completamente domesticado. Terá de encontrar vestígios, farejar pistas que tentaremos perseguir. A sua presa será sempre emboscada. O sentido que se persegue a pé juntos com a filosofia terá de dar caça a cada tema das nossas conversas. Educação? A educação é uma das presas a que daremos caça. Agostinho da Silva dizia que se devia banir o termo e, consequentemente, o sentido que lhe dá compreensão. Dizia ele que educação vinha do latim ex-duco que quer dizer conduzir de dentro para fora. Portanto, educar pode querer dizer levar para fora do caminho interior de cada um. Podemos pensar na diferença anulada por uma versão do ensino que procura uni-dimensionar cada pessoa, homogeneizá-la, planifica-la. A sua proposta para o ensino era expressa na palavra instrução. In-struo em latim quer dizer construir a partir do interior. Portanto, a aprendizagem é uma compreensão da essência de cada pessoa, o seu modo de ser, como é suposto existir com as suas possibilidades mais radicais. A possibilidade mais radical de um ser humano será a técnica ou a poética e a prática. Agir é importante. Produzir é importante. Criar é importante. Não saber o que quer que seja assim sem mais para ter sabido, mas para intervir, sobretudo, sobre o próprio. Fronteiras As perguntas mais básicas da filosofia interrogam sobre a situação em que cada um de nós se encontra. A mais básica é onde estamos ou onde somos? Em que tempo vivemos? Quando passamos por aquilo pelo qual passamos? Com quem fazemos vida? O que fazemos aos outros, sob a nossa acção e o que os outros nos fazem deixando-nos vulneráveis às suas acções? Todas as perguntas desenvolvem a questão fundamental pela situação existencial. A situação terá de começar por uma explicitação espacial, regional, local, fronteiriça. Erigimos barreiras entre os problemas que temos em lidar com determinadas pessoas e assuntos que jazem fundo nas nossas vidas. Mas também destruímos muros. Abrimo-nos aos outros tal como nos abrimos para nós, quase sempre por causa dos outros. Também traçamos fronteiras físicas, geográficas naturais e artificiais, linguísticas. Há entre quem cada um de nós é no seu interior e o meio que o envolve fronteiras. Há o interior e o exterior. Há espaços privados com o direito reservado de admissão. Há espaços interditos, privados. Há espaços públicos. O próprio corpo no seu interior tem a pele como fronteira para o mundo exterior. E entre o interior da nossa alma e o exterior que é o nosso corpo não haverá também barreiras que se erigiram e podem ser intransponíveis se não fizermos adequadamente a pergunta como somos alma e corpo, ou mente e físico? Justiça Dos problemas sempre decorrentes, a definir como a filosofia entra a pés juntos no que procura compreender, por ser opaco e nós querermos obter transparência, é o da justiça. Sócrates dizia que é melhor sofrer a injustiça do que a cometer. Dizia ainda que, uma vez tendo nós cometido a injustiça é melhor pagá-la do que ficar impune. Aparentemente, Sócrates defendo o mundo às avessas. Não queremos nós “fazê-las”, primeiro, antes que no-las façam a nós? E tendo nós sido injustos não estaremos continuamente a invocar pretextos e desculpas que tendem à atenuar o que fizemos de mal aos outros, com o fim da nossa absolvição? Ser justo ou ser injusto, sofrer a injustiça ou obter justiça implica uma relação intrínseca, não anulável, ao outro. É por sermos uns com os outros, antes de tudo o mais, que, mesmo sem o sabermos e, apenas pelo facto de existirmos, podemos fazer os outros sofrer. Ou porque sem querer os ignoramos e não lhes ligamos nenhuma. Ou porque dizemos da boca para fora uma palavra ao próximo. Impensada uma palavra pode ferir. Ou porque uns se deixam aos outros para ficarem cada um deles com outros ou sozinhos. Seremos nós vítimas de todas as injustiças ou os algozes das injustiças que infligimos aos outros? Identidade Talvez devêssemos falar de identidades. Reconhecemos uma coisa, quando dizemos a sua identidade específica. A identidade de uma coisa dá-se na identificação dessa coisa no que ela é, por onde é que ela vem a ser o que é. Um rectângulo de madeira, pintada de azul com 2.10 m de altura e 70 cm de largura, perpendicular ao chão, não permite reconhecer a porta de uma sala. Nem tudo o que é rectangular é porta e há portas que não são rectangulares: ser de forma rectangular, ser de madeira, ser azul, ter determinadas medidas são os conteúdos específicos da porta, mas o ser da porta não “existe” nesses conteúdos. A identidade da porta é o que faz a porta ser porta. É abrir e fechar para deixar entrar e sair, é libertar e prender, é deixar preso num interior ou permitir sair para o exterior. Os infinitivos nucleares: abrir e fechar, deixar entrar e sair, são o ser da porta. Não são conteúdos presos aos componentes da porta. A identidade da porta é reconhecida, quando, ao olhar para os seus componentes materiais, a porta se dá reconhecer pela sua compreensão. Compreender uma porta é saber poder intervir nela, accionando efectivamente a possibilidade que oferece. Como identificar uma pessoa? Será o humano definível como se define um objecto técnico, uma peça de vestuário, um artigo ou instrumento? Os antigos diziam que a identidade pessoal é diferente da identidade natural ou técnica. Ser eu tem uma identidade no próprio, no mesmo, que me permite reconhecer ser eu próprio e não apenas a abstracção animal racional. Corpo Nem sempre o corpo foi compreendido em oposição à alma. Em Homero há duas palavras para dizer o corpo vivo e o corpo morto, como talvez possamos compreender que um cadáver é um corpo morto. O que qualifica a compreensão de um corpo morto, sem alma, abandonado pelo espírito? Como podemos compreender o corpo como um organismo que alberga aparelhos, que por sua vez, são feitos de órgãos, como compreender o corpo como mecânico e, por outro lado, como o horizonte no qual cada um de nós se encontra consigo, com a vida e com o mundo, com o mundo e a vida dos outros? Somos nós do tamanho da nossa altura ou do que vemos? Estamos nós apenas no interior das fronteiras do corpo ou estamos sempre fora de nós, a olhar já para as coisas como que a tocar-lhes e não para as lentes dos óculos ou de contacto nem para a superfície ocular para lá da qual começamos a ver? E quando adaptamos próteses, guiamos veículos, manobramos máquinas, usamos utensílios não estamos antes a intervir no próprio corpo como aquém e além de nós mesmos? Não nos apropriamos também como se fosse uma segunda natureza, um segundo corpo, de todos os instrumentos que nos permitem uma intervenção no mundo? E o corpo do outro é o que vejo apenas anatomicamente ou é de quem eu tenho medo e me terroriza ou o que me atrai no outro, que eu desejo, que eu amo? E o meu corpo para o outro sou eu reduzido de mim no que sou ou sou isso mesmo apenas, o meu corpo, veículo de terror e de desejo? Criação O sentido do ser na antiguidade era expresso pela natureza que faz nascer. Ela própria está continuamente em movimento criacionista e é a partir dela e para ela que tudo nasce e morre. A produção, poiêsis, o produzir, poiein, é a metáfora viva do ser. Criar é uma forma radical de ser, fazer existir, fazer ser. A obra de arte e a natureza interrogadas na sua origem têm uma concepção de criação. Criar é por um lado fazer artística, técnica ou profissionalmente algo, mesmo até na genética e na sua engenharia se podem criar seres humanos. Mas esta criação é feita a partir do que já existe. Não é formar é transformar. Não há criação a partir de nada, diziam os antigos: ex nihilo nihl fit. Mas não é a criação, pensada a partir do nada. Do nada que não existia, passa a existir, pelo menos, algo. Ainda assim, é da massa informe que surge a forma, do que estava mergulhado na noite do ser que passa a despontar o dia e todos os objectos que possam ganhar contornos e ser definidos, do caos que tudo engoliu de um só trago passa a haver o cosmos, a ordem que ordena e organiza intrinsecamente todas as coisas que são, porque age sobre si própria a partir do princípio formador das coisas que são. A criação é decalcada da conservação. A realidade é mantida, repetindo o que lhe esteve na origem, quando ainda não era nem nada de real ainda tinha passado a ser. Cidade É um dos lugares específicos em que o humano vive. É o seu sítio natural se não fosse aparentemente artificial relativamente à paisagem que achamos que encontramos no seu estado virgem: o campo, o interior e o litoral, as diversas morfologias geográficas são pensadas em contraposição à urbe. Como é uma cidade sem alcatrão, estradas, ruas, travessas, calçadas, avenidas? Como são as cidades de Portugal sem calçada portuguesa? Mas a cidade não é apenas a morfologia artificial que transforma a natureza. A polis era o próprio estado. Estruturalmente, cada ser humano era a cidade inteira, não apenas os seus contemporâneos, os seus concidadãos, mas os seus compatriotas das gerações passadas e vindouras. A cidade nasceu de uma aglomeração de seres humanos ou, antes, não será porque cada ser humano é já todos os outros humanos que se deu a conglomeração e o ajuntamento? E a comunidade complexa da comunidade ou da sociedade dos humanos que habitam o planeta terra não terão uma saudade da cidade de Deus ou daquela outra cidade que é um projecto e talvez uma construção do humano, mas que alberga o universal humano de que todos de nós, coletiva e individualmente, somos portadores?