O Delírio em Gente de Adriana Crespo

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, que vos confiarei um segredo guardado em acalento; e se quereis que vos diga, a bem da verdade, mal bastante vem à cena literária que tão bem se continue a guardar este segredo. A Adriana Crespo (digo-vos, em surdina, a vós, que tanta experiência tendes nisto de guardar as letras em sereno recolhimento, até que despertem como revelação ao mundo inteiro) tem discretamente espalhado em torno as centelhas de uma escrita em constelação. Personagens variadas, que se cruzam, escrevem, inter-relacionam, erguendo uma cena dramática a que o leitor assiste, ao longo dos anos, de um modo poliédrico, à medida que os mosaicos da vida destas personas, ditados por diários, cartas, pensamentos, poesia, vão sendo desvelados por A.

Um metanarrador, divertindo-se, vai iluminando mais uma peça deste mundo ficcional à solta, que tem o longo título de «O Inaudito, Fabuloso e Incrível nunca antes visto Divertimento de A. OU A Aventurosa Vida e Fabulosas Obras de Orlando I, Françoise M., F de Riverday, Maria do Mar, António Pizarro e Artur B.». A nova peça deste engenhoso divertimento de A. chama-se «Alma de Rapariga» e corresponde ao «Diário de F. Riverday», entre os anos 1980 e 1981.

Os diversos livros que vão surgindo como interlúdios, numa obra maior, são parte desse metatexto dos divertimentos de A., autora/personagem/espectadora que vai os recolhendo, prefaciando, comentando. No prefácio a «Alma de Rapariga», escreve A., num olhar de mise en abyme, sobre os livros, escritas, que a cercam:

Quanto a mim, deveria, em vez de escrever notas e prefácios nestes livros que fui guardando e que vou escolhendo ao acaso e ao sabor de uma obscura necessidade, fazer qualquer coisa mais organizada, mais legível e com certo critério. Mas não me sinto capaz. Orlando I continua a escrever e eu, quando olho para estas vidas como poderei saber por onde começar, ou que sentido trazer a essas tramas.?

«Alma de Rapariga» é, assim, mais um capítulo deste delírio em gente que Adriana Crespo vem construindo em torno das figuras de F. Riverday, Maria do Mar, António Pizarro, Orlando I, Françoise M., também A., que, no seu conjunto, constituem uma amititia literária, uma constelação de poesia, crítica, pensamento, diários, cartas, que formam o desenho impreciso (como, aliás, em qualquer constelação), mas até por isso deslumbrante, deste divertimento: uma biografia múltipla, com alguns factos, mas essencialmente sem eles, que se transforma, por vezes, numa colecção de esgares e sensações expressionistas.

Aos poucos, o leitor vai percorrendo essa luminosidade que pontua o livro, os livros, e que deve ser lida sempre em dois planos; por um lado, o contorno impreciso de cada estrela bruxuleando, por outro a leitura das linhas, dos desenhos, que a posição de cada estrela vai formando, relativamente às restantes, ou seja tendo em conta o relacionamento das diversas personagens, seus escritos, seu lastro biográfico e bibliográfico. Sempre em dois andamentos: a leitura do texto per se, e também do metatexto, em que cada livro simboliza uma peça única do mosaico.

«Alma de Rapariga» corresponde ao diário de F. Riverday, «rapariga de alma de índio, indomável e selvagem», que chega às mãos de A, com o expressionismo dramático e entrecortado que o caracteriza. E tal como nós, leitores, que temos o diário entre mãos, A. vai reconstruir a figura de Riverday, à medida da sua, também nossa, leitura. Mas sobressai certa indefinição indecisa, nesta construção de personagem a um segundo nível:

O que se imagina não é o que se vê. É mais intenso e quase mágico do que tudo o que pode ser visto, porque a visão interior arrasta sempre consigo […] uma aura difusa e uma carga de esplendor.

É pelo diário, contado na primeira pessoa, que conhecemos F. Riverday, esta rapariga que foge de casa, para se procurar, seguindo viagem com uma companhia de circo. Os traços que a definem vão sendo vislumbrados à luz do que é contado nesta narrativa cruzada de diários e pensamentos. Vamos tendo nota das suas leituras (Nietzsche, como teria de ser); dos seus filmes: Andrei Rublev ė o paradigma; das suas músicas: Bach, como seria expectável; das suas companhias: Orlando I, que lhe dedica um poema citado no prefácio de A., e que convoca a percepção do mundo de Caeiro:

Observas tu, pequena Riverday,
que os ramos andam pelos céus
como os vasos sanguíneos
pela tua carne? Ou que qualquer coisa
de rosto, no eixo da simetria
da folha do plátano?
Minha querida amiga
que te moves entra a paradoxal inocência
de pensar nas coisas
pela primeira vez.

Também de outros amigos, companheiros de ficcionalidades, se constrói o livro: Maria do Mar, António Pizarro, de passagem, assim como os artistas de circo, em périplo pela Rússia, Clowns expressionistas de ecos brandonianos, loucos, desamparados: os que se encontram fugindo, num mundo à parte de brilhos e esgares: a rapariga de maillot, o palhaço barrigudo, a contorcionista… A vida, a morte o amor, Deus, o ser: os grandes temas são afinal, sempre, os únicos temas. «Quem era eu quando nasci?», pergunta-se F. Riverday no fluxo deste fervilhar que une imagens, dados biográficos, conceitos filosóficos. E a dado momento, uma dúvida explícita, que percorre, no entanto, implicitamente todo volume, nas reflexões, nas perplexidades, nas entrelinhas, nas referências: «Poderá inventar-se uma nova ideia de amor como uma nova ideia de deus?

Poderá descobrir-se alguma coisa?». Sim, alguma coisa se descobre na filosofia perene do diário: o conluio do corpo, esse lugar concreto, presença num espaço, e a sensação de infinito:

Entre o infinito do corpo e o infinito das estrelas, uma mesma corda se tende, abstracta, real, impensável. Tudo o que preciso é de fazer arder a ideia de deus até à brasa, até ao carvão e até à cinza. Começar a amá-lo como um escaravelho. E só depois venerá-lo como a uma erva, de rosto no chão.

Por isso, a náusea, a incapacidade de não suportar o corpo, que há-de, inevitavelmente, terminar na morte, mesmo que o corpo nunca queira morrer: «é uma luta tremenda e monstruosa. Uma luta de titãs impossíveis de imaginar, com forças extremas e incríveis.». O livro edifica-se assim, ao longo das páginas, com trechos de vida, pensamentos episódios, um percurso entrecortado, até atingir esse momento, «esses cristais do tempo que acontecem, quando sem tempo…de repente a vida inteira parece que voa, como um pássaro.».

Um livro belíssimo (que além do texto, incluí impressas, em papel vegetal, vinte e três ilustrações, que antecedem os capítulos, supostos desenhos pelo punho de Riverdat), filosófico, e com um lastro de tristeza, na sua tremenda lucidez, que, lido como uma peça única ou como uma estrela ocupando o seu lugar numa constelação de personagens, textos, livros, imagens que compõem o universo de Ariana Crespo, acrescenta um ponto luminoso à literatura contemporânea.

Adriana Crespo, Alma sw Rapariga, Lisboa, edições sem nome, 2019

2 Dez 2019

Para lá do horizonte da angústia

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, não dos queixumes, mas antes dos temores e inquietações sussurradas pelos livros que me passam pelas mãos. O livro não é simplesmente coisa que se leia com mais ou menos prazer, menor ou maior proveito. Pois sim, meu secretário, eles oferecem-nos resistência: uns são fluidos e deles se sai como se entra, com facilidade relativa, portanto; mas outros carregam material de fibra, de antes quebrar que torcer.

Se neles embatermos de chapão, ganhamos mazelas, guardamos marcas, mossas, arranhões; por vezes, cicatrizes que nos atravessam a vida. Arregaçam as mangas da camisa, com olhar enviesado, e sabemos bem que, dali, não escaparemos incólumes ao meliante: esses livros ameaçam-nos, exigem-nos a alma ou a vida: nós damos as duas, embrulhadas, como se fossem uma só, e entregamos, já agora, a bolsa, também. Fazem de nós o que querem, gato sapato.

Assim é, tal e qual, meu tão certo secretário. Pois, notai: a minha intenção era aqui confiar-vos mais um livro de poesia, como de uso, mas foram reeditados, de uma penada, num só volume, «Tanta gente, Mariana» e «Palavras Poupadas», de Maria Judite Carvalho. Este punhado de contos ( ou de novelas e vários contos) podem mais do que eu e a minha vontade, pelo que não poderei deixar de vos entregar em confissão, meu secretário, sempre fiel, os padecimentos, sinais, que me provocou o volume. E foram tantos….

Comigo, é certo, ainda assim, os livros não fazem muita farinha. A leitura é uma guerra e eu não sou de tréguas fáceis. Com os demais leitores, correm talvez as coisas de outra feição, que também os há cobardes, cheios de mesuras, punhos de renda e rodriguinhos. Leitores haverá que, mesmo que um livro lhes dispense tratos de polé, e lhes aplique um murro no estômago que obrigue regurgitar a vida, as memórias, as crenças, tudo em borbotão, se deixem ficar, intimidados; e ao livro que os deixou derreados: nem uma página se lhe despenteia, nem um sublinhado a arranhar-lhe as folhas, nem páginas dobradas; sequer capas esfarelando-se nos cantos, a arquejar. Ah, meu tão certo secretário, comigo não: livro com que ande eu à bulha, fica com marcas no corpo, que não sou de apanhar e não dar troco. Mas deitemos água pouca em muito fogo, para um tudo nada mais inflamar. E ensino-vos já aqui de uma penada um método infalível para aferir do gosto literário, sem que a canga da opinião curve os ombros derrotados; sem a necessidade de vos confiar a titubeante tradução frouxa por palavras do prazer de ler (ou da sua dor), sem o uso de uma mancheia de adjectivos puídos, coçados por terem servido de casaca pobre a tantos outros livros. Como fazer fazer prova da marca que nos deixa um um livro, sem gasto de tinta ou saliva, que, ela por ela, são afinal a lã rafada da mesma meada, a farinha agra do mesmo saco.

Como fazer a prova de que um livro nos marcou? Marcando-o, também: dobrando-lhe as páginas, sublinhando-o, com resposta viva e rápida a cada estocada, cada golpe que ele nos aplica. Por exemplo, o exemplar desta edição novíssima de «Tanta Gente, Mariana» está feito num oito, como quem diz feito num fole, cada página a sua marca, seja para assinalar uma metáfora certeira, uma descrição, a singeleza de um adjectivo pungente no sítio exacto, a construção de personagens e ambientes tão densos. Livro que nos golpeia assim, tem de receber a paga.

Quase só mulheres, tristes até ao imo, tão sós (e tanta gente, à volta, tanta gente), habitam estas páginas massacradas. Como é possível que estas personagens, no fundo nomes grafados numa folha, ganhem tanta força que sirvam de diapasão, modelo amargo, para deformarmos o mundo em torno? Poucos livros comovem como este, mas não pelos grandes dramas, a grande tragédia, ou impossíveis amores, mas pela consciência de que fica sempre dentro do peito um não sei quê, que nasce não sei onde, vem não sei de onde, e dói, sabendo bem nós porquê: é, sim, por um fascismo entranhado que ensombra a narrativa, mas não o político, às escâncaras (quando é assim, pressente-se bem, e personagens e leitores, a par, põem-se em guarda); o fascismo que bafeja o livro, e se insinua, nasce dos quotidianos pobremente tristes das personagens, da prática, da vida baça, do dia-a-dia abafado, em que habitam. Um fascismo de costumes bem enraizado no viver das personagens (medo, solidão, vidas sem saída, infelicidades crónicas, bem profundas). E porque são essencialmente mulheres as personagens do livro, esta mesma tristeza atravessando os contos de Maria Judite Carvalho têm «também aquela beleza da tristeza de se saber mulher», como na canção do Vinicius. E angustia esta tristeza branda, mas escavada no peito, sem grandes histórias para contar, só a pequena e aflitiva tortura de se viver…

Poucos autores transmitem, como Maria Judite de Carvalho, esta angústia amena que nasce com a certeza de que há sempre ainda mais por onde se sofrer. A amargura triste e mediana é o horizonte das páginas do livro; mas bem se sabe, meu secretário tão certeiro, a linha do horizonte é uma miragem sempre cada vez mais longe. Por mais que se ande e caminhe, fica-se sempre ainda aquém. É que a terra é redonda como o sofrimento: não tem início nem fim.

Quase todas mulheres ao longo dos contos: Mariana («Também deste por isso. Há gente que vive setenta ou oitenta anos, até mais sem nunca se dar conta. Tu aos quinze…todos estamos sozinhos, Mariana. Sozinhos e muita gente à nossa volta. Tanta gente, Mariana! E ninguém vai fazer nada por nós. Ninguém pode. Ninguém queria se pudesse. Nem uma esperança.»), ou Arminda, «menina, apesar dos seus quase quarenta anos», ou Emília e também a sua mãe, ou Graça, ou ainda mulheres sem nome, feridas, humilhadas pela vida, desbotadas e incolores: «Era uma mulher alta, muito branca, de fartos cabelos claros, um pouco flácida já e desbotada, incolor, como uma freira reclusa.»

Vidas frígidas de mulheres-satélite, gravitando em torno de outros centros, que não elas, ambíguos e à deriva, também, por sua vez; por vezes, esse centro corresponde a um punhado de homens baços, de vidas igualmente turvas e macilentas. Tristes, desfocadas: Armindo, Duarte, e outras personagem, homens, também, sem nome…

Que fazer desta comoção tão forte por pessoas de papel, nomes impressos na página que tão bem sabemos não existirem? Sim, tendes razão, meu tão certo secretário: é mesmo assim, a suspensãozinha da tal descrença, consabida, aquele momento em que nos quedamos cegos pelas letras, deixando de as ver, para somente confirmar, lá por trás, o real a desabar. Mas mais amargura provoca este desalento que vem de manso do que grandes tragédias: Aristóteles afinal pouco percebia da poda… é a impressão ao de leve, subtilmente crescente que corrói e leva, sim, à catarse e não necessariamente a anagorisis que conduz ao pathos. Cada personagem de cada história do livro, seu sofrimento, é um poço que se vai escavando cada vez mais fundo.

Que dizeis, meu tão certo secretário? Que comecei por insinuar que de pouco servem as palavras estafadas, ou as metáforas, para justificar o apreço por um livro? Que bastaria exibir as marcas que nele deixamos para atestar as marcas que ele nos deixa? E que esta figura de estilo que diz que não vai dizer o que afinal está dizendo é uma espécie de antífrase fácil? Pois sim, tendes razão, que bastaria o regozijo, sem redundâncias, por a editora Minotauro (Almedina) estar resilientemente a reeditar as obras completas de Maria Judite Carvalho. É uma felicidade poder ler esta tristeza mansa e profunda, até ao âmago, que sobrevém aos seus contos.

Maria Judite de Carvalho, Obras Completas [Tanta gente, Mariana/As palavras Poupadas], Lisboa, Minotauro, 2019

23 Set 2019

O fio que nos prende à vida

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, papel em que os meus fantasmas desafogo. Nunca vo-lo confiei, que nem tudo o que me cruza o dia a dia há-de, pois, desaguar nesse leito com que me tolerais, contrafeito, mas, em tempos, um infeliz, desses sem dentes, à cata de beatas com que entreter os lábios, confessava a outro que tal, cúmplice nas vidas mal vividas: «Isto há dias que parecem noites». Aquilo colou-se-me ao ouvido, aconchegou-se-me à memória e ficou lá a dormitar até espertar hoje. Pois não sejais impaciente, meu secretário, toda a vez mais incerto: se vos falo de poesia, acolheis distraído o que vos digo, enrugais-vos inquieto e mal contente, esquivando-vos às palavras, desatento. Mas falando-vos de infelizes aos caídos, já vos excita a curiosidade mórbida e tornais-vos hospitaleiro, cheio de mesuras: todo ouvidos. Há sei lá quantos anos trago a frase na modorra da memória para logo hoje me roer a dúvida do seu significado: metáfora de um dia escurecido, quase negro? De dia longuíssimo como uma noite de insónia, com o tempo pingando, como ruído de fundo? Ou um dia de farra e festa, que nem noite até de madrugada? Que sei eu das curvas da vadiagem pelas noites que ultrapassam muitos dos nossos dias caseiros, comezinhos… O que há a dizer é que a frase se me alojou na memória, como um grande verso de um bom poema, perdido na deslembrança. Tudo isto, para vos confiar que há pelo mundo vidas, frases, que parecem versos. O contrário é também verdade.

Não vos impacienteis, meu secretário, que não vos retenho para vos falar da honesta poesia do dia-a-dia, nem para vos dizer, como o disse Pimenta (eu sei, que me estou a requentar) que há tanta poesia «numa rosa como numa chouriça.». Só mesmo para vos dar conta, a despropósito, que saiu a obra reunida de Rui Caeiro, pela editora Maldoror. Chamaram-lhe «O Sangue a Ranger nas Curvas Apertadas do Coração», verso resgatado do livro «Sobre a Nossa Morte Bem Muito Obrigado», um dos tantos escrito num «tecido em carne viva — única coisa em que verdadeiramente dá gosto escrever»

Agora está aí tudo à mão de semear, sem precisão de andar à cata de edições perdidas, para as repescar a custo: a obra toda disponível, como um naco de vida a ser desfrutado de uma assentada. Numa golfada: a sofreguidão dos dias todos juntos, mas sem a temporalidade arrastada que se exigia das plaquettes e pequenos livros, esparsos, um a um, com a calma dos anos passando, dos tempos que se seguia ao tempo. Toda a poesia, todos os escritos, todas as histórias, todos os textos. Num volume só, esta modéstia da gramática, a contenção serena, claro irónica, de quem vigia os maneirismos de estilo, dando-lhe rédea curta, refreando-o, alcançando, como poucos, aquele fundo de genuinidade de quem traz as palavras coladas ao corpo: versos, frases, palavras, pensamentos, diálogos (pequenas histórias: e que histórias!) ao virar da esquina da página; esta maneira de escrever não como quem escreve, mas como quem pensa, repara, desconfia e, principalmente, conversa. Como se a cada momento (num encolher de ombros, que a literatura é como a vida, levá-la a sério não é levá-la a peito, mesmo ainda ao peito), se dissesse: estou aqui e reparo, penso-o, e digo-o, como quem escreve, discorrendo, discutindo. A poesia mostra-se como se escrevendo a vida, esta vida que todos temos presa por um fio («Um fio que te prende à vida. Que faz o seu trabalho, que faz o seu possível».). Em pequenas edições de pequenas editoras ou mesmo em edições de autor; livros com pessoas, vivências, presenças lá por dentro, e com destinatários, tantas vezes, à conta: por genuína vontade, é certo, de se manter à margem de fogos de artifício literários, mas também por descobrir a poesia como outra coisa: acto de reparar, de saber, de pensar, de conhecer (de nos sabermos sempre no presente anões aos ombros de gigantes, mas nem por isso maiores), mas principalmente ser capaz de fazer da sua poesia uma dádiva a amigos, dilectos leitores, uma espécie de prolongamento do acto de dialogar, conversar. Aliás, nada de especial, ou de excepcional, que

«falando da vida dos poetas, não esquecer talvez o principal, que é tantas vezes o mais comezinho: algures assim como que o ruído de uma torneira que não deixava nunca de pingar– mas isso também não era coisa que metesse cobiça, ou era?».

Escrever como quem vai tertuliando dúvidas, perplexidades: os achados de quem tanto «leu, que tresleu», como lhe diria a Tia Carolina, naquele arremedo de prefácio, ou lá o que é, no livro «Baba de Caracol», organizado em três partes, «qual delas a mais monosprezível.». Já nesse livro, as palavras não eram só coisa que se dissesse, mas um lastro que se colava à pele, provocando, claro, comichão na vida:

«Todos os dias logo pela manhã/as palavras// a cansada surpresa de estar vivo/ as palavras» e depois, às vezes, acertar: «aproximar do papel em branco, igual à criança que não conhece da vida, senão o que mal ouviu dizer e tudo o resto adivinha– e acerta»

Vem-nos a certeza de que dizer e viver se encontram, não em equilíbrio (isso é por demais frequente: as palavras equilibrando o mundo como podem, com esforço e esmero, tantas vezes), mas no mesmo prato da balança, pendendo pois para o mesmo lado, uma acrescentando peso à outra: talvez por isso a poesia ajude a afogar tantas vidas.

Da morte, da vida, dos gatos, do gato, os amigos e outros bichos, da doença, das memórias, (a memória, mesmo a mais realmente biográfica, é sempre uma bela ficção), histórias e diálogos, das falripas de prosas, pouco de poesia e literatura ( os poetas, quando falam entre si não falam de literatura, antes de dinheiro), do amor «sem misticismos», e de novo da morte, de lugares e de não lugares, do corpo, de mamas ( não de seios), é sobre tudo isto que connosco conversam os livros que fazem este livro. E ainda de Deus. Muito se conversa sobre Deus, que é, no fundo, o fantasma obsessivo que assombra os ateus: é que não acreditar nele não lhe devia dar o direito de nos tramar a vida:

«Saber se morreste ou se nunca exististe é outra falsa questão. Pó é coisa que sempre houve, vá lá a gente adivinhar-lhe a origem»

Vinde, cá meu tão certo secretário, quero falar-vos ainda falar da sorte: muitos destes livros (metade? mais?) não os acolhera sequer em minha estante, até agora. Não me tinham sido destinados: resgato-os, de uma vez, ao lugar que lhes pertence. E sim, meu tão certo secretário, tendes razão… falta lembrar o prefácio tão justo e íntegro, admirável, que encabeça estes livros todos de uma vida, e também a capa, belíssima, e o grafismo exímio, tudo, à uma, da responsabilidade de Luís Henriques, mas não vou fazê-lo, meu secretário. Nem posso. Há o pudor que não deixa, em público, elogiar o trabalho dos amigos, principalmente daqueles que já vêm ainda doutras lides, mais antigas até que antigamente. Cito só o final do prefácio do Luís e fica cumprida a incontornável obrigação da referência:

«Para que raio serve uma conclusão no início do livro? Afinal de contas, estas linhas são uma antecâmara e a epígrafe há-de preparar melhor a leitura. Depois vem o rumor do tal fio. Dele, nosso. É dar-lhe ouvidos, para não entregarmos já tudo ao esquecimento.»

Pois claro, meu tão certo secretário, assim me calo, e já vou tarde: há que «usar o silêncio como generosa estratégia», como se diz na epígrafe, do Changuito, escolhida como um ante-prefácio que encabeça o livro, e que nos manda ouvir mais do que falar nestas conversas que os livros, neste livro, connosco travam.

Rui Caeiro, O Sangue a ranger nas curvas apertadas do coração, Lisboa, Maldoror
5 Ago 2019

Uma respiração sustenta-se

[dropcap]A[/dropcap]onde ides nessa lesta ligeireza? Ainda agora aqui estáveis, mas em piscando os olhos, já vos ides? Vinde cá, meu tão certo secretário, que não vos faço testemunha de queixumes ou lamentos, outras penas, mas desta admiração franca que sempre aqui venho escrevendo. Vinde cá, papel, em que as minhas leituras desafogo, para que vos diga que o livro se chama «Um quarto em Atenas» e que o escreveu Tatiana Faia; sim, meu tão certo secretário: é bem a prova de que a poesia encarrilha em regras próprias, muito suas, nem sempre facilmente apreensíveis. Encarreira em percursos que nem sonhais, quando faz do «mapa do mundo» «a sua miniatura». Tal como se diz da personagem/mulher que habita um dos mais fortes e densos poemas do livro (e por que não dizer belo, se de impressões de leitura, somente, aqui se trata?) intitulado «Cinco Visões de Paraíso», torna-se, também, ao correr do livro, indistinta «a fronteira entre a mente e o corpo», quando nos poemas se anota, a cada verso, «a distância/ entre lacuna e entendimento». São estas as manhas da grande poesia: provocar tensão entre o nosso modo de reconhecimento e a percepção da linguagem do poema, dos mundos que ele resgata e recupera, num mapeamento de percursos, em profunda irrequietude.

No final de «Um quarto em Atenas», num texto dedicado a agradecimentos que se tornam numa arte poética, breve, desinteressada, diz-nos Tatiana: «Nunca se sabe bem onde um poema começa, a barreira entre pensar sobre literatura e escrever é sem dúvida uma ténue parede através da qual se pode conversar.». Assim também ler: há certos poemas cuja leitura torna indivisa a barreira entre ler e pensar sobre que coisa é um poema; de que modo produz a poesia os seus significados, melhor, o seu assombramento: aquela força quase física de uma tensão que começa a balancear o texto e que abala o leitor, o perturba, desinquieta.

É equilibrado na barreira ténue entre «lacuna e entendimento» que o leitor reconhece, estranhando, os espaços do poema (uns físicos, outros mentais), as referências, os autores convocados, poemas, filmes, pessoas, personagens, tempos que se perpassam. E, essencialmente, um ponto de vista: os sítios de onde se olha («esses lugares todos/onde para lá do acidente convergimos») para o lugar que se olha. Este é um livro feito de territórios, locais de vigia sobre o mundo: janelas, afinal, para outros lugares, que se observa, com a nostalgia irónica de quem analisa em distância e explode nas suas inquietações e nervosismos. Um processo em tudo similar ao que se diz do grito de Munch, que, afinal, não representa, simplesmente, um homem a gritar, mas «um homem a tentar conter/como as barreiras de um rio/ o grito de tudo o que o rodeia». Será isto. A tensão do grito desta poesia resiste na busca de contenção de tudo o que a rodeia, também.Sim, meu tão certo secretário, tendes razão: estou a roubar versos, tão somente, para dizer dos poemas aquilo que quereria dizer; uma forma, eu sei, de os canibalizar.

Mas canibalizar o verso alheio é o mínimo que podemos fazer a um poema, deformando-o, torcendo-o, até que ele nos diga aquilo, meu secretário, que gostaríamos de ter dito. Que mais podemos fazer com os poemas, se não isso: usar-lhes os versos, como um canivete suiço, para esventrarmos um pouco o caroço do nosso próprio pensamento de leitura?

Nesse texto no final do livro, Tatiana diz que uma vez tentou «explicar a um crítico que [mantinha] o hábito questionável de usar pessoas que são parte da [sua] vida para escrever.».

Enumera-as e são várias; assim como as diversas referências, modernas atravessando as clássicas, que falam nestes poemas sempre longos, a desafiar a tensão que pode atingir a língua de um poema; escrever assim é canibalizar, incorporar, absorver pessoas, textos, vidas. Até os locais e datas (paratexto que acompanha muitos dos poemas) se tornam, no livro, itinerários, não dos lugares onde a autora esteve, e onde escreveu (isso pouco nos interessa), mas dos ângulos de onde se olha a parte do mundo em que não se está, sublinhando a errância — nostalgicamente irónica –, como um fio condutor destes poemas. Como se diz, a dado momento: «a mais absoluta nostalgia/tem determinado todos os poemas.».

Duas referências assombram o livro, acima de todas as outras: Jorge de Sena e Ruy Belo assomam não só como autores citados, expressamente ou camuflados ou aglutinados, mas essencialmente como um ângulo de visão, um ponto de vista: o ponto de vista da distância, seja nas perspectivas sobre o tempo detergente (sempre o nosso), onde nunca foi possível o puro pássaro, seja pela ditosa pátria amada, em que ninguém merece ter nascido. O longo poema «Retorno, 2016», de que cito o final, é bem o exemplo desta errância de onde se olha, por exemplo, para o país:

[…]
« e um poeta com menos discernimento
neste país tão europeu que se enche
de painéis de publicidade em inglês
como selvas se enchem de vegetação
e certos quadros da renascença italiana
se enchem de cabeças cortadas

alinharia aqui os três fs e concluiria
que não tem sido fácil calcular a distância certa
que nos pode salvar do orgulho de estar sós
sem grande artifício há no coração desta
bela cidade uma enorme praça de touros
a ternura desarmante e sem dentes
de todos os empregados de mesa
um falo gigante num dos parques principais
e a ruína esfomeada de tudo o que cresce ou não cresce à volta

e o poeta que esta noite fechar a sua janela sobre o tejo
sabe que só é preciso fechar os olhos a metade
ou mesmo olhar para tudo com um olho a menos
para poder continuar a amar em paz o resto

Este prima de onde se olha para a realidade, como se se estivesse à janela de um quarto distante também absorve a visão crítica e irónica sobre o acto de escrita e o papel (não tu, meu tão certo secretário, outro) tão amarrotado, já, do poeta, bem evidente em textos como «Como reconhecer o seu autor feliz», «O grande fardo de palha do poeta comprometido» ou «Literatura para Falcões», imenso poema.

É de esguelha, de vários cantos, num percurso nómada, que se vê Europa como espaço e tempo e os seus horrores, presentes e passados (a perseguição acossada do nazismo é uma sombra do livro ainda, como uma memória de que se quer ainda sentir a culpa): «sábio/ deve ser só quem se consegue lembrar/depois de tudo roubado/do dever da própria memória», lê-se no poema, justamente intitulado « O filho de Saul».

Ler «Um quarto em Atena» é tentar a decifração de espanto a cada verso; espécie de vertigem, que sente as palavras em tensão. Não é a língua, a história literária ou cultural que nos dá o melhor diapasão para avaliarmos um livro de poesia. Não, meu tão certo secretário. É como vos digo: as leis da física oferecem instrumentos bem mais adequados. Um bom poema é aquele que põe a língua, as certezas, os leitores, a lógica do discurso, as referências, o dizer, num equilíbrio tenso, em tensão: esta medida de grandeza que avalia a força de tracção a um objecto. Ou ele se quebra ou se deforma ou volta ao seu intacto estado inicial (quase nunca).

Sim, meu tão certo secretário, é esta tensão, sem mais explicações, que parece definir a poesia de Tatiana Faia; a expectativa, o espanto, de ver algo a quebrar-se no poema, ou simplesmente ( e não é de somenos) assistir à força, à velocidade, à inquietação de sentir as palavras da poesia retomarem a forma original. No texto final de «Agradecimentos», a poeta lembra de passagem Ruy Belo, «autor de poemas longos e inesperados, […] onde se pode sublinhar muitos versos». É o que se espera de um leitor perante um bom livro de poesia: que lhe sublinhe os versos, tomando-os para si, levando-os no bolso, que há-de surgir o dia em que esses versos nos possam valer. É, no fundo, meu tão certo secretário, esta certeza que fica da escrita de Tatiana Faia: «enquanto ela escrevinhar/uma respiração sustenta-se e é tudo».

Tatiana Faia, Um quarto em Atenas, Lisboa, Tinta da China, 2019</h4
15 Jul 2019

Quando da metáfora se faz sinapse

[dropcap]S[/dropcap]empre essa vontade amarga de me fugirdes à mão, de vos esquivardes à intimidade com que busco acolher-vos mansamente. A má vontade de quem, em correndo uma brisa, débil que seja, voejaria para longe, onde o gesto fortuito dos meus dedos não vos pudessse alcançar. Sou eu que vos peço, com brandura: Vinde cá, meu tão certo secretário. Pois que dizeis?

Que não ides a lado algum e estais sereno, esperando-me, e que só vos entedio nesta bajulação melosa, lisonja sabuja de quem vende o amor próprio, por um cílio de atenção, em esperança vã?

Pois que não é lisonja, nem adulação galante; retórica bem mal ataviada, talvez: leve captatio benevolentia de pacotilha, porque vos quero deixar, com violência escrita, de rajada e sem pedir licença, o registo de uma poeta das que causam espanto; daquelas cuja poesia se escusa à percepção, e, que, ainda assim, e só por isso (será esta a definição da poesia que ainda nos surpreende à esquina do verso), não nos cansamos de mirar, franzindo os olhos à leitura: Andreia C. Faria.

O livro Alegria para o fim do Mundo contém quatro dos livros da autora, publicados de 2013 a 2017. É esta uma poesia que surpreende pela permanência de uma tensão, um confronto pelejado com a linguagem. Vacilamos ao aceitar reconhecer a língua do poema como a nossa própria língua; lendo poesia, apesar das gradações, modulações, diferentes, nela reconhecemos, apesar de tudo, uma gramática quase nossa, quase comum, quase partilhada. Mas, nos poemas mais conseguidos, até esse pacto é quebrado, para que na intimidade de leitura se instaure uma comunicação restrita e particular, não partilhável: oaristo, em código, do coração da página ao nervo do leitor. Um poema/epígrafe do livro Um pouco acima do lugar onde se ouve o coração (2015), incluído neste volume, evidencia bem, não tanto o impulso de escrita, como se sugere, mas o próprio recebimento, pelo leitor, desta poesia: «Escrevo com nervo e impaciência/com uma lâmina que se sabe/ela mesmo excrescência».

Estes são, então, poemas que se lêem com o mesmo nervo e impaciência com que se dizem escritos: a impaciência com que se cavalga as imagens e se passa além da metáfora improvável, para exercitar o nervo, fintando sempre o óbvio, a piada certeira, ou o trocadilho ligeiro, facilitista.

Muito forte a tensão, em cada poema, e não só pelas alusões ou pelas referências irónicas, ou pelo peso das ambiências sugeridas, mas por esta capacidade geral de nos retirar o chão à linguagem. Ora vede, meu tão certo secretário: acolhei este poema e vede como se coloca a língua em tensão, estabelecendo novos eixos e ligações, exibindo novas regras da lógica da língua; como a mesma gramática, a mesma sintaxe, inauguram outra semântica:

Penso no cavalo que transporta o sangue até ao coração
no sopro que o devolve
inteligível às extremidades.

Penso em chamá-lo a suaves mortes como a flauta do pastor,
enterrá-lo numa leira herdada de alegria.

O puro-sangue que repousa
no pasto de um homem pobre-
vejo-o ao espelho, um clarão de rins desfeitos
sob a etérea camisa de noite. É um laço de vida
a linha que me cose
com a agulha do cansaço, da má colheita, da humilhação.
É a promessa de uma morte calibrada
pela veia espúria, o vernáculo
do antepenúltimo, o antepassado.
[…]

É nova, até, esta capacidade de desdobrar o seu próprio vocabulário (todo o poeta, sim, meu tão certo secretário, tem um vocabulário muito seu, que domina e que vai descarnando como pode, até ao osso, nesse áspero processo da poesia que desfamiliariza a língua). Por outro lado, é densa e ampla a tensão metafórica e a amplitude das sinapses, das relações que a cada poema se convoca, exibindo essa escrita nervosa e impaciente, essa espada em excesso que descasca as palavras e exibe a poesia como um acto de violência que intenta contra o próprio pacto de linguagem. Sim, meu tão certo secretário, sabemo-lo desde Colerige: A literatura, o romance, obrigam à suspensão da descrença, a este estranho movimento que nos faz esquecer do nosso real e crer na lógica interna dos textos: são as perfeitas construções de palavras, que nos afastam da realidade, oferecendo-nos outra, em contrapartida.

Mas o que dizer da poesia, meu tão certo secretário? Desta poesia, por exemplo, cujo vocabulário em inquietante metaforização parece insinuar ao leitor, a cada momento:« — esquece, pois, que até agora falavas a tua língua». Escrever poesia é ludibriar: sujeitar-nos à descrença, que não suspendemos, sem que no entanto consigamos desviar o olhar desta estranheza que nos causa espanto: a metáfora torna-se sinapse, estímulo de afinidades e correspondências, intuições sensoriais que se experimentam, quando nesta poesia se faz uso da palavra.

Mas, que faço, meu tão certo secretário? Todo o comentário a um livro de poesia, a um poema, sabemo-lo, é um acto similar a cobrir-se com lençóis brancos os móveis de uma casa que se vai abandonar: protege-se do pó a mobília, é certo, mas desfigura-se-lhes as formas; desolada imagem que se forma, ao conceder-se-lhe o último olhar da despedida. Mais vale o esforço de, tempos a tempos, ir revisitando a casa, de pano em punho, lendo, instalando-nos confortavelmente e limitarmo-nos a limpar-lhe o pó que, às vezes, se acumula nas esquinas das palavras.

Há uma história antiga, meu tão certo secretário, recontada por Jean-Claude Carière que nos fala de um «mestre espiritual [que] tinha vários discípulos e que todo o dia lhes falava da poesia, da natureza, da bondade, da beleza e do amor. Uma manhã, quando se preparava para falar, um pássaro pousou no parapeito da janela e pôs-se a cantar. O pássaro cantou por algum tempo e depois desapareceu. O mestre levantou-se e disse: «Terminou a lição desta manhã:»»

Sim, meu tão certo secretário, será uma parábola forçada, que não me apresto para mestre (e que discípulos teria…), e por lição, só este arremesso de crónica sempre mal alinhavada, que não lhe faz as vezes. Não tenho quase nada da história de Carrière. Só tenho o pássaro. Aqui fica ele, para vosso proveito:

Admiro a pele dos homens
o couro moreno, bem lavrado, com que se recobrem
tem, ao relento, o calor de um animal esparso.

Pontua, respirando, os veios e os poros
a macia constelação das escamas
o sensorial rebanho que a matança multiplica

Lembra certos utensílios, o rufar tenso dos tambores
ou a espessa luz dos candeeiros

Transpirada, escurecida pelo uso, lembra as malas silentes
que as mulheres sempre carregam

Andreia C. Faria, Alegria para o fim do mundo, Lisboa, Coolbooks/Porto editora, 2019
24 Jun 2019

A Pegada de Sísifo A Foz em Delta, de Manuel Gusmão

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, que vos quero falar de atrito e gravidade. Porque se de mecânica vive a literatura, que dizer da poesia, essa tão desajeitada engenhoca da linguagem. Pois ouvide e aprendei sobre a física e os mecanismos da linguagem que se regem por medidas outras, mais labirínticas e intricadas que as leis naturais. Que dizeis? Lembrais, contrafeito, que o meu compromisso é confidenciar-te poemas e poetas e não prelecções avulsas de uma ciência mal sabida? Pois não digais tal, meu sempre certíssimo secretário. A poesia não é só da ordem das letras! É, sim, mecânica pura movendo a engrenagem do mundo e suas linguagens; e para bem compreendermos um poema, sua dinâmica, a sua velocidade e aceleração rumo à razão, às ideias, ao coração, à emoção, há que descobrir a fórmula que se sustenta o movimento.

Falo-vos do livro de Manuel Gusmão, «A Foz em Delta», título, ele mesmo, metáfora de poesia: a torrente do rio que antes de alcançar o mar se propaga em percursos múltiplos, rasgando a terra em diferentes sulcos, inventado caminhos, descobrindo-lhes sinuosidades itinerantes. A foz em delta é bem o paradigma de uma particular resistência à passagem de água, que se embrenha na terra, antes ainda de mergulhar no oceano, criando pequenas ilhas, areais instáveis, resistindo, por porfia, ao deslize das águas. Ouvide, pois, secretário, aprendendo: «A corrente do rio arrasta consigo a terra que as raízes das árvores têm presa. O rio continua avançando e traz para o meio da foz pequenas ilhas terrestres. Ergue à altura de uma copa de pinheiro manso as imagens dessas ilhas incompletas.»

A resistência do falar poético nasce desta simbiose improvável entre terra firme e a força das águas. Nem uma nem outra se vencem: mantém-se um vínculo inusitado, em que água e terra se penetram. Assim é a poesia a desaguar no mundo; mas tal como a terra se distingue dos dedos de rio «arrepanhando as águas», também o poema e a ideologia, a poesia e pensamento político, a poesia e mundo; interpenetrando-se, sempre, nunca se confundindo.

Sim, meu tão certo e caro secretário, por isso vos falava do atrito, da resistência. Tantas forças no mundo, conjugando-se para encalhar no poema, abrandá-lo; mas o poema reage, firme e provoca atrito também ao mundo, e atrasa, sim, por pouco que seja o seu movimento. Tal como o atrito, a gravidade. Que dizeis, meu secretário? Que uma pedra caindo pouca influência de atracção tem sobre a terra. Pois sim, não mata, nem mossa causa. Mas alguma coisa há-de moer. E isto que vos digo, o diz magistralmente o poeta e ensaísta Manuel Gusmão, num gesto de um só verso, que vale toda uma poética : « O mundo supõe a poesia para se poder dizer». E, imediatamente, antes, já o poeta explicara essa espécie de atrito, força que poesia exerce face ao mundo. Vinde cá, e aprendei, meu secretário: «A poesia é uma palavra tão carregada de sentido que vibra/ dar outra vez o nome às coisas/ dar outro nome às coisas mostra-as/ a uma luz e segundo uma música diferente.». Onde ides? Continuai, pois, a ler. É com os mestres que se aprende. Reparai que «este dar nome às coisas/faz parte da nossa experiência sensível. «A terra é azul como uma laranja». [Paul Eluard]»

A poesia será um modo de criar atrito no mundo, ao mesmo tempo que este exerce também uma força no poema; jogo de esforço e resistência que um e outro se oferecem; o rio a fuçar a terra, rasgando-a em delta, portanto, antes ainda de atingir o mar. O discurso poético, todo ele, desdobra-se como esse discurso de resistência, de per se, e isto independentemente da lógica e da verbalização directamente política, literalmente militante («o comunismo que vem connosco/e para além de nós recomeça») que este livro assume, a moer (rebentando-a tão só aparentemente) a distinção entre poesia e ideologia. Aliás, Foz em Delta acaba por ser (e isso implica uma fundamentação teórica que lhe está implícita, aduzindo-lhe, uma outra noção de atrito, que é a resistência à leitura, pelo confronto desta obra com os livros de poesia anteriores de Manuel Gusmão e o seu ensaísmo) um enraizamento na memória: a memória histórica, que não deixa de ser pessoal (com a convocação da luta de classes; os poemas dedicados a Álvaro Cunhal, um deles «Elogio da terceira coisa», mas também uma historicidade íntima , com o poemas dedicado ao pai e toda uma secção dedicada às filhas e netas. A poesia, vá por que caminhos for, desague na foz, por que ramificações, transforma-se, sobretudo (e também por isso resistência) em memória, assente na consciência histórica; e pouco importa o quão longe se vai no reconhecimento concreto, político, pessoal ou biográfico, quando a palavra instaurada no discurso poético é aquela «carregada do sentido que vibra» , que renomeia as coisas. O mundo, repitamo-lo em sincronia, meu secretário e não o esqueçamos mais, supõe «a poesia para se poder dizer». Por isso, Foz em Delta é poesia e ensaio, em simultâneo, reflexão e desfocamento poético, que coloca mais uma pedra na engrenagem da poesia, e reduzindo, sempre, com a sua força de resistência, atrito, a velocidade do mundo que avança selvagem, capitalista, acelerando.

Numa das secções do livro intitulada «Definição de um Território» (o da poesia, meu tão certo secretário?), há um conjunto de parágrafos, subordinados, exactamente, ao título «poesia e resistência». Aí se lê:

«A poesia pode ser uma forma de resistência. Pode sê-lo. Sempre, por definição, ou seja, em determinados contextos, sociais, políticos, culturais. Hoje em alguns dos lugares em que a história da modernidade de longa duração continua a vir e a inscrever-se nos tempos, alguma poesia continua a resistir. Ela resiste à quantidade de barbárie em que cada tempo insiste. (…) Dizer que a poesia resiste é afirmar que ela é uma específica resistência à sua completa apropriação pela mente ou pelo espírito. […] . Como forma de vida, a poesia é um fazer e um acontecimento de linguagem que a tem por palco, co-move os sentidos e o corpo & alma dos cidadãos, mobiliza, atravessa e convoca o conhecimento, a ética, e a estética.».

Também por isto, os poemas, estes que se exibem como lastro ideológico, político, partidário e militante até, e expressamente, é resistência, sim, uma força de atrito, que influi na cinética do mundo, abrandando-o, mas não, nunca, ideologia, que, a poesia desfoca a linguagem com que aponta, no entanto ao mundo: «A fonte fria/na manhã clara/é de qualquer modo/o foco de luz/que te chega aos olhos.» Diz Silvina Rodrigues Lopes num artigo dedicado a «poesia e ideologia» do livro «Literatura, Defesa do Atrito» (pois é claro, meu tão certo secretário, bem vos dizia, ao início, que as leis da mecânica e da física são, pois, próprias da poesia) que «a nossa vontade de domínio segrega o desejo de plenitude e com ele a ideologia que retira às palavras o seu enigma: transforma a verdade e o desejo que a habita em vontade de verdade, força reactiva ao serviço de uma ordem, uma asfixia. Sem a poesia, que salvaguarda o enigma ao oferecer-se como um gesto ou acto necessário (…) as palavras estariam gastas. Não haveria como responder.»

Pois, é verdade, meu tão certo secretário, a linguagem, bem o sabemos, nós dois, é, para o homem, a única unidade de medida do mundo; e poesia é o que impede a erosão das palavras, à possibilidade de renomear o mundo, pondo-o em movimento. Assim, faz-se em simultâneo atrito e caminho, resistência e impulso: é, ao mesmo tempo, a pedra às costas de Sísifo, a montanha que ele repetidamente percorre e, até, o próprio Sísifo, ele mesmo. Repetidamente, deixando a sua pegada no caminho.

Manuel Gusmão, A Foz em Delta, Lisboa, Edições Avante, 2018

3 Jun 2019

Escritos ântumos, postumamente

[dropcap]M[/dropcap]as… onde ides? Assim tão lampeiro, ligeiro, com esse riso solto e casquinado, de quem segue adiante, sem lançar, para trás, sequer um olhar de remorsa despedida. Pois, vinde cá, meu tão certo secretário, de que foges? É do bico da pena, das cócegas inquietas, que te escusas, zombeteiro? Mas se já nem é com a pena que vos escrevo. E disso, sim, na verdade tenho pena. Vá, ouvide só, este manso martelar, sincopado, do computador: há tanto que perdesteis a pena leve do voar.

Cansado de ser leito de lágrimas, com que os poetas sempre a pena desafogam os queixumes, querendo deixar cair as penas do lamentos, contornais a enfastiada pena do escrever e arriba, galgando, pondes-te à fresca, em busca de penas com que voar. Tendes razão! Quem não preferiria planar para outros mundos, em que nascer é cousa chocalheira e não o trânsito funéreo da materna sepultura para o surdo destino das sem razões. Sendo assim, vinde, meu secretário: vinde sem medos, que, de uma penada te tiro as penas: hoje acolhereis José Sesisnando, poeta da leveza, cujo pensamento sempre sobe aos mais altos lugares; escritor avesso a pesos e lamentos.

José Sesinando Palla e Carmo, José Sesinando, só, para os leitores cúmplices de humores de galhardia, é um autor, poeta, brincador de línguas, o que lhe quiserdes chamar. É um escritor capaz de depenar a língua, a crítica, a própria linguagem e seus sentidos, para nosso gaúdio, que ali ficamos a admirar o ridículo do bicho, assim, a nu. Garanto-vos que, se penas houverdes, desta vez, será somente a pena não vos ser mostrado tudo o que esta «Obra Perfeitamente Incompleta», ora publicada pela «Tinta da China», na colecção humorística de Ricardo Araújo Pereira, com edição de Luísa Costa Gomes e Abel Barros Baptista, responsável pelo prefácio, que bem faz jus ao livro.

No livro reúne-se a já esgotadíssima «Obra Ântuma», publicada, em 1986, pela «Edições Europa-América» e duas edições de autor: uma com 50 versões do «Soneto já Antigo», de Fernando Pessoa, e outra, composta por 65 variações sobre o poema «Autopsicografia». Nesta secção, aliás, o poeta passa a ser, à vez, um «roedor», um «pecador», um «pescador», um «cobertor», tão só um «senhor», ou um «péssimo actor», uma «estação», um «sabão» ou um «irmão», ou mesmo um malabarista, quando o pastiche vai além da sonoridade e ganha a liberdade acrobática que Sesinando lhe que quer emprestar.

A editora e, ainda bem, comete na edição a prudência da antítese, quase da paraprosdokian, bem explicada por Barros Baptista, no prefácio: E, assim, podemos louvar à «Tinta da China», finalmente, a publicação póstuma da obra ântuma de Sesinando.

O livro, no seu conjunto, é um completo tratado de humor. A primeira parte, «Prolegómenos», inclui uma «Nótula de Abertura», do próprio Sesinando, «Pallavras Prévias», desta feita, da responsabilidade de José Palla e Carmo, além de uma «Advertência» e um «Prefácio», de Archimbaldo Th. Leonardes e a Leonardes Júnior, respectivamente. Este último, aliás, é bastante elucidativo quanto às qualidades de Sesinando: «Serei breve, mas indeciso. José Sesinando parece-me constituir um daqueles raríssimos casos, em Portugal, de autêntico génio.», remetendo de seguida para uma nota de rodapé corroborando a informação prestada: «Cf. Saraiva (não nos recordamos qual deles), O Génio em Portugal, desde as Origens até ao Século XII, Lisboa, sem data, p.9 e última.»

A segunda parte da «Obra Ântuma», «O texto: Prosa» dá conta de verdadeiros tratados reflexivos sobre coisa nenhuma, mas em que se descasca a língua mesmo até ao caroço. Leia-se parte da «erudita comunicação», intitulada «To ser or not to estar», para se compreender, como na medula de um povo, está a sua própria língua:

«[…] Com efeito, como nem toda a gente – muito pelo contrário- consegue ser, os outros devem contentar-se com estar. Nisto (…), a língua portuguesa serve bem o nosso condicionalismo, já que nas outras linguagens — tais a teutónica, angla e a franca – o mesmo verso exprime as duas situações.

Disso decorre que, nessas outras nações, quem está é, e quem é está. Quando alguém bate à porta, a pergunta que vem do interior soa-lhe não «Quem é?», mas sim «Quem está?». Ao telefone, não se pergunta estupidamente: «Está?» (ou «Está lá»); diz-se: «É?» (ou «É lá?», ou ainda, com inflexão caucionante, «Eh, lá».

Por sua vez( e diga-se entre parênteses que estas investigações histórico-linguísticas são apaixonantes – e podemos dizê-lo sem qualquer pejo entre parênteses, já que não é por isso que nos caem os parênteses na lama), o uso do «É lá» em vez do está lá» motivou que, em vez da palavra e do conceito de raiz portuguesa estalagem ( está-lá-gem, que por sua vez era a contracção de está- lá-gente), se fala nessas outras áreas idiomáticas de elagem ( é-la-gem ou he-lá-gem, de é-la-gem, de é-lá-gem ou eh-lá, gente!). Nessas outras paragens, portanto, o estalajadeiro, ou melhor, o eladeiro, vai para a porta saudar as gentes passantes para as angariar como hóspedes; não vai estalá-las, como entre nós, mas sim éla-las – em francês héler, em inglês to hail, em alemão heilen, em brasileiro alô.»

A «Obra Ântuma», além da prosa inclui outra secção, «Texto: Poesia», com poemas «inexperimentais», poéticas pastiches ou de desfrute jubiloso, jogos, esquemas, «palavras escruzadas». Não, meu certo secretário, não são escusadas nunca, que, como diz Abel Barros Baptista, no prefácio que introduz o livro: o leitor daqui «pode colher a lição máxima e muito compensadora, ao aprender que a razão fundamental para compor escritos assim é a própria e também fundamental possibilidade de compor escritos assim: trata-se muito radicalmente de um exercício de liberdade.» A paródia com a língua é, então, uma necessidade, uma inevitabilidade, porque, lá está, a poesia e as suas palavras põem-se a jeito e toda a gente vê que estavam mesmo a pedi-las.

Entre estas duas secções, existe um «interfácio», porque afinal esta obra é de poesia, de prosa, mas também, de teoria literária, crítica, análise linguística e textual, e mais o que se quiser que a língua consiga prever e conter, porque não há uso da linguagem que não esteja à partida armadilhado. De seguida, completa-se a obra com um posfácio e variadíssimos «A-Nexos», com testes, entrevistas, notas, opiniões da crítica, que constituem um relevante e fundamental paratexto, em torno da escrita de Sesinando e da complexidade da sua obra. Neste ponto fundamental, fica o leitor a saber algo sobre os «ascendentes literários portugueses de José Sesinando»: «Quanto a influências portuguesas, são visíveis as de Almada, Castelo Branco, Chaves.», além de considerações críticas acerca da sua obra: ««Cadência fortemente sugestiva, encadeamento complexo das imagens, autêntico sortilégio verbal, riqueza expressiva reveladora de uma vincada personalidade de creador — nada disso, infelizmente, se encontra na obra de José Sesinando.»» Resumindo, se queremos saber o que é a crítica, a poesia, a literatura e as tretas que as letras nos pregam, é ler, de lápis na mão, os escritos que nos deixou Sesinando e o seu heterónimo José Palla e Carmo ou vice versa.

Que dizeis, meu tão certo secretário? Vindes agradecer-me por não depositar aqui as consabidas e costumeiras penas do lamento? Que te sentis já com as penas do voar, pelos trechos de José Sesinando que vos fui confiando? Mas, que cenho é esse carregado com que me olhais? Que preferíeis que só aqui tivesse só alinhavado citações, sem que me pusesse eu, também, tão sem graça, com piscadelas de olho à chalaça e ao trocadilho. Olha, que quereis que vos diga… Pois temos pena.

José Sesinando, Obra Perfeitamente Incompleta, Lisboa, Tinta da China, 2018</strong
20 Mai 2019

«Um Chouriço é tão Poético como uma Rosa»

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário, e de mansinho, aconchegado, acolhei estoutros versos que são teus; é que, se tudo vai sendo feito de mudança, tomando-se sempre de novas qualidades, se se converte, é certo, em choro, o doce canto, e a neve, como previsto, se sobrepõe ao verde manto; a bem da verdade, mesmo que tudo se transmude, sim, como soía, essa mudança, faz-se, ‘inda assim, de maior espanto.

Debaixo do mesmo sol, a metamorfose é regra, não novidade: a crosta, sabemo-lo, altera-se mutante, encerrando no imo a mesma matéria. A pedra fóssil recobre o bicho antigo; o âmbar sobrepõe-se à resina; e é próprio da pérola ter o empedernido coração de um grão de areia.

Assim corre a vida, também a poesia. A poesia está aí, no mundo, e mutatis mutandis, se rege pelas mesmas regras, mesma ciência: como ele, é cíclica, sim, em mutação, mas, no fundo, a mesma, sempre girando em torno da palavra, como a terra à roda do sol. Retoma novos atributos, sem perder os antigos. Tantas vezes, à poesia, então, não lhe basta por isso ser lida; há que ser manuseada, mas usando o corpo todo e os sentidos, para que lê-la seja literalmente testar-lhe as formas, os contornos e alterá-la, sim. A poesia, por vezes não se conforma à língua (um absurdo: o mesmo é que o dia não se queira sujeitar ao sol…). Mas o certo é que alguns leitores lhe adivinham o incorformismo; procuram, mansamente, satisfazer-lhe os desejos. Meu tão certo secretário, perguntais, já: «A que vem isto agora?». Que não? Que não perguntastes nada, que pensáveis até noutra coisa, distraído?… Pois tende paciência, e prestai atenção, que ainda assim te respondo:

Tudo isto vem propósito de Alberto Pimenta, para quem «uma rosa é tão poética como um chouriço», tal como, para o outro, o binómio de Newton ganhava aos pontos à Vénus de Milo…

Alberto Pimenta foi por estes dias duas vezes lido, duas vezes metamorfoseado, tomando-se sempre de novas qualidades, sem deixar, no entanto, de se mostrar como soía. A sua poética foi por duas vezes tomada e tornada corpo de performance. Dois modos distintos de a ler, mas mantidos num elo triangular, que fazem da poesia de Pimenta massa de modelar: poesia em processo de mutação e metamorfose; formas de leitura que actuam performativamente, poeticamente, até, nos seus próprios textos: em primeiro lugar, o filme (que não documentário) de Edgar Pêra (com argumento do próprio Pêra e de Manuel Rodrigues), a que foi dado o título «O Homem-Pykante- Diálogos Kom Pimenta», e que estreou no «Indie», 2018 e que teve, agora, a sua estreia comercial. Esta leitura da sua obra transmutada em filme é uma poesia-performance em movimento, em que o acto de montagem se transfigura no procedimento de montagem/colagem da própria linguagem poética de Alberto Pimenta. Tratar-se-á da sua poesia feita corpo-em-movimento, sempre dando conta da incomodidade da língua, em que a poesia vive. Sim, há sempre que fazer sentir o peso da língua; este grilhão de que o poeta não se livra. Alberto Pimenta bem foi escrevendo, avisado, que «não há opressão maior/e mais infame que a da língua.».

Mas outra leitura-metamorfoseada foi lançada também por estes dias: a publicação de «Anastática para Alberto Pimenta», antologia poética de Manuel Rodrigues (Abysmo, 2019) e dedicada a Pimenta, com prefácio e selecção de Edgar Pêra. Estes poemas, assim dispostos, \assumem novamente um corpo performativo, de duplo efeito; por um lado, são lidos inevitavelmente com a voz espectral de Pimenta a assombrá-los; por outro, obrigam, em simultâneo, a reler a sua poesia, através do eco de Manuel Rodrigues. E, ao assumir-se Pimenta e a sua poética múltipla, prenhe de estilos, como o destinatário único de cada poema, ergue-se, audivelmente, do livro, um diálogo, a que o leitor assiste como espectador de uma cena dramática que se liberta das páginas. Poemas, portanto, que se tornam cena em acto, como se a língua não se bastasse a si mesma e se procurasse no texto o espectro de um corpo-destinatário:

«Para Tal te Evitar»

se eu pudesse morreria ao escrever
um pintor que poderia desejar senão
uma morte d’óleo diante à tela
pianista o piano e cigala em cantante
amador a mando que ama a valer

_que quererão para boa morte_
esses povos sob mitos de recitar?
ora, diz-me lá tu, que leste mais
como crês que preferirão morrer
os exércitos de guerreiros ávidos
com tanta guerrilha ainda a devir?
eu, se pudesse, escreveria sempre»

(Manuel Rodrigues, Anastática, Abysmo, 2019)

Bem o sabemos, desde Lavoisier, que nada é novo e tudo se transforma; mas que fazer, se nós, leitores e habitantes do mundo, todos à uma, vamos vivendo como se a vida e a poesia fora coisa nova, exultando-as, em plena liberdade do espírito: Assumimos o mesmo exacto espanto perante um poema (escrito, claro está, com a mesma massa da língua que nos oprime), assim como perante o sol nascente por cima de cada manhã, gratos pela beleza que mais não é, afinal, do que a prova do tempo a morder-nos as canelas..«[…]/Pois é: sempre o mesmo e/ sempre desencontrado, o tempo/com o tempo.//Ele destrói tudo./Destrói tudo./Destrói tudo.// Como não havia de destruir-se a si mesmo? Levantar paredes/e deitá-las abaixo, /para poder levantar de novo…// – Não é o princípio/das estações do ano?/De que te queixas? » (Alberto Pimenta, Nove fabulo, o mea vox/De novo falo a meia voz, Pianola, 2016).

A previsibilidade do sol, consabido, requentado, a pontuar de laranja o fundo do horizonte traz a mesmíssima novidade de um poema. Atrás de um, a angústia do tempo passando, atrás de outro, as grilhetas da língua, asfixiando: e perante esse espectáculo triste, nós leitores e habitantes do mundo, celebramos o espanto, ainda assim. Por isso, estas insistências, absurdas, mas tão essenciais, em transformar a obra em metamorfoses, oferendas, tributos, palimpsestos, como se pretendesse alongar o efeito do nascer do sol. Na sua lição de sapiência, na Universidade Nova de Lisboa, Pimenta explica, a dada altura, que os poetas seriam importantes para exprimirem o indizível: se fosse para dizer, tão só, o dizível, explicava, então, «não seriam necessários poetas, bastar-nos-ia a prosa.» Mas, atrever-me-ia a dizer que, neste ponto, talvez Alberto Pimenta não tivesse razão: os poetas não procuram sequer dizer o indizível. Pelo contrário, procuram criá-lo e fazer crer ao mundo a sua existência. Na verdade, todos sabemos que, provavelmente, no princípio não estava sequer o verbo. Mas quem sabe se estará no fim? Por isso, só por isso, não basta ler os poetas: às vezes é preciso transformá-los, continuá-los, para que o ciclo não se acabe, nunca.

6 Mai 2019

Espelhos toldados das palavras

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Mais perto. Tão próximo que mais ninguém nos ouça, pois que todo o papel será como as paredes: brancas e com ouvidos. Se me quiserdes escutar, dizer-vos-ei em surdina, a vós só, num oaristo tímido entre nós dois: A poesia, a melhor, é um equívoco. Um pantomima cega e ficcional em que vamos persistindo, fingindo como quem acredita, mentindo como quem crê.

Há livros de poesia que nos lembram isto mesmo, desejando palavras não com que se escreva e diga, mas com que se pinte ou componha, ou, pelo menos, se reaja ao mundo visível, emendando-o. «O Olho e a Mão», obra conjunta de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, com poemas que se interpelam mutuamente, assim como às pinturas por que se fazem acompanhar, e a que resistem, também, é um destes livros capazes de «cega[r] a ortografia»: rasurá-la, exibindo o equívoco de se chamar literatura à poesia, a par de outras artes literárias.

Tantos escritores, pensadores, poetas, Sartre, Croce, Verlaine vêm denunciando esse logro, insistindo, com o orgulho da convicção, que poesia e literatura estão nos antípodas e que o leitor de poemas é uma ilha rodeada de equívocos por todos os lados. Qualquer coisa como esta: todos sabemos, e repetimo-lo de lição estudada: a terra é redonda! Mas, e então? Há que vivê-la como se fora plana, que sempre é mais prático para conquistarmos o nosso quotidiano chão. Algum jeito haveria se andássemos a rebolar por esse universo fora, provando, a cada dia, a circularidade do mundo? Pois será redonda, é quanto basta saber-se, para continuarmos, no entanto, a vivê-la como se fosse aplanada, sem a precisão de nos pormos a escrever de pernas do avesso, só para corresponder à idiossincrasias manientas das realidades.

Assim corre a poesia e a literatura: Enfiamos, incautos, no mesmo saco da literatura, ficção e poesia como se fossem irmãos desavindos, mas ainda assim irmãos, como se fossem todos gatos, a esgatanharem-se lá dentro, mas ainda assim gatos. A ambos chamamos literatura, tratando-se nitidamente de seres vivos de espécies diferentes (até mesmo de Reinos, diria). Se o romance for (e é!) um bicho, a poesia será, por evidência, uma planta. Ou uma pedra. Uma pedra que pode florir, é certo (como em Celan), até fazer a fotossíntese, mas ainda assim, pedra: inteira e intacta.

Sartre tomou-se de outras palavras, para explicar isto mesmo, lembrando que, entre o prosador e o poeta, só há em comum o movimento da mão traçando as letras. O prosador faz uso das palavras, enquanto o poeta se limita a contemplá-las, desinteressadamente. Antes, aliás, Verlaine já o tinha explicado, com a leis cientificamente provadas da poesia. O que distingue um poema não é uma caminhada solidária na liteira da língua, aquele subsidiário desta, mas o inverso: a poesia- é uma arte que se move por uma rebelião contra a palavra, num perpétuo braço de ferro contra elas. As palavras, amiúde, sequer seduzem o poeta: atacam-no, ludibriam-no. E, quando ele as contempla, nem é, como julgava Sartre, para as apreciar em êxtase. Desenganem-se: Não! É para delas melhor se defenderem. Há que conhecer o inimigo, para melhor abrir a brecha do ataque. Quando toca à poesia, temos a certeza de que a língua, as palavras, a gramática, não serão um instrumento, sequer o material com que se constrói a parede do texto, os significados; não, a poesia é a destruição da parede da linguagem E se for mestra, tal parede, tanto melhor.

Não, meu tão certo secretário, não me desviei do livro, que um livro tanto é aquilo que é, desmentindo as próprias letras, como aquilo que somos capazes de lhe responder. E eu ainda estou procurando respostas às perguntas que ele me vai fazendo, mesmo depois de fechado.

Mas vejamos, que a leitura de um livro ( mas porquê?) não pode ser só este acto de dar a ver o rombo que no leitor provoca: Em «O Olho e a Mão», os poemas de Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David intersectam-se mutuamente e atravessam pinturas, diversas, de várias épocas, sem nenhuma regra implicada que não seja a urgência de lhes responder e de habitar esse lugar intermédio de comunhão poética, combatendo as palavras da língua e as imagens, num processo de remissões e reflexos especulares: trata-se de «espelhos toldados de palavras», como se lê na nota dos autores que encerra o volume. Não lhes chamaremos poemas ecfrásticos. Um substrato mais forte se indicia no livro: toda uma concepção poética que nos mostra como a alteridade não existe senão como interioridade, mesmo intimidade. Mais do que os implicados reenvios dos textos poéticos às pinturas, o que sobressai é o poema como espaço de liberdade: do olho à mão, tudo ė a linguagem a que se resiste, desfazendo a língua, esse tabique que separa o olho do mundo. Poemas e pinturas tornam-se um jogo de espelhos sibilinos, que não reflectem, mas devolvem, sim, imagens outras: no fundo, «escavam [com a mão e o olho impuro, necessariamente impuros, aliás] o atalho de cada verso», resistindo à língua, deixando-a para trás, para a transformar noutra coisa ainda.

Adequar-se-ia, facilmente, a estes poemas o epíteto «metamorfoses» (como, aliás, chamou Sena ao seu próprio livro): nada é o que é, senão o que fazemos sê-lo. É o que se diz num destes poemas, de Ana Marques Gastão, em confronto com o quadro de Christian Schad ( The portrait of Dr. Haustein, 1928):

Talvez o que mais importe na escrita dum poema
seja a sombra e o seu nome, não o meu nome
mas o dela o nome da sombra- umbra, ombre, ombra
shade, schaten» […]

que, por sua vez, será também é resposta ao soneto-leitura-rasura da mesma pintura, por Sérgio Nazar David, intitulado «The Wall»:

[…]
A sombra que projetam na parede os cães
que nos rodeiam é menos de mulher do que
de loba. Queria ser mãe, esposa, filha, irmã

dos que mordem o meu seio. Falta algum flor
voluptuosa neste quadro. Nele cubro de cinza e pó/
(não tenho remorsos) o rastro dissoluto de Satã.

A poesia é o que resulta do sinuoso percurso que vai do olho à mão e a transforma em «mão inteligente», usando a expressão de Ana Hatherly: este é o livro de um processo em relação, de como os poemas se furtam à linguagem e de como a mão que escreve poesia é a mão que rasura a língua e lhe propõe novas ortografias. A escrita que nasce destes quadros ou que lhe devolve as cores é a que traz, não a linguagem dos sentidos e da significação, mas a do espanto. Manuel Gusmão, um dia, traduziu em poema este gesto fenomenológico que nasce da escrita poética ao escrever: «Com o espanto vêm as coisas/ à mão imaginante.». É esta mão imaginante, um modo de «flexão de dedos incertos», que empresta novas imagens às pinturas, que nem o olhar, nem a língua comum, nem qualquer gramática, nos poderiam de outro modo ofertar.

Ana Marques Gastão e Sérgio Nazar David, O Olho e a Mão, 7letras, Rio de Janeiro, 2018 (edição apoiada pela DGLB)
8 Abr 2019

A verdadeira ralidade

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Não me olheis com esse olhar liso e branco de quem desconfia. Repara: as injustiças do mundo são para se cumprirem. Se a ti me achego, o teu papel é justamente o do papel: acolher-me com virgem resignação. E, de mim, só podes esperar, pacientemente, a mácula. Chegarei, com os meus bordões rascunhados, sem mata borrão. Terás de o suportar. O importante, como diria Ruy Belo, é que «não doa muito» e, depois, que te escondam na «terra como uma vergonha». Ao papel resta acolher as palavras que nele se sepultam. É a tua função, meu tão certo secretário. Que dizes? Que havíamos acordado em não nos tratarmos por tu? Mas, quem me pode demover? Tu? Vós? Sabes que mais, meu secretário, tão certo; tu, papel, nem mais existes na realidade concreta do meu dia-a-dia; a folha que serias é uma metáfora quase morta que me dá guarida, embora sem tecto, sem paredes. E toda a realidade, como tu, é coisa parca e indecisa; sequer dá luz: obscuridade bruxuleando, ao longe, só.

O mundo aspira à realidade: cada coisa, cada objecto, cada palavra. E a poesia também a deseja com todo o seu empenho; julga poder instituí-la, até. Nelson Goodman fez-nos crer que o realismo é um «caso de hábito», o malabarismo artificioso de fazer crer, convencer, inculcar.

Vejamos: temos o mundo, ele aparece-nos como resultado de um «ver confuso» (Fernando Gil) e esperamos, ingénuos, que seja o poeta a dispensar os óculos com a graduação exacta da nossa miopia. O poeta, sempre esforçado, empresta-nos de bom grado o seu monóculo, o seu binóculo, o telescópio, suas lunetas; um microscópio, e até os seus próprios olhos nus: e eis o real, diante do leitor, tão desfocado quanto possível. Não invento, meu secretário; também Juarroz isto nos explica, se nos diz que o âmago da poesia «é descobrir a realidade, inventando-a». Ou desfocando-a, diria, que é outro modo de a inventar. Ou, talvez, ainda, retirando-lhe uma letra, para lhe dar nitidez. Foi o que fez Manuel Resende: transformou em Realidade em Ralidade, e eis que nos surge um real muito mais ral(o) e fluido, que convoca passados num presente: História(s) em contemporaneidade(s); certo desconjuntar formal da língua, que, entre uma piscadela à poesia experimental (que culmina no hiperpoema, destacado no fim do livro), e certo espírito santo de orelha de surrealismo (que nem descura, porque não pode, a consciência social e política do mundo em que chafurdamos), carrega às costas a tradição clássica da poesia: porque na verdade clássicos somos todos, modernos e os antigos, inevitáveis cabeçudos, em que nos tornamos, nós, os anões, aos ombros de gigantes: «Eu é um pseudónimo de nós e nós pseudónimo disto tudo», escreve Manuel Resende. «O Leão é feito de carneiro digerido», diz-nos Valéry: e é a sombra dos que vieram antes de si (e que também tanto traduziu) que compõem o mosaico da sua poética.

Na poesia de Resende, agora reunida pela editora «Cotovia», tanto cabe uma cantiga, não de amigo, mas de amargo, como os diferentes rizomas que sobrevêm de uma tradição moderna (Baudelaire, Whitman, Campos, por lá se passeiam), ou a poesia clássica, ou o classicismo do nosso Renascimento, com a pernada barroca que o experimentalismo desencanta, sempre. Aliás, também vós por aqui estais, meu tão certo secretário, transposto em mensageiro dos tempos modernos. O tom é classicamente o da vanguarda, nesta dicotomia de inventar o mundo, sobre diferentes socalcos, em diversos sobressaltos. Ora lede e reconhecei-vos nesta «Crítica da Razão Pragmática»: «Vinde cá meu tão manso mensageiro/Febril mercúrio falar-me dos deuses/ Saberás que é impossível a mímica rítmica dos rins/saberás que é impossível amor meu//Impossível vivermos os dois sempre aos pares pela vida fora/vem cá corpo cru deusa em carne viva/vem cá saber as horas o irreprimível horário da manhã/ Um relógio de gestos uma religião de salários.».

Diz-nos Osvaldo Silvestre, no posfácio que acompanha este volume de Poesia Reunida, que, em Manuel Resende, «tudo: o político, o privado, a realidade, o sonho se funde numa espécie technicolor sem censura». Mas, mais do que fusão, trata-se da convocação do real em diferentes planos (disse convocação? Queria dizer descoberta; não, diria antes invenção; perdão, de novo, pois queria dizer revisão permanente de uma matéria nunca dada), apresentando tudo numa mesma dimensão de simultaneidade, mas à luz de várias lentes e graduações. Como um mosaico composto de peças de proporções diversas.

Num poema intitulado «Streptease1990», dedicado a Mário Cesariny e que termina com um endereço de email, como assinatura, escreve-se acerca da importância da libertação do real certeiro do dia a dia: «Pronto já me despi de certezas (das grandes primeiro que das pequenas)./ E agora , que dispo? /Espero ordens.»; e, num poema, mais adiante, no mesmo livro, resgatando um Manuel António Pina que pisca o olho a Camões, a mesma ideia do real que é simultaneamente memória histórica e tempo presente, tradição na contemporaneidade; mundo político-social e auto-referência poética; onírico e absurdo e reconhecimento concreto do quotidiano. Da mesma forma, a realidade física e matemática e aquelas partículas que, afinal, só a palavra e a poesia inventam e instituem, quando assumem às costas a canga da história, da memória, do social e do concreto, com a sensibilidade de quem transforma sentires em sentidos e em realidade: «Onde estão as partículas elementares/Quando a gente não está a olhar?/A questão é de se pôr, só que elas estão,/ Ou qualquer coisa, não sei o quê, em qualquer lugar.».

Mas, só um momento, meu tão certo secretário. Disse eu realidade (física matemática, onírica, histórica ou poética, seja lá o que isso for.)? Pois, desculpai-me, que uma vez mais me enganei. Queria eu dizer Ralidade. Ralidade é que é: sem lar, sem tempos, sem fronteiras. E é esta exacta ralidade, descoberta ao ser inventada, que Manuel Resende nos oferece, ao longo da sua poesia, e também aqui, expressamente, numa cantiga à laia de soneto:

CANTIGA À RALIDADE

S’a ralidade não me chatiar
Não vou eu chatiar a ralidade.
Porém, essa megera sem idade
Não tem tempo e fronteiras, não tem lar,

Não tem respeito, sempre a dar a dar,
Remexe-me no peito, busca o qu’ há-de
Servir-lhe de pretexto pra provar
que continua a mesma ralidade.

E eu que tenho mais o que fazer,
Dormir, dormir, morrer, talvez sonhar
–Ou contra o cruel fado a ‘spada erguer.

Mas esta dor no peito, a falta de ar,
Esta barba há três dias por fazer
Já ´stão à minha espreita ao despertar.

Manuel Resende, Poesia reunida, Lisboa, Cotovia, 2018

26 Mar 2019

O desenvolvimento de uma exclamação

[dropcap]V[/dropcap]inde cá, meu tão certo secretário. Podemos tratar-nos por tu? Não? Compreendo…Perdoai, então. E perdoai por tudo: pela insolência e atrevimento, claro, mas também pelo logro. Prometi pedradas em livros de versos, a ver a mossa que lhes faria, calhando em acertar-lhes, mas aponto já para outros alvos, pousando o olho lírico noutras gaiolas, outras janelas.

«Um Bailarino na Batalha», de Hélia Correia, não parece um poema, mas é-o, em certa medida. Percorro definições de poesia que o atestem, que isto da teoria literária pouco diferente será da água benta, cada qual toma de quanta quer e como lhe convém. Benzo-me, com uns salpicos abençoados por Valèry, para dizer ao que venho. Se bem não faz, também não prejudica: «A poesia é o desenvolvimento de uma exclamação». E por aqui se comprova o lirismo de Hélia Correia, ainda que numa novela que não descuida todas as categorias da narrativa: os vários tempos e ritmos a atravessar a temporalidade ficcional que manipula, por sua vez, os cordéis da acção, as personagens, o espaço e o narrador a um canto, afadigado, gerindo pontos de vista. Tudo isto ao serviço de uma inquietação aguda, de uma exclamação crescente: espécie de ponto luminoso que se acende, brilha até à sua intensidade máxima, quase cegando, e que depois se apaga. A luz fere, desaparece, fugaz, mas o golpe de luz permitiu ver, mesmo por breves instantes, uma imagem que persiste como emoção exclamativa, um brado que se ouve, apesar de embutido na garganta. Meu tão certo secretário, já que cá viestes, dando-vos a esta maçada, permiti-me continuar, que as metáforas são como as cerejas…

Assim se pode distribuir a literatura: De um lado, temos as narrativas, espécie de ampla paisagem por onde se caminha; o leitor pára, cuida de pormenores, e ora os olhos se alongam lá para dos horizontes, ora se demoram na minúcia de um formigueiro, mesmo ali, ao cair do pé. O leitor deixa-se ficar no cenário da ficção, vê o nascer do sol, vislumbra o ocaso ao fundo; depois anoitece, e tudo se queda de seguida num repouso sossegado. Por outro lado, há também a poesia, que se mede por diferentes bitolas: aí, o leitor permanece como numa noite de tempestade: fica à janela, só olhando, que o tempo não convida a caminhadas. Tudo escuro, lá fora. Mas, de repente, cai um relâmpago. E então, num eis, toda a floresta se acha iluminada: bela e tenebrosa, como nunca se vira. O leitor já nem consegue mais dormir e, no dia seguinte, de manhã, olhando pela mesma janela, sabe que a floresta do dia anterior, vista à luz breve do relâmpago, sequer se aproxima daquelas árvores desfiladas, que sempre avistara no conforto da vida: assim é um poema. Depois, para lá da poesia e da prosa, ou enlaçando-as, até, há os livros de Hélia Correia: um constante caminhar na tempestade. O leitor anda à chuva, molha-se, por evidência, e a cada momento um relâmpago lhe mostra outra paisagem na paisagem, muito mais dura, exclamação breve, vislumbre assombroso à luz do relâmpago.

«Bailarino na Batalha» é a graciosidade de um esgar, de um movimento que se liberta (o movimento do cavalo na batalha, não do combatente), terrível, mas belo, um movimento não previsível que se levanta em dolorosa elegância, na improbabilidade dos escombros. Este simbólico cavalo (literal e metafórico) não aparece na novela, só no poema final, belíssimo, que lhe serve de epílogo (sim, há um poema, neste texto, mas nem só por isso o podemos considerar, no seu todo, um poema também). Só um poema poderia resumir, como conclusão, o relâmpago de perplexidade e espanto, que ilumina o mundo, o nosso mundo, na novela:

[…]
Oh, os cavalos do Mediterrâneo,
leves como vapor,
filhos das águas
dourados como o mar
quando entardece.
Inalcançáveis criaturas mesmo
quando delas fazem montadas,
mesmo quando as conduzem
para a linha do abate
[…]

Da guerra, só acedemos aos estilhaços, somente ao eco daquilo que foi, aos resíduos, às sobras do que para trás se abandonou; uma memória física que se carrega aos ombros, na dura travessia deste deserto, também simultaneamente metafórica e literal, encetada por uma mole desgarrada de migrantes. Toda a novela, em capítulos curtos, alguns curtíssimos, como breves poemas em prosa, se socorre de um tom alegórico para expor uma reflexão profunda sobre o mito da terra prometida: essa Europa-miragem, que com uma mão acena, pungente, e com outra repele, altiva. Assim começa o livro, uma página em branco, só com um parágrafo, talvez um poema:

Aquilo que voa nem espessura tem para projectar sombra. Passa e apenas entristece um pouco a já cinzenta areia. É a memória. A lívida memória, descolada dos cérebros, tão fina, tão doente, que não pode tocar-se, que, ao mínimo contacto, cairá, desfeita em pó. E o seu nome mudará para esquecimento. E o esquecimento tudo esquecerá.

Um bando de migrantes juntos, mas desgarrados e sem pertença, foge da guerra rumo ao mar. Pretendem chegar à Europa. Estão famintos, desolados, mantendo só os mínimos resquícios de humanidade e traços vagos, soltos da sua civilização não nomeada, mas reconhecível, pelos modos de trajar, códigos de honra, uma clivagem entre os homens e as mulheres, de cara tapada pelos farrapos sobrantes, revelando um estatuto de submissão e inferioridade que se vai refigurando ao longo do livro. Não se trata de sobreviventes, são antes morrentes. A palavra não existe, mas ajustar-se-ia bem ao tom de todo o texto, que mostra o que as palavras não saberiam dizer.

Um velho cego, um homem sem braço, desprezado do grupo, por traidor, uma criança visionária, uma mulher-fera, uma velha e mortos, muitos mortos, que vão largando o corpo pelos caminhos, são algumas personagens-símbolo deste povo cercado, sitiado, a reinventar-se nos escombros.

Mais do que uma reflexão, «Um Bailarino na Batalha» é um livro que faz sentir a feridas profundas do confronto mundo ocidental/médio oriente. A urgência reflexiva, terrível, da novela funda-se, afinal, na força da linguagem, das imagens, que se vão sobrepondo com um vigor doloroso: desde a travessia do deserto, à transformação do rio em lodo quase inerte, ao conforto de um bosque, com frutos e animais, que logo se esgotam, até se alcançar o fim da jornada, quando ainda a meio do percurso se estava: o limite é, afinal, a cidade em nove círculos que lhes veda a progressão adiante, até ao mar, porque — adverte-se–a Europa não os quer:

«Porque é que te pões tu à nossa frente? Tem dono este caminho?»

«Ora, os caminhos têm sempre dono», disse o homem. «Tudo tem dono. Tu também tens homem. O teu homem? Escondeu-se atrás de ti?» Estendeu a mão para a agarrar e ela furtou-se. O homem desistiu. Aquele não era o jogo que ele jogava.

«Existem nove círculos na cidade», repetiu ele. «O de fora pertence aos miseráveis, o do centro aos magníficos. Pode apenas passar-se de um círculo para o círculo imediato para fazer as limpezas e a comida. Ninguém sobe das caves e dos túneis, ninguém vê algo que não deva ver. Da cidade não se entra, não se sai. Ela é perfeita. Levou séculos a afinar. Imaginaram que seriam recebidos?»

«Nós não queremos a tua cidade», disse Awa. «Queremos a Europa. Queremos chegar ao mar, pegar num barco e partir para a Europa.»

O homem riu: «A Europa não vos quer. Sabes que mais? Nós somos a Europa. Nós somos a primeira instância da Europa. Estamos aqui para impedirmos o avanço.»

Uma novela belíssima, que não só termina num poema, como é um poema: o tal relâmpago que mostra o mundo em torno e mostra-no-lo como não o conhecíamos ainda.

Hélia Correia, Um Bailarino na Batalha, Lisboa, Relógio d’Água, 2018
11 Mar 2019

Saudade burra

[dropcap style≠‘circle’]M[/dropcap]eu tão certo secretário, vinde cá e imaginai uma pedra; e que alguém atira essa pedra a um charco. Ao charco da poesia, digamos; da margem observamos a propagação concêntrica dos círculos: dura uns momentos, só. Primeiro o embate, com muito estrondo, alarde e bulha, depois a leve ondulação que alastra, em simetria perfeita; de seguida regressa o paul à acalmia inicial. Tudo como dantes! Tudo? Não, agora, no fundo do charco, há mais uma pedra; há uma pedra no meio do lodo. É isso, portanto, que me proponho ir fazendo por aqui: atirar pedradas a poemas e livros que vou lendo, sem regra e ao calhar de andanças, passeios, e caminhadas, consoante as margens que me embicam o passo e os seixos que por lá vou encontrando: a leitura como este este entretém viciante de atirar a pedrada e ficar, pasma, a ver a breve onda a propagar-se, cada vez mais longe do centro. Vezes ou outras, a pedra há-de resistir a afundar-se e só cede após dois ou três ricochetes rasando a superfície das águas. Tudo depende da pedra, tudo depende do charco. Uma coisa é certa:  As pedradas dão-se amiúde em charcos, não em águas límpidas. Assim a poesia: agitá-la é sempre agitar um pouco o lodo da linguagem.

Atiro uma pedra à nova edição aumentada, pela «Tinta da China», de A Musa Irregular (manteve-se, ainda bem, o singularíssimo título!), reunião poética de Fernando Assis Pacheco, editada pela «Hiena», em 1991. A edição resgatada de um parêntese editorial, onde vem sendo hábito manter suspensos os grandes, acrescenta à original Musa Irregular, o livro Respiração Assistida, editado postumamente, em 2003, e um «Suplemento ao Lote de Salvados», composto por poemas dispersos, inéditos, plaquetes, dez poemas-colagem, publicados aqui e ali, ao correr dos anos. No final, um ensaio de Manuel Gusmão arromba as portas da poesia de Assis Pacheco e oferece o mote que define, de uma penada, a sua escrita,  colocando-a num patamar situado  «na amizade entre escrita e leitura»; no fundo, num certo desprezo relapso pelas chancelas editoriais de cunho marcado, aliado à generosidade da escrita enquanto dádiva: dar a ler —  a quem, na verdade, importa– certa  perplexidade face ao mundo. Por isto, as plaquetes que FAP distribuía entre amigos: a necessidade de partilha do seu excesso de humanidade, a transbordar de uma humildade galhofeira de quem fareja à distância a «pesporrência», dedicando-lhe, por exemplo, a ironia de um soneto. A escrita de Assis Pacheco é sobretudo comunhão do espanto, enquanto crónica necessidade de dialogar, como quem traz para as Bermudas da poesia o triângulo que une os vértices da ternura franca, da nostalgia inquieta, do humor irónico; é o estilo de quem tempera o real com uns bagos de pimenta, além do  granus salis. Será este o especial estatuto do poeta que se enfarda de mundo: que com uma mão lhe dá e com outra lhe tira a paga, porque, na verdade, escrever é dar a ler; uma forma de partilhar a vida, porque, por si só, «a solidão é um lugar difícil de habitar».

Assis Pacheco é a voz do escritor que comunica tanto nos altifalantes dos média, como na vozeada do café, ou até num oaristo tímido, quase ao ouvido; que tão depressa se faz cronista e jornalista, como poeta, e em simultâneas de afecto, atingindo os pináculos do espírito, mas de pés enraizados na terra, numa relação de corpo a corpo com a realidade. Assim, de igual para igual, que Fernando Assis Pacheco é da cepa dos cronistas poetas, com um olho no chão sólido da calçada, e outro a derramar-se lá para os horizontes. Num repente, juntaria eu no mesmo bouquet três dos que nos fazem mesmo falta, mais a sua humanidade e auto-ironia; cada qual dos três, sempre e conscientemente, a viver a sua condição de «poeta no supermercado», a resgatar as palavras-pão do dia a dia, com equilibradas doses de indignação e brandura: Assis Pacheco, Manuel António Pina e Alexandre O’Neill. Com uma ressalva, só. O O’Neill não ia tanto à bola com o futebol.

Já nos fazia falta a obra poética por inteiro do escritor que, num poema, como numa crónica, ou vice versa, identifica, num relance o mal da pátria, a lusa, entenda-se:

MAL DE PÁTRIA

Se temos nove dez poetas
à escala europeia
ou quatro ou mesmo talvez
com muito boa vontade três

aflige-me bastante menos
que o problema do Serra:

Quantas queijeiras restam
fiéis à rude bordaleira?
Para onde vai Portugal?

Em suma, comecei ameaçando a pedrada, mas deixei-me, queda, a amodorrar na margem apreciando a paisagem: não lancei o calhau rolado, as águas não se agitaram, nem se  amotinou o lodo ao fundo.  Só uma breve nota persiste a flutuar à superfície do livro: é importante resgatar os poetas que põem um naco de queijo no papo seco da poesia.

25 Fev 2019