30/01/2019

[dropcap]M[/dropcap]ostro-lhe o meu livro pela primeira vez. Observa-o muito atentamente. Olha-me, pergunta: “És tu, a Gisela Casimiro?”, como se esse ser impresso fosse um alter-ego e não eu mesma, a pessoa que para ela é a Gisela, apenas, mas também “A” Gisela. Respondo que sim. Diz que acha o livro bonito. Não há nada melhor do que ir buscar uma criança à escola. Pelo menos para mim, que as não tenho. Hoje, a “minha” está calada. Pergunto como está, nada bem, uma dor num dente que manteve secreta desde o acordar, achando que iria passar. Levo-a ao lugar de que toda a gente gosta, o Kaffeehaus, e após muito torcer o nariz, lá se delicia vezes sem conta com a limonada de framboesa, sem gelo nem rodela de limão. Água a rodos. Hoje não há bolo para ninguém, tal é a dor, até de comer, mas fica a descrição do mítico sachertorte, promessa para a sua segunda visita. Mais tarde, abraçadas a ver Ladybug, à espera da mãe, pergunta a minha idade. Creio que se vai esquecendo, de vez em quando, ou é o tempo que se vai esquecendo de nós, deixando o que nos liga cada vez mais forte, uma ternura que nunca ganha pó, talvez apenas umas rosinhas brancas há muito tempo, ou uma única, cor-de-rosa, desta vez; amigas de longa data que, sem se verem há muito tempo, ainda ontem estiveram juntas nalguma realidade paralela. Mas depois os cabelos: tão longos como não me lembro de alguma vez ter visto. Quando lhe digo que são trinta e quatro, deleito-me com um “És muito nova.” É por isso que gosto tanto de conversar contigo, Nê.

23/01/2017

Falávamos de balões. Sobrara um, laranja, perdido na minha mala, que a Nê encheu pelo caminho. Falávamos de balões com vias lácteas e com orelhas, os balões da nossa infância. Ela, que ainda a vive, disse que, em casa, têm balões em forma de coração. A mãe observou, “Mas os corações rebentam com muita facilidade.” E eu respondi, “Infelizmente, não só em sentido metafórico.”

04/10/2016

Não sei como é que ela conseguiu, mas estávamos ambas em pé e a Nê fez-me festas na cabeça. Os que não têm seis anos vão dizer que foi por causa das escadas, mas não estavam lá, pois não? Depois, espetou o indicador ao de leve na minha barriga e apontou para a sua, já de camisola levantada. Tenho de voltar ao exercício físico, disse-lhe. Podes vir fazer educação física na minha escola. Achas que ninguém iria notar? Agora temos lá uma tartaruga bebé, ela é tão fofa, estamos sempre a olhar para ela. E já tem nome? Não. Têm de votar e depois decidir. Vou chamar-lhe Gisela. Vai ser a tua cópia. Não, vai ser a minha homónima. Entre homónimos, doppelgangers e sósias, contou-me de duas gémeas amigas, não me recordo agora os nomes, mas uma era a da camisola rosa e, outra, a da camisola azul. Coitadas, nunca mudavam de roupa? Ou vestiam sempre a mesma cor? E se trocassem de camisola, como é que fazias? Falámos da natação, do piano, do Daniel, da professora de inglês e de como ela descobriu, durante a apanhada (diferente da do meu tempo, agora apanha-se mesmo) que é mais forte do que um rapaz do quarto ano. Quando nos despedimos, pediu que a levasse comigo; abraçada a mim, dizia, não vais sair daqui, vou colar-me a ti. Menos cabelo, num corte que lhe fica tão bem, menos dentes, num sorriso que, num dia como o de hoje, especialmente como o de hoje, eu não esperava ver e que ela tem sempre para me dar. Ouvi, quando cheguei, a Catarina dizer, olha ali a Gisela. E a Nê, mesmo à minha frente, olhava para todos os lados e perguntava, ainda sem me ver, onde, onde? No meio de muitos abraços, ouvi, a minha filha está a olhar para uma das suas pessoas preferidas. Ela também é uma das minhas. Nunca quero esquecer as coisas bonitas que ela me diz. E só agora percebi o tanto que ainda tinha para lhe contar. Não sei como, mas tenho ali uma grande amiga. Duas, na verdade. E que saudades eu já tinha.

19/07/2016

Outro dia,

– Gisela, qual é o teu vestido preferido?
– Não sei, Nê, eu…
– Eu acho que é esse que tens agora, porque já te vi muitas vezes com ele.

No mesmo dia,

“Quando tu me conheceste eu já tinha seis anos. Eu pensava que riqueza era ter muito dinheiro mas riqueza afinal é ser inteligente. Ó Gisela, tu disseste que ias para a natação, já começaste? Eu não sei por que é que o laranja é uma fruta e uma cor.”

(E eu só consigo dizer “Ó Nê tu és linda.”)

25/06/2016

Das manhãs felizes, com encontros combinados que se sobrepõem aos casuais e tudo resulta em bonita sintonia. E há lá coisa que nos desarme mais do que, depois de sermos cumprimentados com um longo abraço, recebermos um outro, assim do nada, inesperado, ainda melhor do que o primeiro? Talvez nas crianças coisa alguma venha do nada. A Nê vem da Catarina, em parte. Ela disse à filha que os cockers são cães de veludo. Algum tempo antes, o Fred disse, “As minhas referências Disney são limitadas. Por isso é que eu sou são.”

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