Redução. Construção. Destruição. 1

[dropcap]H[/dropcap]á tantos métodos quantas as filosofias desde que se pretendeu fazer filosofia, fundar uma filosofia. Mas mais. Ao pretender-se constituir uma filosofia, o constituir uma filosofia é uma formulação que expressa o método, o encaminhamento, o processo que leva à formação de uma perspectiva que dê acesso ao que existe aí no mundo connosco, um mundo de coisas e um mundo de pessoas. Assim, as respostas positivas dos pré-socráticos à pergunta pelo princípio que causa todas as coisas, a pergunta concreta pela forma maciça como o ser e a vida nos confrontam consigo, resultam de métodos, de processos de formação do caminho que procura a genealogia do não ser até ao ser. Se as respostas parecem ser ingénuas: água, ar, fogo, éter ou os quatro elementos em simultâneo, postos em interacção pelo amor e pelo ódio (Empédocles) ou qualquer coisa de indeterminado, apeiron (Anaximandro), a pergunta que as fazem ser dadas não é. A ideia de Platão, a substância de Aristóteles, a representação de Kant, são despistareis concretas que visam a constituição de uma filosofia com os seus métodos próprios e interpretações. Há uma diferença de acesso às coisas que existem na realidade, se as considerarmos que resultam de uma ideia que se projecta sobre elas ou se é nelas que se encontra de forma não explícita a sua essência ou se o nosso acesso ao mundo das coisas e a nós próprios é uma representação de uma representação. Uma coisa é certa: há uma diferença entre o método do que consideramos ser filosofia e do que conhecemos como ciência positiva. As ciências positivas têm como objecto de investigação entes, coisas que existem na realidade. Recortam da realidade por abstracção o seu objecto, o tema específico do seu estudo: espaço, número, tempo, elementos químicos, física, psique, etc., etc.. e consideram-no isoladamente de todas as abstrações possíveis para o porem positivamente sob foco de evidência e estudo. A filosofia de acordo com uma das suas interpretações, a fenomenologia, têm como tema o ser do ente. O ente é compreendido no seu ser, quando se compreende o sentido do ser do ente específico que de cada vez está a ser estudado. O sentido do ente é compreendido a partir do ser que se projecta sobre o ente na sua inteligibilidade.

É no ser que tudo aparece. Ser é o aparecimento de tudo o que aparece: sujeito e objecto numa das suas formulações. É a cada um de nós como portador do acesso que o ser aparece. Ao aparecer o ser, aparecemo-nos a nós, uns aos outros, as coisas a cada um de nós. A nossa compreensão das coisas, a própria inteligibilidade das coisas, é dada no ser, isto é, numa das suas formulações na vida. A vida é condição de possibilidade de compreensão da própria existência humana e da inteligibilidade das coisas que existem.

Uma das compreensões que temos para “ser” tanto do verbo como do substantivo é precisamente o aparecer, o aparecimento e o desaparecimento de pessoas e coisas, mas também o nosso próprio aparecer em cena na vida e como aparecemos na vida aos nossos olhos e aos olhos dos outros.

O aparecer altera a relação que temos com o que aparece. Podemos ter uma antecipação relativamente ao que vai aparecer, enquanto algo ou alguém ainda não apareceu. Ao compararmos esse algo ou alguém no momento em que ainda não apareceram com o momento em que já apareceram e fazem corpo de vida connosco, verificamos que as coisas não são, de facto, como pensáramos que eram. Esperamos sempre por pessoas na vida. Não sabemos se virão ou não, nem quando nem como. Mas há uma diferença entre o pensamento na pessoa possível e a relação concreta que transforma retroactivamente o pensamento e a pessoa pensada ainda abstractamente. A história do aparecimento de alguém joga-se na imaginação entre a realidade e a possibilidade. O mesmo se passa com o agente do aparecimento, quem faz aparecer alguém para nós como possibilidade concreta e também já como realidade transforma-se pela sua própria essência.

O ser que faz aparecer altera-se como altera a pessoa a quem faz aparecer alguém e o próprio sentido com que alguém nos aparece. Toda a relação afectiva ou, antes, pessoal é histórica, biográfica, auto-biográfica. É intransponível em certo sentido, mas compreende-se que é em geral assim para o universo humano!

A transposição da relação pessoal, da história da nossa vida na vida dos outros, para o mundo dos objetos, altera a sua compreensão objectiva. Mesmo uma “natureza morta” é muito mais do que a realidade objectiva do corpo espácio temporalmente, física e materialmente, determinados. Todos os lugares que antecipamos no seu ser são diferentes, quando lá vamos. Mesmo a própria antecipação em imaginação e fantasia de sítios a que nunca fomos e se calhar nunca iremos nas nossas vidas tem a sua própria estória a sua própria afectividade. Paris antes de lá termos ido existe como ficção literária ou cinematográfica. É diferente de Paris quando lá fomos. Uma qualquer parte da China antes de lá termos ido inunda-nos oniricamente. É completamente diferente da realidade, quando lá estamos. Mas também trazemos em nós os sítios onde vivemos como as pessoas que conhecemos. Algo ou alguém que nos apareceu desaparece para um sítio que é diferente do “sítio” em que se encontravam antes de nos terem aparecido.

Mas nem todo o aparecimento é confrontado com o não aparecimento. Nem se perspectiva sempre o aparecer do aparecimento enquanto tal. O ser é agente do aparecer. O aparecer faz que algo ou alguém, todas as coisas e pessoas, simplesmente, sejam, existam, apareçam. O facto de tudo estar desde sempre aberto de alguma maneira faz que tudo nos apareça no contexto específico das nossas vidas singulares. Há diversos contextos ao longo da vida que permitem perspectivas e aspectos diferentes com que cada coisa ou pessoa nos aparece. A situação originária do aparecimento e do desaparecimento é o tempo. O horizonte do aparecimento aparece todo ele por atacado, de uma só vez, e é aí que tudo aparece. Mas é ainda no horizonte em que tudo aparece que tudo desaparece, cai para um plano de fundo. O que se define, perde definição, o que se forma deforma-se, o que aparece desaparece. O horizonte temporal vai-se constituindo à medida que o tempo passa. O tempo que passa, é o tempo que veio antes de ter passado.

Antes de termos nascido, na nossa situação pré-natal, como lhe chamaria Platão, éramos já tempo. A “matéria” de que o ser humano é feito, universalmente, é tempo. É do tempo que nascemos, com ele vivemos e com ele morremos.

O a priori como lhe chama a filosofia é o anterior não cronológico, mas ontológico que nos antecipa no ser especificamente humano. Mas o que quer dizer que o meu ser era já na sua essência antes de eu ser na minha existência? Há uma predeterminação ou sou livre para ser o que eu quiser?

O ser de uma cadeira era já na sua essência antes de uma cadeira, da primeira cadeira ter existido, feita pelo carpinteiro. Mas eu sento-me numa cadeira real e não na essência da cadeira. Mas a compreensão anatómica das ancas em que o tronco se encontra sentado, a compreensão anatómica da possibilidade de nos sentarmos de cócoras ou de pernas cruzadas ou sobre o rabo de pernas dobradas, a possibilidade de nos sentarmos em qualquer sítio que sirva para o efeito dá-nos a condição de possibilidade de pensar a cadeira como uma prótese: sentar e levantar, sentar e levantar dos mais diversos modos possíveis é o ser da cadeira que primeiramente é experimentada a partir do e no corpo próprio. Mas a compreensão da possibilidade está já na morfologia do corpo, a compreensão do seu ser é anterior à primeira vez que nos sentamos?

Ser é ser do ente. Tal quer dizer que o ser é co-tematizado, está concomitantemente aberto mas de forma pré temática. O poder sentar-me, o poder da cadeira de deixar sentar-se nela, no assento e no encosto e de deixar levantar-se dela não está dado da mesma forma que os seus componentes materiais, a sua configuração. A cadeira é os seus componentes e a sua configuração e design, mas essas entendidas reais e objectivas por si não fazem o ser do ente que é uma cadeira. As ancas são o que são na sua constituição, mas sem músculos e articulações não poderia actuar sobre elas, o mesmo quando flicto os joelhos e fico de cócoras ou me sento sobre as nádegas ou cruzo as pernas. A possibilidade de actuar anatomicamente implica uma interpretação complexa da possibilidade com que conto, que acciono e activo mas que não está já de forma elementar na consideração meramente anatómica.

A redução fenomenológica é a recondução do olhar que vê só objectivamente o ente para chegar até ao seu sentido. O sentido é a manifestação primordial do ser de todo e qualquer ente. A possibilidade é o que possibilita um ente vir a ser o que é. Ela é expressa pelo infinitivo: “a ser”, “para ser”, com que todo e qualquer ente é compreendido na sua inteligibilidade.

Quando vejo uma cadeira, não vejo apenas o plano do assento perpendicular ao plano das costas, nem assento e costas de uma cadeira sobre as pernas e eventualmente com braços para apoiar os meus, vejo um ente que é dado na sua possibilidade que me é oferecida: sentar-me e levantar-me, estar sentado e olhar para a cadeira ocupada com alguém que nela está sentado ou livre para que alguém se possa sentar nela.

Nós não vemos os infinitivos: levantar e sentar; vemos só o objecto onde nos podemos sentar e de onde nos podemos levantar.

Segundo momento do método: construção fenomenológica: projecção do ente para o seu ser e compreensão do ente à luz dessa mesma projecção. Não apenas desvio do olhar do ente, do objecto, da coisa, do corpo para o seu ser, mas compreensão à luz do sentido que se projecta a partir do ser e do sentido do ser sobre o ente assim compreendido.

A filosofia está implicada assim em três momentos decisivos (Heidegger). É uma redução, uma construção (projecção) e uma destruição.

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