Uma gota de glitter

[dropcap]T[/dropcap]enho um trabalho de casa e queria que João Barrento o fizesse por mim. Estou a ler o seu conjunto de crónicas, Uma seta no coração do dia, cujo belíssimo título me recorda Huxley e o seu Brave new world: “Words can be like X-rays, if you use them properly – they’ll go through anything. You read and you’re pierced.” Gostaria de pensar que serei uma escritora melhor depois de ler Barrento, cujo A chama e as cinzas aguarda a sua vez na minha pilha de livros, recomendação do meu amigo Ricardo Falcão. Mas não venho falar de Barrento, nem de Huxley, e sim de Mariah Carey, que ouço muitas, muitas, mas mesmo muitas vezes enquanto leio ou faço outra coisa qualquer. Há alguns anos, imaginei uma Batalha dos Advérbios, Aldous Huxley vs Mariah Carey. Huxley: expressionlessly, startlingly, imploringly, inconspicuously, revoltingly, reassuringly, terrifyingly, despairingly, patronizingly, piercingly. Carey: abandonedly, painstakingly, consequently, incessantly, inadvertently, unendingly, threateningly, convincingly, subconsciously, consequently. A meu ver, Carey ganha. Mas talvez porque eu sou uma assumida freak de Mariah Carey, que o é, claramente, de vocabulário. Quem nunca acordou e se preparou energicamente para um novo dia ao som de Emotions ou rodopiou pela cozinha de braços estendidos desafinando melancolicamente I still believe?

Quem nunca chorou ao som de Petals, I don’t wanna cry, Love takes time ou se sentiu melhor depois de ouvir Someday, Everything fades away, Obsessed ou Everytime you need a friend? O escritor islandês Sjón disse, numa entrevista: “We should not be afraid to work with the things that impressed us when we were at our most impressionable. (…) Very few of us grow up in a castle and have private tutors who teach us Greek before noon and Latin in the afternoon and then we take piano classes and learn about classical painting or something. All of us come to culture through trash. And there are so many people who are embarrassed about what excited them. If you came to storytelling through the Spice Girls, then this is how you got introduced to storytelling. Work with it.”

Eu cresci a ouvir Spice Girls e Sade (The best of Sade é o álbum que ouvi mais vezes em toda a minha vida), mas também Tabanka Djaz, Os Tubarões e Bob Marley. Não sei tocar piano mas gostaria. Carey não cresceu num castelo mas tornou-se a moça pobre por quem um príncipe se apaixona e a leva para o seu reino onde vivem até ela sair da discográfica. E então a moça pode começar a ser feliz quase para sempre e, até, comprar o piano do seu ícone, Marilyn Monroe, cujo nome inspiraria o da sua filha ou versos das suas canções mais recentes. Um dos meus temas preferidos de Carey é Make it happen, poderosamente autobiográfico e inspirador, e um pequeno mantra para todos os dias, os difíceis e os outros, relembrando que persistir é preciso, mas não sem uma fé que por acaso partilhamos, e nos mantém por cá quando tudo se desmorona. Para muitos, os que sabem ou não negam saber quem ela é, Mariah será uma diva pop louca, gasta, irrelevante e irritante, com decotes exagerados e uma obsessão por sapatos (compreensível, para quem conhece a sua história). Para muitos mais ainda, um ícone merecedor de um movimento como o recente #justiceforglitter, empenhados como estavam os seus fãs em fazer chegar ao primeiro lugar um álbum que, após ter sido um fracasso, tal como o filme de que era banda sonora, se tornou um objecto de culto, com a sua vibe de anos oitenta, talvez pensado à frente do seu tempo. Só o amor dos fãs para destronar o álbum mais recente de número um por outro mais antigo. Mariah a vencer Mariah, ou será Bianca, o seu alter ego que encontramos nos vídeos de Heartbreaker com Jay Z e do seu remix com Snoop Dogg no papel de noivo e Da Brat e Missy Elliott como madrinhas? Heartbreaker que, originalmente, foi pensado para ser parte de Glitter, mas cuja inclusão no álbum anterior, Rainbow, se tornou uma benesse na época mais sombria da carreira da cantora, compositora, produtora, actriz e, agora também, mãe.

Crescer com Mariah Carey é conhecer Mariah Carey e conhecê-la é, sem dúvida aceitá-la e amá-la até ao fim dos nossos dias, perdoando todas as falhas e celebrando todos os intermináveis sucessos. Num mundo em que já não restam muitas das lendas originais, tendo perdido Aretha Franklin (uma das suas principais influências) ainda tão recentemente, e com as demais figuras míticas tão perto da terceira idade, Carey, que viu partir tantos dos seus talentosos amigos da velha escola, com quem colaborou ao longos de décadas, estará, talvez, aos quarenta e oito anos, a meio caminho de algum lugar (ainda mais) importante. Nomeada, com outra das suas amigas próximas, Missy Elliott, e inspirações, Chrissie Hynde, para o Songwriters Hall of Fame, lutou sempre para ser vista como a escritora de canções que é, sendo que escreveu todos os seus temas, excepto as covers e o dueto com Trey Lorenz, I’ll be there, e When you believe, dueto com Whitney.

Temos outras grandes cantoras também autoras de muitos dos seus sucessos (pessoalmente, destaco Tori Amos, Kate Bush, Alanis Morissette e Fiona Apple, esta última creditada por Diddy como uma das que mais o influenciou), mas só Mariah ultrapassou Elvis enquanto artista solo com o maior número de canções a chegar ao primeiro lugar. À sua maneira, lutou para que houvesse esse reconhecimento e multidimensionalidade, a par com o que era dado tão facilmente a outros, bastando que fossem homens ou, sendo mulheres, tocassem regularmente algum instrumento. Ora, Mariah assume tocar mal o piano e poucas vezes a vemos dançar, em palco ou num videoclip. Mas esta é a mulher que uniu o pop com o hip hop e o rap e será, ainda, quem melhor continua a fazê-lo. Num mundo de artistas como Ariana Grande (também capaz de fazer o whistle de Minnie Riperton, que começou a carreira com covers de Carey no Youtube até ser descoberta, assídua colaboradora de Minaj e, infelizmente, também com um atentado terrorista a marcar a sua carreira), não podemos esquecer que foi Carey a primeira grande artista a colaborar com uma ainda pouco conhecida Nicki e a incluí-la no vídeo, antes mesmo de Minaj ter lançado o seu álbum de estreia, e ainda longe do estatuto que depois se lhe atribuiu de rainha do rap, discussões no American Idol à parte. Não podemos esquecer que Mariah teve um mega hit com o título Shake it Off dois anos antes de Taylor Swift, e que só não chegou ao primeiro lugar porque, bem, Mariah já lá estava com a canção que seria a sua segunda a ser considerada canção da década. Nem tão pouco podemos esquecer que Glitter foi lançado no pior dia possível, o dia do atentado contra as torres gémeas, que mudaria o mundo para sempre, e que também Carey lida com doença mental e insónia desde tenra idade, tendo demorado muito para assumir e, consequentemente, tratar a sua bipolaridade.

(continua)

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