Lisboa-Porto

[dropcap]N[/dropcap]a plataforma dos comboios da estação do Pragal, a vassourinha da mulher da limpeza empurra heroicamente a beata para a pá de plástico. O pé direito segue o ritmo da canção popular que um aparelhómetro enganchado no bolso da bata emite a plenos pulmões, ainda que roufenhos: Milho verde milho verde, ai à sombra do milho verde namorei uma cachopa.

A senhora tem o ar empanado de não lhe sobrarem ilusões numa única das células e as rugas, só no queixo – cinquenta anos incrustados em setenta e oito de aparência -, desenham-lhe o mapa do metro de Londres. Porém, o pé não se alheia do ritmo, enquanto a pá, focada, atrai as beatas, os recibos, bilhetes, os invólucros dos sugos, e os lábios mimam a música, dando um semblante de vida à sua irrelevância. Muda a cantiga (brega, piorou muito), que ela continua a partilhar com os passageiros: é o seu ponto de equilíbrio.

No átrio da estação, ao balcão do Café Delta, aquele jovem mulato continua a servir bicas. Com o cabelo rapado até à linha da trepanação, de onde desponta um tufo com pretensões a ser onda, num stile japónico mas em carapinha. Ressalta o seu olhar vivo na face macilenta, acostumada a ver repetidos os gestos de uma existência tartamuda. Sem dúvida que o penteado é o que lhe dá ainda um arremedo de identidade, a ilusão de que tem uma ponte para a vida, apesar da merda que ganha, das varizes que lhe ameaçam as pernas.
O nosso ponto de equilíbrio é tão frágil e imaterial. Não vos digo o meu.

Escrevo: «Que dia penumbroso/ e perlado de verde, compreendo/ porque hibernam as abelhas/ enquanto os pés se me enregelam e aqui e ali// reluz o dourado dos olmos. / Belíssima a paisagem,/ paira como um solo de John Surman,/ ou o porfiar da cegonha que perfura/ o mais espesso da melancolia. //Começa a ser tarde/ na minha vida/ e pela primeira vez intuo quem sou:/ o macio intervalo/ entre os pinheiros.»
Seriam olmos, interrogo-me? A impropriedade com que designo a natureza desgosta-me, mas que fazer se sou um rapaz da cidade?

O Camus, nos seus Cahiers refere a nossa inabilidade para designarmos os viventes e os processos na natureza e define-a como um dos cancros do século (XX). Piorou, entretanto.
E recordo um verso do poeta e cineasta António Reis que nunca mais esqueci: “Soletrar olmo como quem ouve um trovão distante”. Que invejável exactidão.

As sílabas do cansaço são mais extensas e friáveis. É o que se sente quando a insónia nos visita, no comboio.
As palavras, que também necessitam de dormir, desprendem-se do corpo, autonomizam-se e impedem que nos acostemos em quietação.

Quem viu os olhos de um insone percebe-os fugitivos e luminescentes como os comboios que cruzam a noite. Por muito que isso torture a vítima, os seus olhos nessa altura não são enjoadamente neutros.
Fui demasiadas vezes atravessado por períodos de insónia e tempos houve em que andava muito de comboio, de Lisboa para o Porto, ou para Coimbra, em viagens semanais a que obrigavam o trabalho.

Pelo menos metade das viagens fazia-as de noite e gastava-as lendo e escrevendo. Escrevia para evitar ser cavalgado pela insónia, imprimindo eu as pausas, os ritmos e os temas às palavras para não ter de enfrentar o nó corredio das frases ininterruptas. E enchia os cadernos de anotações variadas, de ideias volantes e anotações à leitura, de esboços de contos, poemas ou artigos, de crónicas e registos de coisas que ouvia no comboio, etc. Durou três anos esse meu período de viagens consecutivas de comboio.

A esses cadernos julgava-os ter perdido quando me mudei para Moçambique. Afinal deixara-os em casa de um familiar que mos devolveu dez anos depois de me ter tornado emigrante. Guardados numa caixa, dezassete cadernos cartonados de capa preta de linho, que acabaram por se revelar um viveiro.
Os argumentos da maior parte dos meus contos, desde então, nasceram dessas anotações apressadas e até muitos diálogos neles limitei-me a deslocá-los e transcrevê-los, correspondendo a registos de conversas avulsas ouvidas na viagem.

Como agora vivo noutro território desloquei o lugar da acção nalguns deles, como em Cabriolices das catatuas ou em O Triunfo do Amor, cujos enredos no essencial foram-me dados nesses trajectos.

A Arca (publicado na revista Caliban) nasceu de uma converseta anotada entre um pai e um filho, e ocorrida no troço entre o Entroncamento e Santarém, segundo a anotação apensa ao texto. A criança, de uns seis anos, começou por perguntar ao pai o significado da palavra «lotado», para depois passar à dúvida excruciante:

Pai, o Céu nunca fica lotado?

Esse breve diálogo anotado em dez linhas, impeliu-me ao conto quinze anos depois e escrito de jacto.

Este vaivém dos comboios leva-me a um dos títulos que vou apresentar agora ao editor a quem proporei reeditar todos os contos em dois volumes: Comboios Astrologicamente Vigiados.

Rio-me a bom rir quando ouço a avó perguntar às duas garotas gémeas que foram aos lavabos: Então, as meninas fizeram xixi? Sim, responderam as miúdas. E puxaram as “iáguas”, pergunta ansiosa a avó.
Rio-me por dentro, a pensar na Francisca do Oliveira, onde se ouve aquela bela frase, “a ialma é um vício!”, e a lembrar-me que depois um “chato” numa crítica quis explicar que “a fórmula” não passava de um efeito inane de estilo, tendo invertido a frase, para demonstrar a sua insubstancia: “um vício é uma ialma!”.
E não é que todos tinham razão, até esta avó que nunca confundiria iáguas com águias!? E como explicar esta diferença às duas belas ucranianas que viajam no banco ao lado?

Devia sair com elas agora, em Aveiro, para, pelo menos, me banquetear com um dos meus pratos: ensopado de enguias. Despeço-me de tudo.

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