A arte como campo de batalha

[dropcap]D[/dropcap]e quando em vez a vida oferece-nos pepitas inesperadas e muito bem-vindas, que com sorte irão ficar connosco até ao fim. Foi o que me aconteceu, há alguns meses: graças a uma sessão dos Poetas do Povo – encontros poéticos idealizados pelo meu amigo Alexandre Cortez e que já vão no quinto ano de existência – vi-me, pela minha condição de anfitrião, a jantar ao lado de Mestre Cruzeiro Seixas. Para quem não sabe de quem falo, poupo uma ida ao Google: Cruzeiro Seixas é, juntamente com Fernando Lemos, um dos sobreviventes dos surrealistas portugueses. Poeta e pintor, aos 98 anos apresenta um humor e lucidez fabulosos, para além de uma disponibilidade encantadora. Muitos foram os momentos que retenho dessa noite; mas para o que aqui me interessa houve este que passo a contar.

O restaurante-bar onde se realizam estas sessões acolhe também uma residência artística de jovens fadistas. E assim, durante o jantar e entre conversas, ouvimos fado. No final da actuação da artista perguntei ao mestre o que pensava ele do fado: «Adoro!», disse-me com os olhos a brilhar. «Sempre adorei mesmo quando não se podia gostar de fado porque era coisa do regime e outras asneiras parecidas…Eu gosto e gosto porque o sinto.»

Foi esta resposta, tão anacrónica e marginal no clima destes dias, que me interessou. Eis um homem que manteve durante a sua vida posições políticas que quase lhe custaram a liberdade; que sempre se envolveu com o seu tempo e que no entanto proclamava para um género artístico a quintessência do prazer solitário – o prazer estético, sem intenções, função ou moral: apenas sentir.

Só que nos dias que correm este tipo de sentimento parece ter perdido valor e sentido. A arte é definida não pelas impressões que provoca ou cria no espectador mas pela sua função de educação social e política. Se não tem uma “mensagem” não é “arte” – será coisa menor, entretenimento ou, no pior dos casos, subversão.

Wesley Morris, crítico de arte e cinema, disse-o melhor num excelente artigo publicado no New York Times em Outubro de 2018 (e neste excerto que opto por não traduzir) : «A disagreement over one piece of culture points to where our discourse has arrived when it comes to talking about all culture — at a roiling impasse.

The conversations are exasperated, the verdicts swift, conclusive and seemingly absolute. The goal is to protect and condemn work, not for its quality, per se, but for its values. Is this art or artist, this character, this joke bad for women, gays, trans people, nonwhites? Are the casts diverse enough? Is this museum show inclusive of enough different kinds of artists? Does the race of the curators correspond with the subject of the show or collection? Increasingly, these questions stand in for a discussion of the art itself.» Ou seja, quando se discute arte não se está a discutir estética mas ética – ou a ausência dela face aos valores prevalecentes nesta cultura. Morris é um produto da academia dos anos 90, que embarcou nesse lamentável flagelo que é a “morte do autor” definida pelo estruturalismo. E é desse modo que percebe os erros que este tipo de avaliação incorre.

Mas piores do que os erros são os perigos. Num ensaio de 1913, Lytton Strachey – para mim o mais interessante e talentoso membro do chamado “Grupo de Bloomsbury” – prevê na perfeição este cenário: a intolerância, depois de estar presente na Metafísica (com as perseguições religiosas) terá passado para a Ética (com a condenação de comportamentos “desviantes” como a homossexualidade) para finalmente ir procurar refúgio no derradeiro abrigo: a Estética. Acertou. Todos sabemos o que está a acontecer: livros que são banidos por serem “racistas” ou “homófobos” ou, de uma forma vaga, ofensivos. A cultura popular ressente-se imediatamente: a série de animação Family Guy (até agora com um humor livre e ácido) vai ser higienizada pelos seus autores de forma a não incluir piadas que possam ofender a comunidade gay; o grupo de rock Guns n’ Roses, famoso pelo seu modo de vida, hum, rock n’roll, anunciou que vai retirar de futuras compilações algumas canções que podem ser “ofensivas” – o que deveria logo fazer-nos perguntar de que raio vale estar num grupo de rock se não podemos ofender ninguém.

Nesta intolerância estética nem os personagens de ficção são poupados: James Bond – repito: o personagem criado por Ian Fleming – foi condenado por um grupo de respeitáveis profissionais de saúde por ser “alcoólico”. E já há pressões para que passe a ser representado por actores de cor ou transgénero, para que as minorias supostamente ofendidas fiquem tranquilas.

É este o estado do mundo. Um amigo lembrou-me há alguns dias como nunca teria pensado ser outra vez necessário defender o célebre prefácio de O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, onde o autor irlandês defende coisas como «Toda a arte é ao mesmo tempo superfície e símbolo. Os que buscam sob a superfície fazem-no por seu próprio risco. Os que procuram decifrar o símbolo correm também seu próprio risco» até ao seu famoso desfecho «Toda a arte é inútil». Talvez não o seja – e não é – mas essa possibilidade terá sempre de existir.

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