Ferreira do Amaral e o Passaleão

[dropcap style=’circle’] P [/dropcap] ara a comemoração do IV Centenário da Descoberta do Caminho Marítimo para a Índia fora proposto erigir estátuas a homenagear o ex-governador Ferreira do Amaral, assassinado em 1849, e o Coronel Mesquita, cuja memória precisava ainda de ser reabilitada, pois caíra em desgraça em 1880, após em estado de loucura ter assassinado a família, suicidando-se de seguida.

Camilo Pessanha ofereceu-se no início do ano de 1898 “para conduzir o processo de reabilitação do Coronel Mesquita”, segundo Daniel Pires, que refere, nos finais de Abril “realizou-se uma audiência no Paço Episcopal, para serem ouvidas as testemunhas do processo canónico de reabilitação do Coronel Mesquita. Camilo Pessanha era o advogado que representava a comissão organizadora daquela iniciativa”.

Para compreender o que se passara, convém referir estar Macau em território da China (cuja terra era inalienável) e para os portugueses aí se estabelecerem foi encontrada a solução criada já na dinastia Tang, quando os estrangeiros dentro das cidades tinham o seu quarteirão para viver e governarem-se com as suas leis, desde que não atentassem contra os princípios de soberania chinesa.

Ao contrário de Macau, que desde 1573 era um fanfang cristão português, Hong Kong foi ocupada a partir de 1841 pelos ingleses, após a sua vitória sobre os chineses na I Guerra do Ópio (1839-41). A China, destroçada, foi obrigada a abrir os seus portos ao comércio com os estrangeiros, levando a uma época de humilhação, em que se promoviam guerras para demonstrar a superior tecnologia ocidental e assim conseguir chorudas indemnizações, esvaindo os cofres chineses.

Mudança de sistema

O porto de Hong Kong levantou receio aos portugueses de perderem Macau para uma potência ocidental e assim tiveram que tomar soberania da península e desligar-se do governo chinês, quebrando o antigo Trato. “Julgou-se necessário alterar o sistema de administração daquele estabelecimento e ao mesmo tempo se aproveitou a ocasião de reivindicarmos, na parte em que havia sido lesada, a plenitude dos direitos de soberania no território de Macau. Coube ao distinto Capitão-de-mar-e-guerra João Maria Ferreira do Amaral, levar a efeito esta espinhosa tarefa, pondo em execução o Decreto de 20 de Novembro de 1845, que tornou franco o porto de Macau; estabelecendo um novo sistema de impostos, como tornava necessário a supressão da alfândega, única fonte até ali de receita pública; reformando em vários pontos outros ramos da administração, e reduzindo as despesas dela a dois terços do que antes consumia”, segundo Carlos José Caldeira, que continua: “Aumentou porém extraordinariamente esta indisposição das autoridades chinesas quando o mesmo governador, desempenhando a segunda parte da sua missão, deu começo à reivindicação da independência política de Macau. A posse do porto da Taipa, como ponto dependente do território de Macau; construção ali de um forte, onde foi arvorada a bandeira portuguesa; a recuperação do território ocupado pelos chineses, entre a Porta do Campo e a Porta do Cerco, que marca os limites da possessão portuguesa; a supressão dos direitos de tonelagem, chamados medição, que abusivamente se cobrava para o imperador, sobre os navios portugueses que entravam no porto português de Macau; a expulsão desta cidade dos hopus ou alfândegas chinesas, que parece também abusivamente ali tinham sido introduzidos, e que depois da declaração de porto franco se julgaram intoleráveis…”

Pelas actividades chinesas em Macau, percebe-se considerar a China como seu este território e tal é confirmado pelo foro anual pago pelos portugueses desde 1573. O Governador Ferreira do Amaral assumindo o controlo da terra, dava por findo o fanfang de Macau e deixava de pagar em 1849 o arrendamento, quebrando assim o antigo trato com os chineses. Manifestando uma posição de poder, tomou posse das terras para além das muralhas a envolver a cidade cristã portuguesa, o que logo se fez sentir com a vida do Governador. Ainda em 1847, o Senado queixou-se e reclamou para Lisboa contra a obra governativa de Ferreira do Amaral.

Assassinato do Governador

“Na tarde de 22 de Agosto de 1849, o Governador Amaral saíra a cavalo a passear no campo, como de costume, e neste dia só ia acompanhado pelo ajudante de ordens Leite; a menos de duzentos passos antes de chegar à Porta do Cerco, um chinês se aproximou apresentando um papel como de requerimento, e outros saíram de repente detrás de uns pequenos combros de areia que os escondiam, e ao todo sete o atacaram com taifós (espadas curtas e rectas que os chineses usam aos pares, manejando uma em cada mão), e foi-lhes fácil fazer sucumbir um homem, ainda que bastante valente e corajoso, que estava desarmado e só tinha o braço esquerdo. Derrubaram-no do cavalo, e bem assim ao ajudante Leite. Cortaram-lhe a cabeça e a mão, e sem medo ou precipitação as levaram, passando pela porta do Cerco, onde então havia um posto de guarda chinesa, que a duzentos passos observou pacificamente tudo isto, e deixou passar em sossego os assassinos! Existe ainda hoje uma tosca e delgada coluna de pedra no sítio do assassinato…”, escreve Carlos José Caldeira, que chegara a Macau um ano depois deste episódio e aqui esteve de Setembro de 1850 a Janeiro de 1852.

“Este inaudito acontecimento lançou o terror e a consternação na cidade; organizou-se logo o conselho de guerra do governo, e para corresponder à atitude hostil dos chineses (que de antemão haviam guarnecido o Passaleão e vários pontos vizinhos com numerosas forças, ameaçando uma invasão a Macau), [creio, um pressuposto dos portugueses], foi postar-se na Porta do Cerco na manhã de 25 (de Agosto de 1849) uma força portuguesa, [de 24 homens sob o comando do Capitão Fidelis da Costas] sobre a qual os chineses [do fortim] romperam primeiro o fogo, que foi sustentado com calor desde as 10 da manhã às 4 da tarde. O desejo e a indicação geral era ir atacar os chineses; porém os escrúpulos e observações dos diplomatas estrangeiros residentes em Macao, sobre as consequências do que eles chamavam uma violação do território chinês, e alguns ânimos timoratos conservaram o conselho do Governo em indecisão, a qual foi quebrada pela heróica resolução do tenente Mesquita, que sem ordem superior convidou os soldados que o quisessem seguir a irem acometer o Passaleão”, segundo C. Caldeira.

O Fortim do Passaleão, nome dado pelos portugueses a Pac-Sa-Leong, que após ser ocupado foi logo abandonado, mas desde então, e por 30 anos, o terreno entre o pequeno forte e as Portas do Cerco, numa meia milha de distância, passou a zona neutra.

Vicente Nicolau de Mesquita, nascido em Macau a 9 de Julho de 1818, era filho de Frederico Alves de Mesquita, advogado dos auditórios desta comarca. Assentara praça a 9 de Julho de 1835, frequentou com aprovação a aula de Matemática e prosseguiu pelos postos inferiores até 1.º sargento e por decreto de 15 de Julho de 1847 foi despachado 2.º tenente de artilharia.

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