Biografias e paradoxos

[dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]rando — nalguns momentos de alguns contextos, um actor absolutamente extraordinário — é uma das minhas grandes embirrações, só superado pelos seus discípulos/lacaios Anthony Perkins e James Dean.

Suponho que para partilhar da minha posição baste ler a biografia “Brando Unzipped” (“Brando mas pouco”), escrita por Darwin Porter. O actor assinou, em tempos, uma autobiografia, “Songs my mother taught me”, mas, nessa, tudo é revestido por uma sobrecapa de edulcorante cor-de-rosa.

Gosto de biografias. À antiga, encomiásticas ou mesmo romanceadas. Quanto a esta nova tendência, desbocada e sem freios, devo confessar que me deixa, muitas vezes, perplexo. Que move estes biógrafos?

É que Porter expõe, implacavelmente, o carácter e o comportamento do actor e os efeitos nefastos destes sobre quem o rodeava. A sua homossexualidade frenética, que funcionava a par de uma heterossexualidade ora vingativa ora cosmética, são centrais à análise que realiza.

Bem assim, não poupa outras estrelas de Hollywood – a pedofilia de Spencer Tracy ou o masoquismo brutal de James Dean, por exemplo, entre muitos outros homossexuais encapotados, chocará quantos, ao longo de décadas, abrigaram os seus sonhos burgueses à sombra das mistificações dos grandes estúdios.

O “closet” de Rock Hudson é, à luz do que é exposto nesta obra, algo de absolutamente trivial, embora o mal-estar que isso lhe causava fosse tanto que lhe provocou um tique que lhe destruía, continuadamente, a unha do polegar direito.

Outras biografias têm revelado factos deste teor:

Em “De Niro: a biography”, por exemplo, John Baxter expôs a homossexualidade do pai do actor, o pintor e escultor Robert De Niro, Sr., que chegou a ter um envolvimento amoroso com o enorme Jackson Pollock. Aliás, recentemente, De Niro filho assumiu o facto, com toda a naturalidade, acrescentando que teria gostado de discutir o assunto com o seu progenitor.

“Ginsberg: A Biography”, de Barry Miles, entre muitos outros factos potencialmente chocantes, aborda as relações sexuais entre o escritor beat e o irmão mais novo, deficiente mental, do seu namorado.

Ao escrever estas linhas, ando a ler uma espécie de autobiografia do romeno Ion Pacepa, responsável pelos serviços secretos de Nicolae Ceaușescu, em que a homossexualidade de Yasser Arafat é revelada.

Repito: Que move estes biógrafos? No caso do último livro referido, trata-se, claramente, de um ajuste de contas. Mas, quanto aos demais, os seus autores são, supostamente, admiradores dos biografados. E, contudo, parecem achar por bem expor factos que os mesmos preferiram não publicitar. Porquê? Guiá-los-á uma espécie de moralismo? Se sim, parece-me altamente imoral (como, aliás, os moralismos quase sempre são). Ou estarei a complicar o que é simples e o objectivo dessas manobras será, simplesmente, vender livros, ganhar dinheirinho, à custa da privacidade alheia?

Depois destas leituras, como é bom regressar a qualquer uma das vibrantes biografias que saíram da pena de Stefan Zweig e de que fui grande leitor na adolescência. A de Erasmo de Roterdão ou a de Fernão de Magalhães, por exemplo. Ou, até, à extensa e imaginativa biografia de Camões assinada por Campos Júnior.

Não há verdade que valha uma boa estória.

Em minha defesa, devo dizer que nada de pessoal me move contra os referidos biógrafos. Aliás, Darwin Porter assina, com Danforth Prince, a 17ª edição (2002) do guia turístico Frommer’s relativo a Portugal e aí, a propósito de um bar que tive no Bairro Alto, afirma (e prefiro não traduzir): You don’t have to be an avid reader to enjoy this place, but the breadth and scope of literary knowledge that has been mastered by its owner might leave you deeply impressed. Miguel Martins, who’s usually tending the bar, teaches courses (…) on the history of Jazz, and welcomes everyone – from the most conservative to the most counterculture of hipsters – into his nightlife joint.

Simpático.

Confesso que me dá algum prazer ver-me referido em letra impressa. Apercebi-me disso bem cedo – teria uns dezasseis anos quando o South Shore Chronicle, um jornal da Nova Inglaterra, publicou uma série de artigos sobre Lisboa em que me era dado algum destaque, pois servia de guia ao jornalista, o meu amigo Leo Pilachowski.

Ganhei-lhe o gosto.

Bem mais divertida é a biografia do grande Robert Mitchum assinada por Lee Server e subintitulada “Baby, I don’t care”. Permito-me contar-vos dois dos episódios aí relatados:

Numa entrevista, a dado momento, perguntam a Mitchum, actor da “velha guarda”, sem grandes preocupações metodológicas, acerca dos seus “registos”. Sendo que boa parte da sua carreira fora dedicada aos westerns, ele responde: “Como actor, tenho dois registos: com cavalo e sem cavalo”.

Um outro episódio, de graça dificilmente traduzível, ocorreu quando Mitchum se preparava para contracenar com uma actriz muito religiosa e extremamente avessa a palavrões. Constrangido, um membro da produção abordou o actor, conhecido por praguejar muitíssimo:

— Senhor Mitchum, ela instituiu uma espécie de caixa de esmolas. Se alguém disser merda tem de meter lá um dólar. Se disser porra, dois dólares.

O actor interrompeu-o, perguntando:
— And how much does she charge for a fuck?

17 Jan 2018

Dias ampliados (com os dedos)

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Janeiro

Desacerto. Estes são os dias do desacerto. Se nunca me senti muito da vida («o meu filho é um atado»), agora tudo me sabe a deserto, solidão e danação. A paisagem tornou-se bruta e clara, nítida como lâmina, reflexo do sol nos olhos ao sair da noite. Atravesso-a dolorosamente inclinado para diante, quase tocando o chão que piso, só as pernas se mexem avançando contra o vento, a tempestade de areia, cego ao horizonte, a cheiros e gestos. O nevoeiro de chumbo encheu os ares da cidade. A cada esquina, uma pergunta rasga a rua. Que texto nos prepara para isto? Onde mora o sentido? Com que matéria podemos refazer a alegria? Há pedidos que jamais deviam ser atirados, granada de mão.

 

Lisboa, 11 Janeiro

9h45: com ligeiro atraso para o costume, leio o Expresso Diário no metro enquanto levo pancada das mochilas. Às vezes riposto. O tema era o entediante jogo de empurrões entre Santana Lopes e Rui Rio.

9h55: hoje é só um lance de degraus que deixaram de rolar. Faz sentido complicar a vida de quem sobe ao umbigo do mundo.

9h56: ao telefone com a Elisabete acertamos formato, ilustradores possíveis, papel e espírito de um livro à volta de amores possíveis e impossíveis.

10h01: aceito o pequeno rectângulo, que agradeço e conservo: «Se quiser prender uma vida nova e pôr fim a tudo que lhe preocupa. Contacte o Prof. Karamba que ele tratará o seu problema com rapidez, honestidade e eficácia.»

10h06: reparei que a nossa janela ainda dizia o ano passado, pelo que arranquei o autocolante que anunciava a exposição anterior.

10h15: acedo à conta para ver de recebimentos e tratar de pagar miudezas e nem tanto.

10h25: espreito os emails, despacho os urgentes a que consigo dar resposta, passo outros tantos para a pasta a responder. Assusto-me com o que ali se agita, insectos encurralados.

10h26: chega finalmente o contrato da RTP por causa do Spam Cartoon. Por momentos, chamo-me Joaquim. O erro costuma ser variante do Cotrim, mas desta vez apõem-me o nome do meu avô, o que me faz sorrir.

10h40: irrito-me com a agreste ironia de que, se quiser os livros que ainda estão na insolvente distribuidora, terei, não apenas de pagar o handling, assim lhe chamam em estrangeiro, como o transporte das 17 paletes. Ainda recolhem dinheiro de vendas que jamais verei, mas os pobres precisam da minha esmola para fazerem o trabalho deles.

11h52: entregue que estava mais um Spam Cartoon, reunimos telefonicamente para discutir o que se segue. Com muito esforço, evitamos atirar ao palhaço, i.e., a Trump. E lá continuamos, mesmo depois de desligar, uma conversa de há meses sobre a questão do assédio. Com tanta subtileza em jogo, só lá vai com jantar.

12h45: liga-me a advogada por causa de aditamento a um contrato, coisa de família, que me obrigada a parar tudo, imprimir o dito em quadriplicado, rubricá-lo, assiná-lo e enviar para a minha irmã, por estafeta.

13h15: devíamos comemorar certo encontro, mas as urgências obrigam a almoço rápido, sem mais história que a dos afazeres rotineiros. As datas dos amores possíveis devem celebrar-se contra a agenda, solverem-se na carne dos dias.

15h00: reunião com o Alex Cortez e o Daniel Moreira para acertar detalhes do livro (e dois CD’s) «Poetas Portugueses de Agora». Entusiasmo-me com as múltiplas qualidades, as que ouvi e estas que vejo agora.

15h45: ajudo o Bruno [Mantraste] a montar a exposição relâmpago que inaugura daqui a umas horas. Não há razão para alarme. Estendo o fio que acerta o horizonte. Ajudo a complicar umas contas. Prego uns pregos. Maravilho-me com o que vejo. Os esboços possuem uma tal intensidade que parecem brilhar (exemplo aqui na página). O Teófilo bate à janela: vem inesperadamente dar uma mão.

16h30: por desacerto da atenção, consegui que acontecessem três eventos ao mesmo tempo. Peço à Mariana que acompanhe o Luís Maio, na sua sessão na biblioteca de Oeiras à volta do «Ninguém Sabe Onde Está». Ninguém quis saber.

17h30: vejo a mensagem do Mário Gomes a convidar-me a colaborar na belíssima revista Diaphanes. Uma tentação.

18h00: embate com a realidade do que se entende por grande público. Vejo-me cercado de velhas convenções e mal-entendidos. Entristece-me, apesar de o ter previsto.

18h25: ao desligar o telefone, ainda leio mensagem com ultimato em torno de projecto que me parece estratégico. Tento desajeitadamente remediar o estrago provocado pelo meu desarranjo com os tempos.

18h30: abrimos o segundo ano do Obra Aberta com os recém publicados [José] Anjos e Inês [Fonseca Santos] a falar de poesia, infância e o mais que se solta dos livros. Doravante e para complicar, acederei ao microfone.

20h05: regresso à exposição que já vai alta em animação e gente. Na janela, mora desenhado o título «Sebenta do Diabo». Nas mãos de cada um vejo palpitar coração abraçado por espinhos.

20h35: avanços pelos cumprimentos e saudações em direcção aos braços do Jorge Colombo, que não vejo há anos. Continua grande instigador da curiosidade, dispensário dos mais díspares saberes e atenções. Sacudimos conversa, estendemo-la e nela nos sentámos prazerosamente.

22h05: não se fez fácil fechar, com os de última hora a pôr pé na porta. E olhos no diabo da sebenta.

 

Santa Bárbara, Lisboa, 12 Janeiro

Os esboços, mais do que o acabado, aproximam-me do gesto criador, da fragilidade e da potência. A imperfeição suscita-me reconhecimento, dá-me o conforto de um qualquer entendimento dos rasgos que nos abrem o mundo para o ver por dentro. O conjunto de esquissos desta «Sebenta do Diabo» do Mantraste (editada em risografia e quase toda no vermelho (proibido) pela Stolen Books) não cessa de me comover, de me divertir, de me surpreender. O fim último dos desenhos foi tornado impossível pelo amor e a exposição original, por força das coisas, teve de se chamar: «Desculpem, Apaixonei-me e Não Fiz Nada». Os desenhos, aqui agrupados, por junto com alguns já apurados e coloridos, possuem cuidados diferentes, mas sem perderem em momento algum a intensidade do olhar original do Bruno. Relendo o fantástico S. Cipriano, invoca infância em ambiente rural («foi o meu avô que podou as vinhas do mal») com a ilustração de ditos e lendas e episódios e animais e plantas e fascínios: poços que têm no castelo o seu reverso, mergulho no desconhecido e construção da segurança. Rico de detalhes e composições, ingénuo e metafórico, denso e poético, sugere a cada passo que estamos rodeados de fogos e corações. E diabos.

 

Barraca, Lisboa, 13 Janeiro

Andávamos há meses a escavar em busca do título para o romance do Valério [Romão] que fecha a trilogia. Ele descobriu-o para satisfação do editor: «Cair Para Dentro.»

17 Jan 2018

A última garrafa (num consultório privado)

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]OUTOR: Pode até ser.

(silêncio)

 

RAUL: Pode até ser, o quê? O comprimido ou o livro?

 

DOUTOR: Ambos. Ambos, meu amigo. Diga-me uma coisa, você já contou essa sua doença a alguém, para além de mim?

 

RAUL: Claro que não, doutor. Não sou doido.

 

DOUTOR: Claro que não. Precisava apenas de me certificar.

 

RAUL: Porque pergunta isso?

 

DOUTOR: Por nada. Curiosidade apenas.

 

RAUL: (sorrindo) Parece que o doutor começa a estar bastante interessado no meu caso.

 

DOUTOR: Efectivamente, estou.

 

RAUL: Olhe, porque é que não fazemos um negócio?

 

DOUTOR: Como assim?!

 

RAUL: O doutor dá-me o comprimido e eu conto-lhe tudo acerca da minha doença, para que possa escrevê-la, logo assim que eu morra. E escreve como se não se tratasse de um caso real, mas fictício ou filosófico, como queira. Está a ver?

 

DOUTOR: Está doido, homem? Não quero escrever nenhum livro, nem sequer seria possível escapar de tal situação. Ou você julga que pode ir para casa e tomar o comprimido na sua cama? Não! É preciso que esteja num hospital ou numa clínica e seja acompanhado por um médico que se responsabilize por todo o processo, que neste caso seria eu. Depois, obviamente, o seu caso teria também de ser reconhecido pelos outros médicos.

 

RAUL: Não me pode dar o comprimido, simplesmente? Ninguém precisava de saber.

 

DOUTOR: Como não? Assim que o encontrassem morto, vinham imediatamente aqui.

 

RAUL: Mas ninguém sabe que aqui vim!

 

DOUTOR: Como não?! Você está registado…

 

RAUL: Não é difícil fazer desaparecer uma ficha médica, doutor.

 

DOUTOR: Então e o que fazemos à enfermeira? Matamo-la?

 

RAUL: Ela não se vai lembrar, doutor. Entra tanta gente aqui no consultório.

 

DOUTOR: Claro que se vai lembrar. Você não é pessoa que passe despercebida. Mais a mais para uma mulher. Nem pense nisso. Vou esquecer que me fez essa proposta.

 

(silêncio)

 

DOUTOR: Deve ter sido a primeira vez que tentou algo de ilegal, não? Ainda vai acabar por começar a viver, homem. Se continua assim…

 

RAUL: O meu problema não é moral, doutor. Se não parar de pensar desse modo, estamos aqui a perder o nosso tempo. Crê que não é possível fazer com que a enfermeira não se lembre de mim?

 

DOUTOR: Suborno, quer você dizer?

 

RAUL: Por exemplo.

 

DOUTOR: A continuar assim ainda acaba mas é no governo, homem. Está mesmo a falar a sério?

 

RAUL: Doutor, pareço-lhe homem para brincadeiras?

 

DOUTOR: De qualquer modo, ainda que fosse possível, seria muito fácil saber-se que o comprimido saiu daqui.

 

RAUL: Porquê?

 

DOUTOR: Porque há registos de todos estes comprimidos. A polícia começaria a investigação imediatamente por aí. E como é que você quer que eu lhes explique a falta de um dos comprimidos.

 

RAUL: Roubo.

 

DOUTOR: Roubo? E assaltavam-me o consultório para levar um comprimido?

 

RAUL: Porque não? Você até poderia corroborar a hipótese de eu ser um caso obsessivo, que tinha tentado tudo para que me desse o comprimido, que você rejeitou peremptoriamente. E até me tinha sugerido um amigo psiquiatra.

 

DOUTOR: Então já não precisamos de omitir a consulta?

 

RAUL: Não! Está a ver, só traz vantagens. Já não é necessário a cumplicidade da enfermeira.

 

DOUTOR: E como é que você entrava aqui?

 

RAUL: Não é difícil, doutor. Provavelmente o prédio não tem segurança. E assaltos é o  que se vê mais por aí, doutor! Mais assalto, menos assalto, não faz muita diferença. Não é necessário muita explicação.

 

DOUTOR: De qualquer modo, tinha de existir um arrombamento, por certo.

 

RAUL: Também não é difícil.

 

DOUTOR: Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, que julgo que está a esquecer. Como é que você iria saber quais eram os comprimidos e onde estavam?

 

(silêncio)

 

RAUL: Pois essa parte já é mais difícil.

 

DOUTOR: Esqueça isso, homem. E, para além do mais, não estou interessado na contrapartida do negócio.

 

RAUL: Não quer escrever sobre o caso?

 

DOUTOR: Talvez queira, mas como facto da medicina e não como ficção ou o que quer que seja. Começo, de facto, a acreditar que a sua doença é real, percebe?

 

RAUL: Quer, portanto, manter-me vivo, é o que é. Estudar-me.

 

DOUTOR: Se quiser pôr as coisas desse modo.

 

RAUL: Eu não quero pô-las desse modo, doutor. Já lhe disse que não tenho tempo. Não me faltava mais nada! Além do que sofro, transformar-me em cobaia.

 

DOUTOR: Mas parece que não tem muitas outras alternativas.

 

(silêncio e o doutor serve mais whisky)

 

RAUL: Escute, doutor. Desculpe voltar ao assunto. E se você dissesse à polícia que eu cheguei aqui armado e que, depois da enfermeira ter saído, o ameacei com uma arma para obter o comprimido. Você nada pôde fazer, senão entregá-lo. Assim que sair daqui, telefona imediatamente à polícia a participar o roubo e dá-lhe todos os meus dados, que estão na ficha, de modo a que eles possam intervir e impedir que use o comprimido. Está a ver? Uma coisa limpinha. Nem você se compromete, nem eu saio daqui sem o comprimido.

 

DOUTOR: Mas seria necessário que a polícia encontrasse essa tal arma em sua casa. E não me vou arriscar a que você diga que sim e, depois, não há arma nenhuma. Quem se lixa sou eu. Compreende?

 

RAUL: Podia ser uma faca! Trazia uma faca grande de cozinha comigo. Não vai duvidar de que tenho uma, pois não?

 

DOUTOR: E se me pedem para descrever a faca, o que é que faço?

 

RAUL: É fácil, doutor. Se quiser descrevo-lha ou, então, diz muito simplesmente que perante a surpresa e o medo nem sequer reparou nas características da faca. Que me diz?

 

DOUTOR: Digo-lhe que começo a ter medo de si, é o que lhe digo. Porque você não desiste, realmente.

 

RAUL: Se o doutor soubesse o que sofro não estranharia a minha insistência. Peço-lhe apenas um pouco de piedade, doutor, por favor.

 

DOUTOR: É impressionante a mente pragmática que você tem!

 

RAUL: É a dor que me traz todo este pragmatismo, doutor.

 

DOUTOR: Responda-me com toda a sinceridade. Estaria disposto a matar, por esse comprimido?

 

RAUL: Não lhe posso responder a essa pergunta, doutor. Nunca sabemos aquilo de que somos ou não capazes de fazer. Mas posso dizer-lhe que estou disposto a quase tudo para morrer.

 

(o telemóvel toca novamente)

 

16 Jan 2018

Castor e Pólux

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos na era dos filhos gémeos, eles nascem de forma talvez pouco espontânea mas a realidade deste fenómeno não pára de crescer. Estar acompanhado, vir junto, começar unido, é uma plataforma de entendimento recente, e, esta dualidade quase nos remete para um corpo dominante com um alter-ego associado que firma o irmão, isto no tempo em que os casais se derretem à medida que o Sol sempre uno os faz perecer no asfalto, de modo que, e cada vez mais, de um, nascem dois, ao contrário de dois, nasce um. Tudo nos remete para o duplo a haver na medida em que também as doenças que tinham designações simples tais como, depressivo-compulsivo, são agora muito justamente designadas por bipolares.

Creio que estas polarizações estão patentes na Terra como modelo bem demarcado, agora mesmo se gela no hemisfério Norte e se escalda no hemisfério Sul, as zonas intermédias sobem e descem num dia, muito mais do que esperamos (fortes amplitudes térmicas) e até no Sarah a neve cai. Castor e Pólux não eram filhos do mesmo pai, o que pode acontecer mesmo aos mortais gerando produções onde a família nuclear se esvai e se confunde com um qualquer modelo de produção fragmentada e como abarcar a mudança da multiplicação nestas individuais presenças que somos todos nós no rigor per capita onde construímos um mundo de severos independentistas? Parece um desafio a contemplar pois que nascemos algures um de cada vez e sozinhos e encaramos o mundo por essa perspectiva.

Portugal é, no entanto, um país apto para os desdobramentos do ser. Veja-se a ficção nacional que está pilhada de duplos que falam entre si, que têm um si, que se contemplam em “si” que se projecta em outrem, que sendo o mesmo é outro alguém. Vejamos a noção de uma verdade ou situação simples que logo se transforma em outra coisa oriunda da primeira impressão recebida. Vejamos os motes que mudam para delírios não deixando para trás qualquer espécie de semelhança perante a avançada substância “manufacturada” de verdades transfiguradas.

Não se dando conta de como isso é tão natural como o respirar, procura-se a “alma gémea” que incorretamente designada quer nem mais nem menos aludir ao grande amor, aquele que faz de espelho, que é igual a si, encaixa em si, é o outro por extensão sendo ainda o reflexo distendido por multiplicação de uma desassombrada imagem de si. Somos capturados para experiências de assimilação compulsiva e esta dinâmica constante abrange as leis que ora são assim, mas, e é neste mas, que entretanto muda, que se vai legislando outras realidades mutáveis feitas para que as equações legislares abranjam as caprichosas manobras das fissuras da objectividade dos factos. O isco da complexidade precipita no abismo as mais ricas naturezas e empata-nos a vida de forma incongruente.

Os Dióscoros… os Diáconos… os Dinossauros são grandes Ovos chocados para resultar numa associação indivisível e só os deuses retiram o seu para resgate filial, os Homens, esses, adoptam tudo, os deles e os seus, são useiros e vezeiros na arte da consubstanciação. É claro que gostam mais dos seus que são menos perfeitos e menos capazes, mas essa é a melancolia humana que assim mesmo dos próprios deuses se defende. Os Diáconos que passaram a bispos começaram por roubar os filhos, não às lindas Ledas, mas às filhas do Homem que assim as subtraíram a um Ovo para uns ninhos de víboras, e que num local múltiplo passaram a ter vários nomes e muitas existências sem que ninguém coordenamente conseguisse alinhar por uma verdade simples e uma justiça salomónica.

De Castor e Pólux (Dióscoros) sabiam apenas os antigos navegantes portugueses que se chamavam fogo-de-santelmo e que era tido por presságio favorável à navegação. / eu não sou eu nem sou o outro sou qualquer coisa de intermédio pilar da ponte do tédio que vai de mim para o outro/ : assim permanecemos arquetipicamente como novelos de lã de cabras sem pastor. – Vimos mas não vimos- sabemos mas desconfiamos – acreditamos em tudo que dê jeito – depois já não acreditamos – queremos – mas já nos finda o querer – somos- mas não somos – fomos – já éramos. Fingimos. Mas o poeta é um fingidor! Somos todos poetas, excepto os que o são e é neste binómio que andamos equivocados face a nós mesmos, esse ser remoto que entretanto se foi.

Casas geminadas, condóminos fechados, lar simétrico ao lado, fabricação de duplos humanos em baixo, dúplex individual ( paradoxismo de uma existência limitada) toda a nossa estrutura ambiental e espacial nos empurra para o desaire, isto, quando um dos progenitores não foge com a tenra presa que é o filho subtraído a uma indizível questão. Os poetas que todos se acham deviam agora pegar em pequenas frases como estas nascidas de poetas que o foram: /preciso de espaço para ser feliz/e de outro tanto para ser raiz: Vasco de Lima Couto. Destes, porém, já ninguém quer saber. Há sempre espaço, afinal, para todos, nos poleiros de alguns. E se o voto é rentável para os Partidos, esses gémeos singulares, pode ser que o voto duplo cubra de festim esses laboriosos grupos cujos elementos são deles e de mais alguém.

« Romeiro, meu romeiro, quem és Tu?» – Ninguém.

16 Jan 2018

Fonseca Santos. 2018. Inês. Suite sem Vista. Lisboa. Abysmo.

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a poesia da Inês, há uma situação paradoxal que é explorada no laboratório vital. De uma forma activa, a compreensão faz ver, dá a ver. Por um lado, a interpretação estrutural dos espaços privados, públicos, subjectivos e cósmicos, é feita toda ela a partir do interior íntimo da sua habitação.

Este interior é tudo menos geométrico. Não se opõe a nenhum exterior. É antes o ponto de irradiação da nossa vida. É heterogéneo. Permite uma geografia da instalação da existência e, por isso, faz vibrar também o desenraizamento. O existencial é constituído a partir da privacidade. Sente-se tensa a relação entre o limite extremo abobadado e o aquém, onde cada um tem, não o seu ponto de vista, mas o seu corpo próprio.

Opera-se a personificação dos objectos. Melhor, porque não há objectos, das coisas. Há peças. Peças de mobiliário. O mobiliário é a totalidade das coisas, cidades e campo, edifícios públicos e privados, casas, quartos, hotéis: o recheio do mundo, as peças de mobiliário da nossa existência.

Em ambos os casos, percebemos que é o quarto, recesso recôndito do amor e de tudo o que lá se faz sem amor, a partir de onde se expandem as vidas dos amantes num único mundo, numa única vida, numa eternidade à escala universal. E nem mesmo quando é uma suite de Hotel deixa de ser o sítio inóspito para onde somos atirados, despidos de nós. A morada provisória transforma-se numa morada permanente. Inverte-se o sentido habitual. Afinal a vida não é mudança mas a imobilização que nos pode prender a um sítio, num tempo que nunca mais se transformará. E, contudo, está em permanente mudança como Jonas na barriga da baleia no seu percurso interior e submarino. Ou, como nas antigas cosmogonias, a vida é a barca em que embarcamos e de onde desembarcamos.

A cidade inteira, a Terra, o céu é o interior. Embora a astronomia tivesse afastado irremediavelmente a subjectividade das estrelas, para as transformar em objectos regimentados por regras e leis, ainda subsiste a compreensão para a claustrofobia das vidas das pessoas no seu encaminhamento, as pessoas que encontramos e aquelas de quem nos desencontramos, os que ficaram para sempre e os que se foram não menos para sempre. Em XII, lê-se este lugar, “suite sem vista”, “passa a subúrbio”.

Mas é no próprio ponto de vista, na perspectiva, ou talvez melhor do acesso, que percebemos sempre de um modo negativo a presença dos objectos das nossas vidas, presentes, passados e a haver.

Em I., lemos a “cegueira voluntária”, o “encobrimento” como espaço estrutural criador de opacidade para o presente, mas também o “esquecimento”. O esquecimento não é um acto psicológico negativo que nos faz esquecer apenas, ou não nos deixa lembrar, do passado, mas é o que pode apagar um mundo e por sua ineficácia também o manter vivo. Por mais que se possa “tapar os olhos”, não é possível “esquecer o cheiro do outro”. O outro está presente, mas é apenas a sua impressão, deixada em nós do passado. Com ele somos o estado em que fomos deixados.

A vida é a lentidão do tempo reflectida na lentidão do movimento, da deslocação e na dificuldade ou aparente impossibilidade de acontecer qualquer transformação e mudança. “Os passos lentos/ devolvem o peso ao corredor”. O outro não é residual: “a sujidade das unhas como a humidade ou bolor interno”. A rapariga “cega atravessa paredes”, tem a densidade de um fantasma, porque como diz a filosofia existe em e por si, exclusivamente para si. Não é vista. É um fantasma a conviver com o fantasma daquele outro.

Só olha para “A cama: só cama, demasiada, insultuosa/ tudo a dobrar ou excessivo para quem fica numa casa sem outro que a houvera habitado”. O quarto todo, a casa toda, é como se fosse o hotel, mesmo que habitado na suite, no melhor quarto. Mesmo que o hotel não fosse de beira de estrada, porque tinha sido um sítio para dois. E tudo sobra: “dois lavatórios pelo preço de um, dezenas de miniaturas// para o asseio, cofre, minibar, canetas, um postal,// a garrafa de Evian por cortesia.”

Em II, descreve-se esta sobra. Há “metade da vida”, quando se “respirava a vida inteira cronométrica”. Desce-se ou sobe-se até “Ao lado, [até a]o casal demasiado brando,// roupões brancos, lençóis brancos, dedos brancos”. Qual o sentido da brandura? A da ternura ou a do tédio que permite ver o desfecho cruel mas inevitável de quem quer literatura e não a vida? A verdadeira solidão, porém, não é compreendida na sua dinâmica sem se perceber na ”desolação da abominação” como diz a teologia.

Em III., a geografia da solidão é a da desolação da abominação, é a do abandono. E o gato vadio que é levado para casa e “mija” em cada canto não reclama um espaço para si. O que faz é para se reconhecer ainda, a partir de um detrito de si próprio: A cartografia da vida é ““um mapa mental que jaz sepultado onde outra mulher exibe a cabeça dele, um troféu// terra devastada de ninguém.”

O outro é outro, é adulterado e alienado. E é afirmado na sua impermeabilidade a nós. Segue a sua vida, faz a sua vida, com outra pessoa. É esquizofrenia pensar numa criatura da nossa cabeça ser a criatura na cabeça de outrem, a fazer vida com outra pessoa.

Se os espaços amplos permitem espraiar-nos, lidamos com espaços estreitos, espeleologicamente: a “escavar” (IV). Por onde vamos é “túnel”, só há “dentro” e é “sem vista”. E na demanda minimal por um sítio onde se possa estar, havemos de topar com a “caixa do primeiro luto”, “minúsculo caixão do passarinho negro”, “esqueleto do pássaro e o que outrora terá sido a rapariga.” O “passarinho” (Catulo) símbolo zoológico das delícias do amor, da promessa, da esperança. E também da despedida, da morte, do desespero.

As formas de acesso identificáveis permitem-nos descer à altura do passado, ao subterrâneo, ao tesouro da vida (Santo Agostinho). Nenhuma memória sobrevive impune. É necessária a sua reconstituição afectiva. Todas as mortes, todas as nossas sobrevivências, estão arredadas do quotidiano. É necessário esconjurá-las, mesmo que depois nunca mais nos larguem. A vida é habitada por estes vários revestimentos. Somos variadíssimas pessoas que ainda temos contacto residual com vidas passadas, habitualmente em sossego.

As memórias afetivas permitem esta compreensão de diversas vidas que temos e a dificuldade em acedermos ao modo como éramos sós ou com alguém, antes ou depois, nas diversas idades das vidas. A solidão configura a existência, crucifica-a. O outro despega-nos e desprega-nos como “iunx”, a ave condenada a vaguear uma existência sem fim, pregada às rodas de um carro, a rodar por todo o terreno, a toda a velocidade. A roda não é a da fortuna mas a da prisão onde Afrodite e Ares foram presos com cavilhas por um Hefesto ciumento.

Outrora (V), era o tempo das cerejeiras. Era o tempo que marca o fim do inverno e o princípio da primavera. Era o tempo da contemplação da transitoriedade que é metáfora viva da vida na sua crónica curta duração, símbolo do Samurai no Japão não apenas da guerra mas também da sensualidade do fruto da cerejeira. Aqui há “cerejeiras a avançar agressivas pela rapariga dentro”.

A sujidade luto das unhas, vestígio residual do outro, requer (VI): “corta-unhas”, “lâminas”, “eixos metálicos”, “dedos”. Mas também sobraram “peles”, “pensamentos”, “spleen”. O baço está cheio de bílis negra. E a melancolia actua como todos os grandes impérios: “ferindo e alastrando, sangrando”. (XIII): “Espelho e parede dão o mesmo a ver”. “Bebe de novo o tédio do lado rachado do corpo. E da boca da rapariga sai a palavra sangue.”

É com o cerco feito à cidadela que pode nascer uma outra possibilidade (VII): viver e fazer literatura fazer amor e escrever sobre o amor escrever e ser inscrito. Mas a possibilidade de oferecer resistência ao vazio de sentido, à partida do outro, à abominação da recusa, à amargura da interdição pode não existir. Talvez o da nossa usura da vida por mor da arte e não por mor da vida.

Porque só há outros para poder não haver outros. Só há encontros para poder haver desencontros. Só há promessa para poder haver despedida. E demora muito tempo a perceber que foi sempre esta a chave para a nossa compreensão do mundo. E sim (VIII) haverá “Silêncio, nenhuma voz, descanso ruminante de electrodomésticos, limpeza de quartos, porta, paredes, suite sem vista”, porque “A rapariga é a própria suite dentro da qual ela se encontra” (IX). A rapariga vê-se no seu interior como dentro de uma suite sem vista para a rua. Mas a rapariga poderá nunca ter saído de si. Quem quer ter a sua vida configurada pelo sentido da arte já deu a sua alma ao diabo ou tê-la-á vendido. Terá de compreender, e o mesmo quer dizer aceitar, que não há volta a dar. Foi para além do ponto, a partir de onde não há regresso: “Não te será permitido amar”. “O artista é irmão do louco e do criminoso.” (Thomas Mann).

A presença invisível àquele outro único que poderia ter olhos para ela e de cuja presença depende a sua existência não é já actual. Ter pertencido a alguém é reflexo da memória no espelho. Um reflexo do reflexo, inconsistente outrora. Mas agora já não existente. Já só tínhamos o reflexo do próprio que era o outro. Agora, existindo só como fantasma, temos o reflexo do reflexo. O outro insinuou-se e ficou inoculado no próprio. O próprio é um reflexo que age ou reage ao outro na sua ausência. É residual em si de qualquer coisa que ainda tempera e dá um gosto, melhor, um travo do que foi. Mas, agora, é só “o amargo de boca”.

Como sobrevive a rapariga “amputada de si, do outro que lhe dá prazer naquele sítio que como na alma acolhe o geodésico instante da loucura” (XI)?: “o olho do medo brilha e amplia o espaço onde não se pode estar// dentro das palavras é dentro das paredes da suite sem vista// cheiro insuportável da rapariga era o de quem escreve.” (XIV).

16 Jan 2018

Tédio profundo (“acedia”)

[dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]oão Cassiano, João Damasceno, João Crisóstomo com São Tomás de Aquino consideram a “despreocupação” um pecado mortal. Não um pecado venal (“perdoável”). A tradução do substantivo feminino latino “acedia,-ae” é polissémica.

Ou “aborrecimento”, “tédio”. Ou “despreocupação”, “ausência de cuidado”. A etimologia da palavra na segunda acepção vem do grego “akedos”. “Kedos” quer dizer “cuidado”, preocupação. A grafia “A” em “A+kêdos” representa o alfa privativo. Assim, a palavra quer dizer “sem cuidados ou preocupações” “desprovido de cuidados ou preocupações”.

O interessante é que a primeira acepção da palavra é inteiramente latina. Tomás de Aquino na Questão 35 da Suma Teológica concebe-a como um processo, não apenas como um estado de espírito, mental ou corporal. “A-cedere” é a situação de estar a tentar fugir a Deus. Esta fuga não é passiva mas é um debate dramático para nos libertarmos de Deus e do seu sentido (Theunissen). Deste modo podemos ler o sentido etimológico da palavra grega: tédio, aborrecimento, exaustão, fadiga, neura, etc., como o resultado de um processo activo de fuga.

“Ab-horresco” é um verbo incoactivo de fuga em face do horror. Todo o aborrecimento é, de facto, o que provoca uma fuga em face do horror. Não é um horror que meta medo por causa de um ente, que crie a angústia do pavor, o pânico. É um horror que é interpretado como esvaziamento activo, falta de sentido, inanidade. As horas do dia não levam a lado nenhum, o tempo parece não passar. O tempo não passa. As horas passam ao largo. O fim do dia é exactamente tão estagnado como o princípio do dia. As semanas trazem sempre o mesmo desespero, o mesmo vazio, não fazem sentido, não orientam nem dirigem.

São João Cassiano diz que a hora da “Acedia” chega ao meio dia, para inquietar os monges com a sua força máxima. A situação do aborrecimento inquietante do tédio de não ter nada para fazer, estar des-preocupado, é estudada no laboratório existencial que é a vida monástica. A divisão do tempo do dia é dado pelo tempo da oração, das refeições, do trabalho comunitário. Mas as pessoas que se encontram nos mosteiros afastaram-se das preocupações do dia-a-dia do mundo, da sua ambição, das várias tentações provocadas pela “cobiça, dos olhos e da carne”. A vida num mosteiro é pensada “de fora” como afastamento, exclusão, reclusão. No interior da vida pessoal quer dizer uma escolha activa para viver uma vida “a fazer a vontade de Deus”, uma vida que expressa a exposição ao sentido dos dias que vem de uma dimensão diferente, absolutamente diferente, da agenda do nosso quotidiano, seja ela profissional, seja ela afectiva ou até mesmo religiosa. Este ponto fundamental decide o princípio de compreensão de um fenómeno que projecta de certo modo a modernidade.

O mosteiro e a vida monástica representam a vida com sentido, a cumprir-se na realização da vontade de Deus. É a possibilidade extrema e radical em que se fizeram todos os votos positivos para a consagração a Deus, uma vida dedicada a Deus. Não se trata apenas de abdicar do mundo nem de abdicar da ambição mundana. Trata-se de uma escolha positiva em que todas as acções são acções de graça. Orar é a expressão máxima da vida, porque resulta do contacto em “conversa” com o Pai. A “dieta” e o “regime” do dia são o resultado da renovação, que é o processo de “meditação” no sentido que configura o “monge” sob o “desígnio” e a vontade do Pai. Esta hipótese existencial faz sentido, preenche, enche o coração de alegria. O mundo e as suas ambições ficam de lado, esquecidas, obliteradas. Deixam de fazer sentido.

Mas o que se passa na sexta hora quando a inquietação do monge é máxima? Há alguma recidiva? Quererá o monge regressar ao mundo, como o prisioneiro quer sair da sua cela para um mergulho atlântico ou sentir o calor do sol no rosto? Não. A possibilidade extrema do aborrecimento é o da fuga à vida, ao quotidiano, da repetição, da ausência de novidade, do mesmo que é inultrapassável. A eternidade é a vida no mosteiro com as mesmas divisões de horas, as mesmas refeições, o mesmo trabalho. Deus desapareceu do mosteiro. Um mosteiro sem Deus é como um templo em ruínas. O monge não tem já o mundo para onde regressar, porque nem o mundo é habitado por Deus. Atirado violentamente para a interrupção total da passagem das horas, o momento é de horror, desespero, angústia. Não há apenas a abertura à consciência de si próprio como eu. É a vida, o mundo, e Deus que surgem na abertura resolutiva (“Erschlossenheit”, Heidegger) total.

12 Jan 2018

Tomada de posse e despedida dos Governadores

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ebruçámo-nos já sobre o Bastão de Comando entregue ao Governador e os bastões dos vereadores e ouvidor. Agora prosseguimos, descrevendo a pompa das cerimónias de uma tomada de posse e despedida de Governador.

Em 24 de Janeiro de 1851, “o Governador Conselheiro Capitão-de-Mar-e-Guerra, Francisco António Gonçalves Cardoso, nomeado, por decreto de 17 de Outubro de 1850, para suceder ao Conselheiro Capitão-de-Mar-e-Guerra Pedro Alexandrino da Cunha, que falecera em Macau [a 6/7/1850, após 37 dias como Governador], veio de Hong Kong, onde se hospedara em casa de Eduardo Pereira, a bordo da corveta D. João I. O desembarque efectuou-se no dia 26, ao meio-dia, no cais chamado do Governador [situado na Praia Grande]. Após a recepção no Palácio do Governo, o novo Governador ouviu missa na capela do Palácio. À noite, às 7.00 horas, realizou-se um jantar com a assistência dos membros do Conselho do Governo e da Câmara Municipal, cônsules, comandantes das corvetas e fortalezas, autoridades e vários empregados públicos. Foi investido na posse do governo desta Colónia, em [3 de] Fevereiro de 1851, pelas cinco horas da tarde, na porta principal da Fortaleza de S. Paulo do Monte, entregando-lhe o [Bispo D. Jerónimo da Mata, Presidente do] Conselho do Governo a chave da dita fortaleza e o bastão e com eles a posse do Governo desta cidade com todas as artilharias e armas, apetrechos e munições de todas as fortalezas da guarnição. Depois da posse, o Governador dirigiu-se à Igreja da Sé, onde depositou o bastão aos pés da Nossa Senhora da Conceição e onde se cantou um solene Te-Deum, seguido de recepção no Palácio do Governo”, segundo Luís Gonzaga Gomes.

E com este ilustre macaense, pelas suas Efemérides, continuamos: em 19 de Novembro de 1851, “o Capitão-tenente da Armada Isidoro Francisco Guimarães desembarcou às 15.00 horas, sendo recebido pelo Governador cessante Francisco António Gonçalves Cardoso e demais autoridades. Após a recepção, no Palácio do Governo, o Governador cessante dirigiu-se à Sé, para buscar o bastão que havia depositado aos pés de Nossa Senhora da Conceição, dirigindo-se, em seguida, ao Monte, seguido das autoridades. Após a entrega do bastão e das chaves da Fortaleza e troca de discursos, dirigiram-se os dois governadores para o Leal Senado, a fim de o novo Governador assinar o auto da posse, findo o qual voltou à Sé, para depositar novamente o bastão aos pés da Nossa Senhora da Conceição. Isidoro Francisco Guimarães, durante os anos da sua inteligente e próspera governação, conseguiu restaurar por completo o estado financeiro da província que, encontrando-se em 1852 deficitário, em 48.309 patacas, apresentou, em 1862, um saldo de 104.633 patacas”.

Descrição oficial do acto de posse

Sobre este mesmo assunto, no Boletim do Governo na “parte não oficial, Macao, Sábado, 22 de Novembro de 1851. No dia 19 do corrente, teve lugar a entrega do Governo de Macau, determinada nos actos oficiais que deixamos transcritos. Às oito horas da manhã desse dia embandeiraram as Fortalezas da Cidade, e próximo às três da tarde desembarcou nestas praias o novo Governador nomeado, o Exmo. Sr. Isidoro Francisco Guimarães Júnior, sendo recebido no cais pelo Governador antigo, o Exmo. Sr. Francisco António Gonsalves Cardoso, Juiz de Direito da comarca, Secretário do Governo, Ajudante de Ordens, Autoridades civis e Militares, Oficialidade do Batalhão Provisório, & c. e pelo Batalhão de Artilharia, formado em parada, que fez a devida continência. A Fortaleza de S. Francisco lhe havia salvado na passagem, bem como a corveta ao sair dela S. Exa. recebeu com a maior afabilidade as felicitações que lhe dirigiam.

Depois partiu o Governador Cardoso para a Sé a buscar o Bastão que havia depositado aos pés de Nossa Senhora da Conceição e de lá dirigiu-se para o Monte, seguido das Autoridades, e da mesma forma foi postar-se em proximidade daquela Fortaleza o Batalhão de Artilharia. Depois das quatro horas chegou o novo Governador, acompanhado da Oficialidade do navio que acabava de comandar, a qual lhe queria testemunhar a sua respeitosa afeição seguindo-o de perto, por cujo motivo o mesmo Exmo. Sr. caminhou a pé até ao Monte.

À porta da dita Fortaleza teve lugar a entrega do Bastão, pronunciando o Exmo. Dr. Cardoso, estas palavras: <Há nove meses que por ordem de Sua Majestade tomei conta do Governo desta Província, encargo este muito superior às minhas forças. Neste mesmo lugar recebi das mãos do Conselho do Governo este Bastão de Comando e tenho feito até hoje quanto é humanamente possível para desempenho da difícil empresa que me foi confiada e para prosperidade e bem-estar dos honrados habitantes de Macau: que tudo é pouco quanto se faça por este nobre povo. Entrego com muita honra nas mãos de V. Exa. o Bastão e a Chave desta Fortaleza, que me estavam confiados e espero das virtudes e vastos conhecimentos de V. Exa. ajudado de assíduo trabalho, e de coadjuvação dos habitantes desta Cidade, que seja feliz o Governo de V. Exa. e torne próspera a sorte de Macau>.

O Exmo. Sr. Guimarães respondeu assim, <Exmo. Sr. Conselheiro Cardoso! Tenho muita honra em receber das mãos de V. Exa. as Chaves desta Fortaleza e este Bastão, insígnia da autoridade superior da Província de Macau, que o Governo de Sua Majestade e Rainha Nossa Augusta Soberana, me confia.

Sinto que uma importante Comissão de serviço público, em que o Governo da Rainha tem de empregar a V. Exa. prive os dignos habitantes de Macau da fortuna de continuarem sob o Governo de V. Exa. – Governo a que V. Exa. se tinha dedicado com tanto acerto e tão incansável zelo e actividade. Permita-me V. Exa. que eu o felicite, ou antes a mim próprio e aos habitantes de Macau pelos brilhantes resultados que tem coroado tão nobres esforços como aqueles que V. Exa. tem empregado no melhoramento deste Estabelecimento. Posto que V. Exa. me lega uma empresa muito superior às minhas forças, é de justiça confessar que ela é hoje muito mais leve do que quando V. Exa. a tomou sobre si, neste mesmo lugar, ainda não há dez meses. Agradeço os votos pela felicidade do meu Governo, que V. Exa. acaba de fazer e creio tão sinceros, quanto é verdadeiro o interesse que V. Exa. sente por tudo que tem o nome de Português>.

Depois, tornou a entregar as Chaves ao Comandante da Fortaleza dizendo-lhe: <Sr. Major. Entrego a V. Senhoria as Chaves e o Governo desta Fortaleza e estou certo que V. Sa. se haverá na guarda e defesa da Cidade de Macau, como cumpre a um militar bravo e honrado e como convém à honra da Bandeira Portuguesa>.

Em seguida foram os dois Governadores e o Leal Senado assinar o auto da Posse; e o Exmo. Sr. Guimarães voltou a depositar na Sé, aos pés da Padroeira do Reino, o Bastão da Governança.”

Cinco dias depois, a 24 de Novembro de 1851 o ex-Governador Francisco António Gonçalves Cardoso embarcou na corveta D. João I para Hong Kong, daí seguindo para a metrópole no vapor da mala.

12 Jan 2018

Nebulosa

Gisela Miravent

 

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi completamente inesperado, já a várias cabeças aquilo ocorrera. Mas foi grandioso e ainda assim imprevisto no momento preciso em que aconteceu. Nunca se acredita que o céu e o mar possam verdadeiramente trocar de lugar entre si.

O acordo selado de madrugada desenrolou-se ao longo de um dia furioso e de luz indefinida. As vagas atingiram uma altura aterradora e bela; água e espuma em quantidades sobrenaturais foram lançadas ao ar e pregadas num espelho mágico, cheio de criaturas marinhas dentro. Inversamente, as nuvens lançaram-se num mergulho abissal e encheram antigos oceanos de uma massa onde tudo se podia perder. Até pedaços próprios.

Nem tudo correu bem. Nem todos perceberam a tempo o que estava prestes a acontecer, pelo que peixes muito variados e plantas aquáticas multicolores ficaram para trás, sem possibilidade de se encontrarem com o seu mar – a não ser vendo-se ao espelho até ao limite da sua existência. E muitos pássaros bateram asas dentro de água, procurando atingir o céu ao contrário.

Que ideia, pensavam todos, que ideia gigante e louca – o que lhes deu?, não chegava o abraço do costume, não tinham vivido sempre para o limite um do outro? Tantas vezes se interpelaram para lá do limite até… a cada tempestade baralhavam-se e tinham filhos: as criaturas mais estranhas que povoam a Terra… e agora? Terra gasosa e uma luz irradiada de um chão indeciso. Sobre as cabeças, um espelho poucas vezes transparente, carregado como nenhum céu nos dias em que se compõe como a derradeira ameaça.

Uma gaivota olhava fixamente as nuvens de entre uma massa de água a que não conseguia escapar. As nuvens pareciam-lhe ondas, também iam e vinham, entravam umas pelas outras, variavam na forma e tonalidade. Não pensara que podiam ser assim bonitas: como pudera suceder que nos seus vôos de tão longas distâncias nunca se tivesse apercebido de que as nuvens eram todas diferentes entre si?

Os olhos da gaivota desanimavam-se e ela não lutava, observava só, completamente espantada, a cavalgada daquelas massas de água em transformação contínua, de forma fantástica em forma fantástica. Sentia vertigens. Queria cair, mas o espelho fixara-a ali. Entre as nuvens, abaixo, peixes saltavam desolados por esse outro mar que já não lhes pertencia, as barbatanas incertas de como trabalhar aquele gás difuso, as guelras a quererem sustentar o líquido evadido para sempre. Era um espectáculo sofrido e poético. Os peixes, sobretudo, emprestavam às nuvens uma vivacidade de esplendor apocalíptico.

E foi então que o viu. A princípio tomou a coisa por mais uma nuvem interessada na mascarada. A gaivota estava agora convencida de que as nuvens representavam incessantemente as formas que lhes calhara observar no tempo e se se configuravam em dragões a cuspir pela boca baforadas gasosas é porque os dragões existiam. Mas esta forma sofria de maneira contrária à alegria doida e pueril das nuvens. Não se movia ligeira, arrastava-se com esforço, a fazer uso não se sabe de que engenho e força. Era uma baleia azul, gigante entre gigantes. E sobre a baleia, num desajustamento de corpos cilíndricos impossíveis de se concertarem entre si, arrastava-se ele, em ensaio natatório condenado desde que o mar dera em céu e o céu em mar, ineficaz e triste de se ver: o espadarte.

Fundo nos olhos da gaivota acendeu-se uma luz. Não parecia possível que no meio daquele tumulto de fim dos tempos fosse justamente aparecer-lhe o espadarte numa situação tão desoladora e irremediável quanto a sua. O seu espadarte. A memória socorreu-a desde o mais íntimo de si e devolveu-lhe imagens dos passeios suaves ou agrestes que haviam feito os dois tantas vezes, a mímica de que usavam para comunicar, a dança de corpos no limite do céu e do mar, a alegria transbordante ou a melancolia por conta de dias de fome e cansaço. Estava tão encantada quanto apreensiva. Logo o seu espadarte.

Bateu asas. Bateu-se furiosamente de encontro à água porque só movimentando-se poderia desencadear um reflexo capaz de ser detectado pelo espadarte. Talvez. No entanto, quanto maior o vigor em que se implicava mais água engolia; em menos de nada afogar-se-ia para sempre. Semiconsciente, continuou sempre a bater as asas ou talvez já não as batesse senão em sonhos. Parecia não dar mais acordo de si. Nos seus olhos, a luz apagara-se. Pensou que pensava: tinha sido uma gaivota feliz e tinha havido um espadarte com quem partilhara os melhores momentos da sua vida. Depois caiu.

A baleia azul preparou-se para lançar um repuxo de água imemorial. O espadarte fixou os olhos na gaivota e concentrou-se em chamar a si as últimas energias. Beijou suavemente o corpo cravejado de cracas da baleia e, unidos num esforço superiormente combinado, a baleia ejectou toda a água que guardava dentro de si por entre a massa traiçoeira de nuvens e o espadarte, lançado a par do repuxo, empreendeu um salto em altura nunca antes visto, como se lembrava de ter tentado sem o mesmo sucesso quando quisera provar à gaivota que podia voar como ela. A sua espada embateu no espelho de água e quebrou-o. Enquanto o espadarte se projectou para o interior do mar invertido, a gaivota cruzou-se com ele numa queda inconsciente rumo ao seu céu de sempre.

O mundo é agora completamente outro. Tanto desapareceu, tanto se transformou. Outros adaptaram-se às massas de nuvens a vogarem eternas sob um capacete líquido e fantástico. No limite do espelho de mar, e no cimo do mais alto castelo de nuvens, o espadarte e a gaivota sorriem um para o outro enquanto coreografam o amor possível numa dança deslumbrada e feliz.

11 Jan 2018

A Beleza Alheia

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início do século, comprei o livro nuns saldos da Livraria Buchholz, em Lisboa: Dans une autre beauté, de Adam Zagajewski. Custou-me cinco euros.

Li-o de rajada e, encantado, falei dele aos amigos. Em vão, ninguém dava um tostão furado por outro polaco. A tolerância para os eslavos esgotava-se em três nomes: o Milosz, para alguns demasiado católico (uma barbaridade), o Herbert (que sofria de um excesso de racionalidade, outra idiotia) e a Szymborska (quase extraordinária, não fora ser mulher). E em me sendo perguntado o que acrescentaria o Zagajeswski, respondi, secamente, “bom, na verdade, tem os defeitos dos outros, além dos próprios…”.

Fiquei sozinho com a minha descoberta, na altura desconhecia que a Susan Sontag e o Brodsky escreveram maravilhas sobre o livro.

Calhou-me ir a Paris meses depois. Aí comprei o Mystique Pour Débutants, do Zagajewiski, tão delicioso como o título. Quis editá-lo na extinta Íman Edições, mas fali nas vésperas do “grande negócio” – sem desdouro embora igualmente sem glória.

Neste ínterim o prestígio do Zagajewski subiu em flecha e hoje é o santo e a senha da actual literatura polaca. Tendo finalmente saído dele uma antologia portuguesa, Sombra de Sombras, na Tinta da China (2017).

Não me vou ocupar da antologia portuguesa (oportuna e bem feita), mas antes discorrer sobre Dans une autre beauté – um sortido muito equilibrado de notas diarísticas, de livro de memórias, de caderno de pequenos ensaios e de aforismos -, cuja ideia matriz se vislumbra no poema que cito, incluído na antologia portuguesa:

NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS: Só na beleza criada pelos outros/ existe consolação, na música/ e nos poemas dos outros./ Só os outros nos podem salvar, /mesmo que a solidão tenha o sabor/ do ópio. Não são o inferno, os outros,/ se os espreitarmos de manhã, quando/ têm a testa limpa, lavada pelos sonhos./ Por isso cismo muito sobre a palavra/ que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»/ é uma traição a qualquer «tu», mas,/ em troca, um poema de alguém fielmente/ oferece uma fresca, moderada conversa.»

Contra a paranóia sartreana (“o inferno são os outros”), ao arrepio da mediocridade do regime político de tipo soviético em que cresceu e pelo qual se sentiu espoliado quer de “acessos directos à beleza criada pela tradição humanista”, quer “da evidência da verdade” – marcas de sensibilidade a que o regime contrapôs o dogma, a venalidade e a consequente corrupção do gosto em nome de uma estética sob programa -, Zagajewski viu na “beleza alheia” a evasão e um factor de contágio que excede em muito o campo da estética. Posto a beleza ser a lente que potencia a transmutação do olhar e abre, nos termos que o poeta usa, a passagem da solidão ao solidário.

Ao transformar-nos, a beleza incita a apurar as miras da Verdade enquanto nos empurra para a consciência de que vivemos num tecido de «intertextualidades», face a cuja matéria nos situamos como um elo. O resgate da beleza propende-nos a uma maior humildade (galvanizada na contemplação e no estudo) e converte-nos em membros de uma comunidade – a dos receptores da obra de arte – que mantém a consciência de que uns poemas remetem, de algum modo, para outros poemas, umas canções remetem para outras, sucedendo o mesmo na pintura: isto faz da fecundidade da tradição uma eterna fénix.

Ou seja, só quando nos convertemos em guardiões de uma tradição – a beleza alheia – é que nos alçamos a um patamar de fidelidade que, de modo a renovar-se a combustão que mudará a pele à fénix (e isto não é paradoxal mas complementar), exigirá ao autor o salutar cultivo da ironia e da crítica.

Não existe assim tradição sem crítica e ironia e vice-versa. Embora nada disto dispense o fervor: um entusiasmo que nos impele.

Eis o núcleo da «cosmovisão» zagajewskiana: uma pequena revolução ao jeito de uma conversa amena e passo a passo. E que não pode prescindir de qualquer detalhe da memória nem da tradição clássica.

Um aspecto se abre aqui, de responsabilidade social: se cada um de nós se sentisse de facto o guardião de uma beleza não própria mas alheia, talvez esse peso não nos deixasse ceder à trivialidade e nos tornássemos criaturas de outra substância moral. Isto podia de facto ser o fundamento de uma ética, creio.

O que não adivinhava e só agora me dei conta é que já tinha traduzido esta ideia em 95 numa narrativa, em As Cinzas de Maria Callas (Teorema, 97), um livro em que atesto os engulhos de ser pobre e de crescer na periferia de Lisboa antes do 25 de Abril (- tema que nos últimos anos se tornou moda).

Aí narro um encontro meu com um homem mais velho do meu bairro, peão de um obscurantíssimo passado. Aterrando nos princípios de setenta naquele rincão pobre, como um antigo emigras nas Américas, gabava-se de uma paragem na Argentina, onde teria sido amigo do Onassis, e doutra, breve, em Hollywood, tendo no entanto acabado a sua malograda carreira de actor como a voz do Mister Ed, o cavalo que falava.

Um dia o Arquimedes chamou-me ao seu anexo para, do nada, me emprestar um livro do Cesariny e me fazer ouvir ópera. Naquele tugúrio a que não faltava o bolor acontece a transmissão fatal: lega-me uma pequena urna onde jurava assentarem as cinzas de Maria Callas, das quais me tornava guardião. Eu tinha doze anos e aquela responsabilidade pesava-me e levou-me ao gesto insólito de, durante três anos, pedir aos meus pais como prendas de anos e Natal discos da Maria Callas.

Veio o 25 de Abril e poucos meses depois a Maria Callas foi cantar ao Coliseu de Lisboa. Afinal fora enganado. Mas já estava mortalmente infectado pela diferença que era, contra todo o condicionamento da minha condição social, ser um apaixonado pela ópera e pela estranheza da dicção do Cesariny. Creio que não me acomodei como fiel de armazém devido ao deslumbre face à beleza alheia.

11 Jan 2018

A última garrafa (Num consultório privado)

[dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]AUL: Então o que é que está em causa, doutor?

DOUTOR: Remédio. O que está em causa é o remédio. Os outros encontram-no e você não. É isto que está em causa.

RAUL: Não é que não tenha tentado.

DOUTOR: Será?

RAUL: Porque dúvida? Julga que…

DOUTOR: Se quer mesmo saber, você parece-me demasiado decente para ter remédio. Para se ter realmente esforçado em encontrar um.

RAUL: Não estou a compreender.

DOUTOR: Está. Não quer é compreender, que é diferente. Meu amigo, você não tem qualquer problema com a vida. Você não tem é vida. Vive, tem responsabilidades, como já disse, mas, no fundo, está à parte dela. Em relação à vida, você está de fora. Porque não se quer sujar. Não é possível viver e não se sujar. Há que casar, há que trair, há que ser encornado, há que conspirar, aqui e ali, contra este ou aquele, há que dizer mal. Sou capaz de jurar que você nunca ganhou sequer um escudo ilícito. Isso não é viver. Você trabalha em contabilidade, já alguma vez se enganou propositadamente?

RAUL: Julgo que o doutor está a confundir a vida com o mundo.

DOUTOR: Estou? E qual é a diferença, é capaz de me dizer?

RAUL: O mundo é o mundo, a vida é a vida. São palavras diferentes. E as palavras devem ter alguma razão.

DOUTOR: Pois para resposta não está mal. Fica-se na mesma.

RAUL: Olhe, posso dizer-lhe que o mundo não me dói, e a vida sim. O que se passa no mundo, o que as pessoas fazem, não me causa o menor abalo. Mas a vida é-me insuportável. Falava em decência, mas julga que me importa a fome que há no mundo, as guerras que o estão a destruir? Julga que me importa a miséria nas ruas, a violência, a droga? Nada disto me causa o menor abalo, doutor. Mas a vida dói-me.

DOUTOR: E importa-lhe a miséria que habita cada um de nós, sem excepção?

RAUL: Não, doutor. Porque isso é luxo que eu não tenho. Preocupar-se pela miséria do ser humano é um luxo. Como também é um luxo não se preocupar com nada, viver constantemente em diversão. Infelizmente, não me posso dar a esses luxos, porque a vida dói-me muito, doutor.

(silêncio e, entretanto, o doutor serve mais whisky)

RAUL: Obrigado.

DOUTOR: No fundo, o que me está a dizer é que não é humano.

RAUL: Talvez, doutor. A minha doença não me permite sê-lo. Mas não esqueça que essa ideia de humano é formada por os que não estão doentes. Talvez para os sãos, os que adoecem e recuperam, os irrecuperáveis não sejam humanos. Já pensou nisso?

DOUTOR: Não, ainda não tinha pensado nisso. Talvez tenha razão. Talvez seja necessário pensarmos de novo o que é ser humano.

RAUL: Talvez, doutor.

DOUTOR: Por outro lado, pensar que algum dia se irá aceitar a doença como parte integrante do humano é ingenuidade. A doença é um intervalo na vida.

RAUL: Na vida, não, doutor. A vida também pode ser uma doença, como pode constatar por mim.

DOUTOR: Talvez então a doença seja um intervalo na existência, um intervalo no modo como se entende o mundo. (com ar de ausência) Sim, talvez seja mais isso. (regressando do seu curto estado de ausência) Mas está agora a compreender melhor o ódio que se tem aos médicos, não?

RAUL: Sim… Até onde me pode ser possível, porque não tenho muita experiência acerca disso.

DOUTOR: De qualquer modo, não diga ainda que eu constato a sua doença. Vamos tentar. Mas até agora…

RAUL: Quer dizer que ainda continua a não acreditar no que lhe digo.

DOUTOR: Não se trata disso, homem! Antes de mais acredito que não me está a mentir. Depois também acredito que me está a relatar algo que, embora estranho, não parece destituído de sentido. Ou você julga que se o julgasse doido ainda estava aqui a ouvi-lo? Pode não parecer, mas tenho mais que fazer. (pausa) Preciso é de compreender, percebe?

RAUL: Perceber, percebo, doutor. Mas o problema é que julgo que está a ir pelo lado errado. Isto não se compreende.

DOUTOR: A ser assim, estamos mal. Mas, seja como for, se conseguir compreender que não se compreende já é alguma coisa.

RAUL: E, para isso, precisa de tempo.

DOUTOR: Exactamente! Tempo.

RAUL: Está a sugerir que venha aqui com regularidade e, de cada vez, passemos uma ou duas horas a conversar até que possa compreender que não compreende? E, entretanto, continuo a sofrer.

DOUTOR: Bem, meu amigo, convenhamos que não lhe restam muitas outras saídas. Por um lado, você não se quer matar e, por outro, eu também não o mato. Não o mato é como quem diz, não lhe dou o comprimido que necessita para morrer em paz. (não deixando de falar, levanta-se e dirigi-se à estante com livros) Não vamos estar com ilusões. Qual era o médico que estaria interessado em compreender o seu problema e em ajudá-lo? Enviava-o para a psiquiatria ou, no melhor dos casos, para a neurologia e já estava. Passava a bola a outro, está a ver? Mas eu não. Eu quero realmente compreendê-lo. Quero compreender o que se está a passar consigo. Não me parece que tenha muitas alternativas, amigo. De qualquer modo, se quiser, se assim o entender pode procurar outro médico. Está à vontade para o fazer. Aliás, uma segunda ou terceira opinião será sempre melhor.

RAUL: Doutor, eu não quero opiniões, quero um comprimido. Quero morrer, doutor. Agora diga-me com sinceridade. Julga que tenho realmente hipóteses de receber esse comprimido, ou não?

(regressa à mesa com um livro na mão e pousa-o sobre a mesa)

DOUTOR: Vamos a ver. Vamos a ver.

RAUL: O problema, doutor, é que não tenho muito tempo. Não quero continuar a sofrer mais, nem quero morrer coberto de dores.

DOUTOR: Calma, amigo, não desespere! Para já, isto vai bem encaminhado.

RAUL: Isto o quê, doutor?

DOUTOR: O seu pedido.

RAUL: Vai então dar-me o comprimido?

DOUTOR: Calma! Não disse isso.

RAUL: Então o quê, doutor?

(silêncio)

RAUL: Responda-me, por favor!

DOUTOR: (procurando uma página do livro) Você costuma ler?

RAUL: Não, nem por isso.

DOUTOR: Se não se importar, gostava de lhe ler uma passagem deste livro.

RAUL: Faça favor!

DOUTOR: «O único problema filosófico é o suicídio. (…)» Conhece o autor?

RAUL: Não. Quem é?

DOUTOR: Camus. Albert Camus. Escritor e filósofo francês, que morreu ao volante do seu automóvel em 1967 com 51 anos.

RAUL: E o que é que isso tem a ver para a nossa conversa, doutor? Já lhe disse que não me quero suicidar.

DOUTOR: Precisamente por isso! Você não quer viver, mas também não se quer matar. É um problema novo, homem. Compreende o que lhe quero dizer?

RAUL: Não estou bem certo disso. Mas também é coisa que não me interessa. Já lhe tinha dito anteriormente que não me interesso por filosofias.

DOUTOR: Mas o que é certo é que você, tanto quanto sei, e quer queira quer não, está a abrir um precedente para a compreensão do homem e das suas relações com a vida e a morte.

RAUL: Pois, pode até ser. Mas não é coisa que me interesse, doutor. Aquilo que me interessa…

DOUTOR: Já sei, homem! O que lhe interessa é o comprimido.

RAUL: E, então, sempre mo vai dar, ou vai escrever um livro acerca de mim?

9 Jan 2018

O mundo como zoológico do Homem

Breve referência a 2017 e à nova lei do cinema que se avizinha

 

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] da nossa natureza de animal enlouquecido, actores e observadores que somos da nossa passagem no mundo, a tentativa de ver em permanência com olhar de satélite o planeta que habitamos, criamos e também destruímos. É o olhar humano mais próximo da ideia do lugar do olhar de Deus, entretanto múltiplas vezes assassinado e múltiplas vezes trazido às nossas vidas.

Mesmo atendendo ao empenho fabril com nos entregamos à alienação da nossa condição trágica perante o nada. Do inevitável choque sem cinto de segurança com a morte, condição necessária ao “carpie diem”, é da nossa condição de falência enquanto máquina antropológica, a inquietude e a observação permanente.

São as nossas práticas como seres sociais, condição do humano, que nos demonstram a condição de animal enlouquecido. A loucura pode ser heróica, gloriosa, trágica, permanente ou passageira, em função do pensamento dominante da época em que o pensamento e acções concretas se produzem, ou num tempo de análise posterior ao acontecimento.

Somos a mais bela máquina horrível. Belos assassinos de nós próprios e do outro(s). É difícil o olhar distanciado e sem paixão sobre nós e sobre o outro.

O tempo de vida de cada maquina antropológica em falência que cada um é vai se esgotando, felizmente na maior parte do tempo sem a permanente consciência dessa inevitabilidade. Mas a vida adiciona esse lugar do vazio cada vez mais preenchido dos companheiros mortos. No entanto, nesta esgadanhar da fera ao civilizado é quase sempre desse outro lugar da vida, que nos chegam as ressonâncias e até asserções mais orientadoras e construídas, o presente é produto do passado. Aqui neste lugar do mundo, é a voz milenar de Confúcio e Buda que ecoa em outras de um tempo mais próximo, Jorge Álvares, Camões, Marx, Nietzsche, Sartre, Bergman, Marilyn, Artaud,   sim, são muitas, quase infinitas as vozes que nos habitam. Parece ser tendencialmente aceite que o pós-moderno já não nos serve e a hiper-realidade é uma constatação do real com toques glamorosos de uma maquilhagem Dior. O fracasso absoluto dos corpos afogados no mediterrâneo no movimento continuo do fluxo de gentes à procura do sonho da Europa, ou apenas em fuga da miserável condição da ausência pão, o som dos inaudíveis desastres interiores que a custo não queremos ouvir e com força de nervos arrancamos da carne e vamos expulsando para redes de esgotos escondidas, dizem-nos que é bom sermos felizes, supremamente gratos, e que para o sermos não é possível abandonar esse querer primeiro da infância do mundo justo e fértil.

Neste nosso mundo há vários mundos. São muitos e diferentes tempos sociais e culturais que produzem os factos sociais que habitamos.

Há um Oriente que afirma o sucesso da sua civilização milenar e simultaneamente de enorme modernidade no mundo contemporâneo, e uma europa que se recusa a olhar-se no melhor de si própria, envelhecida paradoxalmente pelo simulacro do novo. É tempo do Pós-Renascimento. Não é suficiente o cartesianismo positivista do iluminismo neste outro século, o XXI. Há por aqui a permanência de um eurocentrismo bacoco e desajustado do real, nos quotidianos da informação televisiva. A banalização do pensamento medíocre em doze letalmente excessiva.

Para onde caminhamos é a pergunta, que beleza e horror construímos quotidianamente nas nossas fábricas, campos, cidades? As respostas são abertas, mas pergunta é sempre e continuamente necessária.

A legitimação da Arte, passada a euforia dos melhores e piores de 2017, anuncia-se o chegar de uma nova lei para Cinema em Portugal, que continua a partir de um lugar mais pequeno do que o visível a partir de Portugal dos Pequeninos.

Neste 2017 a terminar vi muitos filmes. Dos que vi, destaco S. JORGE, do Marco Martins – produção Portuguesa, filme premiado no Festival Internacional de Macau e outros, Veneza é deles. Já aqui escrevi sobre este tremendo filme. Noto também a obra COMBOIO DO AÇUCAR, do Licínio Azevedo – co-produção Portugal-Moçambique, filme que também tive a oportunidade de referenciar por altura do Fantas Porto 2017. Outros felizmente existem que merecem destaque, mas não este o assunto.

A actividade do cinema em Portugal continua a ser olhada pelos decisores políticos como coisa menor, com a qual não importa perder tempo nem pensar recursos, estratégias, objectivos, para além daqueles gerais sempre bem enunciados nos preâmbulos do enquadramento legislativo – ao abrigo do artigo 78º Capítulo III no seu ponto 1 e 2, alíneas a) b) c) d) e) da Constituição da República Portuguesa .

No entanto na prática a menoridade atribuída à produção e fruição cultural é uma evidência, desde logo no orçamento geral do Estado, mas também, e muito, nos articulados específicos e no funcionamento do ICA- Instituto Público ao qual cumpre desenvolver e cumprir as políticas públicas para o cinema. A realidade que o cinema vive é um ICA que tem como boa filosofia o lavar das mãos como na lenda bíblica de Pôncio Pilatos (relato de Mateus). A nova lei é de que se avizinha a publicação é uma versão com nova data da anterior. Ao que parece, também nestas matérias, é urgente convocar o olhar do Presidente Marcelo , esse gigante dos afectos e do bom senso esclarecido, é que, para além do lugar do cinema enquanto actividade económica a “anos-luz” da sua potencia entre nós, há esse outro lugar mais difícil e menos preciso em quantificar, mas de inegável relevância; o lugar do cinema na identidade, na construção do património simbólico, na estruturação de comportamentos, nas cinevisões do mundo, no desenvolvimento das cidades criativas e política externa dos Estados contemporâneos.

8 Jan 2018

Poesia – Georg Trakl

Música em Mirabell[1] 2ª versão

 

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma fonte canta. As nuvens estão

No azul claro, brancas, ternas.

Pensativos, homens caminham em silêncio

À noite através do velho jardim.

 

Dos antepassados o mármore encaneceu.

Aves em migração tracejam o longe.

Um fauno com olhos mortos vê

Sombras que deslizam para a escuridão.

 

A folhagem cai encarnada da velha árvore

E entra em círculos pela janela aberta para dentro de casa.

Uma chispa de fogo encandece no espaço

E pinta fantasmas perturbados pela angústia.

 

Um estranho branco entra dentro de casa.

Um cão precipita-se por corredores apodrecidos.

A criada apaga uma vela.

O ouvido escuta de noite sons de sonatas.

 

Musik im Mirabell
Zweite Fassung

Ein Brunnen singt. Die Wolken stehn

Im klaren Blau, die weißen, zarten.

Bedächtig stille Menschen gehn

Am Abend durch den alten Garten.

Der Ahnen Marmor ist ergraut.

Ein Vogelzug streift in die Weiten.

Ein Faun mit toten Augen schaut

Nach Schatten, die ins Dunkel gleiten.

Das Laub fällt rot vom alten Baum

Und kreist herein durchs offne Fenster.

Ein Feuerschein glüht auf im Raum

Und malet trübe Angstgespenster.

Ein weißer Fremdling tritt ins Haus.

Ein Hund stürzt durch verfallene Gänge.

Die Magd löscht eine Lampe aus,

Das Ohr hört nachts Sonatenklänge.

 

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 13.

 

Crepúsculo de Inverno[1]  Dedicado a Max von Esterle

 

Negro céu de metal.

Nas tempestades encarnadas gralhas

enlouquecidas de fome, voam de noite

Lívidas, sobre o relvado do parque.

 

Nas nuvens, congela um raio até morrer;

E ante as maldições de Satanás, elas contorcem-se

em círculo e em número

de sete descem para poisar sobre a terra.

 

Na podridão, doce e sem sabor,

Aparam, em silêncio, os seus bicos.

Ameaçam as casas das paragens em redor;

Há claridade no teatro.

 

 

Winterdämmerung[2]
An Max von Esterle

 

Schwarze Himmel von Metall.

Kreuz in roten Stürmen wehen

Abends hungertolle Krähen

Über Parken gram und fahl.

 

Im Gewölk erfriert ein Strahl;

Und vor Satans Flüchen drehen

Jene sich im Kreis und gehen

Nieder siebenfach an Zahl.

 

In Verfaultem süß und schal

Lautlos ihre Schnäbel mähen.

Häuser dräu’n aus stummen Nähen;

Helle im Theatersaal.

 

Kirchen, Brücken und Spital

Grauenvoll im Zwielicht stehen.

Blutbefleckte Linnen blähen

Segel sich auf dem Kanal.

[1] KL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 14.

[2] https://lyricstranslate.com/pt-br/duu07-winterd%C3%A4mmerung-cr%C3%A9puscule-dhiver.html#ixzz50H6qb4AY

8 Jan 2018

Enfartamento natalício

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] natal, na minha família, envelhece mal. Quando era criança e durante o tempo que estive em França, os únicos natais felizes eram aqueles em que a minha família (irmãs, cunhados e sobrinhos) chegava de Portugal para passar o Natal connosco. Os meus avós moravam no interior algarvio e pouco ou nada viajavam dentro de Portugal, quanto mais para fora. A vida do campo era duríssima e o tempo, embora desabitado do stress contemporâneo, não abundava. Os natais com avozinhos a contar histórias e crianças aos pulos na excitação das prendas, só os conheço da televisão.

Com o tempo e como é natural, as pessoas vão morrendo e as famílias reorganizam-se em redor dos que nascem. No caso da minha família, os nascimentos são pouquíssimos. Temos tendência para a monocultura (rapazes) e para fechar a loja à primeira venda (um filho por casal). Como os casamentos e demais ajuntamentos não têm durado, a presença de cônjuges é pouco frequente. Ainda assim, o meu cunhado insiste em cozinhar como se fôssemos uma corporação de bombeiros a sair do ramadão. São semanas a comer sobras.

A medida que os anos passam, a coisa torna-se cada vez mais deprimente. As pessoas chegam cansadas ou enfadadas à mesa – e, às vezes, ambas – e olham para o repasto com o fastio de quem se está a ver a comer a mesma coisa durante um mês. No tempo em que dávamos guarida a dois ou três convidados com famílias ainda mais depauperadas do que a nossa, esforçávamo-nos para disfarçar o enfado. Agora, o natal é só um jantar em jeito de exagero.

A mãe queixa-se de não ter conseguido acabar de ver o telejornal, o sobrinho e cunhado disputam o comando da televisão da cozinha, a mana diz que detesta canja de cabeça de javali e come, enjoadinha, uma gamba “com demasiado sal”. Quem não bebe, nessa noite concede uma excepção. Quem bebe, bebe mais e mais depressa. O objectivo é a obnubilação rápida da consciência. Com a parca educação restante, dá-se os parabéns ao cozinheiro: “muito bom, acho que é o teu melhor borrego de sempre”. A coisa decorre com a alegria de um funeral até ao estertor final, sinalizado normalmente pelo início de um dos Sozinho em casa. As pessoas continuam a disputa pelo comando no sofá e o meu cunhado, infelicíssimo, fica a contemplar a quantidade de comida na mesa como se esta se houvesse transformado em dinheiro em chamas.

Como estamos todos progressivamente mais pobres, não há prendas. Nem simbólicas. Tendo em conta de que não temos convidados, já não nos damos ao trabalho de fingir que comprámos qualquer coisa a pensar em alguém. Tapamo-nos com umas mantas à frente da televisão e deixamos o cérebro esbracejar sem grande vontade no lago de vinho em que o afogámos. Na televisão, sucedem-se os “filmes de família” – a expressão pela qual cunharam o amontoado de lixo que Hollywood tem vindo a produzir com abastança e regularidade.

Daqui a vinte anos, com mais mortes e o mesmo número nulo de nascimentos, talvez possamos deixar de fazer de conta que no natal temos de fazer de conta e passamos, sem vergonhas, a dizer não à ceia natalícia. Seremos poucos, é certo, mais isso é somente uma razão mais para dizer não. Não à ceia, não à comemoração daquela coisa nenhuma, não a qualquer tipo de promoção da quadra. Como defesa, poderemos sempre dizer que as épocas festivas deveriam servir para nos sentirmos melhores e, por pouco tempo que fosse, especiais. Se nem para isso servem, de que servem então?

8 Jan 2018

Bastão nas mãos do Santo

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] existência em Portugal do Bastão do Comando dado a um Governador fica-se a saber pelas palavras de D. Pedro de Meneses, na altura em que foi empossado como primeiro Governador da Praça de Ceuta, ainda em Agosto de 1415. Dizia ele perante D. João I: ” ‘Majestade, com este bastão é-me suficiente para defender Ceuta de todos os seus inimigos’; desde aquele instante, um bastão para jogar (Aleo) transformou-se no Bastão de Mando da Cidade, estando actualmente em mãos da Nossa Senhora de África, como Governadora Perpétua da urbe”, informa Gabriel Fernandez Ahumada.

“No acto da posse dos governadores da Índia havia a cerimónia da troca do bastão pelo que se guarda no túmulo de S. Francisco Xavier. Esta cerimónia teve origem no facto de ter o Vice-Rei Conde de Alvor depositado ali o seu bastão, entregando ao santo a defesa do Estado quando esteve iminente a invasão pelo Savagy”, segundo se lê na Enciclopédia Luso Brasileira. Tal episódio ocorreu em 1683, após Sambaji (filho e sucessor de Shivaji, fundador do Império Maharathi) a 24 de Novembro desse ano, com um exército de vinte mil soldados, cavalos e elefantes, tomar às portas da cidade o forte da Ilha de Jua (St. Estêvão) e matado toda a guarnição.

O Vice-Rei Francisco de Távora (1681-1686), já com o título de Conde de Alvor, atacou-o com quatrocentos homens, mas foi desbaratado. Desesperado, o Vice-Rei, vendo estar Goa perdida devido à supremacia dos maratas (denominação portuguesa para os maharatas), foi à Igreja do Bom Jesus e abrindo o túmulo de S. Francisco Xavier colocou-lhe nas mãos o bastão (símbolo do poder), assim como as patentes (símbolo de tomada de posse) e um papel nomeando-o defensor e protector de Goa e dos portugueses. Com isso esperava a sua ajuda milagrosa, entregando-lhe a responsabilidade da defesa de Goa.

E não é que Sambaji inesperadamente retirou, apesar da sua supremacia. Para a crença popular foi um milagre realizado por S. Francisco Xavier, mas o que ocorreu para o súbito abandono da mais que provável conquista de Goa por parte de Sambaji foi este ter de ir defender as suas terras do ataque dos mongóis. A partir de então, muitos dos Governadores e Vice-reis da Índia tomaram posse junto ao túmulo do Santo.

 

Bastões das diferentes autoridades

 

Por alvará de 26 de Abril de 1626, Dom Francisco da Gama, que pela segunda vez ocupava o cargo de Vice-Rei da Índia (1622-28), concedeu à Câmara de Macau o privilégio de prover a vara de Alcaide desta cidade, em homem branco. Alvará mais tarde confirmado pelo Vice-Rei D. Francisco de Távora (1681-1686) e a 30 de Abril de 1689 pelo então Governador da Índia, D. Rodrigo da Costa, sendo a 30 de Dezembro de 1709 pelo próprio Rei D. João V.

Uma história em que este bastão é referenciado ocorreu em Macau em 1710. Na altura, 13 de Fevereiro, os vereadores do Senado revoltaram-se contra o Capitão-Geral Pinho Teixeira e essa desobediência levou o Governador a mandar eleger um novo Senado. Os homens bons demitidos pelo Capitão refugiaram-se no Colégio de S. Paulo e o Governador enviou soldados para aí os prender. Os jesuítas reuniram-se com o Ouvidor e os notários na escadaria de São Paulo e aí atestaram os seus privilégios, ficando provado que a entrada forçada de soldados nas suas instalações era inadmissível do ponto de vista legal.

O Capitão Geral mandou vir um canhão para despedaçar a porta maciça do seminário, mas como o tiro não conseguiu tal efeito, deu ordens para os canhões do Monte o arrasar, sendo tal evitado pela intercessão do bispo. O conflito continuou e três cidadãos foram consecutivamente eleitos para o lugar vago de juiz mas, assim que eram eleitos, reuniam-se aos seus predecessores, no Colégio, onde também procuravam abrigo muitos cidadãos. Os apelos do clérigo e da classe média resultaram na retirada das sentinelas. No aniversário da invasão holandesa, os senadores, bastão na mão, saíram do seu refúgio e, escoltados por muitos partidários armados de mosquetes, foram a um conselho-geral no Senado, celebrado com o fim de restaurar a tranquilidade pública. No entanto, o conflito só ficou sanado a 28 de Julho desse ano com a posse de um novo Governador, Francisco de Melo e Castro.

 

Ascendência do Senado

 

“Os decretos reais de 1709 determinaram que o Capitão-geral não interferiria na administração política e financeira que, por direito, pertencia ao Senado, e que, em vez de convocar os senadores em qualquer emergência, ele deveria deslocar-se à casa do Senado, onde lhe seria concedido o lugar principal na mesa do conselho que, habitualmente era atribuída ao vereador mais antigo”, segundo Montalto de Jesus, que refere, a “escritura constitucional datada de 1712, definiu a jurisdição política do Senado como abrangendo todos os casos que se relacionassem com o bem-estar e a tranquilidade de Macau, enquanto financeiramente confiava ao Senado o controlo exclusivo dos rendimentos e despesas da colónia [até que pelo Decreto de 20.9.1844 foi instituída uma Junta de Fazenda, tirando da Câmara a administração financeira]. O Capitão-geral, geralmente o orgulhoso filho de alguma família patrícia e histórica, tolerava mal esta ascendência do Senado. Mais a mais, a própria pompa da sua tomada de posse contradizia a sua posição de subalterno. Quando, às portas da cidadela, apresentava a sua carta-patente ao vereador mais antigo eram-lhe em troca entregues um bastão de comando e a chave da cidadela por entre uma salva de vinte e um tiros. Para seu desgosto, contudo, em breve veria a sua autoridade estritamente limitada ao comando de uma pequena guarnição”.

Refere Armando A. A. Cação, em “1721, o Governador era investido na posse, na porta principal da Fortaleza do Monte, entregando-lhe o conselho do Governo e chave da dita fortaleza e o bastão e com eles a posse do Governo desta cidade com todas as artilharias e armas, apetrechos e munições de todas as fortalezas da guarnição”.

No Senado “às nomeações anuais era anexada uma lista de sucessão. Na circunstância do falecimento de um senador a vaga era preenchida numa tocante cerimónia, na catedral. Os senadores reuniam-se à volta do caixão, o vereador na presidência pronunciava três vezes o nome do falecido, um médico atestava formalmente o óbito, a lista de sucessão era aberta e um substituto nomeado pelo vereador, que lhe entregava solenemente uma vara tirada da mão do falecido, pois cada senador possuía uma fina vara de madeira, insígnia de autoridade”, segundo Montalto de Jesus.

Já a carta de 22 de Setembro de 1714, dirigida por Albuquerque Coelho ao Ouvidor Vicente Rosa, que o tinha colocado na prisão, refere a vara de Ouvidor desta Cidade. Como se percebe, para além do Bastão de Comando do Governador, havia também os bastões dos vereadores, do juiz…

O que será feito desses bastões de Justiça e Comando? Se ainda existem, por onde andam? Relíquias importantes para serem expostas no Museu de Macau, ou pelo menos réplicas deles.

5 Jan 2018

Party Girl

[dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] passado atravessa-se-nos. Já não é como dantes. Outrora, as memórias rebentavam como bolhas de água Castelo. Podiam ser muitas de uma só vez, mas depressa se acalmava a efervescência. O presente acabava por se impor no seu caudal. Nem a frescura ficava na cara. Agora, por vezes, é o contrário. Parece que uma memória assome o horizonte e nos expulsa do presente ou lava o presente para fora da sua eficácia. A memória não é só uma impressão fixa do passado com que ficamos. É afectiva. Vem não se sabe por que motivo. Ou sabe. São histórias passadas, mal concluídas. Não concluídas. Histórias abortadas de desencontros que levam à abominação da desolação. Atiram-nos para o facto bruto, puro e duro de a vida ainda ser e nós temos de continuar, sempre em frente. A afectividade destas memórias fixam-nos numa zona de impacto, numa terra de ninguém. Não estamos já no princípio. Longe disso. E estamos próximos do fim, mas há ainda tempo. Atiram-nos para um terra de ninguém. Este baldio é uma zona de guerra, como vemos nos filmes sobre os conflitos do Médio Oriente. Não percebemos como é que os soldados estão, pelo menos, na sua primeira comissão, muito menos quando cumprem mais comissões do que a segunda. Estamos num cenário de guerra que nada tem que ver com casa. Reconhecemos que os civis, mulheres e crianças, pobres todos eles, estão no meio do conflito e não podem sair dali. O que sucede de extremo com estas aberturas de zonas apocalípticas é que estamos em casa. Nós somos os locais. É aí a nossa casa. Não temos para onde regressar, porque geograficamente, estamos no sítio onde nascemos, vivemos e, em derradeira análise queremos ficar. Só que não podemos ficar num sítio completamente alagado por uma zona de guerra. A guerra é uma metáfora da abominação da desolação. Estamos num sítio inteiramente determinado pelo tempo. Vive-se em condições extremas. Entre picos de adrenalina, eufóricos, e voos precipitados em direcção ao despenhamento. Em nenhum lado é casa. Por todo o lado só há o inóspito. Todos os amigos estão expostos a essa situação radical e extrema. O futuro só traz um único alívio: a inconsciência ou a alteração radical dela. Ou, então, a morte. As memórias afectivas surgem das disposições mais antigas dos tempos. A origem e proveniência dessas memórias é a afectividade. Por isso, não importa bem qual é o seu conteúdo “cénico”, de quem é que nós nos lembramos, que histórias do passado é que vêm até nós. Os conteúdos são sempre totais. Implicam-nos numa relação com os outros, com o meio em que nos encontramos, com a nossa vida na sua totalidade. É a afectividade, o seu carácter emocional que é decisivo. A sua forma é sempre a mesma. É apocalíptica, porque nos revela qualquer coisa de nós na nossa relação com os outros especiais da nossa vida, com o sítio que é casa e deixa de ser, com a vida que é nossa, mas parece que somos expulsos dela. O seu conteúdo é vezes sem conta o das pessoas sagradas das nossas vidas. As pessoas sagradas são as que nos abençoam com as suas presenças, mas são também aquelas que nos danam. O sagrado está em tensão com o profano. Mas o profano, do ponto de vista do sagrado, é um horizonte integrado. “A teologia é séria, o inferno é certamente lá em baixo e o céu é lá em cima” (Rimbaud).

E as memórias vêm do passado como tsunamis. Configuram-nos um presente. São saudades do passado. Saudades de um passado perdido, mas não esquecido. Não nos deixam esquecer de si. Ficamos presos delas. O presente é configurado por estas saudades que não sabemos matar. Melhor, a saudade é a falta que se sente. A falta, porém, é permanente. A saudade é permanente. Não podemos dizer exactamente que “temos” saudades. Deveríamos dizer que as saudades nos têm a nós. Nessas alturas a falta é tão constitutiva que não sabemos como podemos sobreviver num outro horizonte afectivo, como podemos ter tempo, sem regressar a outro local. Como pode ser reversível se tudo é irreversível? Como pode ser ultrapassável a vida inteira se é agora e agora é impossível? Como pode haver repetição, se tudo parece ser irrepetível?

Hoje, vi-te. E eu como era. Não vejo bem como és. Sei, contudo, bem como sou.

5 Jan 2018

Arcas

 

São um simulacro recente as paredes com orifícios para arrumação que define o nosso «modi operandi» logístico; nada que nos faça já recordar qualquer modalidade de emparedamento: as paredes não ouvem mas muitas falam quando existem demolições e sismos, isto para não abarcar ainda os tectos falsos, os soalhos tapados, toda uma arquitectura de construção acumuladora de coisas que deviam pela sua natureza não ser reveladas.

Por isso e ao longo do tempo usámo-las para agrupar elementos, sempre com ferrolhos, fechaduras, como de um cofre se tratasse. Elas eram uma espécie de condomínio fechado tanto pela magnitude das suas proporções como pela sigilosa presença dos seus conteúdos, não havendo habitação que não as tivesse para usos vários que ninguém obviamente ousava indagar. A sua remoção era difícil mas tinha a particularidade de não serem anexos e não estarem escondidas. Esta forma de “arcar” era para os antigos escravos que as moviam com o peso dos seus interiores constituindo assim uma particularidade móvel.

E, voltando a algumas, a mais recente e impressionável será mesmo a Arca de Fernando Pessoa, cujas dimensões reduzidas conseguiu englobar a mais vasta obra da poesia portuguesa e páginas inteiras do mais soberbo ensaio. As Arcas têm fundos, não são objectos que simulem apenas uma aparência, e quem anda de um local para outro leva a sua Arca de forma inteira, nem que tenha de deixar as outras peças soltas nos exíguos lugares por onde passa.

Uma espécie de outra Arca, a da Aliança, pois ambas continham apenas palavras: uma, o decálogo, a outra – muitas outras – de versos, eram depósitos de palavras de Deus dado que os poetas são receptáculos também dessa voz e não raro vejo-o a acompanhar a sua Arca como o rei David num contentamento estonteante que no nosso poeta era coisa rara. David dançava enquanto ela se movia; Pessoa pensava enquanto ela se mudava mas a beleza era mesmo por que não estavam fixas.

E se uma era constantemente preenchida já a outra transportando em pedra a palavra, preenchia os requisitos imutáveis de uma Arca que não se expande. Pessoa deixou bem clara a definição entre Mala e Arca ao analisar Nossa Senhora no seu «Guardador de Rebanhos», que pastores eram estas gentes todas. Claro que em ambos os casos estamos distantes das belas ânforas de bondade uterina. Aqui, entre o que se traz e o que guarda, vai uma longa fila de sucessivos revezes femininos. O feminino tende a juntar muita coisa em espaços fechados – coisas de natureza vária – o que faz que se podendo ser apenas uma mala, não haja tal incómodo, mesmo assim vociferam as línguas que lá também cabe tudo.

Mas a Arca onde coube mesmo quase tudo e não era de todo uma Mala, foi a Arca de Noé! Todos sabemos que as diversas alterações climáticas do planeta deram movimentos às águas sempre que a Terra mudava ligeiramente de eixo. Falam-nos disso todas as Civilizações e uma das mais belas constatações é sem dúvida o poema épico da Mesopotâmia «Gilgamesh», a primeira das obras literárias mundiais e que nos dá conta exactamente de um dilúvio, obra esta que tanto influenciou o Gênesis. Hoje esta Arca está no monte Ararat, a de Fernando Pessoa foi vendida e está no Brasil, e a da Aliança crê-se que se encontra debaixo do que é agora o Domo da Rocha o edifício mais sagrado do Islão. Há salteadores para as «Arcas Perdidas», há iniciativas prestes a saírem do seu conforto para as contemplar, fazem-se réplicas, pergunta-se pelas madeiras, mas só as Arcas reencontradas saberão transmitir-nos o segredo das suas funções. A do poeta saiu da sua terra, a da Aliança, está por assim dizer em terreiro inimigo, a outra descansa em ruína entre o Irão e a Turquia. Para réplica temos a «Nau Catrineta», que devia ser um sinal à “navegação” para não fazer esquecer a importância das Arcas. Tal era a semelhança entre a tripulação, que ambas soletravam para mim, algures, a mesma história. – Uma história de encantar!

Hoje ouvimos falar em Arcas, mas só as frigoríficas, que é uma adjetivação que tem como fim conservar: mas conservar o quê? Coisas que se estragam. Ora nas Arcas não há decomposição, elas serviam mesmo de grandes salgadeiras, mas o interior delas desvaneceu-se para o frio glacial onde a leitura está rutelada, indicando apenas a espécie dos elementos. E são feias, abrasivas, temíveis, quem se adentra numa dessas industriais pode ficar morto e hirto. Funcionam por electricidade, se ela faltar, uma Arca destas é um depósito de coisas que apodrece, é uma barriga de aluguer para o monstro voraz insaciado que é o consumo, são enfim, a mais degenerativa forma de as nomearmos. Não nos lembramos destas coisas porque “arcamos” com as forças temíveis do grande entulho mundial, nem nos fixamos na desmesura destes imensos objectos, nem consta que tenhamos já Arcas em nossas casas, mas elas foram as componentes mais respeitáveis não só do mobiliário como dos grandes arquétipos Humanos.

Hoje guardamos o seu imenso fascínio no nosso imaginário e se as tivermos sabemos como são singulares as suas presenças e como elas contam todas uma história, que começou por um sonho como os antigos enxovais, ao proteger folhas e folhas de papel, de pedras, e de caravanas de animais de várias espécies. As Arcas são ainda uma aliança e todas são sem dúvida – Arcas da Aliança – entre o fazedor e a sua obra, arcar sempre com o peso da responsabilidade movida quando nelas depositamos tantos sonhos. E alguma coisa ficou da mobilidade deste trajecto no «Papamobile» que é uma espécie de trono andante muito semelhante à velha Arca.

Arcas, também foi algures um deus que governou a Arcádia, emocionamo-nos perante os «Pastores da Arcádia», a bela obra de Poussin que reflecte tanta coisa… a decifração das palavras tumulares… o prodigioso momento de reflexão das personagens… Esta era ainda a cidade da Idade do Ouro, o mais emblemático mito utópico. «Arcas Encoiradas», um grande romance de Aquilino Ribeiro. «Ouvi contar que outrora», de Ricardo Reis, ardiam casas, saqueadas eram as arcas/ e as paredes/.

Caminhemos nestas coisas.

5 Jan 2018

Padres, álcool e aquilo

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a minha família paterna, oriunda de uma aldeia da região de Coimbra, a influência dos padres sempre se fez sentir. Aliás, entre os meus inúmeros primos contam-se um arcebispo de Braga e o actual pároco da Sé de Lisboa. As missas por alma dos mortos são quase diárias e, nas festas de anos dos mais velhos, os padres são presença imprescindível.

Naquelas aldeias, hoje quase despovoadas, a capelas só são abertas no Verão, para responder ao afluxo de gente que, ida de Lisboa, vai passar férias à terra. Ora, numa destas ocasiões, uma prima minha assistiu à seguinte situação:

A capela estava cheia. Só mulheres. O padre começou o serviço. Passado pouco, uma fiel interrompeu-o:

— Ó Senhor Padre, quando é que nos mostra aquilo?

Ao que este lhe respondeu:

— Calma. Isso é depois.

Mas pouco havia progredido na sua função já outra voz se fazia ouvir do meio da assistência:

— Ó Senhor Padre, quando é que nos mostra aquilo?

A minha prima achava-se, naturalmente, intrigada. Finda a missa, porém, o mistério dissipou-se, ante a sua incredulidade. Com a maior desfaçatez, o padre pegou numa mala, pousou-a sobre o altar e começou a retirar do seu interior uma grande variedade de cosméticos, destinados a serem vendidos ali mesmo.

Acumulava as funções de sacerdote com as de revendedor da Avon e não achava qualquer inconveniência em realizá-las a ambas no mesmo local.

É um lugar-comum dizer que a realidade, por vezes, ultrapassa a ficção, e claro que isso depende da ficção de que se fala, mas dar-vos-ei três exemplos de histórias verídicas dignas de figurarem nos anais do neo-realismo ou do realismo mágico latino-americano.

A primeira passa-se numa taberna da linda cidade de Tomar, onde vivi um pouco mais de um ano:

Certo dia, pela hora do lanche, entrei na referida tasca, situada, se a memória não me engana, perto da sinagoga, e pedi uma cerveja, um queijo seco e um pão. Só depois comecei a observar a paisagem circundante. Era um verdadeiro repositório de pó, teias de aranha e serradura para encapotar a sujidade do chão. Ora, o proprietário, ante o meu espanto, achou por bem esclarecer, cheio de orgulho:

— É bonito, não é? Tenho este sítio há trinta anos e nunca foi limpo!

Limitei-me a responder-lhe que, afinal, me ia ficar pela cerveja. Embora não seja dado a grandes esquisitices, o queijo e o pão tinham, subitamente, perdido o seu encanto.

A segunda história passa-se num bar de beira de estrada (aquilo a que os espanhóis, desempoeiradamente, chamam um puticlub), situado próximo de Palmela, onde fui levado por um amigo em cuja quinta de Azeitão me achava a passar férias.

Encontrava-me sentado, bebendo o meu whisky e apreciando o panorama, quando a minha atenção se achou presa pela sucessão de pinturas parietais que pretendiam embelezar as paredes da sala. As primeiras, como convinha a um estabelecimento daquele género, representavam mulheres nuas, em poses convidativas. Muito bem. O problema surgia mais adiante, quando estas davam lugar a um pai e um filho caminhando, de mão dada, rumo ao sol, e, até, a um Cristo crucificado.

Espantado, dirigi-me a um dos empregados de balcão e indaguei:

— Ó chefe, sabe explicar-me o porquê destas pinturas…?

Ao que ele retorquiu, visivelmente incomodado:

— Não me diga nada! O pintor, a meio do trabalho, converteu-se aos Jeovás e fez este lindo serviço!

Este episódio passou-se com o meu amigo T.: andava no Instituto Superior Técnico e tinha um colega que, aos dezoito ou dezanove anos, nunca tinha bebido álcool — nunca, sequer, o tinha provado (era aquilo a que os irlandeses chamam “um pioneiro”). Ora, numa festa académica, os colegas lá o convenceram a beber umas quantas cervejas. O rapaz sentiu-se mal e veio para a rua sentar-se num murete e vomitar. Acontece que, estando ele nesses preparos, por mero acaso (evidentemente), faltou a luz naquele quarteirão.

Os colegas foram dar com ele lamentando o seu destino:

— Meu Deus, o que é que eu fui fazer? Fiquei cego…

4 Jan 2018

Napoleão em Santa Teresita

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde miúdo que guardo a sensação de que cada ano, mesmo no seu término, nos trata como se tivéssemos a irrelevância de uma mascote pronta a ser esquecida. Não vejo o que haja a comemorar. Além disso, nem todas as cicatrizes são tão espectaculares que mereçam o relato do que as produziu.

Ganhei na última década o hábito de vir passar os derradeiros dias do ano numa lagoa, sem televisão, um lugar quase sem rede telefónica, com uma net gotejante, que exaspera quem dela necessite, e onde os fogos-de-artifício têm a fulgurância dos fósforos molhados no bolso de um esquimó. Chamo a este lugar, em homenagem à minha mulher, Santa Teresita.

Bem me tentam os amigos para que com eles festeje em lugares de estardalhaço e dissipação; acabo sempre por desviar-me para esta modorra. Eles não sabem porquê, mas vou-vos contar.

Meia-noite e dez sob o alpendre. As miúdas festejam cada “fulminante” que se recorta nos céus. Eu, nas costas delas, sentado à mesa, beberico a Ermelinda e espero uma visita. Todos os anos tenho uma visita.

Tossem nas minhas costas, diligentemente encho de vinho a caneca que mantinha vazia ao meu lado e só depois olho por sobre o ombro.

É Napoleão. Diz-me, Espero que não te importes, estava entediado em Santa Helena. Não, estás à vontade, esperava por ti. Convido-o a sentar-se

Lembra-me como celebrámos o fim de ano em Moscovo. Na véspera caçámos o veado que agora nos era servido, e eu ao seu lado, com um martelo de ouro partia nozes, enquanto a pequena orquestra atacava uma polca. Um conde russo, que apostou no cavalo errado e espera futuras prebendas do imperador francês, introduzia-nos nas delícias da vodka artesanal e trouxe-nos duas irresistíveis gémeas ucranianas, com rasgados olhos fulvos, que partilharemos. São onze e trinta, faltam trinta minutos para o réveillon e Napoleão insiste em oferecer-me o comando da cidade de S. Petersburgo. Agradeci-lhe mas intuo que me quer desviar do meu béguin por Josefina (esperto como um alho, ele já entendeu) e rejeitei-lhe a oferta, contrapondo: “Tão a norte até o meu sangue tropeça no seu passo, se me queres ocupar preferia que me oferecesses Amsterdam, até porque estou comprometido com uma neta de Rembrandt”. Ele não me diz que não, replica apenas, enchendo-me o copo com mais uma dose de rum, “Deixa que o duende da bebida seja bom conselheiro!”. Passámos a noite em transe a recordar algumas noitadas em Viena de Áustria ou a discorrer sobre a cosmologia nas tatuagens dos quioquos.

É disto que os meus amigos se foram esquecendo, aturdidos pela festa, urbana e desmemoriada. Na passagem, entre os anos, podemos ter uma visita. Nem vos conto os meus réveillons com Baudelaire, Stravinsky, Pasolini e em Cuba, com Lezama Lima. Com Lezama, vi à mesa (provei-o) o menu do banquete do Satíricon, que vos descrevo, deliciado: ovos de pavão, um papa-figos muito gordo untado de gema com pimenta, vinho com mel, grão-de-bico cornudo, uma vulva de porca estéril, empadas de javali, tâmaras frescas e secas, uvas, salsichas e chouriços, um bezerro cozido, uma franga gorda, à guisa de tordo, e ovos de pata encapuchados; um porco coroado de morcela e, em redor, sangue coalhado e miúdos de ave muito bem preparados; acelga e pão integral; lombo de urso; queixo fresco preparado com vinho abafado; um caracol por pessoa; empadas de tordo recheadas de passas e nozes; marmelos eriçados de espinhos. Não foi nada mau. À vulva de porca estéril tive de desfrutá-la às escondidas para que a minha mulher não notasse.

Há três anos conversei com Picasso, que nessa noite me levou a Paris. Os sinos acetinavam o ribombar dos fogos. Já tínhamos aviado três garrafas de Bordéus, e ele mete na mesa uma bagaceira caseira. Todos os outros convivas estavam na varanda. Só nós dois quedávamos à mesa, e ele comentava, a voz já levemente pastosa, “… muita gente julga que não vendi de imediato as Demoiselles d’Avignon por apego à arte, tolos, eu sabia que os meus quadros iriam valer ouro nos leilões de arte, escuta o que te digo, daqui a setenta anos, só os quadros do Da Vinci se equipararão no valor que será alcançado pelos meus quadros nos leilões…”. “E isso, para ti, é importante?”, pergunto-lhe intrigado. “Bom, prefiro a água de uma fonte na montanha à que sai das torneiras de ouro, em Versailles, mas só o dinheiro nos pode dar a ilusão de que o nosso tempo não se gasta…E vais ver que um dia os árabes, com os petrodólares hão-de fazer museus onde quererão pôr a Renascença e as Vénus nuas a sair das águas, eles que sempre proibiram a representação do rosto e do corpo humano… Acho que o mundo enlouquecerá sem dignidade…”.

Tomei aquela por uma conversa de ébrio, até que hoje, dia 1 de Janeiro de 2018, li no Público de 31 que o quadro de Da Vinci, Salvator Mundi, um dos símbolos da arte cristã, foi rematado num leilão por trezentos e oitenta e dois milhões de dólares, tendo sido a quantia expedida pelo Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi, a capital dos Emiratos Árabes Unidos, onde abrilhantará as paredes da sucursal do Louvre.

E leio que, ao lado, os demais países árabes descobriram os museus e assaltam como gafanhotos de patas de amianto e cabeça em aricalco o mercado da arte. Não sei como a arte ocidental, a preferida por tais compradores – pelos vistos -, se compadecerá com os dogmas religiosos muçulmanos, mas é uma curiosidade a seguir com atenção. Esperemos que, como aventava Picasso, isto não seja mais um sinal do mundo estar literalmente chanfrado mas antes um indício de abertura.

Temo agora que as conversas com os meus visitantes não sejam inocentes mas proféticas e ter quebrado alguma corrente mágica quando não aceitei governar S. Petersburgo. Embora toda a noite Napoleão, afinal o criador do Louvre, tenha revelado uma grande capacidade de perdão.

4 Jan 2018

Se assoprar posso acender de novo

Horta Seca, 20 Dezembro

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]recisamos muito de água, mas o que chove são listas. Esse auxiliar de memória, que Umberto Eco elevou à categoria de arte erudita, mas que, no pós-jornalismo onde moramos, raramente se ergue da mera enumeração, sem critério que se entenda, com valor informativo mínimo, a titubear equilíbrios toscos, quando não usado como arma de arremesso. Dizem-se os melhores (livros, podendo ser qualquer artigo) do ano, mas os meses finais agigantam-se, de súbito e em bold. Por exemplo. Para o habitual exercício de listar, o ano encolhe e os meses do Inverno, a não ser que tocados pelo sortilégio de qualquer prémio, perdem-se no nevoeiro da desmemória. Patinhamos no agora, agora mesmo. Coisas de somenos, bem sei, mas a vida em sociedade (comercial) obriga-nos a alinhar por estes compassos, a atentar no assunto. Edita-se demais, o livro vale de menos. Para surpresa minha, o Arno Schmidt ainda passarinhou nestas gaiolas, mas nem que o conjunto das nossas edições fosse incluído mudava o essencial: o rol dos «melhores» pouco mais vai sendo que forma distraída de passar pelo essencial. Nem diária atualização apanharia a corrente de ar dos tempos. Não basta nomear, há que viver com os livros, dialogar com eles, criticá-los, permitir que nos incomodem. Quem passe pelos arquivos, lugar derradeiro da memória, percebe melhor do que falo. Os jornais deixaram de ser espelho. Ainda que estejam pejados de umbigos.

Horta Seca, 21 Dezembro

Mesmo cuidadosamente envelopado, como só ele sabe, o mais recente volume da obra polimórfica do mano Tiago [Manuel], no caso atribuído à sueca Tilda Markström, tem uma mossa na capa e nos primeiros cadernos. Uma marca que logo interrompem a circulação de azul em torno da palavra-título: «Cancer» (ed. Mmmnnnrrrg). Impossível não ver nisto um sinal, uma semiótica dos acasos. A viagem marcou-o. Uma cicatriz, portanto. Com uma força extraordinária, aliás comum nos seus trabalhos, o Tiago desenvolve o álbum em sucessão de imagens que obedecem a perspectiva única: um alto pode-se tornar o ponto, o cerne que nos muda a textura do corpo e do mundo. O entorno vai ganhando texturas e padrões, os mamilos e as veias transfiguram-se na linguagem que nos rodeia, que nos cerca, que nos atrai a rede cada vez mais apertada, cenário no qual tudo diz e é sinal da morte. Sem palavras, sem nunca dizer cancro em português, língua que tem por costume evitá-la, substituí-la, coisificá-la. As linhas da cicatriz transfiguraram-se em rarefeito contorno onde acomodar as sombras que a doença ainda permite. No fecho, três textos curtos, páginas arrancadas a um diário. «Já não é possível voltar ao paraíso de onde fui expulsa pela morte». Dolorosíssimo testemunho em carne viva de um íntimo processo, viagem que a todos nos toca, tocou, tocará.

Santa Bárbara, 22 Dezembro

Raramente me lembro dos sonhos, ao contrário do [José] Anjos, que os descreve como quem encena, atirando posições, detalhes e falas. Estou quase a acreditar que não sonho. Desta vez, descobri o sentido físico do pesadelo. Um peso enorme entornava-se sobre mim, que dormia de bruços, como sempre me entrego, corpo de chumbo com asas que me cobria impedindo que voasse ou tão só me erguesse. Ou respirasse. Tive que acordar para resolver. Não voo, ainda assim.

Horta Seca, 23 Dezembro

A melhor revista de bordo do mundo, para os prémios da especialidade e para mim, fez 10 anos em Novembro e dedicou-se a São Paulo – poema concreto, cidade natal da minha querida Paula [Ribeiro], directora até aos mais mínimos detalhes. Com a UP voa-se, mesmo sem estarmos no avião. Só agora consegui subir a bordo e já chegou nova a chamar-me para Londres, logo com as fotos do Fernando [Martins]. Acontece mensalmente, mas este ergue-se em exemplar arranha-céus de conteúdo e fruição. Dezenas de talentos das mais diversas áreas revelam fragmentos daquela urbe imensa, dos ícones da moda aos ângulos urbanísticos, das obras de arte ao perfil do paulistano, traçado por Marcos Caruso. «Tudo é farto em São Paulo». O tema estende-se por um sem número de detalhes que dá gozo descobrir, que tudo tem que fazer sentido e dançar. Os separadores são cinco fotografias «sinistras» de Bob Wolfenson, retratos em cinco décadas diferentes. A moda, assinada pelo Paulo Gomes, faz sonhar. A entrevista da Rita Lee faz sentido. E ninguém faz revistas em Portugal como a Paula, renovando uma tradição onde o jornalismo incluía atenção, curiosidade e serviço com fartura. Há mais, muito mais. Desconfio que a leitura deve dar à justa para uma ininterrupta volta ao mundo. Entrevista-se até Fernando Lemos, velho embaixador do surrealismo e outras inquietações, que inaugura exposição agora no MUDE, em Lisboa. Um exemplo de alguém entre cá e lá, mestre maior do preto e branco. «Orra, meu!» Esta amplificação de um Brasil que dói de tão cosmopolita sem perder ponta de tropicalidade é excepcional. Sim, nos dois sentidos. O que a paulistana directora da UP tem cometido, mesmo fora dos milhares de páginas que fez levantar voo, e com discreto alarde, vem sendo uma intransigente e amorosa descoberta e demonstração do que Portugal possui de melhor. Ramón Gomez de la Serna via Lisboa como navio de terraços transatlânticos. Quem os tem conduzido de cá para lá e de lá para cá tem sido a Paula, que gosta bastante mais de nós que nós próprios, esse tão estranho hábito.

Horta Seca, 27 Dezembro

Tombei nele por acaso e coincidiu tornar-se banda sonora destes dias menores. Adoro Adoniran Barbosa, ângulo de uma SP que jamais conhecerei, mas que ele expandiu ao universal. Brota sabedoria dos seus versos, apelo agridoce à preguiça impossível, um fulminante bom senso capaz de nos virar do avesso, pondo-nos a dançar com a tristeza, mas piscando o olho à alegria. Um amigo descobriu umas dezenas de páginas rabiscadas pelo João Rubinato, o nome de dia do artista. «De dia não sou ninguém/ de noite sou alguém/ que toca o violão.» Eram inéditos que suscitaram este magnífico «Se Assoprar Posso Acender de Novo» (ed. DaFne Music), boteco onde se juntam nomes como Criolo, Ana Julia, Diogo Poças, Ney Matogrosso, ou Liniker, entre tantos outros. Além de puxar lustro às pérolas, o produtor Lucas Mayer acrescentou o extremo bom gosto de amantizar a tradição e a contemporaneidade de modo único. Delícia que merece visita a torto e direito. Depois, contém o hino desta passagem de ano. «O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ Vivendo afinal, eu penso ser alguém/ O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ O mundo vai bem mal e a vida não vai bem/ Mas com o pensamento puro aguardamos o futuro.”

3 Jan 2018

Deus Ex-Machina

[dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]indo o Ano, recapitulamo-lo. Ano este que foi ateado pelas penas flamejantes do Galo de Fogo que a todos não só aqueceu como abrasou, carbonizou, fazendo jus à labareda. Em todos os palcos lhe sentimos o garbo e não raras vezes a jocosa actividade de manobras ameaçadoras, fustigada por lutas de poder entre dois governantes mundiais que insistem em fulminar o mundo na sua “máquina- brinquedo” de mísseis e nuclear. Nas cinzas do Ano Findo contamos agora com alguma sagacidade de pensamento, lugares seguros que sobram para a razão. Nem sempre somos galvanizados.

Camões já nos tinha deixado «A Máquina do Mundo» e agora ela pode ser de novo a grande «Máquina do Mundo Reinventada», o mecanismo impresso numa Esfera Armilar que nos indaga ainda e nos incita ao prazer de a visitar. Camões não perfilava uma concepção mecanicista do mundo, do cosmos. Toda a sua epopeia está repleta de animismo que assenta nos deuses como força interpretativa e se coloca na esfera do Olimpo, uma ideia Renascentista do universo como ser vivo e que está presente também nas epopeias gregas. Ora a descrição desta máquina pensante aponta para o plano da ciência e da inteligência tecnológica não deixando por isso de ser um elo visionário que a sua maravilhosa capacidade enquanto grande poeta lhe dava permissão de ver, imprimindo quase uma tónica de contradição a toda a narrativa. Vejamos então as estrofes 78 e 80 (canto X) do poema:

Qual a matéria seja não se enxerga/ mas enxerga-se bem que está composto/ de vários orbes que a divina verga/ compôs/ e um centro a todos só tem posto/volvendo ora se abaixa, ora se erga/……-Vês aqui a grande máquina do mundo/ etérea e elementar, que fabricada/ assim foi do saber alto e profundo/ que é sem princípio e meta limitada.

Aqui, na grande «Máquina do Mundo» não estamos estritamente num código Ptolemaico, mas sim muito mais perto da visão de Ezequiel com os querubins das quatro rodas que influenciou o romance de Raymond Abellio «Os olhos de Ezequiel» e ele comenta: o Espírito constrói e destrói, os olhos de Ezequiel são habitados pela luz e perseguidos pelas sombras.

Só que na máquina camoniana a ordem e o movimento em vez de se oporem, conjugam-se, dando uma grande harmonia espacial que a globalização presente não tem, não passando por isso de um trenó ou mesmo uma carroça que produz aparentemente efeitos duplos mas está assente numa infindável monotonia de igualização do espaço. O mito reconciliador desta Máquina não tem nada a ver com a massificação dos mecanismos, talvez estejamos num estado de ascese da matéria e que os materiais se iluminem numa luz não gerada por combustão estando finalmente na presença de um Deus ex machina.

Nós que no ano transacto atravessámos as fogueiras, tivemos, alguns, resoluções que em muitos casos se nos podem afigurar como acções heróicas e algumas vezes quase sentimos a presença de uma intervenção inesperada que fez descer à cena um qualquer mecanismo: escutámos o primeiro robot e vimos uma realidade para a qual estamos ainda toldados – o calor toldou-nos o entendimento – presos andamos a um mecanismo chamado Geringonça, cujas visões não rasam nenhuma destas esferas e que pela própria constituição torpe dela nos abeiramos à procura de milagres ou de uma outra matéria rarefeita que não engloba tais poderes.

O que está configurado nestas duras ferramentas de Vulcano não dá nem para passar a primeira prova de um tempo novo que nos indicaram. Com a usurpação e a necessidade construímos uma gigante Roda Paleolítica cujo resultado testámos desde a condição sem nunca nos abeirarmos da frase derradeira de Goethe «o quê? bebo a luz?». Bebemos vinhos e água – pouca : a seca arrasa e promete calcinar os solos. Há sem dúvida uma plataforma artificial que luta contra o tempo porque neste caminho serão tão artificias os organismos atávicos como estes já mencionados nos parecem.

Situados no limiar da modernidade os grandes poetas se encontram, talvez a muito espaço luz da sua filiação temporal, e voltando às rodas: as rodas avançam e recuam, quatro Querubins fazem mover quatro rodas: Quando eles paravam, elas paravam. Quando eles se elevavam, elas elevavam-se juntamente com eles. A Máquina estava unida a um propósito. O que me lembra um poema de Elliot: no ponto imóvel do mundo que gira/ nem carne nem sem carne/ nem de nem para/ no ponto imóvel, lá está a dança/ mas nem parada nem em movimento/.

Findo o acto o pano cai, entramos em mais um Ano Novo sem percepcionarmos o labor que foi preciso para que raras vezes no vasto mundo aconteça nascer um poeta. Sim, será sempre aquela “máquina” de efeitos que nos colocam as Naves por onde iremos passar. Alguns. Ninguém entra nas naves a haver sem calcular tamanhos dons.

Um Bom Ano.

29 Dez 2017

Bastões de Comando aos pés da Imaculada

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o escrever sobre as grandiosas festas com que a Cidade do Nome de Deus solenizou a proclamação da Imaculada Conceição como sua Padroeira, veio-nos à memória que colocado a seus pés se encontrava o Bastão de Comando.

Quando o Capitão-geral, ou depois o Governador, chegava a Macau, na tomada de posse às portas da cidadela, apresentava a sua carta-patente ao vereador mais antigo do Senado e em troca era-lhe entregue o bastão de comando e a chave da cidade por entre uma salva de vinte e um tiros. Depois era o bastão de novo depositado no altar da Padroeira Nossa Senhora da Conceição; no início e até 1856, na Igreja de Nossa Senhora dos Anjos e porque esse templo dos franciscanos ameaçava ruir, desde então na Sé Catedral, colocada no primeiro altar lateral do lado do Evangelho, a contar da entrada.

“A esse bastão do comando que se encontrava na Sé Catedral veio-se juntar um outro que a comunidade portuguesa de Xangai ofereceu ao Governador José Rodrigues Coelho do Amaral (1863-1866)”, segundo o Pe. Manuel Teixeira. Luís Gonzaga Gomes refere a data de 10 de Março de 1865, quando o comendador Lourenço Marques, em nome dos cidadãos portugueses residentes em Xangai, ofereceu ao Governador Coelho de Amaral um bastão feito na Inglaterra, para comemorar a sua passagem por essa cidade, em Junho de 1864. O Coronel de Engenharia José Rodrigues Coelho do Amaral, Governador de Macau que a 22 de Junho de 1863 tomara posse e para o qual havia sido nomeado a 7 de Abril desse mesmo ano, como Conselheiro na missão diplomática portuguesa partira a 14 de Maio de 1864 de Xangai para Tientsin (Tianjin).

“Acompanha a este (comendador Lourenço Marques) uma caixa contendo um Bastão que a Comunidade Portuguesa de Shanghae ofereceu em 1865 a S. Ex.ª o Conselheiro Joze Rodrigues Coelho do Amaral em demonstração da boa administração de S. Ex.ª como Governador desta Província, e ele o vota a SSma. Virgem perpetuamente; V. Rma. o colocará no altar de Nossa Senhora da Conceição a par do outro Bastão”, de um documento transcrito pelo Padre Benjamim Videira Pires, que refere ter o Governador Coelho do Amaral recebido o bastão em 19 de Janeiro de 1866 e o colocou no “altar, <a par do outro que serve nos actos solenes da posse dos Governadores desta Cidade>, à semelhança do que se fazia para a coroa real, em Vila Viçosa. Desaparecida, hoje, desse altar a estátua e o painel (hoje no Museu) da Imaculada e substituídos por outra estátua da Senhora da Conceição, da Medalha Milagrosa, os antigos bastões da tomada de posse do Governador e de Coelho do Amaral (não do Juiz, como se pensava) encontravam-se, até à última remodelação da Catedral em 1961”, no lado direito da própria estátua de Nossa Senhora de Fátima, no seu altar do transepto. “A cerimónia simbólica da entrega do bastão à Padroeira interrompeu-se com a República, em 1910”, sendo a partir de então apenas entregue a chave da cidade ao novo governador.

De referir que em 1840 na Igreja paroquial de S. António em Macau se principiou também a venerar a Imaculada, sob o título de Nossa Senhora da Conceição da Medalha Milagrosa. Segundo Benjamim Videira Pires “É sabido que a Imaculada, com a forma duma medalha de duas faces, apareceu em 27-11-1830, em Paris, a Santa Catarina Labouré”.

Insígnia de dignidade senhorial

Esse Bastão de Comando, ceptro de insígnia real, tinha como paralelo na China o Gui, um objecto de jade usado apenas pelo imperador, ou pelos reis, durante a cerimónia de oferendas de sacrifício ao Céu (Ji Tian). Segundo Ana Maria Amaro, “A bengala, ou bastão, 權 (kun) (权杖, em mandarim quanzhang), é símbolo de honrarias e insígnia de dignidade, sendo homófono de cássia, árvore emblemática dos letrados também, um emblema de Shou Xing Gong (寿星, Shou Xing a divindade estelar da Longevidade) Divindade da Longa Vida, um dos três Puros, uma das Três Estrelas ou Três Augustos Imperadores, uma tríade muito popular também entre os tauistas, o grupo das Três Supremas Venturas, Fu, Lu, Shou, Felicidade, Prosperidade e Longa Vida.”

O bastão dos Governadores da Província era chamado Bastão do Comando e simbolizava o supremo mando, serviu desde os primeiros tempos nos actos solenes da posse dos Capitães-gerais e dos Governadores de Macau até que, com a implantação da República, deixou de ser feita esta cerimónia.

Esta vara era outorgada pelo Rei a um seu servidor, para o representar na governação de um território do seu vasto império e por isso denominada Bastão de Comando. Traz ele uma ancestral História, aparecendo sempre associado com os chefes e dirigentes do povo e como cajado ligado à pastorícia, sendo primitivamente usado como arma de defesa contra o ataque dos animais, ou como bengala de suporte ao corpo.

Como insígnia, o bastão do comando terá a sua proveniência nesse cajado usado pelos pastores para conduzir os seus rebanhos, ou no ceptro, que era um bastão usado outrora pelos reis e generais. Na entrada <Bastão>, a Enciclopédia Luso Brasileira refere que nas investigações em cavernas e nos túmulos foram encontrados objectos pré-históricos classificados pelos especialistas como bastões do comando. Se há quem pense que estes são insígnia de chefes, outros crêem serem primitivas varas do condão que os feiticeiros usavam. “Os chefes egípcios, árabes e hebreus usaram bastões, assim como pessoas de consideração em Babilónia, como refere Heródoto. No teatro grego os actores, quando mimavam um pedagogo, um camponês ou um velho, usavam um bastão rústico, e uma bengala ou vara direita e adornada quando representavam uma personagem rica ou elegante. Nos primeiros monumentos cristãos aparecem trazendo bastão o arcanjo Gabriel, na Anunciação; Cristo na ressurreição de Lázaro, o Bom Pastor, Cristo descendo ao Limbo; Moisés ferindo o rochedo; S. Pedro entre os Apóstolos, etc. Na liturgia cristã o báculo é símbolo da autoridade espiritual e descende do bastão.” Esse pau grosso com a extremidade superior arqueada era usado pelos bispos.

“No cerimonial antigo figura o bastão como insígnia de dignidade senhorial.” Tal ficou registado durante a viagem da primeira Embaixada Japonesa Cristã à Europa, promovida pelo Visitador dos Jesuítas no Oriente, Padre Alexandre Vaglinano. Em Roma, encontrando-se hospedados os quatro jovens embaixadores japoneses na Casa da Companhia de Jesus, aí compareceu no dia 29 de Maio de 1585, o senador mais velho, Horácio de Benedictis, em representação do povo e Senado Romano, com um grande aparato, usado em actos públicos, precedidos de vinte e quatro oficiais com varas douradas na mão, e seguidos de muitos cavaleiros e cidadãos romanos, todos ricamente vestidos.

O bastão de Comando, símbolo do poder temporal e o báculo da autoridade espiritual, representavam em conjunto a autoridade do saber, que mais tarde se perdeu, esquecida como ficou a autoridade natural, sendo agora apenas de autoridade estatutária.

29 Dez 2017

Somos Contemporâneos do Impossível (Parte III)

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m VASOS DE GUERRA “homens como nós” são descritos como “nascidos do que perdemos/ e ficámos – guardadores de lugares/ calados por dentro”” (55) e em RETRATO PÓSTUMO lê-se “tudo morre, só o nada é/ para sempre” (58).

O título MELANCOLIA DA CATÁSTROFE expande o próprio conceito “melancolia”. A ambiguidade da expressão não permite decidir inteiramente se é a catástrofe o objecto da melancolia ou se é o seu sujeito. É o carácter paradoxal da formulação extrema a possibilidade de melancolia. Podíamos, numa primeira aproximação, achar que a melancolia é uma lembrança de bons tempos, de uma doce saudade do que já passou. Mas faz parte da própria melancolia a compreensão de que o pior de tudo por que passamos, com a distância do tempo, fica filtrado de tal maneira que é doce a sua memória. Sentimos saudades do que passamos. Assim também acontece aqui com a catástrofe. A perda da esperança é a perda de

“uma cobra esguia

o tempo irrelevante para a pedra que cai”

(60)

 

A esperança tem vários motivos. Um dos mais poderosos na vida humana é a chegada do outro com quem nos encontramos. Tu que:

 

“representavas a esperança de uma possibilidade de passado

o afecto que abre as portas ao comércio

na cidade que ainda acredita”

(Ibid.)

 

A melancolia é a esperança de uma possibilidade de passado, um passado que é invocável pela memória cognitiva. Podemos até ter documentos e testemunhos desse passado, mas não sabemos regressar a ele sem o esconjurar na vibração modal que nos canaliza para lá, que nos abre o portal de acesso afectivo e emocional para a sua dimensão característica. A possibilidade não havida angustia. Vivemos entre um passado a que não acedemos na sua dimensão modal, vibrante, afectiva, emocional, um presente que é prefigurado por esse haver sido, e um futuro que não admite tal como não admite o passado nem o presente qualquer conteúdo que não o da angústia.

 

“angustiado por essa memória de uma possibilidade

de uma só possibilidade, antes de morrer”

60

 

Em MIMESIS, em face dessa impossibilitação, o outro afinal não apresenta nenhuma abertura, nem representa, na verdade, nada do tudo que primariamente prometia. A esperança do passado é a esperança do presente e a esperança do futuro. O outro dá sentido à vida por representar tudo. Mas o outro, objecto e agente do amor, apenas é visto no que foi, quando já não está connosco, quando é perfil sem conteúdo, horizonte vazio, projectado na, e pela, distância.

 

“invenção da distância única definição de amor

que alguma vez consegui compreender

.

.

.

Uma distância que exprime o tempo irreversível da anulação da própria distância, porquanto a realidade retira todo o carácter onírico ao objecto da falta sentida, do desiderium daquilo mesmo que é a única coisa que quero ter. Quando se aproxima, aproxima-se da realidade e afasta-se da sua impossibilidade onírica, do sonho de amor. A realidade mata todo o amor.

e assim te dei por completo

e sem forma

de desistir”

(62)

 

Ou na formulação de DISCRONIA DE UM ENCONTRO:

 

“sentámo-nos na mesa toda iluminada de um só canto

acolhidos inesperadamente pela tua silhueta

recortada e familiar

.

.

.

 

mas só te vim a reconhecer muito mais tarde”

(63)

 

Só reconhecemos o outro num amor infeliz, perdido, ausente, irrecuperável. Desse amor, não tendo nós a certeza de haver outro, não se recupera, não se fica imune nem incólume a um coração desfeito. Mas simultaneamente há uma diferença entre ter havido esse amor nas nossas vidas e não ter havido esse amor nas nossas vidas, porque não somos os mesmos, apesar de virmos a encontrar-nos na solidão de uma forma mais espessa e com contornos muito mais definidos do que alguma vez conhecemos. A esperança da possibilidade dá um sentido, direcção e orientação, que nos faz ser por aí além. Há futuro escancarado, um futuro que transcende o longo prazo e por maioria de razão o médio e o curto. Este futuro aberto pela esperança é simplesmente possibilitante.

 

A mais completa descrição da melancolia da catástrofe lê-se n’O TERCEIRO PASSO

 

“dantes não era assim

não havia esta proximidade

não estávamos lá

mas havia caminho

um caminho em tempo discreto perecível

.

.

.

 

o terceiro passo é o que já lá estava

do que ficou no fim

depois do resto

o próprio fim desaparecer

não temos consciência dele

só ele tem noção do seu próprio mistério

e consciência de nós

é passo paralelo contínuo impossível

nem é possível habitá-lo

não é caminho que percorras

mas que te percorre a ti

como se dele nascesses”

(68)

 

A proximidade de que se trata aqui não é o oposto da distância referida há pouco. Esta proximidade é a tangência do fim, a aproximação “inexorável” de quem habita a zona mortal na expectativa iminente de um impacto letal. Agora, não há caminho, quando “havia caminho”, ainda que em tempo discreto, episódico e perecível. O terceiro passo é o passo final, na contagem, o momento do princípio do fim, do desaparecimento.

 

“Só ele tem noção do seu próprio mistério” (68), só ele “tem consciência de nós” (Ibid.). Ou seja, não razão nenhuma para se pensar que só começa a acontecer a partir de determinada altura da vida e não que esteja desde sempre já a acontecer, lá desde o fundo da infância. Ainda que nós não tivéssemos tido noção dele ou não tivéssemos pensado na noção que pudéssemos ter tido dele, é ele que nos tem a nós, que radioscopa e radiografa a nossa vida. Caímos na consciência do fim, porque ela nos é dispensada pelo seu próprio mistério.

 

A configuração deste ser no encaminhamento do desaparecimento não é exclusiva da subjectividade poética, nem é particular ou individual. Constitui o nosso sermos uns com outros. A acção deste ser, a sua particular actividade, que nos implica desde sempre nos outros não é anulável e tem características complexas. Elas estão expostas em SUBROGAÇÃO DAS SOMBRAS:

 

“o predador de sombras é também refém

da vida projectada dos outros

o estranho que se detém perante a fotografia abandonada

que lhe dá

e ganha vida

enquanto novo sujeito no destino aleatório

da contemplação

alguns objectos representam

a vida no seu sentido adjectivo

sendo da mais elementar ciência que a vida é o único

absoluto substantivo que não perde a sua qualidade

quando tornada objecto

perante o homem ilustrador”

72

 

O que temos um do outro dos que são nossos, nos constituem o âmago do nosso ser, sem os quais não seríamos nós, a não ser outros insuspeitados?

 

Somos sombras uns para os outros. O que quer dizer que não temos nem relativamente a esses coincidentes connosco acesso à pessoa ou ao si mesmo deles. Temos não apenas a fachada, o rosto e os seus infinitos cambiantes, expressões e jogos faciais, o corpo trabalhado pelo tempo desde a infância até à velhice, os estados de alma, a maneira de ser, o jeito, a forma, a personalidade e tudo isso é ainda sombra perante o abismo do outro quando se converte em mistério. Até quando existe como agente de fascinação e encantamento, o outro é sombra, projecção do exercício do fascinante e do encantamento que se abate sobre mim.

 

Podemos ser agentes provocadores de fascínio, impressão e encantamento no outro e o outro é o sujeito metamorfoseado no seu interior. Mas nas possibilidades extremas da fraternidade, da amizade, da filiação e da paternidade, nos mais diversos graus de parentesco, há sempre esta projecção de nós sobre os outros e dos outros sobre nós a maquilhar as personalidades, os protagonistas, destas afecções. Tudo não é senão qualidades, modificações, alterações, transformações da vida em nós.

 

É a vida de que somos portadores quem é o grande protagonista, o destino, a sorte, o sujeito dos sujeitos do próprio e do outro, da intersubjectividade contemporânea e entre gerações. Este mega sujeito produz sujeitos e, neles, a consistência permanente do tempo sequencial, transitório, irreversível da passagem.

 

“talvez a repetição seja a nossa grande criação”

86-87

 

 

IV CORPO EM QUEDA, a identificação da dificuldade de ser, quando não se aguenta, não se é capaz e não pode, projecta outras possibilidades ou então somente a possiblidade de não ser impossível. Mas o que une as sombras substitutas é a sua relação recíproca de sub-rogação e cada um é substituto de si próprio e há substitutos dos outros para o próprio.

 

“escapar, apenas

para descobrir

que a sua verdadeira

prisão

é a impossibilidade

de regressar”

136

 

Na odisseia que é a descoberta de si, de onde se zarpa e onde ser aporta, como “loci” da poesia dependem da viagem. Uma viagem nunca é uma deslocação no espaço. Podemos também nunca sair de uma mesma localidade e sermos no fim da vida mutantes do que fomos no princípio.

 

“na invenção da distância a morte

foi disparada à nascença

para se percorrer em várias direcções

ao mesmo tempo

fio e caminho tenso esticado

vibrando toda no rombo do passo”

(126)

 

Um dos riscos corridos na odisseia que depende da abertura do próprio horizonte de sentido ou, antes, do origem e fonte do próprio sentido, é a descoberta da totalidade a perder de vista da essência das coisas (DE RERUM NATURA )

 

“comecei por escrever o que se passava comigo e terminei

a escrever o que não se passava

uma forma de descobrir a verdade

onde ela já não existia

(142)

 

Conhecer-se a si próprio é a realização do poema escrito como descrição da antecipação e invenção da possibilidade ou da sobrevivência à impossibilidade. A única vida possível é a acrobacia sobre um arame que está a ser tramado e esticado e ao mesmo tempo percorrido. A vida é assim, sempre, a descrição do fecho, da impossibilidade de regresso à infância onde localizamos temporalmente quem fomos no princípio e com a possibilidade que o princípio oferece. Agora, a vida dá a compreender o fecho ao presente e ao futuro.

 

Neles só nos instalamos extaticamente na dimensão do tempo dimensionado no sonho. O poema é o produto do sentido, da conotação, do significado. Eu convertido em conteúdo de poema sob pena de não obter compreensão para mim. A verdade é produzida pelo sentido e não é um facto, ainda que se faça a experiência da não anulabilidade desta experiência de sentido. A verdade só vibra na melancolia da catástrofe.

 

“não antecipei a tua morte

sou eu

aquele que devia ter desaparecido

e não tu”

(145)

 

Será sempre a vida abortada por ausência de outrem?

O ostracismo é o sentido ao pé da letra da navegação figurada. Não se sai de onde se está, ainda que nos possamos deslocar no espaço. Nunca se regressa, porque somos diferentes e os outros e os sítios distinguem-se pela metamorfose do tempo. E se nunca sairmos do mesmo sítio, a imobilidade transmuta-nos, ainda. A motivação é uma ânsia pela eterna saciedade, uma saciedade indeterminada quanto ao seu conteúdo ou nunca satisfeita com o mesmo conteúdo nem com a sua própria variação.

 

“navego pela eterna saciedade

não há lugar no mundo

que me chegue

apenas a profundidade implacável

de um movimento

inexistente”

(120)

 

O movimento descrito não é uma deslocação espacial. É óbvio. É um ir. Um ir na demanda, em frente. Coincide com movimentos de rotação e translação, o percurso dos astros no cosmos, o cosmos no universo, a passagem das horas e dos dias, a passagem das estações do ano e a transfiguração que operam nas “costas da terra”. O único eixo do movimento certa tudo: “as constelações das coisas”:

 

“tudo anda em frente

um único eixo de movimento

gera as constelações das coisas

e do vento

só existe presente

só um campo corre pelo rio”

(125)

 

A inexorável caminhada em demanda pela saciedade da fome que constitui o humano compreende a possibilidade que a morte traz como sossego ou ainda como a antecipação misteriosa que se projecta além da vida, como espera pela próxima fome:

 

no fim a vida foi só

isto:

esperar

pela próxima fome

121

 

De nada em nada, de falta que se fez sentir em falta que se faz sentir, projecta-se o ser da ausência. A presença da ausência é o ponto de fuga da existência. Só se sente a substituição da miséria, precariedade, precisão, necessidade. Numa situação de insatisfação, na inquietude complexa da relação de si consigo e de si com outrem, a vida não assenta bem. A ânsia pode ter como objecto outros percursos existenciais, outras biografias, com outros personagens, outras vidas, outros próprios. A vibração que se constitui não é já a de uma hipertrofia que resulta do nosso lance de antemão para uma versão cada vez mais melhorada de nós próprios, uma optimização superlativa do que é já a forma do nosso encaminhamento.

Faz parte desta outra ânsia complexa ser outro, porque não somos como gostávamos de ter sido e acabamos por nunca ter vindo a ser como gostaríamos de ter sido. O mesmo é dizer gostaríamos que a vida no seu ser a ser fosse radicalmente diferente daquela que é. Ou na formulação da primeira forma da sabedoria de Sileno: o melhor de tudo era acabar já. Ou, talvez, ainda de forma mais extrema, na segunda forma da sabedoria de Sileno: o melhor era nunca ter vindo a ser (Sófocles, Nietzsche).

 

“queria ser outro

o homem do futuro talvez

morar nas tuas mãos, tanto que fomos

ah, tanto que somos contemporâneos

do impossível”

124

29 Dez 2017