Dias ampliados (com os dedos)

Santa Bárbara, Lisboa, 9 Janeiro

Desacerto. Estes são os dias do desacerto. Se nunca me senti muito da vida («o meu filho é um atado»), agora tudo me sabe a deserto, solidão e danação. A paisagem tornou-se bruta e clara, nítida como lâmina, reflexo do sol nos olhos ao sair da noite. Atravesso-a dolorosamente inclinado para diante, quase tocando o chão que piso, só as pernas se mexem avançando contra o vento, a tempestade de areia, cego ao horizonte, a cheiros e gestos. O nevoeiro de chumbo encheu os ares da cidade. A cada esquina, uma pergunta rasga a rua. Que texto nos prepara para isto? Onde mora o sentido? Com que matéria podemos refazer a alegria? Há pedidos que jamais deviam ser atirados, granada de mão.

 

Lisboa, 11 Janeiro

9h45: com ligeiro atraso para o costume, leio o Expresso Diário no metro enquanto levo pancada das mochilas. Às vezes riposto. O tema era o entediante jogo de empurrões entre Santana Lopes e Rui Rio.

9h55: hoje é só um lance de degraus que deixaram de rolar. Faz sentido complicar a vida de quem sobe ao umbigo do mundo.

9h56: ao telefone com a Elisabete acertamos formato, ilustradores possíveis, papel e espírito de um livro à volta de amores possíveis e impossíveis.

10h01: aceito o pequeno rectângulo, que agradeço e conservo: «Se quiser prender uma vida nova e pôr fim a tudo que lhe preocupa. Contacte o Prof. Karamba que ele tratará o seu problema com rapidez, honestidade e eficácia.»

10h06: reparei que a nossa janela ainda dizia o ano passado, pelo que arranquei o autocolante que anunciava a exposição anterior.

10h15: acedo à conta para ver de recebimentos e tratar de pagar miudezas e nem tanto.

10h25: espreito os emails, despacho os urgentes a que consigo dar resposta, passo outros tantos para a pasta a responder. Assusto-me com o que ali se agita, insectos encurralados.

10h26: chega finalmente o contrato da RTP por causa do Spam Cartoon. Por momentos, chamo-me Joaquim. O erro costuma ser variante do Cotrim, mas desta vez apõem-me o nome do meu avô, o que me faz sorrir.

10h40: irrito-me com a agreste ironia de que, se quiser os livros que ainda estão na insolvente distribuidora, terei, não apenas de pagar o handling, assim lhe chamam em estrangeiro, como o transporte das 17 paletes. Ainda recolhem dinheiro de vendas que jamais verei, mas os pobres precisam da minha esmola para fazerem o trabalho deles.

11h52: entregue que estava mais um Spam Cartoon, reunimos telefonicamente para discutir o que se segue. Com muito esforço, evitamos atirar ao palhaço, i.e., a Trump. E lá continuamos, mesmo depois de desligar, uma conversa de há meses sobre a questão do assédio. Com tanta subtileza em jogo, só lá vai com jantar.

12h45: liga-me a advogada por causa de aditamento a um contrato, coisa de família, que me obrigada a parar tudo, imprimir o dito em quadriplicado, rubricá-lo, assiná-lo e enviar para a minha irmã, por estafeta.

13h15: devíamos comemorar certo encontro, mas as urgências obrigam a almoço rápido, sem mais história que a dos afazeres rotineiros. As datas dos amores possíveis devem celebrar-se contra a agenda, solverem-se na carne dos dias.

15h00: reunião com o Alex Cortez e o Daniel Moreira para acertar detalhes do livro (e dois CD’s) «Poetas Portugueses de Agora». Entusiasmo-me com as múltiplas qualidades, as que ouvi e estas que vejo agora.

15h45: ajudo o Bruno [Mantraste] a montar a exposição relâmpago que inaugura daqui a umas horas. Não há razão para alarme. Estendo o fio que acerta o horizonte. Ajudo a complicar umas contas. Prego uns pregos. Maravilho-me com o que vejo. Os esboços possuem uma tal intensidade que parecem brilhar (exemplo aqui na página). O Teófilo bate à janela: vem inesperadamente dar uma mão.

16h30: por desacerto da atenção, consegui que acontecessem três eventos ao mesmo tempo. Peço à Mariana que acompanhe o Luís Maio, na sua sessão na biblioteca de Oeiras à volta do «Ninguém Sabe Onde Está». Ninguém quis saber.

17h30: vejo a mensagem do Mário Gomes a convidar-me a colaborar na belíssima revista Diaphanes. Uma tentação.

18h00: embate com a realidade do que se entende por grande público. Vejo-me cercado de velhas convenções e mal-entendidos. Entristece-me, apesar de o ter previsto.

18h25: ao desligar o telefone, ainda leio mensagem com ultimato em torno de projecto que me parece estratégico. Tento desajeitadamente remediar o estrago provocado pelo meu desarranjo com os tempos.

18h30: abrimos o segundo ano do Obra Aberta com os recém publicados [José] Anjos e Inês [Fonseca Santos] a falar de poesia, infância e o mais que se solta dos livros. Doravante e para complicar, acederei ao microfone.

20h05: regresso à exposição que já vai alta em animação e gente. Na janela, mora desenhado o título «Sebenta do Diabo». Nas mãos de cada um vejo palpitar coração abraçado por espinhos.

20h35: avanços pelos cumprimentos e saudações em direcção aos braços do Jorge Colombo, que não vejo há anos. Continua grande instigador da curiosidade, dispensário dos mais díspares saberes e atenções. Sacudimos conversa, estendemo-la e nela nos sentámos prazerosamente.

22h05: não se fez fácil fechar, com os de última hora a pôr pé na porta. E olhos no diabo da sebenta.

 

Santa Bárbara, Lisboa, 12 Janeiro

Os esboços, mais do que o acabado, aproximam-me do gesto criador, da fragilidade e da potência. A imperfeição suscita-me reconhecimento, dá-me o conforto de um qualquer entendimento dos rasgos que nos abrem o mundo para o ver por dentro. O conjunto de esquissos desta «Sebenta do Diabo» do Mantraste (editada em risografia e quase toda no vermelho (proibido) pela Stolen Books) não cessa de me comover, de me divertir, de me surpreender. O fim último dos desenhos foi tornado impossível pelo amor e a exposição original, por força das coisas, teve de se chamar: «Desculpem, Apaixonei-me e Não Fiz Nada». Os desenhos, aqui agrupados, por junto com alguns já apurados e coloridos, possuem cuidados diferentes, mas sem perderem em momento algum a intensidade do olhar original do Bruno. Relendo o fantástico S. Cipriano, invoca infância em ambiente rural («foi o meu avô que podou as vinhas do mal») com a ilustração de ditos e lendas e episódios e animais e plantas e fascínios: poços que têm no castelo o seu reverso, mergulho no desconhecido e construção da segurança. Rico de detalhes e composições, ingénuo e metafórico, denso e poético, sugere a cada passo que estamos rodeados de fogos e corações. E diabos.

 

Barraca, Lisboa, 13 Janeiro

Andávamos há meses a escavar em busca do título para o romance do Valério [Romão] que fecha a trilogia. Ele descobriu-o para satisfação do editor: «Cair Para Dentro.»

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