Um mergulho no abysmo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos conectados com o mundo. A nossa vida estende-se desde sempre já até ao presente e ao futuro. A ideia que temos de privacidade é complexa. Somos invadidos na nossa própria casa. O nosso passado não mora lá atrás. Nunca ficamos imunes ao que aconteceu. Está sempre à nossa espera. Somos assaltados com as lembranças do passado. Kant chamava-lhe auto-afecção nos escritos do espólio. Sem saber bem como, nem quando, nem onde chegam até nós do passado imagens e cenas de memórias antigas, inaugurais. Pode ser uma fragrância. Pode ser um sentimento que nasce de novo em nós não se sabe bem por quê.

Não estava a falar da nossa exposição a nós próprios. A nossa vulnerabilidade é tremenda. Desde sempre estamos expostos à fragilidade do tempo. Podemos seguir em frente e ultrapassar amores perdidos, histórias passadas. A vida infeliz é absolutamente interessante e a solidão é o elemento complexo onde há telepatia e canalização para outros mundos, para os mundos dos outros que ficaram no passado, ainda com vidas ou com os mundos dos outros que ficaram vida fora. A trama da nossa existência é feita com as vidas de todas as pessoas que conhecemos, com quem deixamos de falar, mas também com as vidas dos outros que nos deixaram. Sentimos a sua presença. Reagimos às suas vidas interrompidas. Não são meras possibilidades inertes. São realidades.

Mas há recantos onde não conseguimos ir. Situo-os no fundo talvez do mar que há em mim. Como quando dizemos “naquela altura” para nos referirmos “àquele tempo”. O acesso ao passado é feito por mergulho, como se nadássemos por cavernas mergulhadas em águas profundas e fossemos como enguias visitar os tesouros que lá se encontram. É sempre escuro e de pouca visibilidade e as memórias são memórias nocturnas de noites de inverno. O que está lá escondido e nunca assoma à superfície são histórias de encontros com pessoas. São épocas de séries de filmes com episódios onde nos encontramos todos nós lá a viver a vida sem saber no que vai dar.

Não temos roteiro, não temos itinerário, vivemos hora a hora sem saber como responder à vulnerabilidade e à nossa exposição ao outro. Estou a falar desse único outro que nos fez sair de nós próprios, da nossa redoma, da nossa solidão, da nossa ilha desconectada de tudo. Estou a visar esse outro em nome do qual todas as nossas preces se convertem em súplicas e o seu rosto é o rosto do amor que irradia por toda a nossa vida e transforma metamorfoseando tudo pelo seu olhar. São episódios avulsos em que este outro, o outro, entra. Estão conservados sob um manto gigantesco de água oceânica. O outro está mergulhado no recanto mais recôndito da caverna mais arredada onde ainda chega a água oceânica do tempo. E mergulhamos até lá por vezes. E lá está tudo como se tivesse sido ontem, como a entrega foi tão absoluta que nunca mais nos reavemos.

Vivemos devolutos mas nunca inteiramente livres. Nunca ninguém fica livre do amor e tal quer dizer da sua possibilidade seriamente encarada. Não sei se sou eu puxado por águas subterrâneas, correntes subliminares até esses mares escuros onde está mergulhada a minha vida. Não sei se as cenas do passado com todas as suas impressões se despregam do local onde estão fechadas a sete chaves e assomam à superfície. Sinto-me sempre embargado e vou sendo puxado para baixo, sem haver nunca senão o precipício sem fundo, o abismo dos abismos. Nunca sei onde fica a superfície porque para onde quer que eu olhe é escuro, não há fundo, nem forma. E vejo um rosto que me olha e um corpo que me toca. Não é já o rosto que encarava próximo do olhar à beira do abraço. É outra coisa. Como aquela tortura de que Aristóteles fala feita pelos piratas etruscos aos seus prisioneiros. Eram unidos rosto como rosto, corpo com corpo, apertados num único abraço com cadáveres. E é assim até ao fim da vida.

Os cadáveres são aqueles outros de quem sentimos falta, nunca mais serão substituídos, nunca mais haverá aquele outro. A nossa vida é a solidão descarnada da ferida exposta. Habitualmente aguentamo-nos. Mas, às vezes, vem das profundezas das nossas existências de novo aquele sonho que dormimos acordados. Parece real. Parece possível. E mergulhamos de novo até ao fundo dos tempos.

29 Dez 2017

Somos contemporâneos do impossível (Parte II)

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] futuro é narrativo, não no sentido em que narrativa quer dizer pode querer dizer contar uma versão do passado, tão real como possível — contar o que se passou — mas no sentido em que abre para possibilidades que entroncam numa dimensão a haver.

A narrativa entendida como um narrar-se a si ou um contar o que se passa consigo parte de si e regressa a si, num caminho todo ele feito por si próprio. É uma forma peculiar de antecipação. Projecta possibilidades. Tenta perceber onde é que vai dar com as escolhas que fez e opções tomadas. Lança prognósticos de possibilidades, neste caso poéticas onde se possa sobreviver num mundo de sentido com uma realidade objectiva completamente interdita, proibida.

As narrativas da possibilidade projectam-se no próprio interior do poema em construção, não são a sua formulação gráfica na escrita, na palavra dita. São a própria constituição, concepção, produção poéticas. O narrar-se a si, o dizer-se a si como é consigo, o contar o que se passou consigo são situações que projectam cada si a quem lhe acontece ser na dimensão latente, não descoberta, da profundidade da experiência fáctica da vida. Não se trata de adivinhas interpretativas, estocásticas. É o próprio sentido da possibilidade que está a assomar o horizonte. A narrativa da realidade é meramente indicativa, usa o enunciado declarativo como meio de expressão. O seu mundo pode existir sem ninguém. Pode resultar de um esforço, de uma concentração, de uma atenção: técnica, teórica ou estética. Mas o narrar-se a si que diz de si como é consigo no que se passou exprime a abertura activa e espontânea da exposição possível à cadência e à vibração, ao ritmo e à melodia no interior dos quais o significado ganha corpo de conteúdo.

Como se lê em A DESTRUIÇÃO DO GESTO

 

“é preciso pensar o poema sem pensar

o poema

já acabado sem ter existido

a vida só existe no seu próprio revestimento

para isso é preciso vestir o poema antes do poema”

(42)

 

Em DIÁRIO DE UM CORPO MENOR lê-se a forma específica em que o poema é dado à luz. Espírito e o corpo da letra são o resultado de um debate: “tento definir os seus breves contornos” (43). Os contornos do poema são breves não porque tenha um corpo mínimo a ocupar espaço, mas porque a sua dimensão é temporal e dura um abrir e fechar de olhos, um piscar de olhos “até chover a sua própria carne” (Ibid).

 

“a nuvem escura de um poema

paira à minha frente

como uma pulga crepitando

sobre o lençol negro da noite

tento definir os seus breves

contornos

entre a certeza de cada salto

que apodrece

é uma nuvem de sombra sobre

sombra

mordendo mordendo sempre

até chover a sua própria carne

um gesto visível

para quando

cair sobre a luz”

(43)

 

Em ALEGORIA DO JUIZ lemos o poema na sua eficácia substantiva:

 

“o poema nasce da colisão

entre o projéctil tatuado por gestos e lugares

e o peito voluntário que lhe serve de alimento

fosse ele o seu momento seminal”

(44)

 

O poema numa das suas actividades possíveis:

 

“o poema fere mata desvela”

(Ibid.)

 

O poema descrito na sua camuflagem e dificuldade de ser agarrado:

 

“é difícil apanhar o poema no rasto do gato

que ainda vive em transgressão

ao seu mal intrínseco”

(Ibid.)

 

É existência dependente do leitor como o é do seu inventor:

 

“se o poema tem de morrer que não seja por dúvida

que seja por culpa e sentença de quem o lê”

(44)

 

É no poema que eu compreendo o haver sido abismal da noite eterna do passado:

 

“sou a impossibilidade de olhar para trás

a distância toda antes do nascimento”

(45)

 

O poema é a face visível, patente, à mostra, mas mínima como uma peça de puzzle, ainda que aparecida. O todo é a parede a construir e a preencher com todas as peças, vistas de todos os pontos de vista possíveis, num nexo que irradia de cada uma para todas e de todas para cada uma das peças:

 

“o poema é só

uma face possível de veludo

na parede do problema”

(47)

 

“O poema nasce da colisão”, “o poema fere, mata desvela”, “anda no rasto de um gato”, “se o poema tem de morrer que não seja por dúvida, que seja por culpa e sentença de quem o lê”, porque quem o escreve diz na primeira pessoa do singular: “sou a impossibilidade de olhar para trás a distância toda antes do nascimento” e é quem tem, por isso, a consciência de finitude: “o poema é só/ uma face possível de veludo/ na parede do problema”. Não tem lugar, porque o seu elemento é a viagem, depende de um pensamento que nos é oferecido, líquido, fluído ou não. Servirá se “chegar a algum sítio”.

 

“um lugar sem lugar é o sítio onde acordei

a querer estar como se pertencesse

e existia

agora a minha cabeça explode como um barco no rio

afinal, o pensamento líquido só serve se para chegar

a algum sítio

foi tão bela a viagem mas temo que me tenha afogado

e o meu coração é agora um planeta, tantos são

os oceanos onde deixei viagens

por acabar”

(48)

 

O poema não é um conjunto de versos ou uma composição de um só verso, numa formulação sintaticamente bem formada. Pode ser uma só palavra, pode ser um verso, pode ser um conjunto de versos que procuram fazer sentido. Mas um poema é sempre uma versão da realidade, uma versão de veludo que é forma de um plano de fundo complexo. Como se todos os momentos auto-biográficos de uma vida pudessem ser expressos por um poema do qual temos apenas poemas avulso, episódicos, sem um fio condutor. Mais, como se cada vida humana, em todas as gerações passadas, presentes e futuras tivesse um único poema composto caleidoscopicamente de poemas avulsos, episódicos sem fazer sentido nem composição, para além do que compreendemos deles: serem dados auto-biográficos de uma narrativa de futuro a haver sem concretização real.

 

“sei que tudo é pontual

mas tem de haver uma frase para se chegar ao ponto

o que pressupõe sempre a construção de um texto:

dos pontos usufrui-se a percepção da viagem

o seu sentido pleno

sem frases não haveria pontos

e é impossível ler para trás

isso seria a própria definição de peso”

(48)

.

“todos os livros

sejam viagens sólidas por acabar

talvez seja essa a proposta que me resta navegar:

a construção de um sentido líquido

o único possível?

para conquistar um porto não definitivo

o resto resolve-se em conjunto”

(49)

 

Em III, sob designação de FUNDAMENTOS DO ECO, symposium ou a invenção da distância, encontramos uma expansão dos elementos fundamentais de I e II, o mundo próprio e a vida, por um lado, e a expressão desse mundo e dessa vida tal como a semiótica e a significância os conotam. O referente não existe em si, mas sob a dependência do horizonte poético. Um poema é a unidade mínima não apenas da expressão ou da descrição do que acontece, mas fundamentalmente do próprio sentido. A realidade é uma parede, um fundo superficial ou profundo, com uma topologia complexa.

Tudo existe alicerçado no tempo irreversível da existência.

Sem poema, não há realidade poética. Sem realidade poética, há factos. A realidade pura e dura depende de um mundo criado por um irreducionismo sem ponto de vista. A vida sem poesia é dada a ver para um ponto de vista que tudo perspectiva a partir de nenhures (Thomas Nagel) ou é uma vida pensada por ninguém (Husserl). A narrativa resulta da reconstrução ou da prefiguração que dá forma às figuras do passado e do presente, num lance que se projecta em antecipação como realidade possível e nunca como facto. Habitamos a possibilidade e, por isso, é que há impossíveis. Nunca há a realidade do modo indicativo, tendencialmente desprovida de possibilidade, simplesmente objectiva.

“é preciso regressar ao fundo do abysmo

sem o deixar ganhar

.

até onde vamos para entender o desaparecimento?”

(53)

Agora aparece uma possibilidade extrema de nos relacionarmos com outro, num sistema complexo de antecipação que paira em suspenso sobre o vazio, onde as falas são inventadas a cada instante, as conversas requeridas por dois a serem um com o outro como possibilidades e não realidades. Esta possibilidade de ser um com outro é a que inventa um futuro, porquanto o próprio si está encerrado na cápsula do seu tempo e, quando muito, reage como reflexo ao reflexo da realidade dos outros, que existem apenas como impressões. Ora as impressões, mesmo que indeléveis, são impressões. Foram deixadas em nós. Podem ser alimentadas com a nossa imaginação e fantasia ficcionais.

“sim, o futuro existiu na distância percorrida de um para o outro

entre o gesto e o eco que o espelho devolvia secretamente

carregado de partículas geradas por essa impossibilidade

que os anos, morrendo à distância, vieram ridículos

a chamar de paixão”

(54)

A distância percorrida de um para o outro: gesto, eco, são fundidos como reflexos de quem gesticula ou de quem fala, sempre para outro. O próprio reage ao gesto ou ao eco do outro como reflexos num espelho que nunca é visto como espelho, mas como a própria realidade. A reacção ao que aparece no espelho é uma reacção ao próprio e nunca a um reflexo. Na paixão, como a descreve Platão, é por nós que estamos apaixonados. Não é pelo outro. Isso é imperceptível a quem olha. Não percebemos que somos nós lá plasmados no outro.[1]

(continua)

[1] Shakespeare na Comedy of Errors, põe Antifolo de Siracusa a dizer: “Call thyself sister, sweet, for I am thee. Thee will I love and with thee lead my life: Thou hast no husband yet nor I no wife. Give me thy hand.”

28 Dez 2017

Preparar a Primavera

24/12/17

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho o fôlego curto para as compras, mais curto que a bolsa, que propende à fífia.

Mas pelo Natal, antes da minha mulher me pôr a ruminar o anátema, afasto os olhos da décima leitura de As Metamorfoses de Ovídio e tento arrastar-me com alguma fluência pelo tremeluzir das montras.

Entramos na Levi’s, onde as malhas respiram até debaixo de água, dou uma concordância silábica a uma cor, a um padrão, porém o que me atrai é reencontrar Leda e saber que um cisne esgaravata em mim para sair.

Passamos ao Massimo Dutti, as calças fazem figas para me encontrar, e ao balcão diviso Europa. Sinto-me de imediato um touro de uma coruscante fotogenia.

Segue-se a Timberland e os seus botins alinhados como vagens. O jeito voluptuoso com que a rapariga me afeiçoa a calçadeira ao calcanhar projecta-me nas delícias de Io e no secreto miolo das nuvens.

Gosto depois de sair para a aragem da rua com as mãos pejadas de sacos de papel e de, observando os gestos inábeis da minha mulher, pasmar com as alegrias da renúncia.

E é ao entrar no táxi que invariavelmente me ocorre a máxima da minha avó Judite: «ao pó tornarás, mas antes serás gaiteiro!»

27/12/17

Vou-vos contar o que me levou à leitura. Eu tinha um pai muito severo e muito competitivo. Apesar de pobre estava disposto a tudo para consolidar a formação dos filhos. Quando eu fui para o ciclo preparatório, o meu pai fez comigo um trato em relação ao “quadro de honra”. Se eu ficasse no quadro de honra no primeiro período, ele dava-me cem escudos, muito dinheirinho para a época. E sobre cada ponto que eu tivesse a mais ele acrescentava cinquenta escudos. Ainda hoje salivo a pensar nos cento e cinquenta escudos!

No primeiro período andei em velocidade de cruzeiro e tive média de catorze. Lá pude estoirar o dinheirinho, nem imagino em quê. No segundo período acelerei o movimento e tive quinze. No terceiro período entrei em economia de esforço, e pus a velocidade do relaxe e tive média de treze. Resultado, passei com média de catorze.

E vai o meu pai pôs-me de castigo os três meses. Os meus amigos passavam com dez, onze, e iam para o Algarve, eu com catorze era remetido ao quarto. Só podia sair meia hora, estritamente para ir à biblioteca buscar livros.

E nesses três meses, entre os dez e os onze, acabei por ler o D. Quixote, vários do Dickens, o Defoe, o Marc Twain, o Moby Dick, do Melville. Deste gostei tanto que nunca o devolvi. Quando me exigiam o livro eu respondia, Mandem-me prender. Teve a minha mãe de ir devolvê-lo, cheia de vergonha, seis meses depois. Para o que importa, eu estive três meses retido e só tinha como evasão os livros. Fiquei simultaneamente grato ao meu pai e incapaz de perdoar-lhe. O que aliás deu a tónica da nossa relação futura.

Eram estes os livros que lia na juvenília. Nessa altura, era ainda incipiente a indústria do livro infanto-juvenil e a nossa ambição era imitar os adultos e não as crianças. Aliás, em quarenta anos passámos de um estado em que, no dizer do Walter Benjamin, “o racionalismo via o menino como um adulto em miniatura” para uma mentalidade social dominada pela puerícia, e na qual os adultos são a obsolescência residual das indústrias culturais exclusivamente devotadas ao infanto-juvenil e subordinadas aos limites perigosos que hoje fazem da irresponsabilidade um estilo e da imaturidade um género.

Mas hoje não estamos aqui para nos queixarmos, mas para contar que a minha filha Jade, de dez anos, ficou radiante no Natal porque recebeu oito livros, e destes, até hoje, dia 27, já despachou dois. E não precisei de a meter de castigo para isso.

28/12/17

Para o Cioran toda a ideia é neutra, sendo o homem que a anima ao projectar nela o seu fogo, as suas expectativas ou demências. E chama a este processo “passar da lógica à epilepsia”.

Nunca soube viver sem ser “em epilepsia”, mesmo quando me entretenho a pensar contra mim mesmo, pois pensar assemelha-se a navegar à bolina.

E é consequente que o Cioran se compare a Macbeth, apesar, diz, de “não ter cometido qualquer crime”. Sentirá afinidades com a falta de medida a que o poderia empurrar uma Lady Macbeth (a qual, ela sim, se identifica com a ideia neutra que procura a sua encarnação), talvez por reconhecer que há vezes em que a faca nos vem à mão e ficamos atolados numa frágil condição humana, demasiado humana – consciência que também me parece ser a que matizava os estóicos.

Contudo, como escrevi num poema, já não acredito como o Cioran que um livro seja um suicídio diferido. Prefiro associá-lo a um plágio do coração. Talvez porque me tornei sensível aos argumentos de Christian Bobin que em La Lumière du Monde (um maravilhoso livro de entrevistas) defende: “o Cioran é um benfeitor e não, como dizem os seus precipitados discípulos, porque ele desencante o mundo, mas porque antes neutraliza qualquer falso encantamento. É alguém que limpa o deserto. Com uma pequena vassoura, ele recolhe todos os resíduos das fáceis consolações, e para mim é depois deste trabalho que começa a palavra verdadeira. Ele faz o trabalho do inverso; ele retira as ramagens mortas: chama-se a isto preparar a primavera”.

Preparar a primavera, uma ideia consoladora para os invernos mais agrestes.

28 Dez 2017

Somos Contemporâneos do Impossível – Uma apresentação

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]omos contemporâneos do Impossível desdobra-se em quatro grandes frentes: I. Uma casa no Mar, II. A habitação do gesto, III. Fundamentos do Eco e IV. Corpo em queda. Cada uma destas partes faz sistema com um todo orgânico. Neste todo orgânico, há um espírito que aí encarna, que aí se incorpora, e o dota de uma alma que habita a forma especial deste corpo existir. A geografia peculiar do sentido de José Anjos raras vezes é directa, nem é de compreensão simples ou imediata. O mundo que lhe serve de referente não é “real” nem primária nem o mais das vezes. Não o é, pelo menos, numa primeira leitura, que se quisesse rápida ou desatenta.

Não o é também, porque a própria realidade objectiva, material, visada de modo literal, no indicativo, é já uma construção complexa resultante de despojamento, abandono, desaparecimento, morte.

O horizonte poético de Somos Contemporâneos do Impossível abre-se numa dimensão extrema da vida, onde tudo é radicalmente problemático. Tendencialmente, o ser do sou eu é extremo e vive a fazer espargata entre o horizonte de um passado havido (que não é já habitável) e o horizonte de um futuro por haver (que não está ainda à nossa disposição). Ambos fixam-se em projecções. O passado deixa uma marca indelével em nós. Não o recuperamos tal como terá acontecido. Tem uma vida independente no nosso espírito. As impressões que foram no passado deixadas em nós permanecem, mesmo adormecidas, à espera de nós na hora da nossa morte. São mutantes e metamorfoseiam-se. O futuro resulta muitas vezes da nossa capacidade de imaginação e fantasia para criar ficções, fora do âmbito da realidade, onde viver poderá ser possível.

Entre os escombros da memória e a fantasmagoria do futuro: real, onírico, ficcionado, o “si mesmo” procura um protagonismo que parece só ter de facto, mas não de iure. Todas as formas, outrora salientadas do plano de fundo da vida, encontram-se assim, imersas, latentes. Um acontecimento do passado pode durar uma véspera, a véspera de Natal, por exemplo. E, contudo, é trabalhado pelo olhar interior e ciclópico da vida, acabando por transformar o que quer que tenha acontecido: descobertas, invenções, modos de ser nossos e dos outros.

Ao passado só podemos aceder por processos complexos de melancolização de horizonte, exumação da existência das pessoas que aí estiveram connosco, reinvenção de cidades inteiras, antes vivas e, agora, fantasma. Os referentes podem ser os mesmos, mas o seu sentido, a sua conotação, é produzido pelo ser poético que os revisita, ou antes, que os recria, dando-lhes significação.

Nada já existe como era. O eu passado foi-se para sempre e com ele todos os que tratamos por tu. A entidade “nós” é irrecuperável como foi. Tudo se desmorona continuamente, existindo como ruínas, sob a acção (e na dependência) de uma memória afectiva e uma protensão de futuro que se projectam entre nós e o presente, resultante de uma incapacidade real para se poder ser, nos aguentarmos, conseguirmos estar vivos.

A constituição do presente, do passado e do futuro implica assim uma abertura a um horizonte que neutraliza, tanto quanto tal é possível, o facto da realidade e afirma exclusivamente a existência de significados. O referente existe em face da presença de espírito do poeta e, enquanto tal, parece existir de forma ainda mais presente do que todas as actualidades para o ponto de vista natural que lida apenas com realidades: situações, circunstâncias, conjunturas: coisas, pessoas, os próprios, as geografias das nossas vidas reais, o passado, futuro e o presente como achamos que são na realidade.

Mas este referente implica-se totalmente num (está absolutamente dependente de) um sentido. A exploração poética, a criação de um poema, é a produção do único horizonte de habitabilidade num mundo de escombros, num presente que lhe é devedor, num futuro que se perspectiva, no limite, como o lado negativo de um diapositivo em que a vida foi visivelmente a ponta de um iceberg, mas com uma base invisível, que é forma e fundo de todas as possibilidades não encaradas, muito menos concretizadas.

Em UMA CASA NO MAR, José Anjos abre o jogo. Lemos a descrição do tempo. Os verbos de movimento representam o ser. Topamos com as geografias complexas da superfície e da profundidade, constituídas em significado. Aqui, o regresso é apenas mental. Dá-se conta da sua irreversibilidade temporal. Identificamos a primeira ligação entre carne e espírito, corpo e alma.

Em Ecologia Fenomenal, a casa onde o tempo nasceu, podemos compreender como a lógica corresponde a uma tentativa de criar uma compreensão do sentido, no interior do habitáculo do humano, no seu nicho ecológico, no seu habitat natural. Mas também aqui se esboçam formas de compreensão para comportamentos e relações humanas que existem em prol de uma agenda que é tudo menos pragmática. A luta diária esforça-se por ser um combate contra a possibilidade da ininteligibilidade e, por vezes, da loucura. Os tópicos são para Anjos operatórios e não apenas paisagens descritivas da sua poesia.

Em causa está a criação de uma semiologia, de uma regra simbólica, que permita, ao mesmo tempo que está a ser inventada, descrever a própria realidade embebida em horizontes complexos de significação. O tempo é a dimensão em que cada um de nós nasce. É cada um de nós na sua singularidade individual. O tempo não é de um “eu” em que cada um caiba. Sou crónica e definitivamente temporal. Sou tempo. O tempo não é geral e universal no sentido em que é uma sequência a perder de vista para todo o sempre: a noite do passado, o presente, a noite do futuro. Antes, o tempo em que cada um nasce, a poder dizer “sou eu”, mergulha em si a casa onde se nasceu e na verdade é à escala mundial. Não apenas existe espalhado pelo mapa da sua existência. Ou antes, existe à escala universal. Este tempo de que cada um “sou” é portador tem como atmosfera inaugural a infância. A sua sequência é a da passagem. Ora toda a passagem é irrepetível, porque é irreversível. Nada é ultrapassável.

 

“no lago submerso

da infância

há uma casa habitada

pelo tempo que ficou

pendurado

na memória de um lugar

infinito sob os degraus”

(17)

 

Os primeiros instantes não são biológicos. São oníricos como todo o passado recuperado por uma memória afectiva e não cognitiva. Melhor, recuperados por uma memória simbólica:

 

“voo inaugural do sonho e

do corpo itinerante da cidade

empurrado pelo pulso de um remo

nas águas proibidas”

(15)

 

Numa tensão com a possibilidade de não vir a ser ou, sendo já, com a possibilidade de vir iminentemente a deixar de ser:

 

“depois do terror de quase ter desaparecido

sem ter perdido a lucidez”

(Ibid.)

 

Todo este espectro de sentido é um excesso relativamente ao que muitas vezes surge designado por “paredes”. A realidade material de uma casa é tão diferente, quando é tornada tão própria pela nossa habitação e partilha dela com outros. E é tão estranha, quando comparamos essa mesma casa habitada por nós com a casa que agora é: outra, alienada, estranha. Basta estar à venda e ser visitada por estranhos, ser habitada por outras pessoas ou já só um andar em ruínas:

 

“são memórias que transbordam como terra de um vaso

forçado à entrada do futuro em visita

ao seu próprio nascimento

repetido

discreto, vezes sem conta

– escoando pelas horas para dentro da casa

de onde nasce e ao mesmo tempo

deixa de pertencer”

(Ibid.)

 

O tempo da visita à casa sc. à infância escoa do lado de fora para o lado de dentro. É um fluir contínuo e discreto. Cada nascimento pode ser compreendido como cada visitação possível ao passado, pela chegada do passado até nós. Como pode ser entendida a compatibilidade do esquema da existência em geral com o facto de cada um de nós ter só uma vida e esta ser individual, singular? Cada ser humano encerra em si a marca do ser da vida e, por outro lado, é individual, único, singular. Cada um de nós existe desde sempre num escoar de fora para dentro e de novo de dentro para fora. A vida dá definição aos contornos dos corpos, em movimentos basculantes, oscilatórios, como um baloiçar sobre o posso do abismo. O escoamento, a infiltração, fomentam fantasmas negros. O envelhecimento é o tempo em que nos sobrevivemos a nós próprios. Ao envelhecemos, compreendemos que sobrevivermos a nós próprios. Tudo o resto fica alagado por esse significado do tempo inescapável.

 

“a cada nascimento produz-se um som tão definido

como o contorno de um corpo que perde volume

entra e sai da casa

como um baloiço sobre o poço (cada vez mais visível)

dos anos que se infiltram através das paredes

um fantasma negro

um bolor que cresce na carne até ser só carne e peso

e corpo que já não sabe ser corpo e que atira o corpo

e espírito ao chão

o tempo envelhece a casa

dentro do homem

como um visitante irreversível

até que nas paredes esboroadas

se abrem janelas lençóis esvoaçantes

por onde a vida inteira sai disparada

numa só respiração

frágil e determinada

como a flecha que o vento roubou das mãos de uma criança

para ir morrer dentro da árvore

.

.

.

infância:

lugar que esquece o sobrevivente

sem se fechar

nem o deixar sair”

(18-19)

 

Se o poema inaugural marca o princípio do fim, em PALÁCIO descreve-se, de alguma maneira, um desses momentos em que caio em mim à lupa: “entrar para dentro de mim” é ganhar a “nitidez dos contornos que se habituam/ à escuridão”, “devolver à luz baça da cozinha o seu amor pelas manhãs de sábado”, “as manhãs violentas e doces assim – com a sede/ à boca do leite e da manteiga” (20).

Na lógica dos dias, sábado é o dia partilhado com a família, mas que é sempre diferente de domingo. O domingo é antes de segunda-feira. A segunda-feira já exerce pressão sobre nós. Sábado, pelo contrário, vem depois de sexta-feira e faz corpo com ela. É um dia com tempo. Está ligado ao verão da infância ou da primeira juventude:

 

“sinto a fragrância quente da tarde a tentar morder a penumbra

do meu quarto no verão”

(21)

 

As partes do dia de sábado são entidades complexas que fazem um sistema orgânico e com um sentido de tempo que nos constitui. O acesso a esse passado, não necessariamente o acesso a essas memórias (porque as memórias despertam quando o passado se acende, intrometendo-se entre nós e a actualidade real) resulta de uma canalização, de uma sintonização, com o havido de mim naquelas situações e circunstâncias. É como se ficassem acesos ou iluminados dias e dias de sábado da minha infância e juventude, perdidos para a escuridão:

 

“que penetro sem dor

sou como se respirasse uma leve brisa

que se acende e me faz entrar

por portas sublimes

até descobrir os sítios onde não sou

mas ainda consigo estar”

(21).

 

As portas não são metáforas para entrar ou sair, prender ou soltar. São os operadores activos que coincidem e estão sincronizados com o acesso. É complexa a condição para a lucidez despertar o haver sido, o ser e o haver de ser no horizonte da significação, do sentido. Não se trata aqui de possibilidades físicos que nos permitem transitar para espaços contíguos em geometrias simples. São portais que dão para dimensões de significação que não estão disponíveis para um olhar desprevenido ou ingénuo. E ao falar de canais devemos entender não a simples sintonização de um posto de rádio ou canal de TV, mas um meio de transporte telepático que encosta a nós dimensões mediúnicas que nos fazem entrar em transe, numa êxtase compreensiva sem nos fazer perder inteiramente na loucura da ininteligibilidade.

 

Em A ESTE VERÃO lê-se uma descrição desta êxtase centrífuga inteligível:

“há uma criança que corre pelos campos

deixa-se levar pelo tempo

como uma gazela caça o caminho

foi um lugar que me esqueceu

mas é impossível reduzir a produção do sol

a uma janela só”

(22)

 

Tal como em EXPLICAÇÃO DE UMA TEMPESTADE, há uma cristalização do domingo obtida por uma revisitação da cadência própria, do ritmo entediante de Domingo:

 

“bátegas que embatem contra

a parede lenta de domingo

desfazendo-se com a brevidade

de um pássaro acabado de voltar

a casa pedindo

para entrar no texto

como o vácuo pelo ar”.

(24)

 

Nos três NOCTURNA, identificamos a contradição paradoxal que anima o significado que se projecta sobre a realidade objectiva, existência em e por si que não é independente da realidade da subjectividade poética. Antes, depende inteiramente dela para dizer a impossibilidade da habitação: o peso do desaparecimento, a plenitude da morte.

A estratégia poética é a de alterar campos sensoriais e campos semânticos com um referente complexo já na rede de sentidos e significados, onde não há factos nem realidade. Um facto só existe pela anulação e neutralização paradoxal do que é já acamado num sentido. Um facto esvaziado de sentido tem ainda sentido, no limite é irredutível para um sujeito. É possível obter esta nudez de todo o revestimento de sentido a respeito de tudo quanto acontece a cada uma das nossas vidas. Mesmo até quando há diferentes pessoas a viver na mesma casa e a partilhar as mesmas horas, o sentido de “a mesma casa”, “partilhar as mesmas horas” pode ser intradutível por cada pessoa para cada outra pessoa. Sobretudo, quando a diferença é apurada no ser que faz de cada sou uma singularidade absoluta, expressa, por exemplo, em formulações como “morada exacta do tempo” (30) ou o próprio título do poema JANELA IRREVERSÍVEL (31).

Em NOCTURNUM, declara-se essa atmosfera:

 

“há um silêncio dentro desta casa que rasga

o manto de tranquilidade que deixaste para trás

nesse silêncio a casa resume-se ao sonho

de uma escuridão exterior – como se não tivesse portas

mas medo em vez delas

só uma réstia de luz derrama ainda

a consciência infinita de uma infância sonhada

entre estas quatro paredes

que agora se fecham nos meus pulmões

uma penumbra irreal desmaia

esmagada pelo peso da tua mitologia

 

é um silêncio inflamável, tempestuoso, que traz a aridez líquida

de um quadro pintado há muito tempo

escuro como a noite que nasceu do teu leito

e cai agora ao meu lado estremecendo

já sem qualquer espanto”

(25)

 

“Silêncio”, “manto de tranquilidade”, “sonho”, “escuridão exterior”, “sem portas”, “réstia de luz”, “quatro paredes fechadas”, “penumbra irreal”, “desmaio”, “esmagamento”, “mitologia”, “aridez líquida”, “noite”, “já sem qualquer espanto”. A ambiência gótica pode despegar-se da casa em que nos encontramos agora, por poder ser a mesma da infância. É a casa abandonada pelas pessoas que lá viviam, por mim que lá esteve. Agora que aquelas pessoas já não vivem e eu já não sou quem sou. Quem assoma o horizonte é outro e sou eu. Pode ser uma memória que emerge no horizonte e visitamos uma casa sem ninguém que era a nossa casa de infância. A casa e o prédio, a rua e o bairro surgem mergulhados neste halo onírico que nos transforma estruturalmente durante o tempo em que todo esse mundo perdido vem à memória e nós vivemos efectivamente a memória. Perdemos a percepção da própria realidade, ainda que possamos sentir frio ou calor conforme seja o caso. Mas estamos completamente metidos numa dimensão estruturante do passado que nos trabalha a partir do seu interior.

Em NOCTURNUM II lemos claramente:

 

“já não é uma casa

as divisões não são as mesmas

dentro delas o tempo sangra parado sobre mim

como uma recordação ferida

as horas que compunham o conteúdo dos dias

perderam o seu significado

por entre paredes trespassadas pelo seu próprio esquecimento

a casa perdeu a sua definição

onde antes era casa é agora outro lugar

embora com feições semelhantes e ainda a mesma

regra de tijolo, madeira e linho

materiais despidos de uma realidade que desapareceu

cofres de memórias apenas visíveis pela sua ausência

nos interiores demasiado amplos, demasiado obsoletos

para conter o deserto que agora esvazia a casa por dentro

como uma nuvem ardendo

depois da tempestade

a casa onde nasci era um ventre que se fechou

numa só madrugada

 

*

agora

há uma porta que se abre

para nada”

(25-27)

 

“Já não é uma casa”, “as divisões não são as mesmas”, “as horas que compunham o conteúdo dos dias perderam o seu significado”, “paredes trespassadas pelo seu próprio esquecimento”, “casa sem definição”, “antes casa, agora outro lugar”, “materais despidos de uma realidade que desapareceu”. Agora/ há uma porta que se abre para nada. A conclusão preparada pelas premissas Nocturnum I e II vem agora sem apelo nem agravo, a realidade pura e dura da atmosfera peculiar que habitamos em NOCTURNUM III:

 

“este lugar só agora existe

no futuro, é uma ruína

este lugar não existirá e será

para sempre uma casa

que o tempo trancou

chovendo à sua volta

sem parar”

(28)

 

O Futuro existe, mas aparentemente trancado, sem conteúdos inovadores ou sem a possibilidade deles. Não há vasos comunicantes nem um canal de sintonização que permita compreender que a cada instante a realidade do facto puro e duro, em bruto, é a única coisa que estará presente no futuro a haver. Mas, nesse futuro, as paredes não falarão connosco. Serão paredes habitadas por outras pessoas, gente estranha, que nunca poderá perceber como é que dentro de paredes as histórias falam para quem as olha mas são diferentes quando outras gentes as habitam.

Quando lemos UM COPO DE VINHO DA CASA, estamos já no universo poético onde há só sentido, significação, e o que possam ser factos ou a própria realidade só podem ser detectados a partir do esforço de cair na própria realidade ou então quando o sortilégio poético nos abandona e desaparece, fechando a sua dimensão.

Perdemos a sintonização. Quem aparece como gente surge a um ponto de vista dissociativo.

 

“e inundaram as praças de gente provisória e outras só casacos

ainda rígidos pelo repouso da obrigação

gente em cujo movimento fresco habitei contigo a vontade

– que tomei de empréstimo –

de descobrir o que sou sem saber qual a direcção

gente aos magotes toda unida (nós também)

na reinvenção diária da escolha

que tínhamos conquistado por direito e por dinheiro

 

Quem é esta gente?”

(29)

 

“Gente provisória” como eu que habitei a “vontade que tomei de empréstimo”. A descoberta de quem se é dá-se à custa de não se saber “qual a direcção”. “[G]ente aos magotes”- não em conjunto- a reinventar diariamente “a escolha conquistada por direito e por dinheiro”, ou seja, por tudo aquilo que não permite, genuína e autenticamente, fazer escolhas ou tomar opções. Esta gente não consegue sequer vislumbrar a hipótese hermenêutica que na verdade se constitui como um processo ou um encaminhamento que está plasmado em DE UMA JANELA IRREVERSÍVEL:

 

“A infância como possibilidade a perda da infância é a perda de possibilidade.

queria poder dar-te uma escada

para inverter o pensamento

tornar mais alta a distância

abreviar a infância inacabada

e o desaparecimento de todas as possibilidades”

(31)

 

“aí nesse sítio onde ainda era verão

vivias como um lugar sem lugar

como o silêncio vive por baixo

da chama”

(32)

 

A gente é adulta e não é já criança. A vida que perdeu a infância perdeu a possibilidade. Viver é ver desaparecer todas as possibilidades. Não esquecê-las, porque expor-se a elas é estar “nesse sítio onde ainda era verão” (32). A infância descrita em O HOMEM ACRESCENTADO é uma praesentia in absentia: a “morte uma longa irmã” (33). A casa da infância:

 

“um cristal de tempo

repetia-se todos os dias, rodopiando centrípeta

para dentro das supremíssimas cabeças

das crianças que conheceram o fortúnio – o tão legítimo fortúnio

de serem crianças sem o saber

ainda rodopia

talvez a tentar mudar

talvez a tentar fugir

talvez apenas eu já só force

a minha entrada

para a impedir”

(34)

 

Em II, na A HABITAÇÃO DO GESTO lemos uma meditação poética sobre a expressão do sentido ou do horizonte de significação que é a própria atmosfera que filtra a realidade. Esta parte analisa o sentido da semântica, a relação complexa entre palavras e coisas, entre poema como constituição do sentido e a realidade como o seu referente. em fingerspitzengefühl, lê-se

 

“procuro a porta a palavra

a fonte semântica

de todas as coisas”

(40)

 

E abre-se a porta à EXPLICAÇÃO DO POEMA que ainda não existe

 

“uma porta

uma chave para abrir

e outra para fechar

por dentro

a semente contínua de um gesto

a colher o homem

por fora, o eco

repetição interminável

de um corpo irrepetível

e o sonho de um gato depois de morrer

guardam a sua natureza

irreversível”

(41)

 

JOSÉ ANJOS (2017). Somos Contemporâneos do Impossível. Lisboa. Abysmo. https://www.abysmo.pt/livros/94-somos-contemporâneos-do-imposs%C3%ADvel

27 Dez 2017

Natal

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma vibração muito especial na época natalícia. Consoante as idades da vida sentimos a sua metamorfose. Pode começar logo com a contagem decrescente 24 dias antes, nos países em que se calendariza o Advento. Pode ser a partir do período dos feriados, como nos Estados Unidos, a começar com o Dia de Acção de Graças. Lembro-me de ter vivido aspectos diferentes da altura natalícia de forma mais ou menos distendida, com mais ou menos neve.

Há sempre uma vibração disposicional que forma a atmosfera como as pessoas do mundo cristão vivem a época natalícia e, pese embora o politicamente correcto- deseja-se festas felizes e não feliz Natal- a época é transversal a todos os habitantes do ocidente. De cada vez que a época se aproxima, qualquer que seja o calendário que a marca, há uma projecção automática para Natais passados. A época é celebrada em família como é assinalada nas escolas. E para pessoas que nunca saíram da escola como eu, o ano lectivo contempla as férias do Natal como fim do primeiro semestre. O fundo dos tempos ressoa com os seus acordes. O primeiro Natal de que há memória vem até nós.

Na geografia da nossa existência está localizado na casa onde o passamos e a casa onde o passamos está numa zona de Lisboa. Lembro-me da noite luminosa em Alcântara. Talvez seja uma das primeiras noites de que me lembro. Sem saber bem que a Avenida de Ceuta iria dar onde dá, ou que o 31 da Armada antecipava a Infante Santo ou que o rio iria dar à marginal e ao Atlântico. Mas lembro-me dessa noite inaugural, provavelmente antes do jantar de ceia. Lembro-me do dia seguinte e de presentes embrulhados com fitas brilhantes. As lembranças efectivas são de “partes da cidade”, “fases do Natal” (véspera e dia). Mas a envolvência era de uma natureza completamente diferente. Talvez porque as pessoas trazem consigo os seus Natais.

Um Natal é o que é e o que devia ser, como se trouxesse consigo o rosto da vida como nós gostaríamos que fosse. O Natal traz a vibração da vida possível que nós gostaríamos de ter, como nós gostaríamos de ser. E somos assim ou não. É a ficção de nós a sermos bons. E não só: o farisaísmo de querermos ser bons e merecedores. Ora o humano é quem é: humano. Tal pode querer dizer que não nascemos com nenhuma hominização. Somos influenciados pela ficção de toda a gente e não pela vida real das pessoas. Nós somos a nossa realidade e a ficção de quem gostaríamos de ser e de como a vida poderia ter sido. Na infância, contudo, a vida está por ser e os Natais têm como referência, durante essas semanas, a antecipação, a vida em redor de árvores de Natal, presépios, canções de Natal, filmes, contos e livros. Ah! E toda a gente estava viva e não tínhamos ainda tido tempo para as grandes decepções das nossas vidas.

Na juventude o Natal mantém ainda a traça dos natais da infância, mas começam a ser infames de alguma maneira. Há os enfeites de Natal na cidade, a casa das vésperas é a mesma, mas estamos a caminho para nós: da indefinição da infância ou da juventude indeterminada, estamos numa aproximação de nós próprios. O Natal metamorfoseia-se. O contraste entre possibilidade de ficção e brutalidade da vida acentua-se. Há os outros aí e a época das festas nos lugares de diversão são favorecidos. Pomos gorros de pai Natal e saímos à noite como se fosse uma noite só diferente, porque abriram-se as hostilidades. Lembro-me de vir de férias da Alemanha e era jantares todas as noites, muitas vezes com as mesmas pessoas mas com grupos diferentes. Tudo iria terminar algures depois da passagem do ano. Mas o Natal era etílico.

Agora, os natais sobrevivem a outros natais, tal como muitos de nós sobrevivem com os escombros da infância, promessas de juventude. Sobretudo, com quem não somos como adultos e já não importa muita coisa, a não ser fazer tudo para a vida dos mais velhos não piorar mais do que já é. Só agora os natais são futuros. O espectro da passagem de natais fora do seu acontecimento, como se fosse possível escolher uma nova religião ou ser colhido por um outro Deus sem Natal. Ou então, sermos e ficarmos completamente esquecidos de possibilidades inaugurais: de que a vida é possível, de que seremos como gostaríamos de ser.

Mas como podemos sobreviver à maior de todas as decepções: à decepção do amor que era a grande esperança?

26 Dez 2017

Do Natal e da Paixão

19/12/17

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]atal era o nome de um papagaio que à evocação dos três Reis Magos desatava a dizer palavrões numa catrefada de línguas e que o Al Berto conheceu numa taberna portuária em Antuérpia. Mostrou-me a anotação num caderno e uma fotografia do bicho, nessas duas semanas em que estivemos a filmar, na Quinta de Santa Catarina, em Sines, onde então vivia.

Realizava o filme o Guilherme Ismael, um amigo que fiz na Escola de Cinema, dez anos mais velho do que eu e que estivera exilado com o Al Berto em Bruxelas. Aí haviam escrito a quatro mãos um delirante exercício narrativo em que cada um deles contava a sua versão da queda livre de um pára-quedista cujo dispositivo se revelou avariado. Na câmara e na produção estava o Costa e Silva e eu, que fazia o papel de um escritor mergulhado nos seus fantasmas, todas as noites, duplicando a coisa, martelava na máquina de escrever para continuar o guião e fixar o que iríamos filmar no dia seguinte.

A intenção era anti-naturalista, com cenários pintados em telões pela pintora Lourdes Sendas. Pouco me recordo do relato – eu estava fechado no casarão a escrever uma novela e havia um segundo plano da narrativa em que os personagens da história que eu tecia regressavam de muito longe para me matar: um parricídio do autor. O Al Berto de vez em quando aparecia nos espelhos como um espírito da casa. Tinha-me alcunhado como o “De Niro das Torcatas” (o meu bairro de nascença). Mas levávamos tudo muito a peito e estivemos uns doze dias fechados no casarão a filmar aquela média-metragem.

O Guilherme trabalhou dois meses na montagem do filme no Centro Português de Cinema e lá depositou as latas quando foi chamado para trabalhar na BBC. Faltava unicamente acrescentar dez minutos de música à banda sonora – de resto a fita, com 50 m, estava pronta e seria um ovni no panorama do cinema português dessa altura. Numa mistura ousada de Straub e Syberberg e Duras (- isto, ó há ambição ou não há!), tremo só de pensar no que de tal amálgama resultaria.

Quando ele regressou no ano seguinte, para passar o Natal e gozar as suas férias e acabar o filme, deu conta que os seus colegas cineastas, num gesto canalha, tinham aberto as latas e usado a película como pontas de montagem. Nunca ouvi o Guilherme, que era negro, acusar a atitude dos colegas como um gesto de racismo, mas visto à distância era bastante plausível. E a brincadeira começou de certeza como um comentário irónico ao título que tínhamos dado ao filme: “Para demolição!”.

Foi um dos meus piores Natais, recordo eu agora, deste meu Natal a 33 graus.

21/12/2017

Mesmo quando o homem se encontra num estado de não-dualidade, num estado de enosis (de fusão entre o sujeito e o objecto), a contemplação da Verdade, impossível de alcançar discursivamente segundo o místico Angelus Silesius, só se produz por contágio: «Deus habita uma luz a que nenhuma estrada conduz; quem não se converte em luz, não o vê em toda a eternidade». O que o poeta Holderlin corroborou ao escrever: «crêem no divino/ só aqueles que o são».

Vêm-me estas notas ao ler o magnífico A Dança de Shiva/ Ensaios sobre arte e cultura índia, de Ananda K. Coomaraswamy, sobretudo o terceiro capítulo: A beleza é um estado.

Para quem vive como eu numa cidade moderna e decadente, uma cidade cariada, em que a especulação imobiliário se sobrepõe a qualquer idealizada harmonia urbanística, onde não existe o que seja uma sensibilização para ou que eduque pela arte, em que apesar de enxamearem os artistas se carece de qualquer prática crítica, campeando por isso o relativismo mais básico e ignorante; uma cidade em que os livros produzidos são maioritariamente feios, os museus escassos e a memória não se cultiva – sou impelido a transmitir aos alunos um vislumbre do legado da beleza na arte, quer promovendo discussões sobre esta categoria na arte e os seus modos de manifestação e de mutação histórica (até à sua periferização no último século), quer como pretexto para os iniciar ao Gosto e ao temperamento estético. Neste contexto, este livro funciona como um refrigério.

Apesar de associar a arte ao sagrado, na Índia, os livros sagrados são só a sua expressão temporal e a escuta do que foi revelado depende da sensibilidade do ouvinte e da sua circunstância, pelo que ao contrário do que esperaria, Coomaraswamy não sustenta uma concepção essencialista da arte e do belo –– embora admita que «a beleza está por todas as partes, esperando ser descoberta, ser recolectada pela nossa memória (no sentido sufi e no de Wordsworth): pela contemplação estética, como no amor e no conhecimento, recuperamos momentaneamente a unidade do nosso ser, libertando-nos de nossa própria identidade».

Portanto, para ele, a beleza (uma das três manifestações do sagrado) é um estado que nos reconduz ao indivisível, resultando mais do que “fazemos de” uma obra de arte do que de uma qualidade patente no objecto. A verdadeira beleza não reside simplesmente no que é objectivamente dado como beleza, sendo antes como um perfume a que só acede quem o percepciona. A beleza advém mas depende da interacção de quem a observa. E a ser assim não se esgota a sua pertinência como categoria estética, ao contrário do que tem sido alvitrado. É um estado de existência.

Outra questão, aí sim central, é a tipificação de simulacros do Belo em formas degeneradas como acontece no Kitsch e se desencadeia na paródia.

Entretanto, já o Leonardo defendia que uma figura (na pintura) é tanto mais digna de admiração quanto melhor expresse, mediante a sua acção, a paixão que a anima. Apenas a paixão nos refresca um estado de presença – a tal “embriaguez” que Nietzsche reivindicava para o impulso artístico.

Seja na Arte, seja na Beleza, seja na Política: a paixão volta a ser necessária.

26 Dez 2017

Mafra minha

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s maiores carrilhões do séc. XVIII existentes no mundo são portugueses e vão ser recuperados.

Fez no dia 17 de Novembro 300 anos que foi lançada a primeira pedra do Palácio Real de Mafra, uma obra maior do Barroco, em Portugal e na Europa, e o mais importante monumento representante deste estilo em Portugal, nomeadamente do barroco joanino, mandado construir pelo Rei D. João V “o Magnânimo” (1689-1750). Edificado em pedra lioz da região, o edifício colossal ocupa uma área de perto de quatro hectares (37.790 m2), compreendendo 1200 divisões, mais de 4700 portas e janelas, 156 escadarias e 29 pátios e saguões. A sua construção empregou 52 mil trabalhadores.

O monumento é uma referência do pensamento urbanístico, arquitectónico e natural da civilização ocidental, quer enquanto unidade, congregando um paço real, uma basílica, um convento, um hospital monástico, um jardim e uma tapada, quer devido aos seus equipamentos de prestígio, entre os quais se conta uma das mais notáveis e ricas bibliotecas europeias do século XVIII, abrangendo todas as áreas de estudo; a mais importante colecção de escultura barroca em Portugal e fora de Itália, da autoria de mestres italianos e portugueses da época; dois carrilhões – o maior conjunto sineiro do mundo – com 119 sinos afinados musicalmente entre si (divididos em sinos de horas, litúrgicos e de carrilhão), encomendados na Flandres a dois fundidores de sinos diferentes e pesando o maior 12 toneladas, num total de 217 toneladas, que constituem – a par do único conjunto conhecido de seis órgãos de tubos concebidos para utilização simultânea, instalado na basílica, encomendados por D. João VI no final do séc. XVIII para substituir os primitivos que estavam degradados, e da biblioteca – o património mais importante do palácio. O carrilhão da torre norte nunca foi alterado e constitui, por conseguinte, um exemplo raro do som de sinos no seu estado original de afinação.

Um carrilhão é um instrumento musical de percussão formado por um teclado e por um conjunto de sinos de tamanhos variados, controlados pelo teclado. Os carrilhões são normalmente alojados em torres de igrejas ou conventos e são um dos maiores instrumentos do mundo. Os carrilhões de Mafra são instrumentos musicais notáveis, cobrindo cada um deles uma amplitude de quatro oitavas e sendo, por isso, considerados carrilhões de concerto. Foram executados por dois fundidores de sinos dos Países Baixos: Willem Witlockx, um dos mais respeitados fundidores de sinos em Antuérpia e Nicolas Levache, um fundidor de Liége responsável por diversos carrilhões e que deixou efectivamente em Portugal uma tradição de fundição que perdurou por mais de um século após a conclusão do trabalho em Mafra. Este património único inclui também o maior conjunto conhecido de sistemas de relógios e de cilindros de melodia automática, possuindo ambas as torres de Mafra mecanismos automáticos de toque. Este é um marco mundial para o estudo, quer da música automática, quer da relojoaria. Estes complexos engenhos são capazes de tocar de modo intermutável de entre cerca de dezasseis diferentes e complexas peças de música, em qualquer momento. Os cilindros melódicos de Mafra foram executados pelo famoso relojoeiro de Liège da primeira metade do século XVIII, Gilles de Beefe.

Desde Maio de 2014 que os carrilhões e sinos do Palácio Nacional de Mafra, que, no seu conjunto, constituem o maior carrilhão do século XVIII sobrevivente na Europa e um conjunto histórico de valor patrimonial único no mundo, figuram entre os sete monumentos mais ameaçados do continente europeu, uma atribuição do principal movimento de cidadãos europeus para a protecção do património cultural e natural europeu, Europa Nostra, liderada pelo tenor e maestro Plácido Domingo, com o apoio do Banco Europeu de Investimento, que veio alertar para a urgência das obras e mobilizar entidades públicas e privadas a nível nacional e internacional, para se encontrar o financiamento necessário para uma rápida intervenção.

Em Outubro de 2014, especialistas internacionais ligados ao restauro de monumentos e à organização Europa Nostra deslocaram-se a Mafra para conhecerem o estado de degradação daquele conjunto, tendo alertado na ocasião para a urgência de uma intervenção, não só porque os sinos estão seguros por andaimes, como também para impedir que algum possa cair, dada a deterioração visível das estruturas de apoio. Embora tenha sido levado a cabo um trabalho contínuo de emergência de estabilização das estruturas, são necessários peritos transnacionais e apoio financeiro para salvar estas jóias do património tangível e intangível. A recuperação dos carrilhões merece especial consideração científica, tratando-se de sinos que devem ser tratados com cuidadosos métodos de restauro. A afinação deve ser não-destrutiva e cumprir critérios científicos nas áreas da acústica musical e da musicologia.

O governo português reconheceu, na altura, que os carrilhões e as torres sineiras do Palácio Nacional de Mafra constituem um conjunto histórico de valor patrimonial único no Mundo, pelo que esta intervenção se reveste da maior importância, contribuindo para a notoriedade deste conjunto monumental, para a salvaguarda do património cultural português e para um aumento da fruição cultural dos públicos portugueses e estrangeiros. A recuperação tornava-se também fundamental para o Estado e a Câmara de Mafra candidatarem o monumento a património mundial da Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (UNESCO), o que aconteceu no início do corrente ano.

Por Portaria publicada no Diário da República em 17 de Setembro de 2015, o Governo de Portugal autorizou a Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) a celebrar contrato destinado à operação de Reabilitação dos Carrilhões e Torres Sineiras do Palácio Nacional de Mafra, repartindo pelos Orçamentos de Estado de 2015, 2016 e 2017 as verbas que autorizou para a empreitada de recuperação dos carrilhões e sinos do Palácio de Mafra, orçadas em 2,3 milhões de euros, prevendo na altura que o período de execução das obras decorresse entre 2015 e 2017 e concluída no final de 2017, data coincidente com as comemorações dos 300 anos sobre o lançamento da primeira pedra do monumento. Na portaria, o Governo justifica as obras ao reconhecer que se trata de um “conjunto histórico de valor patrimonial único no mundo” e que carece de “reabilitação urgente face ao avançado estado de degradação”, que acarreta “riscos de segurança não só para o património, como para utentes do imóvel e os transeuntes da via pública”.

Ainda em 2015, a DGPC lançou o concurso público, no valor referido, para as obras de restauro dos carrilhões e sinos do monumento. Oriundos de financiamento estatal, por via do Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, destinado a financiar medidas de protecção em imóveis classificados em risco de destruição, foram inscritos 1,2 milhões de euros no Orçamento de Estado de 2016 e 695 mil euros no de 2017, depois de o de 2015 prever uma verba inicial de cinco mil euros para os procedimentos inerentes ao lançamento do concurso público internacional, em Setembro de 2015, do qual já é conhecida a empresa vencedora.

Embora as obras de recuperação dos sinos e dos carrilhões de Mafra devessem ter começado no princípio do segundo semestre do ano passado, foi necessário aguardar a autorização do Ministério das Finanças para a transição do saldo do Fundo de Salvaguarda do Património Cultural, o que só aconteceu em meados do corrente ano e, seguidamente, o visto prévio do Tribunal de Contas antes da empreitada ser adjudicada, o qual ainda se continua a aguardar.

Quanto tempo mais poderão os carrilhões esperar pela sua urgente recuperação?

20 Dez 2017

Poesia – Georg Trakl

Na folhagem encarnada cheia de guitarras

 

Na folhagem encarnada cheia de guitarras

Das raparigas os cabelos amarelos flutuam

Junto à cerca, onde estão os girassóis.

Uma carruagem dourada atravessa as nuvens.

 

Nas castanhas sombras, calam o silêncio

Os velhos, que estupidamente se abraçam.

Os órfãos cantam as vésperas com doçura.

No vapor amarelo, zumbem moscas.

 

No ribeiro, as mulheres lavam ainda a roupa.

Ondulam estendidos os lençóis de linho.

A pequena que há muito me agrada

Vem de novo através da noite cinzenta.

 

Do céu ameno, os pardais precipitam-se

Na direcção de buracos verdes cheios de podridão.

Iludem o faminto ante a convalescença

O aroma do pão e ervas secas.

 

Im roten Laubwerk voll Guitarren

 

Im roten Laubwerk voll Guitarren

Der Mädchen gelbe Haare wehen

Am Zaun, wo Sonnenblumen stehen.

Durch Wolken fährt ein goldner Karren.

In brauner Schatten Ruh verstummen

Die Alten, die sich blöd umschlingen.

Die Waisen süß zur Vesper singen.

In gelben Dünsten Fliegen summen.

Am Bache waschen noch die Frauen.

Die aufgehängten Linnen wallen.

Die Kleine, die mir lang gefallen,

Kommt wieder durch das Abendgrauen.

 

 

Romance à noite

 

O solitário, sob a tenda de estrelas,

Caminha através da meia noite silenciosa,

O menino acorda perturbado dos seus sonhos,

O seu semblante decai cinzento ao luar.

 

A louca chora com o seu cabelo desgrenhado

À janela que está inflexivelmente gradeada.

Ao largo do pequeno lago, num doce passeio,

Andam à deriva os amantes tão maravilhosos.

 

O assassino sorri pálido no vinho,

O horror da morte agarra os doentes.

A noviça reza ferida e nua

À frente do sofrimento na cruz do salvador.

 

A mãe canta baixinho a dormir.

Muito tranquilo a criança olha para a noite

Com olhos que são completamente verdadeiros.

Na casa de putas, soltam-se gargalhadas.

 

À luz da vela no buraco da adega

O morto pinta com mão branca

Um silêncio sorridente na parede.

O adormecido sussurra ainda.

 

 

 

Romanze zur Nacht

 

 

Einsamer unterm Sternenzelt

Geht durch die stille Mitternacht.

Der Knab aus Träumen wirr erwacht,

Sein Antlitz grau im Mond verfällt.

Die Närrin weint mit offnem Haar

Am Fenster, das vergittert starrt.

Im Teich vorbei auf süßer Fahrt

Ziehn Liebende sehr wunderbar.

Der Mörder lächelt bleich im Wein,

Die Kranken Todesgrausen packt.

Die Nonne betet wund und nackt

Vor des Heilands Kreuzespein.

Die Mutter leis’ im Schlafe singt.

Sehr friedlich schaut zur Nacht das Kind

Mit Augen, die ganz wahrhaft sind.

Im Hurenhaus Gelächter klingt.

Beim Talglicht drunt’ im Kellerloch

Der Tote malt mit weißer Hand

Ein grinsend Schweigen an die Wand.

Der Schläfer flüstert immer noch.

 

(Traduções de António de Castro Caeiro)

19 Dez 2017

A última garrafa

[dropcap style≠‘circle’]R[/dropcap]AUL: Quer então dizer que para morrer com a vossa ajuda, tenho de provar que não querer viver é: 1º uma doença; 2º uma doença terminal; e 3º de insustentável sofrimento?

 (sentando-se de novo)

 DOUTOR: Isso mesmo! Não se pode chegar aqui e dizer que não se gosta de viver e, pronto, passa-se imediatamente a ajudar a morrer. Não sei se está a ver o alcance da coisa? Tínhamos bichas de adolescentes com corações despedaçados, à porta, todos os dias; donas de casa a quem os maridos não prestam atenção; mulheres e homens enganados pelos conjugues. Enfim, está a ver! Era um sem fim de gente a aparecer aqui, para ajudarmo-los a morrer.

 RAUL: Senhor doutor, compreendo perfeitamente o que me está a dizer. Mas o senhor é que não está compreender aquilo que lhe tenho vindo a explicar. Eu não tenho uma causa para querer morrer, senão não querer estar vivo. Mais nada. Estar vivo é horrível. Não se trata de uma consequência, mas sim de uma causa. Nada na minha vida é razão para o suicídio. Antes pelo contrário. Não tenho coração despedaçado, não tenho conjugue que me engane, nem sequer rejeições sexuais, para além do que é normal na existência humana, e nem sequer quaisquer problemas com a profissão que exerço ou onde a exerço. O meu problema é com a vida em geral, não com as suas particularidades. Por favor, não tome aquilo que lhe digo de ânimo leve. Julgo que fiz mal em vir aqui.

 (levanta-se e dirige-se para a porta)

 DOUTOR: Não se trata disso, homem. (também se levantando e seguindo-o; toca-lhe no ombro) Não se vá já embora. Sente-se, por favor! Vamos lá conversar. Olhe, você é o meu último paciente de hoje, até podemos estar aqui mais tempo. (dirigindo-se ambos para os seus lugares anteriores) Não me leve a mal. Estou tão somente a tentar compreendê-lo. E, ao mesmo tempo, também a tentar explicar-lhe como é que o seu caso é visto daqui deste lado. Você ponha-se no meu lugar! Entra-me um indivíduo por esta porta, que nunca vi mais gordo, e desata a dizer que quer morrer, e que quer eu ajude. Vamos lá devagar! Não se trata de uma gripe!

 RAUL: Compreendo, doutor. Sei que não é culpa sua. A situação não é muito ortodoxa.

 DOUTOR: (rindo) Não é muito ortodoxa? Você não brinque, homem! É uma situação inexistente.

 RAUL: O senhor tem razão. (preocupado) Mas gostaria que não me confundisse que os casos hipotéticos a que se referiu há pouco atrás. Porque a minha situação é completamente diferente. E bastante ponderada. Não é de ânimo leve que chego aqui e lhe peço o que lhe estou a pedir.

 DOUTOR: Já vi. Sossegue, homem. Vamos lá tentar perceber o que se passa.

 RAUL: Aí é que está, doutor! Não há nada para perceber. Se quiser, é um cancro na alma que vai corrompendo tudo o que sou. E nestes últimos tempos tem-se tornado insuportável.

 DOUTOR: Está bem, mas eu tenho de perceber isso. Não po…

 (batem à porta)

 DOUTOR: Sim?

 ENFERMEIRA: Posso, doutor?

 DOUTOR: Toda a licença. Diga!

 ENFERMEIRA: Queria saber se ainda vai precisar de mim. É que já passa da hora, ainda tenho de passar pelo colégio dos miúdos.

 DOUTOR: Não, não. Pode ir, claro. Até amanhã.

 ENFERMEIRA: Até amanhã, doutor.

 (fecha a porta)

 DOUTOR: (levanta-se e abre a porta de uma estante) Posso servir-lhe um whisky?

 RAUL: Se não for incómodo.

 DOUTOR: Não incomoda nada. Deseja gelo, água lisa ou bebe-o puro.

 RAUL: Como já vi a garrafa, bebo puro. É crime estragar tão bom whisky com água.

 DOUTOR: Lá isso é verdade. Eu também só bebo puro, sou pouco escocês.

 (volta à mesa e serve o whisky e propõe um brinde)

 DOUTOR: À sua!

 RAUL: Obrigado. À sua!

 DOUTOR: Então, aonde é que estávamos?

 RAUL: Estava a dizer ao senhor doutor que não me confundisse com os casos…

 DOUTOR: Sim, sim. Já me lembro. Pois e eu ia precisamente a dizer-lhe que tenho de perceber aquilo que se está a passar consigo. Já percebi que não é um homem vulgar.

 RAUL: Desculpe, doutor, mas vulgar sou. Sou um homem como os outros.

 DOUTOR: Quero dizer no tocante à sua decisão de pôr termo à vida. Não se trata de um impulso que teve ou de um acontecimento que o fez tomar essa decisão. Arriscar-me-ia a dizer que é algo de filosófico.

 RAUL: Isso de filosofia é que não! Não me venha com filosofias. Não se trata de filosofia, trata-se de doença, doutor. Julgo que não há muito o que perceber, senão que é uma doença que me está a causar um sofrimento insuportável. E…

 DOUTOR: A vida, portanto.

 RAUL: Perdão!? Não compreendi.

 DOUTOR: A vida. A doença a que se refere é a vida.

 RAUL: Sim, a vida.

 (silêncio)

 RAUL: Mas quando digo que se trata da vida, há que dizer também que não sei bem.

 DOUTOR: Não sabe bem?

 RAUL: Claro, doutor. É que se fosse só a vida, provavelmente haveria mais casos como o meu. Haveria imensos.

 DOUTOR: Estou a ver.

 RAUL: O que quero dizer é que a vida, para mim, não é vida. É e não é. É, porque estou vivo e tenho as minhas responsabilidades como todos os outros. Não é, porque, sem razão nenhuma, ela se torna insuportável. Está a compreender?

 DOUTOR: Estou, estou. Continue, por favor!

 RAUL: É isso, doutor. Em mim, a vida é uma doença. E, no entanto, para tantos outros, para o senhor, por exemplo, a vida é apenas a vida.

 DOUTOR: Sim, estou a ver. E, dizia-me há pouco, padece disso desde a adolescência, portanto.

 RAUL: Mais ou menos.

 DOUTOR: Diga-me uma coisa: também não foi sempre assim, pois não?

 RAUL: Assim como?

 DOUTOR: A intensidade da dor.

 RAUL: Não. Dor sempre houve. Por vezes atenuava, sem perceber bem porquê. Mas de há alguns anos para cá, uns oito talvez, tem sido pior. E os últimos dois são difíceis de descrever, doutor.

 DOUTOR: Deseja um pouco mais de whisky?

 RAUL: Por favor, doutor.

19 Dez 2017

A Vinda

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]sperar por quem partiu é uma actividade da ordem da expectativa redentora: erguer o que caiu, reerguer, tornar a levantar. Nascer de novo. Toda a nossa existência tem o ciclo da ilusão rotativa ampliada a uma esperança que supera em muito o nosso comedimento temporal e racional e amplia a vida para lá das fronteiras do possível. Desmesuradamente construímos a esperança como um doce sacrifício a manter mesmo quando a única que se nos é dada viver seja o momento, que sabiamente vivido é a mais bela casualidade de todos os factores.
Não diferimos aqui das grandes desovas marítimas em bandos de vida animal, nem nos falta o canto de amor das baleias, nem o banquete ártico dos ursos, nem o construir em cima do já feito voltando ao mesmo ninho. O que difere um pouco da frase pré-socrática que é o não nos banharmos duas vezes nas mesmas águas, o que, entenda-se, pode designar que o pensamento é um exercício relativamente recente na esfera da vida. Tudo se move pela memória, ou nos parece que ela é tão avantajadamente mais lata que o pensamento fica entorpecido nas suas malhas. Ora, em princípio, quem nasceu já não volta a nascer, a menos que figuradamente e aí acrescenta então mais espaço ao conceito de nascituro. Mas nós, que pensantes e a soçobrar de sonhos queremos que nasça alguém já nascido, prosseguimos um estranho caminho configurado de lenta transformação sem recurso a singularidade.
Neste momento todos os ânimos se ateiam no Médio Oriente devido a um agente incendiário que irracionalmente governa o mundo, pois ele achou que à beira da “desova” natalícia o melhor presente seria fazer perigar o instante, o que não é de todo oposto a uma certa animalidade atávica de configuração dinâmica; aquele local é uma masmorra em forma de dinamite planetária que um ligeiro toque remete para as enguias em pleno Mar dos Sargaços. Ora, aqueles povos inteligentes em vez de inteligir o óbvio, imediatamente respondem sem freio a um estímulo de causa-efeito: imaginai os não inteligentes, como se comportarão?! Abaixo de um qualquer enxame de vespas.
Naquela terra tudo espera vindas a duplicar… a triplicar: a vinda de Cristo, a vinda do segundo e terceiro Templo, a vinda de Elias, mas quem ali se instalou, enquanto uns morriam e outros eram desterrados, não quer abrir a sua mão nem para acenar do outro lado da rua onde deslizam com as fortes correntes de ar da cidade os que estão nas tendas, uns ao relento, outros atrás de um sudário, enquanto eles, os do usucapião, se instalaram no melhor dos locais, que os outros dizem que é seu, mas que também é deles, porque também um outro ali subiu aos céus. Aquela gente estava sempre a ascender. E para que se saiba do arfar do movimento, aquele é o ponto mais fundo da Terra. E assim, entre memória e conflito, a tensão faz do cérebro um grande órgão de fogo.
Efectivamente, e à medida que fomos desenvolvendo capacidades, instalámo-nos em terrenos muito estranhos para a frágil anatomia transportada: já nada nos lembra a primeira lava de extração da raça dos gigantes que casavam com as filhas dos Homens, e aquelas personagens de crânios ovais, tudo o que circula na nossa corrente sanguínea do nascer de novo se assemelha descomunalmente. Esta rotatividade imparável faz-nos um atordoamento simbólico mas muito belo pois que somos feitos desta fórmula composta. Quando os grandes ciclos se festejam, eles não sabem já o que seja a festa, mas, chegados ali, como o corpo tem memória ele segrega a mesma baba Pavloviana. É interessante ver que não diferimos em nada de um cachorro. Em Jerusalém preparam-se as festas, Hanukkah, Natal, uns julgam que o Messias vai a qualquer hora nascer – que não é aquele – mas nada é aquilo que estamos à espera, é sempre outra coisa, ou não será? Que vão reerguer o Templo e já há quem esteja a fazer utensílios com madeiras do Líbano e tudo… enfim, Deus é total, sim, e onde ele estiver, saibamos que não morremos de monotonia, pois que o cérebro humano tem o dom maior que é o de fazer, refazendo, aquilo que já estava feito.
Lembro-me de Arafat em pranto quando desejou passar o Natal em Belém e não deixaram, lembro-me da morte de Isaac Rabin, dos ortodoxos russos na Igreja da Natividade com as cadeiras pelos ares e, de facto, quando olho tudo isto é como se fosse pela primeira vez. Depois penso que a forma de vida cultural é tudo o que não é passível de mudança. Para se mudar um homem, sem dúvida que a única mudança possível é matá-lo. E mesmo assim, ele volta, reergue-se, ressuscita, elevam-se as pedras, erguem-se os altares, tudo o que algures radicalizámos, volta. Mas não nasce, nascer é outra coisa. Nós ainda não nascemos. Estamos configurados até ao fim das provas para este desastre em permanência e até ele tem o seu labor e os seus equilíbrios a manter. Vamos aqui, e já que ainda aqui vamos, para a semana é de novo Natal e até os Orientes se embebedaram desta seiva dos mais loucos da Terra para finalmente deles extraírem um propósito que também nos ultrapassa.
A vir então que venham todos, pois que para sairmos da Roda há que não deixar nada e ninguém para trás, há que salvar todas as vidas como se fosse a nossa e deixar de pensar que voltar é tornar a existir. Ascensionais vamos à Ceia. Muda o mundo os seus ângulos e da recta parada nascerá a vertical subida.

O Espírito e a Esposa dizem: «Vem!»
Diga também o que escuta: «Vem!»
O que tem sede que se aproxime; e o que deseja beba
Gratuitamente da água da vida.»

Apocalipse- Epílogo- 17

18 Dez 2017

Os primeiros festejos à Padroeira (1647)

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]rendo suficientes os dois artigos publicados sobre a Imaculada Conceição para deixar por um ano este tema, apareceu-nos um texto de 1648 escrito pelo jesuíta Nicolau da Costa e reproduzido por Benjamim Videira Pires S.J., relatando as primeiras celebrações em Macau em honra da Padroeira, que não resistimos em transcrevê-lo, tal a riqueza e opulência, contrária ao despojo material da filosofia franciscana.

“A ordem real sobre a consagração do Leal Senado de Macau à Imaculada deve ter chegado à Cidade do Nome de Deus, na monção da Primavera de 1647. Imediatamente se organizaram <desde Dezembro desse ano até aos 22 de Fevereiro de 1648, muitas festas somenos, como carreiras e várias encamisadas, nas quais vinham os homens principais da cidade a cavalo, luzidiamente trajados ao modo sínico, ora ao japónico e às vezes à moirisca, outros em trajos de outros reinos estrangeiros, com grande número de tochas acesas nas mãos e da mesma maneira os seus pajens e escravos, todos vestidos de diferentes librés. E porque neste tempo estavam ainda aqui os navios da Índia, os moradores de Cochim, por darem mostras da alegria que sentiram em seus piedosos peitos, foi também a sua encamisada com pandorga [música desafinada e sem compasso], coisa que muito contentou a todos e em que gastaram bem de prata, porque vinham grão número de figuras que representavam os diversos passos, com muitas tochas e outras luminárias.

Porém, os naturais e filhos desta cidade e os japões levaram (vantagem) aos demais, porque numa segunda-feira de manhã arvoraram em um mastro, na rua direita da cidade, uma formosa bandeira, de campo, andaram muitos cavaleiros com outra bandeira, em cujo campo vermelho estava numa das bandas uma esfera e na outra uma águia pintada, correndo as ruas por onde havia de passar a sua, que chamavam, procissão, com tambores, pífaros, lançando em muitos lugares à gente que se ajuntava vários ditos galantes, versos e epigramas em louvor da Virgem. À noite, vieram com sua procissão pelas ruas, os ditos tangendo diante, também, pífaros, trombetas com charamelas, a visitar as principais igrejas da cidade. Após os instrumentos, vinham, por sua ordem, o deus Marte a cavalo, Neptuno sobre um delfim, com o deus Pan sobre outra alimária, cada um destes deuses no coice do seu esquadrão; e diante de cada um do qual ia uma formosa bandeira em que iam escritos vários versos e motes com figuras, tudo em louvor e com glória da Senhora; e os de cada esquadrão, que eram de 20 em 20, (seguia) cada um com sua tocha acesa na mão.

Detrás das companhias dos 3 deuses, cujos soldados e vassalos com seus criados vinham (vestidos) da mesma libré que o seu deus, se seguiam as deusas Ceres, Diana e Minerva, cada uma no fim de seu esquadrão, assentada em rico trono, posto sobre um carro triunfal, dos quais carros o primeiro era puxado por duas serpentes por cordões de seda; o segundo por dois veados e o terceiro era levado por dois cavalos ricamente vestidos, ao modo com (o) trajo de cada uma das deusas.

Junto ao derradeiro carro, vinha uma capela de cantores de excelentes vozes, com tangedores que, de quando em quando, tocavam diversos instrumentos, descantando muito a ponto, o que acabado ao som da viola, davam sua música com variedade de cantigas e toadas, tudo em louvor da Virgem; e nos terreiros das igrejas principais, descansavam, foliavam e bailavam de terreiro, com aplauso da muita gente que se ajuntava, por eles serem muito destros. Em nosso terreiro (da Igreja da Madre de Deus ou S. Paulo) se esmeravam mais, para mostrarem o reconhecimento aos nossos (i. é, jesuítas), que eles ensinaram (i. é, ensaiaram) e a escola onde aprenderam o que sabem.

Tudo acima foram prelúdios das festas, com que se solenizou o dia determinado…>”

A 8 de Dezembro

“<Para que fosse mais célebre e em tudo com perfeição, diziam os homens ser necessário ajudarmos nós; e aí vieram a este Colégio (de S. Paulo) os Vereadores, como cidadãos principais, pedir encarecidamente aos Superiores (da Companhia de Jesus) os ajudassem…, pois eles, por si sós, não podiam sair com coisa boa. E como a petição era tão justa e para glória de Deus e louvor da Senhora, não se lhes pôde negar. O que se lhes deu para a procissão foi a figura da Fama, que ia a cavalo, com um pendão da Virgem, de glorioso bastidor em campo branco, cujas duas pontas levavam dois cavaleiros, galantemente vestidos, e os cavalos (em que iam montados) com ricos jaezes.

Três danças – uma de anjos, outra de pastores, outra de soldados, com uma folia, indo os meninos em oiro, pedras preciosas, pérolas e aljofres. Deram-lhes (os Jesuítas) mais as figuras seguintes: a Graça, que ia em um carro triunfal, levando a seus pés presos o demónio e o pecado, pelo qual carro puxavam as Virtudes – scilicet: Castidade, Prudência, Justiça e Fortaleza.

Para puxar o segundo carro em que ia a Senhora, os 4 Patriarcas: Abraão, Jacob, Isaac e Joaquim (pai da Virgem).

Por quanto havia três arcos triunfais, antes de chegar a S. Francisco (onde na sua igreja de Nossa Senhora dos Anjos havia uma capela e um altar dedicado à Imaculada Conceição. A Confraria, estabelecida pelos anos de 1572-1580, estava encarregada do culto da Imaculada e zelava a celebração da festa da Padroeira do Senado, de todo o Reino e seus domínios, no dia 8 de Dezembro) fez-se-lhes um diálogo, que se representou junto do primeiro (arco), que estava na rua, abaixo da porta principal da nossa igreja, donde a procissão saiu, em que entraram a Graça, o Pecado e o Diabo. No segundo (diálogo), falou o Anjo Custódio, oferecendo à Senhora o seu arco em nome da cidade.

No terceiro (diálogo), saiu a Confraria da Senhora, pedindo-lhe quisesse aceitar aquelas amostras de amor, à qual respondia a Alegria, que posta num alto fingia vir do Céu, para ajudar a festejar este dia de tanto gozo para a Virgem…

Isto o principal com que este Colégio (de S. Paulo) concorreu para a festa (da Padroeira)…, afora os ornamentos ricos, que se emprestaram aos frades franciscanos para todos os altares e as mais capas que iam na procissão de todos os clérigos e nossos Padres e Irmãos… Não trato das custosas charolas (i é, andores) dos Santos que levava, nem das muitas invenções e outros passos de prazer que na procissão iam, nem do ornato das ruas e palanques que havia, nem dos engenhosos jogos e outras muitas festas e folguedos que 8 dias contínuos houve… por não ser este o lugar.

O que se apontou acima foi por ser coisa que este Colégio (de S. Paulo de Macau) fez, em serviço da Virgem, de que os homens muito se edificaram, assim como folgaram…>, (da Relação do jesuíta Nicolau da Costa).

Eis uma imagem pálida e parcial das grandiosíssimas festas com que a Cidade do Nome de Deus solenizou a proclamação da Imaculada Conceição como sua Padroeira”, segundo transcreve Benjamim Videira Pires.

15 Dez 2017

Trump e a Minha Ida à Lua

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rump anunciou que voltaremos à lua. E, como dá sempre uma no cravo e outra na ferradura, selou o anúncio assinando uma declaração, a Directiva 1 de Política Espacial, algo ambígua e na qual não se especifica nem como vai fazer-se isso, nem com que orçamento dotará o projecto nem quando está previsto que se enviem essas missões tripuladas à Lua.

O que importava era anunciar a gesta, o mito de que os EUA também governarão o céu. Isso apaziguará os críticos, pois quem quer alhear-se da grandeza?

Trump é o terceiro presidente republicano consecutivo que promete ir à lua. Os Bush, pai e filho, propuseram-se ao mesmo. Os democratas, com menos visão, nunca prometem a lua.

Não se consegue resolver o problema coreano? Viremos o foco para a lua. Se Calígula queria a lua, porque não ele?

Embora na verdade ele não queira ir à lua. E eu sei porquê. EU SEI.

Uma vez tive acesso às Clavículas de Salomão (não interessa agora como), o tratado de magia que permite pôr todos os diabretes ao nosso mando, e o que a seguir relato é ipsis verbis o que se passou:

«Quem chamou?

Asmodeu tinha dois metros de altura e uma cabeça de carneiro envolta num turbante de crepe vermelho. De resto, apresentava-se nu. Ou antes, um tufo de penas de galo e de pavão coroava o púbis, donde pendia uma larga faixa de pergaminho virgem – o seu sexo. A sua pele, encarniçada, mudava de cor, consoante o seu ânimo, como fomos verificando.

Pensei, Nunca pensei ver um diabo nu. E ele, mostrando que me lia a mente, respondeu:

Para quê encobrir o vício?

Não ousei pensar mais.

Asmodeu… tenho sérios pedidos a fazer-te. Posso formular o primeiro? Desejo que… – Asmodeu lançou-me um olhar de viés que me roeu as tripas – o sr. Asmodeu converta a minha mulher – apontei-a – na Ofélia de John Milius.

Hum… – resmungou o monstro, observando-a – esta tarefa equivale a dois pedidos…

E estendeu a mão sobre o corpo adormecido dela. Da sua palma emanou um fumo verde, espesso, que a cobriu como uma nuvem. Durante dois minutos raios e coriscos sulcaram por dentro aquela nuvem, que tornava a metamorfose invisível. Após o que, gradualmente, se dissipou.

A visão de Ofélia adormecida na cama da minha suite golpeou-me num vómito: não estava preparado para tanta beleza.

Algum reparo a fazer ao meu trabalho?

Perdoe, sim… É de alegria. Mas diga-me, ela não me vai rejeitar?

Manterá a memória durante 72 horas, depois depende de si… – informou o diabo – e não pode ser tocada nas próximas 24 horas, sob risco de se desfazer a metamorfose. Despachamos o terceiro pedido?

Quero ir com ela à lua, em lua-de-mel? – Asmodeu entreolhou-me incrédulo. Tive de me justificar:

Sou um leitor de Ariosto.

Como o mafarrico tinha prometido acordámos na Lua. Estávamos no centro de uma enorme cratera cujos bordos divisávamos pela explosão súbita de astros que a circundavam e que sobre nós ramificavam, em abóbada. Era fabulosa a profundidade de campo e a miríade de pontos luminosos. Estaríamos por dentro da pele de Deus, a sinalizar a luz exterior que lhe entra pelos poros?

Ela, envolta num roupão de seda chinês, dormia ainda. Bela e intensa como nunca. Suspirei, ciente dos maus lençóis freáticos em que andava metido. Respirava tão brandamente que decidi deixá-la acordar ao seu ritmo.

Pus-me em pé, para experimentar o solo e ambientar-me. O simples acto de esticar o braço direito para impulsionar o corpo à sua posição erecta atirou-me para quatro metros de distância. Era a falta de gravidade. Dei aos saltos duas voltas à cratera, que devia ter uns trezentos e cinquenta metros de diâmetro. Depois sentei-me, contemplando a amada, e o globo terrestre, de um azul lancinante.

Ofélia semi-abriu uma das sobrancelhas, depois a outra, lânguida, tremenda. O espaço sideral deixou-a muda, mas rapidamente sorria. Levantou-se e descobriu o seu corpo leve como nunca. Foi uma euforia.

Entregámo-nos a um jogo de gato e rato, pés furtivos e dedos enclavinhados, assobios, num ziguezaguear que soltava um bichanar inocente, inocente… e logo lúbrico. Até o brilho dos dentes constelava naquela luz espectral. Eu sentia-me um carvalho em toda a sua floração e potência.

Não demorou que nos desnudássemos. Doidos por contacto, por nos beijarmos e fundir-nos numa sutura. Contudo, o menor movimento dos músculos separava-nos. A princípio foi motivo de risada a dificuldade em manter os quadris enquadrados, e por várias vezes ela se agarrou ao meu comprido apêndice nasal, o último recurso. Depois o movimento do membro na sua vagina aliviada de adstringência constituiu uma agonia de altíssimo grau, dada a quase impossível sintonia de movimentos para o casal que esgrime pela primeira vez. Após uma hora de combate com a microgravidade o riso converteu-se em rogo: o mais leve batimento das virilhas projectava-nos a dois metros de distância e havia que recomeçar tudo.

Para além disso, fui assaltado por náuseas, pelo enjoo espacial que em terra se designa «labirintite» e resulta das informações contraditórias que o cérebro recebe dos olhos e dos órgãos vestibulares (no ouvido). Um desequilíbrio vulgar quando se aterra na Lua, soube depois.

O encantamento pusera-nos a respirar na Lua mas não nos libertara das leis da gravidade. E de repente, ao olhar o extenso firmamento e a solidão da Terra senti-me atingido por uma punhalada pascaliana e brutalmente trespassado pelo abismo de tudo o que não sabia e não podia saber. Diante do infinito espaço sideral, não consola adivinharmo-nos uma gota de orvalho na borda de um balde.

Odiava-me. Estava na Lua com a mais bela mulher, a mais disposta a resgatar a lendária lascívia de Lillith, e pensava em Pascal.»

Compreendem? Na lua o assédio pode acontecer mas é mais incerto que as promessas da carne não se tornem tumultuosas. Para quem como Trump gosta de as agarrar pelo triângulo das Bermudas ir à lua é uma tremenda perda de tempo.

14 Dez 2017

Mistérios de Factos & Estórias de Memórias

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pós a fulgurante estreia ficcional em 2000, com o título “As Más Inclinações” e, tendo como subtítulo “Breviário do Jogo” – que a crítica apelidou de escrita “silenciosa”, construída com uma “agilidade vocabular perfeita e refinada”, de um autor “estranho, requintado e provocador”, E. Trovoada está de volta aos escaparates das livrarias, agora com “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, com a chancela da «Chapas Sínicas».

Apesar do reconhecimento público, foi com “O Estranho Caso de Mr. Mao” de 2006 e de “A Chave da Casa Abandonada” de 2009, que o talento e o reconhecimento de Trovoada se consolidou. A crítica foi unânime – aclamou, aplaudiu – rendeu-se: “Uma obra importantíssima, das mais originais e poderosas no actual panorama editorial” – podia ler-se –, “destruição de mitos” de um autor que “reinventa, recria os factos, procurando transmiti-los de forma original, sem traumas, tormentos ou desilusões” , ou ainda, “acolhe memórias ,experiências e sensações de forma a preservar e conservar a identidade colectiva”.

A obra de estreia de E. Trovoada, “As Más Inclinações – Breviário do Jogo” (2000), não é um livro de grande complexidade estrutural, nem de grande sofisticação intelectual, mas é um livro de uma prosa magnífica – escorreita, sadia, pura –, que vai do confronto pessoal ao político.

O autor começa por reflectir sobre o lugar que habitamos, a construção da identidade, afectos, memórias – a relação umbilical entre as pessoas e o seu espaço –, não na teoria de Le Corbusier , onde “uma casa é uma máquina de morar”.

É uma obra centrífuga – em vez de seguir em frente –, ela anda para os lados, avança para a periferia e, a partir do quarto capítulo a linearidade da narrativa estilhaça-se de vez. Passa a salpicar o texto com pormenores inconsequentes, pequenas aventuras, experiências vazias, diversificadas por vezes, mas banais, em viagens nocturnas ao submundo do crime e da aventura – registos crus, mas poéticos, com diálogos excêntricos, mas esplêndidos -, às saunas, discotecas, casinos e botecos ordinários.

Ainda assim é um livro em que as boas intenções não contrariam a boa literatura.

“O Estranho Caso de Mr. Mao” (2006) é uma introspecção, uma reflexão que nos leva pelo espaço físico dos tribunais, dá-nos a conhecer o seu funcionamento e as personagens com que o autor se vai cruzando – o mundo contraditório da razão, a irrealidade – , a confusão, o caos. O descortinar de factos recentes. O “Medo” faz parte da construção narrativa, é um “Ser” presente. Forte e robusto.

O autor não fornece respostas directas, apresenta ideias e soluções, não as impõem, discute-as com o leitor – o leitor é cúmplice -, tudo de maneira serena, arrumada, educada. Com uma grande economia de tensão e considerações narrativas, E. Trovoada procura através das palavras atingir um grande alcance reflexivo, de grande exigência e fixa a discussão a um nível elevado do pensamento, com uma prosa lenta, complexa e meticulosa.

Notável (condição social) o capítulo do julgamento, ao abolir a hierarquia dos discursos, ao não colocar num plano superior a explicação do juiz, relativamente ao do réu.

O autor sabe – e, também porque sabe -, consegue desmitificar a importância da Justiça, sobretudo de uma justiça com várias questões por decidir, por resolver e fértil em suposições e inquietações.

“A Chave da Casa Abandonada”, de 2009, é um livro para adultos de todas as idades , recheado de um humor mordaz e colorido, com fragmentos acutilantes e melancólicos. Com uma prosa telúrica – que tanto nos horroriza como nos faz soltar gargalhadas –, povoado por criaturas aborrecidas, imaturas e ilegíveis.

A figura de Eunídes é disso um bom exemplo. Vive entre “ a imagem moral do fracasso” e o “símbolo físico do abandono” – dúvida e pânico. A obra duplica-se, desdobra-se num par de histórias paralelas: a do narrador e das personagens. Um e outros “vivem” os mesmos espaços, lugares, tempos, são coniventes. Aqui o que impressiona, é a forma `sage` como o autor consegue manter em suspenso o conflito entre histórias.

A espantosa capacidade de síntese – torna o final soberbo -, os “zumbidos” dos carros a circular, o “ladrar” dos cães abandonados e, as pessoas de “máscara” a vaguear pela cidade – “é a vida do tempo a passar”.

Finalmente, o ansiado livro acabado de chegar às Livrarias, “O Príncipe Encantado e a Oportunidade Perdida”, o autor escreve com a leveza habitual, um registo que mistura, humor, memórias, estórias, mas com uma acutilância precisa, feroz, que lhe advém do facto de conhecer bem a política, todos os meandros da política, mas infelizmente não ser político, apesar de ser inculto, provinciano, ignorante e melancólico.

Trovoada usa palavras de arremesso contra a situação política e social, mas não escancara o horror da banalidade e da futilidade de forma amarga, selvagem, oca. Constrói um quadro com boa parte da sociedade civil farta dos desmandos políticos, do caciquismo, corrupção, das venalidades do poder, sem cair na tentação da grande eloquência, nem aspira a fazer da obra um testamento histórico.

Usa os estratagemas narrativos tradicionais – para não perder o leitor, para conferir acção -, como conversas, telefonemas, pápeis, o que torna a obra ao mesmo tempo “compacta” e “porosa”. Vive entre hiatos e reconstruções documentais verídicas.

Em todos os livros, os textos de E. Trovoada não são para afirmação ou acusação de ninguém, nem tão pouco são textos panfletários ou propagandísticos. São antes de tudo livros escritos com uma elegância rigorosa, com uma criatividade a roçar o mágico e, uma deslumbrante forma de olhar a sociedade – nua e crua.

Uma prosa livre e estruturante, de um autor maldito e obrigatório.

“Não criamos nada. Juntamos coisas.”
Ana Teresa Pereira, em “O Lago” (2011)
13 Dez 2017

Ouro, Incenso e Mirra

Sou negro, mas sou rei. Talvez um dia mande inscrever no frontão do meu palácio esta paráfrase do canto da Sulamina «Nigra sum, sed formosa» ….até ao dia em que o loiro irrompeu na minha vida.

Michel Tournier in «Gaspar, Belchior & Baltasar»

 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssim inicia o célebre romance de Tournier que celebra a trindade das oferendas com uma riqueza metafórica impressionante e um incontornável fulgor histórico. Há porém uma lenda da ortodoxia russa que nos diz que existe um quarto rei mago que faltou ao encontro de Belém, assim como um heterónimo de Pessoa que será mais uma espécie de Rafael Baldaia que na mágica heteronímia resolve ser astrólogo mas que não chega à “manjedoura”, um auto-nominado Bernardo Soares .

Atravessar um deserto real ou metafórico requer cautelas inimagináveis sendo os riscos mil vezes superiores à travessia dos mares, pois que ele é uma antecâmara que dá para um outro mundo. É lá que alucinamos, escutamos, olhamos, nos fustigam ou libertam, é lá que toda a sede se torna uma necessidade sobrenatural. Tem metástases aquele vasto corpo que rápido nos levam e gotas ínfimas que de repente nos salvam. Atravessá-lo, só com o olhar alto e a visão de um deus. O saque das caravelas é a mais requintada forma de roubo desenvolvida no mundo e aos reis que atravessem desertos nos seus camelos só mesmo a força de serem magos os pode afastar da requintada arte destes assaltantes.

Os reis seguiam ao que parece uma Estrela, mas que efectivamente era um cometa. Era chamada estrela cabeluda por causa do lastro dourado à sua passagem, assim como um cabelo sem cabeça; foi ao que parece uma grande viagem – partir é para estas gentes uma cura de desaparecimento – desde o delta do Nilo passando por Tebas, os nossos reis lá foram guiados, suados, mas como eram mágicos falavam com todos os elementos naturais, e nisto, Baltasar exclama o seguinte: “Quem sabe se o sentido da nossa viagem não se resume a uma exaltação de negritude?” Talvez percepcionemos aqui uma “magia” de espécies humanas atravessadas pelo deserto de um esquecimento qualquer e já que a Estrela se encaminhava para Norte fosse clareando Adão, que significa exactamente, terra ocre.

De Palmira vinha Belchior, séquito não tinha até se juntar aos outros e foi exactamente o mais pobre que levava o ouro. Atravessaram então todo o deserto da Judeia e na mansidão das noites devem ter contado coisas que só as areias escutaram; as noites arrefecem muito nos desertos e, nesta época do ano, são enormes. Estes viajantes tinham apenas um senão: eles não controlavam o tempo! Tiveram mesmo que iludir Herodes com quem antipatizaram, tendo, sem que o previssem, despoletado a ira do hirsuto rei: crianças mortas às mãos de algozes que lhes tiram o direito ao futuro, primogénitos tão caros a suas mães, meninos que esperávamos para salvar o mundo. Estas cicatrizes não se curam com a bondade sábia dos Magos nem as suas oferendas redimem a pobreza dos que esperam e nunca são saciados. A divindade de qualquer criança deve ser abençoada com estes nobres viandantes e constitui matéria de herança que de velha a nova se renova e todos aqueles que nascem têm o direito de ser por todos nós louvados. Os nossos magos não quiseram por isso atravessar as cidades e despedir-se de Herodes, seguiram as suas viagens depois de nascer o Menino e deles não mais ouvimos falar perdidos e indiferentes aos desígnios estranhos dos assassinos de crianças.

Todos os anos o meu coração de criança deseja vê-los, desejo nascer e olhar para eles no fundo de um tempo que tenha cometas cabeludos, mas por aqui, nesta imensa necrópole, nada passa, muito menos o nascimento de um Criança. É um céu gelado com luzes artificiais como tudo o que inventámos para fazer a festa. Mas a festa é um maravilhamento trazido em vasos solenemente doados aos que nascem. Aqui não chegou ninguém, e creio que até a morte se possa agora esquecer, tal a existência de vazio. Consegui não ir para o deserto onde me esperava Satanás e os Anjos, amargamente dou por perdidas todas as etapas do caminho, todos os anos regresso em sonhos à gruta que dá vida, e sem o velho culto de Mitra, festejo os dias que vão crescer e que não banharão a Terra na tão temida noite eterna.

Lá longe ficam os Homens.

O incenso e a mirra têm o poder de afastar os insectos e as serpentes, a mirra é um bálsamo medicinal, o ouro faz bem ao sangue, todas as componentes para se andar nestes locais sem ser mordido e afectado pelas pragas. Mais tarde as serpentes vêm com suas bocas abertas mas na voragem dos solos nada terão para tragar, os males não se curarão mais com plantas espinhosas, mas com o mel das últimas abelhas, que dizem, que ao deixarem de existir o mundo perecerá, e com leite, enquanto formos mamíferos e pela carne e o seio nos propagarmos no espaço circundante.

Aos que enaltecem a dádiva e nos protegem do solo sempre agreste nos cantarão as lendas ficando nós suspensos como jardins da Babilónia – nós – esses felizes herdeiros dos sonhos. Por ora cessam as Fadas madrinhas que tinham no fim das bênçãos a escatológica harpia que num anátema disferia o golpe mortuário. Dessa ninguém se livrou nem algures uma criança que fora abençoada por reis.

12 Dez 2017

Escondam o Courbet, eles vêm aí

[dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap]gora são os quadros. Não aqueles capazes de causar controvérsia e que, de modo mais ou menos feliz, fazem luz sobre as contradições da contemporaneidade. São obras perfeitamente integradas no cânone da história da arte ocidental e, por vezes, tão discretas e inofensivas que sobre elas recai unicamente a atenção dos especialistas. À partida, não há muito para dizer sobre Egon Schiele que já não tenha sido dito. E, ainda assim, consegue ser notícia, por razões que lhe são alheias e que configuram um quadro de puritanismo revisitado a que Schiele teria provavelmente respondido com muito mais ousadia do que aquela que a censura lhe descobre agora.

Reformulemos: não é de censura em sentido canónico de que se trata; não é um programa de estado ou sancionado por uma autoridade central com o intuito mais ou menos explícito de moldar a sociedade em função de um determinado programa político. É uma coisa muito mais anónima, volátil e caprichosa, disseminada em grande parte pelas redes sociais, posta em prática por activistas de sofá e ratificado por uma ou mais minorias que reclamam dores próprias ou alheias como pretexto e fundamento para a tomada de uma posição moral. E tudo se resume a isto: o mundo ideal é um lugar de onde toda a possibilidade de afectação negativa deve ser eliminada. O disparate desta tese pode ser visto de dois ângulos distintos. Em primeiro lugar, se pensarmos num mundo como uma imensa sala de estar cuja climatização depende das definições escolhidas para o ar condicionado, é fácil percebermos que será não somente impossível regular todos os parâmetros de forma a satisfazer toda a gente como a constante afinação milimétrica exige da sociedade a imposição de uma vigilância neurótica. Por outra parte, a tese referida parte do pressuposto ingenuamente epicurista segundo o qual tudo quanto é desagradável ou inquietante é moralmente condenável e pernicioso. Uma das características mais interessantes de uma obra de arte, a de ser desafiante e perturbadora, deixa de ser uma vantagem para a compreensão deste ou de outro tempo e desta ou de outras culturas para passar a ser uma obsolescência agressora que reduz a obra de arte a um insulto sem mérito. Não é difícil imaginar no que se transformariam os museus acaso a curadoria das exposições fosse entregue aos activistas da higiene.

Esta posição moral, de que os subscritores garantem o carácter justo, é tudo menos justa e tudo menos moral. É uma posição acrítica, sem qualquer fundamento teórico e absolutamente infantil. Rege-se pelo princípio da máxima subjectividade em duplo sentido: qualquer pessoa que se sinta afectada negativamente por qualquer coisa pode e deve exigir que a fonte desse desconforto seja eliminada ou escondida. Não visa uma ideia de uma sociedade mais equilibrada e madura – pois tal exige esforço e sacrifício – nem propõe qualquer alternativa que não seja a abolição – pois tal exige pensamento. Propõe banir coisas e, a reboque de tudo quanto as sociedades civilizadas lograram obter em termos de ganhos sociais – a abolição da escravatura, o sufrágio universal, o reconhecimento constitucional dos direitos de todos os cidadãos – o seu fim último, mesmo que o desconheça, é o de deitar fora o bebé com a água do banho. Veste progresso mas tresanda a retrocesso. Diz-se da liberdade mas age como o mais empedernido fascista.

Por isso quando surgem notícias como a censura dos cartazes publicitários da exposição de Egon Schiele pela empresa de transportes públicos londrinos ou o mais recente caso de petição asinina – relativa a um quadro de Balthus (Thérèse Révant) – exigindo a remoção de uma obra constante da exposição permanente do MET, apetece perguntar para que serviram guerras mundiais e cadafalsos quando o monstro, na verdade, aprendeu a caminhar incólume mesmo no meio de nós.

11 Dez 2017

52º Retrato do soldado desconhecido

01/12/2017

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]efendia Derrida, em 1998, que a transformação tecnológica é um dos factores essenciais da aceleração política e que um regime totalitário não sobreviveria a uma certa densidade da rede telefónica, a uma certa densidade de informação televisiva, de mails, etc. Vinte anos depois constata-se uma torção na aprendizagem dos valores e também a qualidade da democracia cede ao influxo da informação e à densidade das redes sociais. A democracia padece do seu sucesso.

Pelos motivos mais simples, o pendor dos meios de comunicação de massas para a nivelação da experiência, a) foi nublando a separação entre representação e realidade efectiva, e, dada a redundância informativa, b) instalou-se uma atmosfera de imediatez e esquecimento que favorece a ilusão apriorística, a qual tem na opinião o seu grande instrumento.

Eis o conhecimento preterido pelo espectáculo da opinião, pela flutuação das pertinências. E foi-se tornando claro que o meio é (mesmo) a mensagem, à medida que perdeu relevo a qualidade ou a substância das opiniões.

Ora, ao arrepio da ideia dominante é preciso afirmar: nunca fomos todos iguais. Esta ilusão que uma utópica e generosa cultura de esquerda propagou e o multiculturalismo cavalgou, ganhou metástases na esfera da razão comunicacional. Mas é preferível a lucidez de Bloch, ao elaborar o seu conceito de não-contemporaneidade: «Nem todos existem no mesmo presente. Estão só exteriormente, porque podem ser vistos no dia de hoje. Mas nem por isso vivem o mesmo tempo dos outros», ou seja, – a discriminação é de José Jiménez, cujos argumentos cito – há um desnível entre o tempo exterior, a época e o tempo interior.

Mesmo vivendo na mesma época, porque tiveram oportunidades cognitivas diferentes ou vêem de tradições distintas nem todos os homens vivem o mesmo tempo.

Daí que apesar do esplendor da tecnologia emergente o enxamear das opiniões, tão histericamente reclamadas, não reflicta uma pauta de valores satisfatórios.

E invertendo a lógica libertária que impulsionou as utopias da internet, hoje ao reinado da opinião, tão rés ao mundano, foi reservado o mesmo papel dos Silenciadores oficiais na corte dos imperadores bizantinos – cuja função era calar os perturbadores de toda a ordem, para que reinasse apenas o pensamento estabelecido. Hoje silencia-se com a algazarra da opinião e o hábito de postar sentenças em vez de debater argumentos ou com a arrogância performativa do ignorante.

Ainda julgo com Jerome Bruner, que só a educação pode transformar a sociedade. Porque, demonstrou ele, até as revoluções não são melhores do que as ideias que personificam e que os meios que estas mobilizam para realizar tais ideais.

É porém inescamoteável: temos de lidar com as patologias do sistema de ensino, que se demite do seu papel de transmissor de cultura humanística e cede à pressão mediática e à cultura de massas – a tal que nivela tudo por baixo.

Contemos um episódio com uma filha. No 12º ano a professora de português pediu aos alunos que escolhessem um autor português que não fosse contemplado pelo currículo escolar e redigissem um trabalho sobre ele. Passei-lhe uma dúzia de livros e ela, para minha felicidade, escolheu o Carlos de Oliveira. A surpresa veio depois: a professora não fazia ideia de quem fosse. A mesma professora que eu havia encontrado em férias com exemplares de Dan Brown e de Gonçalo Amaral nas mãos.

Fiquei boquiaberto, mas não devia. Tal como Trump esta professora era já um fruto transgénico, com código de barras, dos códigos e limites da cultura de massas, ao que se aliou o desacerto dos currículos pedagógicos.

Todorov escreveu um livro sobre esta situação: A Literatura em Perigo. Aí lembra que a missão da escola desde o Iluminismo reflectia a vocação do ser humano em aprender a pensar por si mesmo, «em lugar de se contentar com as visões do mundo previamente prontas, encontradas em seu redor». Esta missão foi desvirtuada desde que também a Escola visa alimentar o Mercado, como função primeira, vendo-se arredada dos seus corredores a formação de um pensamento crítico.

Paralelamente – o que, se não é de propósito, parece – o estudante deixou de estar em contacto directo com a literatura, remetida para um lugar periférico e substituída pela Teoria da Literatura e por métodos de análise, esquecendo-se que a literatura é, em primeiro lugar, «a encarnação de um pensamento e de uma sensibilidade» que interpretam o mundo. A literatura passou a ser não o lugar da fruição como «a ilustração dos meios necessários à sua análise». Será por isso que a professora da minha filha prefere a “literatura” que prescinde totalmente de crivo hermenêutico?

Eis a contradição: as escolas não preparam os alunos para lerem Alberto Pimenta ou Herberto Helder, ou António Franco Alexandre, ou Manuel Gusmão. Totamente desfa-sados os programas escolares e as novas sensibilidades e códigos. Esteve um poeta excelente quase a ganhar o Prémio Oceanos, o Helder Moura Pereira. Faça-se um inquérito aos professores: quantos conhecem?

Ademais, a heterogeneidade manifesta em poetas como Fernando Pessoa, Haroldo de Campos, Carlos de Oliveira, João Miguel Fernandes Jorge, ou Luís Quintais, torna difícil explicar a experiência da poesia a quem não a experimenta. Por isso a poesia perdeu leitores e os professores vão-se apegando às receitas que o mercado fornece. É o pronto-a-vestir. Embora no difícil é que esteja o ganho.

Dantes havia o pronto-a-vestir e os alfaiates, a escola agora é a primeira a admitir que o fast food alimenta da mesma maneira. É uma mentira, ou o novo hábito dos fake news, apenas o mecanismo perverso do celebrado poder das redes sociais, meras instâncias da informação em autototelia.

06/12/2017

Faço um ano de crónicas no Hoje Macau. Gramo maningue. Por isso, meu (caro) leitor, meu hipócrita, meu irmão (Baudelaire), só me resta dizer como ao smart guy que tentava quebrar a última resistência da miúda à sua sedução: «…se não nos viermos entretanto, então até à próxima!».

7 Dez 2017

Fragmentos de políptico

Centro Português de Surrealismo, Famalicão, 25 Novembro

Mário Cesariny

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ndam aos trabalhões em mim, feito caixa de bolos classic nouveau da Confeitaria Moderna, as palavras de Cesariny dirigidas, em 1958, «Aos Escritores Por Causa do Que Se Lê», ditas em toada Precipício para a nação friorenta. E ausente, já agora. (A nação parece-me sempre ausente e resfriada.) «Viver o fragmento tem sido a condição sem qual não de todos nós, portugueses. Já temos o fragmento de editor, o fragmento de leitor e o fragmento de biblioteca. Herdámos (cito-o de opiniões abalizadas): o melhor fragmento de barroco, o melhor fragmento de freira, o melhor fragmento de políptico e o melhor fragmento de marquês, o fragmento de doutor e o fragmento de morto. Neste fragmento perpétuo, só mais um fragmento podia efectivamente introduzir-se, patentear-se, afirmar: o fragmento de liberdade.»

E continua em vórtice delirante até aos mais conhecidos versos de «Fragmento de Poema»: «Autoridade é do que é autor./ Só a autoridade confere autoridade./ A autoridade não é uma quantidade./ Todo o homem é teatro de uma inexpugnável autoridade./ (…) Liberdade/ A liberdade conhece-se pelo seu fulgor./ Quatro homens livres não são mais liberdade do que um só./ Mas são mais revérbero no mesmo fulgor./ (…) Ser-se livre é possuir-se a capacidade de lutar contra o que nos oprime. Quanto mais perseguido mais perigoso. Quanto mais livre mais capaz./ Do cadáver dum homem que morre livre pode sair acentuado mau cheiro – nunca sairá um escravo./ AUTORIDADE E LIBERDADE SÃO UMA E A MESMA COISA» Vendidas ou esquecidas as heranças, migalhas de doce conventual (jesuítas, barrinhas de freira, fidalguinhos e viúvas, são gonçalos), teimamos em não subir ao palco deste teatro de inexpugnável autoridade. Ainda que seja total a disponibilidade para selfies e entrevistas avulso. Sorriso sobre a mão (ver foto de Eduardo Tomé nesta página, mote visual dos encontros deste ano).

Tanoeiro, Famalicão, 25 Novembro

O animado grupo no qual pontificava o abade Perfecto [E. Cuadrado], oficiante dos mais prometaicos, órficos, dionisíacos, báquicos e minoritários cultos, escancarou com delicadeza esta conhecida porta pela qual se pode, em sabendo, aceder ao sagrado. Perfecto garantiu, por via de obscuros comércios com as divindades, uma eternidade de leituras e prazeres. Não disse que podia começar logo ali. O ritual como que começa com as papas de sarrabulho, embora haja por ali queijos e presuntos, além de outros despiciendos. Tudo preliminares, digo atrasos, para o esplendor que chega com os sublimes rojões à minhota. Pode a refeição prosseguir com mais detalhes, estes edulcorados, mas o fim de boca, digo, mundo, incendeia-se com velha aguardente Moura Basto. Surgindo das trevas e do frio em versão completa e sem variações (tarrenego!), com tripa enfarinhada e sangue cozido, rojões evoca como nenhum outro prato a terra. Em telúrica dimensão: esplendor e danação.

Metro, Lisboa, 28 Novembro

Jamais terei perdido autocarro, comboio, avião, enfim, hora de viagem marcada. Prazos, sim, mais que muitos, azarinho. Não por gosto, apenas pela sobreposição das urgências, bebinca seria, se fosse doce, com distendidas camadas de veludo amanteigado e canela e pitada de preguiça. Ou por redefinição de prioridades, afinal a liberdade que resulta da autoridade. Se, suspiro, fosse autor dos meus dias oferecia-me esta liberdade, inspiro. Ainda não foi desta que perdi comboio, mas por um triz. Da Horta [Seca] disto duas paragens de Apolónia, a Santa. Aplicava ao caminho a sacrossanta meia-hora, aquela que permite chegar minutos antes a qualquer lugar da minha casidade, Lisboa. Estava mais que bem, se não me tivera enganado e tomasse rumo ao Cais do Sodré. Ri-me, de tão cansado, atei paralelos e meridianos em nó. Voltei atrás, havia tempo. A voz altifalanta da nova carruagem insistia em dizer Cais do Sodré, não sei se com artigo, mas quem se lembra dos Sodré, bem que preferia Remolares, mas nem os lugares conservam os nomes, quanto mais os nomes vestirem lugares. Confirmada a asneira no cais de chegada, soltei palavrão feito altifalante. Não contente com falhar por virgem vez o metro que trago tatuado, dupliquei o engano em aposta de casino. Tive sorte, apanhei o comboio final, rumo ao norte, como convém. Mas ficou uma marca, traço de carril (embrulhado, para levar).

Famalicão, 29 Novembro

A mais madrugadora inauguração está prestes a acontecer, pelas 9h40, com a manhã pendurada em alto frio e luz traçadora do mais ínfimo contorno, se não vemos montanhas, há que procurá-las. Trôpego, tropeço em grupo, soltando sussurros em ladainha, de olhos disparados às A4 devidamente coloridas, presas na parede abandonada. São folhas de mortos, distribuídas com parcimónia pelo comércio, mas também afixadas perto do informal mercado das hortaliças. As preces são mero reconhecimento dos que partiram, não vislumbrei surpresa, nem consolo, tão só constatação de recorrente normalidade. Mais um rio à beira do rio. Se adiante merecer campa, fica dito, preferia grelos na vez de lírios. Atenção: sonho-os postos à mão e viçosos, colhidos em hora certa, alimentícios e pouco decorativos. Adiante, ainda que o tema, não parecendo, pede frescura. Desafiado pelo António [Gonçalves], convocámos treze ilustradores treze para outros tantos pontos museológicos de interesse nesta Vila Nova, onde se morre e se nasce. Produzimos ferramenta em formato livro que usa a ilustração para recolher visões de temas tão díspares como o automóvel ou a cerâmica, o surrealismo ou Camilo para dizer que o conjunto compõe identidade. Frágil como o esquecimento ou elástica que nem rede, depende de cada qual. Empurrado pelo azul da Cristina Lamego, na capa e prolongado com gesto puxando fio do tecido da Bárbara R. na contracapa, falei de frescura. Os trabalhos continuaram, afinal a inauguração abria o encontro da rede de museus, mas que sentido para frescura ficou a ecoar, o minhoto de roupa branca, o de limpeza, vigor ou aragem fresca? Temo que tenha sido o abrasileirado. Azarinho, azarou.

Horta Seca, Lisboa, 30 Novembro

Chega. Basta de arrepios ao ver desfilar no telemóvel os números dos que já não atendem e que não consigo apagar. Digam lá que faz parte da vidinha, digam a ver se interessa, semana sim, semana sim, este obituar de braço amparando cabeça contra a parede para ver e esconder lágrimas escorrer na calçada. Digam. Que outro punk teve sorriso como este? O Zé Pedro (1956-2017) fez da raiva, de comum desviver, do supremo desatino uma forma de resistir, de subir ao palco e tocar. Contra tudo, contra ninguém. Desdobrou-se em generosidade, em acolhimento, em entrega ao domicílio. Dasse! Quem como ele? O Sérgio [Godinho] viu bem que só neste país se diz neste país. Ora só neste país se grita, verso fora, no funeral do próprio estadista: Soares é fixe! Só este país se revê em modo consensual no amargo sorriso do punk mais querido. Punk querido? Só neste país.

7 Dez 2017

A influência da pintura ocidental na literatura chinesa

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] leitura de Lu Xun (1881-1936), o maior escritor chinês de todos os tempos, limpa e sara a mente, especialmente quando viajamos através da China, o que tem sido ultimamente o meu caso.

Em 1936 Lu Xun escreveu:   “中國的人民,是常用自己的血,去洗权力者的手,使他又变成洁净的人物的。”

O povo chinês usa muitas vezes o seu próprio sangue para lavar as mãos do opressor e fazer dele um santo sem mácula.

Hoje não vou falar da China nem do povo chinês. Em vez disso, quero salientar o lado pictórico da escrita de Lu Xun.

Poucas pessoas sabem que Lu Xun desenhou muitas das capas dos seus livros e que era um amante da pintura. Para ele, a arte plástica ocidental libertava a mente e dava asas à criatividade. “As cores do Céu e da Terra mudam e, na nossa limitação, descobrimos de repente que existe um caminho libertador.”

Vamos agora ler um excerto do conto Nuwa Vai Consertar o Céu (1922). Atentem na beleza estranha e cheia de sensualidade da sua paleta cromática.

“No céu rosado, passam volteando nuvens de um verde cinza, que escondem o brilho pulsante das estrelas. Nos limites do céu, o Sol brilha por detrás das nuvens cor de sangue como uma bola de fluido dourado, envolta na lava de terra ancestral. Um luar frio atravessa o céu, de um branco pungente.”

A heroína da história lembra ao leitor as mulheres de Van Gogh.

“… Uma luz deslumbrante envolvia-lhe o corpo amplo, sensual. Foi andando até ao mar, flanqueada pelo Céu e a Terra em matizes cor de carne, as suas curvas desapareciam num mar de luz pétala, até não ser mais do que um filamento do mais puro branco.”

Lu Xun foi claramente influenciado pelo esplendor e pelo olhar inovador dos impressionistas e pela melancolia e inquietação modernistas. A beleza que nasce do desespero é a cura que a sua escrita me proporciona.

Aqui vão mais algumas passagens:

“Talvez me lembre de ter atravessado a vagina da montanha num barquito. Vi melros, vi colheitas, flores silvestres, galinhas, cães, vi arbustos e troncos de árvores mortas, vi cabanas, torres e margens de rios. Sob o azul ultramarino, os lavradores, as suas mulheres e filhas estendiam as roupas ao sol. Os monges e os seus hábitos, as nuvens do céu e os bambus reflectiam-se na água lúcida, a que cada movimento dos remos trazia um raio de luz …”.

  • A Hora do Conto

O céu inquietante, de um azul profundo, tremeluzia como o rosto de um fantasma, como se quisesse abandonar o mundo dos vivos, deixar a solitária jujuba, conservando para si apenas a Lua.

  • Noite de Outono

O fogo está morto. As formas ardem, mas as chamas estão frias, congeladas, como sólidos braços de coral. As extremidades deixam escapar um fumo compacto, negro.

  • Fogo morto
6 Dez 2017

Do charme discreto do habitar. A Vila Primavera, locus amoenus de Manuel da Silva Mendes

 

Por Tiago Saldanha Quadros

 

Só as casas explicam que exista

uma palavra como intimidade1

Ruy Belo

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]este poema, Ruy Belo pensa ou percepciona a ”casa” como visão de uma consciência que é a sua e que é incondicional, subjectivamente virada para o seu objecto de pensamento (a realidade e o mundo). De acordo com Manaíra Aires Athayde: ”Ruy Belo era um tanto obsessivo por anotar datas, lugares, sugestões de títulos e princípios de ideias para contextualizar o surgimento de cada poema. É comum encontrarmos esses apontamentos em autógrafos e sobretudo nas marginálias de alguns de seus livros depois de publicados, uma vez que essas informações nem sempre eram divulgadas.”2 Nesse sentido, toda a nova construção deve ser entendida, também como oportunidade de revelação de um lugar. As características essenciais que separam a arquitectura da literatura, fundam–se nos critérios espaciais e tipológicos, e na gravidade que assegura a natureza essencialmente estrutural e construtiva do projecto arquitectónico. O espaço é determinado pelas propriedades concretas da terra e do céu. A fenomenologia do ”espaço natural” ocupa-se, de forma sistemática, de toda esta totalidade feita de planícies, vales, colinas e montanhas. A este propósito, Norberg-Schulz3 defende que a terra, quando controlada, é ”o palco cénico da vida quotidiana”, e que quando entre os homens se estabelecem relações, carregadas de significado, a paisagem natural origina a paisagem cultural.

Vem isto a propósito da Vila Primavera, morada de Manuel da Silva Mendes em Macau. Lugar onde o português, a residir desde 1901, foi professor, advogado, membro do Leal Senado, bem como reputado sinólogo e um coleccionador notável de arte chinesa. O registo do terreno data de 7 de Julho de 1904 mas o da casa é apenas averbado em 14 de Junho de 19174. Pressupõe-se que a proximidade da encosta da Guia, bem como a própria forma do terreno revelassem um contexto natural abundante, adequado a alguém interessado no estudo da arte e cultura Chinesa. É nesse charme discreto do habitar, confinado ao espaço isolado confabulado por Manuel da Silva Mendes, que reside a dimensão essencial da sua permanência em Macau. Longe dos demais compatriotas, mais perto da sua família, dos seus livros e da arte que virá a coleccionar. A amenidade e serenidade da natureza, composta por uma ou mais árvores, por um prado verde ou florido, por uma fonte ou um riacho, aos quais se podem juntar o canto das aves e o sopro da brisa, caracterizam inequivocamente o locus amoenus, segundo a definição que dele elaborou a crítica literária. É neste contexto de paraíso e abrigo transcendental que identifico a Vila Primavera como o lugar ameno de Manuel da Silva Mendes. Por tudo aquilo que significou e originou, parece-me evidente que, desde o início, Manuel da Silva Mendes não imaginaria um lugar eutópico5, sem a presença da ”civilização” (paraíso artificial). Nesse sentido, interessa-
-me a ideia de que a Vila Primavera se possa ter configurado para Manuel da Silva Mendes como imagem arquetípica do seu locus amoenus. Por isso, uma paisagem não real, mas ideal e utópica, prefigurando deste modo uma ideia de paraíso para o próprio.

Entre os espaços naturais podemos referir a paisagem romântica, com expressão máxima na Escandinávia; a paisagem cósmica, revelada com o seu máximo vigor no deserto; e a paisagem clássica, que pode ser definida em termos de lugares individuais distintos. Contudo, os três tipos de paisagem apresentados são arquétipos que raramente se equacionam de forma ”pura”. Assim, poderíamos antes falar de ”paisagens compósitas”. Ainda a propósito do espaço natural, Norberg-Schulz considera que o homem, para poder habitar a terra, deverá compreender a interacção céu/terra enquanto conceito existencial, considerando que ”o céu é a parábola da terra”.

A Vila Primavera, classificada como Edifício de Interesse Arquitectónico, data do início do século XX e mantém, na essência, a sua identidade face ao crescimento e proliferação de edificado em seu redor. Trata-se de um exemplar do ecletismo arquitectónico português, cuja expressão neo-romântica, apesar de ténue, faz referência aos ”vários revivalismos” que pontuaram o panorama arquitectónico do século XIX. Manuel da Silva Mendes recusava de forma muito crítica o modo como elementos e caraterísticas próprias da ”arquitectura romana” eram profusamente replicados em construções novas. Para Manuel da Silva Mendes estava em causa a defesa e preservação de tradições construtivas locais. Esse seu interesse, conhecimento e sensibilidade relativamente às questões da arquitectura e da cidade são evidentes em textos da sua autoria como Arquitectura Sacra em Macau6, O templo de T’in Hau na Barra7 ou a Cidade de Macau8, entre outros.

De certo modo, o ecletismo arquitectónico da Vila Primavera reflecte uma tendência preconizada por grande parte dos arquitectos da época. A título de exemplo refiram-se os dois torreões que ladeiam a entrada principal. Estes comunicam entre si por uma varanda que é suportada por quatro colunas. Se por um lado as bases dessas mesmas colunas ostentam elementos decorativos de origem chinesa, por outro, a organização espacial interior da Vila Primavera, bem como a geometria da sua fenestração reflectem na sua essência o Ocidente. A este propósito Ana Tostões refere: ”Trata-se de uma casa eclética do início do século que se desenha a partir de uma torre de gaveto com três pisos, a qual funciona como eixo de composição, articulando a quarenta e cinco graus os outros dois corpos mais pequenos de dois pisos, que recebem uma varanda contínua suspensa em pilares. Um certo ar colonial das galerias é conjugado com o romantismo e imponência da torre, daí resultando um conjunto exótico e original.”9 Convém referir que o século XX português despertou com um grande debate entre Ventura Terra e Raul Lino, corporizado pela visão academista das beaux-arts e por um pensamento de raiz germânica. De acordo com José Manuel Rodrigues: ”Estas duas visões confrontam-se no concurso para a realização do Pavilhão Português da Exposição Universal de Paris de 1900.”10 Com efeito, no início do século XX em Portugal, ainda poucos arquitectos manifestavam disponibilidade para integrar e desenvolver novas práticas. De um modo geral, vivia-se em ambiente de reacção à mudança. A experimentação moderna convivia com os revivalismos oitocentistas e a criação arquitectónica persistia em adaptar as necessidades do presente a métodos e processos pretéritos, baseando o desenho em ideologias estéticas do passado.

Em 1999, o edifício foi recuperado para albergar o Instituto Internacional de Tecnologia de Software da Universidade das Nações Unidas. A intervenção, da autoria dos arquitectos António Bruno Soares e Irene Ó (OBS Arquitectos) reflecte um especial cuidado na adequação do objecto recuperado à sua envolvente. Na forma como a singularidade do edifício pré-existente foi re-qualificada, sem que para o efeito se tenha incorrido em qualquer mimetismo arquitectónico. Pelo contrário, a solução encontrada funda-se num processo de ”renaturalização” do edifício pré-existente, procurando-se dissimular o impacto da sua extensão e, nesse sentido, preservando a identidade única da Vila Primavera.

Os nossos mais recônditos pensamentos e as nossas acções, a alegria e a dor, exprimem a nossa necessidade de abertura ao sentido, sentido esse que impregna culturalmente comportamentos, emoções e vontades, em busca da felicidade, do prazer, da verdade, mesmo que situadas historicamente. A casa de Manuel da Silva Mendes funcionou para ele próprio como um sonho, útero original onde cada um de todos os objectos acrescentavam vida e mundo. Fico a imaginar que na Vila Primavera o jantar não fosse mais do que uma peça de teatro. E que os convidados não soubessem as suas falas e se despedissem alimentados, prometendo regressar. E que tudo fora um sonho dentro de um sonho. E nós, mesmo que afastados desse tempo e desse espaço, lembramos os espaços que não conhecemos como um espelho sem lados falsos. Somos mais nós e menos os outros – à espera do dia em que a Casa, se nos revele.

Bibliografia

1 BELO, Ruy (2000). ”Oh as casas as casas as casas” in Todos os Poemas, Lisboa: Assírio & Alvim.

2 ATHAYDE, Manaíra Aires (2013). ”Ruy Belo em verso e prosa” in Granta, Lisboa: Tinta da China, p. 132.

3 NORBERG-SHULZ, Christian (1979). Genius Loci: Towards a Phenomenology of Architecture, Nova Iorque: Rizzoli.

4 Por morte de Manuel da Silva Mendes o prédio – com o valor de $30.000,00 – é inscrito a favor da viúva, Helena Augusta Berta Danke da Silva Mendes, em 15 de Fevereiro de 1932 (na sequência da escritura de partilha amigável celebrada em 13 de Janeiro).

Em 20 de Julho de 1933, Helena Silva Mendes vende o prédio ao médico José António Filipe de Morais Palha (inscrição na Conservatória em 25 de Julho), pelo valor de $28.000,00.

Por morte de Morais Palha, a casa (a que é atribuído um valor de $25.000,00) passa para viúva, Adélia Gonçalves Rodrigues Morais Palha (inscrição na Conservatória em 13 de Novembro de 1937).

Um registo de hipoteca, constituída por Pun-fong-hün, a favor de Adélia Gonçalves Rodrigues Morais Palha, datado de 17 de Outubro de 1942, assinala a mudança de proprietário do prédio.

Ao longo dos anos, a antiga residência de Manuel da Silva Mendes serve, sob a forma de hipoteca, como garantia para sucessivos empréstimos a Pung-fong-hün (ou Pung Fong Kun), que, em 17 de Fevereiro de 1958, vende o prédio à Fazenda Nacional, pelo valor de oitenta mil patacas (inscrição na Conservatória em 5 de Março).

Finalmente, em 7 de Julho de 1999, a Fundação Macau adquire o imóvel, por cinco milhões depatacas, para, depois de remodelado, nele instalar o Instituto Internacional de Tecnologia de Software da Universidade das Nações Unidas.

Durante os anos em que o edifício pertenceu à Fazenda Nacional (actual Direcção dos Serviços de Finanças) a Vila Primavera serviu de residência às Franciscanas Missionárias de Maria (enfermeiras no Hospital de S. Januário).

5 O lugar ameno, ainda que dotado de todas as características que o individualizam, recebe a designação de ”eutopia” em contraponto com a noção de ”distopia”.

6 Artigo publicado em O Macaense, n.º 21, no dia 28 de Setembro de 1919.

7 Artigo publicado no Jornal de Macau, n.º 18, no dia 11 de Junho de 1929.

8 Artigo publicado no Notícias de Macau, n.º 78, no dia 31 de Outubro de 1929.

9 ROSSA, Walter; MATTOSO, José (orgs.) (2010). Património de Origem Portuguesa no Mundo: arquitectura e urbanismo. 3 volumes, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, p. 520.

10 RODRIGUES, José Manuel (org.) (2010). Teoria e Crítica da Arquitectura do Século XX, Casal de Cambra: Caleidoscópio, p. 8.

6 Dez 2017

OI, de Luís Brito (parte 2)

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste confronto com o Brasil é decisivo, pois como diz o David de São Paulo, o Brasil é harcore. E a situação torna-se mais radical ao chegar ao Rio, em visita a um amigo que decidiu passar a viver ali, com a sua namorada brasileira. As diferenças sociais no Rio vêem-se, contrariamente a São Paulo, estão expostas a cada esquina, a cada bar junto à praia. O Rio é um abismo permanente. Depois de uma visita a uma favela, e muitas das favelas no Rio estão junto dos bairros nobres da cidade, ele escreve: “Nada é mais autoritário do que uma pele branca e, por eu a usar como uma farda, podia ter levado um balázio nos dentes. (…) Um ou dois mortos por dia não é assim tanto, e só cá vindo se percebe (…).” (p. 37) Mais tarde, no calçadão de Copacabana, quando encontra Milson, o homem que se lavou com livros na prisão, depois de ter morto um polícia, escuta-o dizer que “(…) um dos seus sete irmãos foi assassinado por outro, apenas por se insinuar à sua esposa.”

E eu mesmo, aqui a ler-vos este texto, conheci dois irmãos, do interior da Amazónia, que andaram aos tiros um com o outro, por causa de uma mulher, até que um deles fugiu para os EUA. É como escreve o seu amigo Tó, que gosta de escrever aforismos: “Os Brasileiros pecam por falta de culpa.” Mas no Rio é fácil de esquecer o mal, pelo menos nos primeiros tempos. Em menos de nada, podemos estar a repetir estas frases, que Brito escreve no final do nono arrepio: “Este país faz-me sentir que tudo é possível, todas as árvores dão um fruto e nada me garante que lá dentro não esteja o amor da minha vida.” (p. 44) E imediatamente em contraposição a esta demanda por o amor da sua vida, Luís Brito descreve um carioca de gema, à página 46: “ele anda de tronco nu todos os dias, tem dívidas nos botecos e nos quiosques, cumprimenta a vizinhança, joga futebol e gosta de mergulhar no mar.

De vez em quando tem de ir às cachoeiras, é tarado sexual, come açaí, coxinhas de frango, feijão preto com farofa e toca precursão numa escola de samba.” (p. 46) De facto, um dos lugares mais cobiçados no Rio é o de percussionista numa escola de samba. Por outro lado, todo o mundo joga futebol. Saem do trabalho e vão para uma quadra jogar. Joga o médico junto com o zelador, joga o engenheiro junto com o vendedor ambulante. Ali, na quadra, não tem divisões, não tem classe social. O futebol no Rio é uma religião. E eles praticam. O futebol não é, como para nós, algo a que se assiste. Por isso encontrei, em 2005, muitos flamenguistas que assistiam aos jogos do Fluminense (na Tv, claro), porque gostavam de ver jogar o Petkovic, jogador da Sérvia, que em 1995 tinha jogado no Real Madrid e em 2001 e 2002 jogou no Flamengo. Imaginem, as senhoras e os senhores que gostam de futebol, um benfiquista assistir aos jogos do Sporting, porque joga lá um João Vieira Pinto, e ele é um grande jogador!? O Rio tem adoração pelo futebol, pelo samba e pelo sexo, como fica muito bem claro neste livro.

Livro que é também uma viagem ao sórdido do Brasil, aos lugares que ninguém visita quando vai de férias, como a Vila Mimosa, no Rio, que, e passo a ler, à página 57: “Antes de mais o cheiro. (…) Por outro lado, talvez seja a mistura de esgoto e de suor, de cerveja e de vómito que se espalha pela calçada portuguesa, esburacada e barrenta, acinzentada, onde muitos homens já caíram desmaiados. Tudo tresanda mais por causa do calor, este sítio fede tanto quanto fode.” Mas julgo que é nesta curta passagem, acerca de uma puta de 42 anos, que parecerá ter chegado ali com as caravelas, imagino eu, que melhor explica este lugar, esta Vila Mimosa, este lado escuro do Brasil, como tantos pelo Brasil adentro: “Espreitar o mal dos outros é coisa de ricos, a curiosidade mórbida é um luxo, porém o facto é que Sabrina aprecia a minha companhia, só porque eu não tenho doenças, nem lhe vou bater ou cuspir para a cara, possuo os dentes todos na boca e digno-me a tratá-la como um ser humano.” (p. 60)

Mas há também Vanda. A bela e jovem Vanda, que se aproxima do narrador e diz: “E aí? Vamos namorar bem gostoso?” E esta situação, a da beleza surgir no meio do nada e aproximar-se de nós como uma miragem, como um sonho, como a verdade que não existe, leva o narrador a escrever: “Uma mulher bela dizendo coisas porcas é como se falássemos com nós mesmos.” E depois de Vila Mimosa há o verdadeiro interlúdio deste livro, pois não se trata de um interlúdio formal: os arrepios 14 e 15; os arrepios da Y. Nestes arrepios, onde o narrador tem um caso, que julga ser único, o verdadeiro amor, com essa mulher que “tem uma relação agridoce com o consumismo” (p. 78), a Y, o autor faz-nos ver por dentro o quão ridículo é estar apaixonado e ao mesmo tempo tão diferente, tão especial. No fundo, estar apaixonado é um interlúdio na existência.

E Luís Brito escreve-nos nestas páginas, que são brilhantes em tantos momentos, a infantilidade de querer ver no outro aquilo que ninguém é ou pode ser. Escreve até as frases que dizemos nesses momentos, escreve até as que pensamos, e que se ditas em voz alta, coramos de vergonha, mas aqui fazem todo o sentido serem ditas em voz alta, e eu passo a lê-las: “Esfregar a minha cara na dela foi como voltar à barriga da minha mãe, reunir-me com o Universo, deixar de me sentir mutilado, voltar a ter o que perdi antes de nascer.” (p. 72) Mas ele não escreve apenas o que pensou ou o que disse. Ele descreve esses dias, fazendo-nos continuamente – ao viajar não apenas nas imagens dele, mas nas nossas memórias – ir da saudade à vergonha.

E no início do décimo sexto arrepio já tudo volta à normalidade, a vida encontrou modo de assumir a sua natureza, e Y acaba com uma relação que nem sequer tinha começado, fazendo com que o narrador volte a levar-nos nesta viagem por si mesmo e pelo Brasil. E, um dia depois de Y, no décimo arrepio, aparece Z, uma mochileira que o narrador encontra na estação de ônibus, quando se prepara para viajar para norte. E passo a ler: “Não interessa para onde vou, ou pelo menos por agora. O que interessa é isto: na estação de autocarros, enquanto espero pelo meu, vejo uma mulher com uma mochila de viagens, igual à que guarda as minhas coisas. A mesma marca, o mesmo modelo.” Comento eu agora: se isto não é um sinal dos deuses, então não percebo nada do cosmos. E o narrador escreve: “Aproximo-me para me certificar de que ela é real. Ou melhor, quero saber se ela é bonita, pelo menos o suficiente para lhe poder chamar Z. / Confirma-se. Damos um beijo na boca, ali naquela estação, meia hora depois de nos conhecermos.” E assim termina o décimo nono arrepio.

O livro balança magistral e continuamente entre a comédia e a tragédia. O narrador mais do que viajar nele mesmo, parece viajar de mulher em mulher, como um D. Juan. Mas aqui, neste livro, um D. Juan de papel, um D. Juan que ao invés de seduzir é continuamente seduzido e descartado. Mais do que uma viagem pelo Brasil, por uma pequeníssima parte do Brasil, que também é, evidentemente, é uma viagem pelo feminino, uma viagem pela necessidade de feminino que o narrador tem. E o leitor pressente, talvez erradamente, que ele só não fica numa das letras do abecedário, porque as letras o vão sucessivamente rejeitando. É um livro onde a fragilidade da natureza humana é exposta parágrafo a parágrafo. Não estamos apenas sós, estamos sós e já nem sequer fascinados por um resgate eficaz dessa solidão. Deixamos de acreditar, ao fazer do corpo o único deus que existe. E o Rio, talvez mais do que qualquer outra cidade, é a Meca do corpo. E é precisamente aqui que um homem, o narrador, busca um além-corpo, como um cristão em busca de Cristo na Meca do Médio Oriente. Se o livro é pontuado por paradoxos, quase à exaustão, este é o paradoxo leitmotiv do livro, que já o dissemos no início deste texto: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo.

Depois de um fascinante vigésimo arrepio, em Búzios, onde o narrador reencontra Mariano, um argentino que conhecera cinco anos antes em San Sebastian – remetendo-nos para o seu primeiro livro Alcatrão – o vigésimo primeiro arrepio começa assim: “O abcedário deu a volta. Conheci a letra A. É das mulheres mais bonitas que vi na vida. (…) e dou-lhe a letra A, como quem diz que ela é ‘a mulher’. Ela, a A, a mulher que me cuspiu na cara, e a quem agradeço por isso.” (p. 89) Mas esta mulher, “a mulher”, ele conhece-a através da mãe, dona do hostel onde o narrador fica, em Itacuatiara, lugar das melhores ondas do Brasil, e através da mãe, com quem faz jejum de sete dias, começa a apaixonar-se por uma das filhas, que ainda não conhece. A mãe é Rosângela, macrobiótica convicta, depois de anos e anos nos ácidos. E o narrador escreve: “A partir do sétimo dia, diz a bíblia macro-biótica, os efeitos do jejum alastram-se à mente e ao espírito, curando problemas existências ou traumas, conspirando-se até que é possível chegar ao contacto com vidas passadas, à nossa alma e à amostra da divindade.” Quantos homens já não disseram à sua amada: por ti deixava de comer? Pois o narrador deste livro fá-lo mesmo, e por sete dias. Escreve: “Eu fi-lo para conquistar uma mulher, e o melhor de tudo é não ter conseguido.” (p. 113) Percebemos que o conjunto de poemas, intitulado “Jejum”, foram escritos durante essa provação (que palavra estranha para um jejum de sete dias). O último suspiro, o vigésimo quarto, é belo e triste como um azulejo gasto, onde através dele adivinhamos tudo o que foi, incrustados agora em tudo o que é.

Oi? é um livro belo e triste, uma trágico-comédia, como a própria vida, em que o narrador nos surge tantas vezes como alguém que vive a sua vida a brincar com bonecas, mas que ao invés de as partir, são elas que o partem. E, nesta sua forma de brincar, mostra-nos o mundo à volta dele e dos outros. O mundo à nossa volta. E como ele é grande e diverso, contrariamente ao que as frases que nunca saem de casa, nos dizem. Luís Brito escreve o seguinte, logo à página 25: “Se uma pessoa decidir viajar por causa dos meus livros, para curar angústias, tédios, depressões amorosas ou qualquer comichão inquieta, tudo isto valeu a pena.” E eu termino esta apresentação, parafraseando-o: se depois destas páginas, vocês sentirem vontade de ler o livro, este texto valeu a pena.

5 Dez 2017

Imaculada Conceição padroeira de Macau

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or engano, na última semana saiu o artigo correspondente ao dia de hoje, 1 de Dezembro, que comemora o início da Restauração da Independência de Portugal em 1640, então sobre o domínio de Filipe III de Portugal e o IV de Espanha. Este rei jurou e fez jurar a todas as Corporações eclesiásticas, Universidades e Catedrais dos seus domínios, o defender o Mistério da Conceição Imaculada.

Com Portugal independente, “a 25 de Março de 1646, a Corte e os representantes dos três Estados (clero, nobreza e povo) sob proposta de D. João IV, proclamaram a Senhora da Conceição como Rainha e Padroeira de Portugal e juraram defender sempre esse privilégio augusto e celebrar com muito particular afecto e solenidade a sua festa”, segundo Benjamim Videira Pires, que complementa:

“Em 11 de Setembro desse ano, expediram-se cartas para todas as Câmaras da metrópole e do Ultramar, a fim de que as respectivas autoridades, com o clero, a nobreza e o povo, ratificassem e repetissem o acto da Corte e dos três Estados, elegendo também e proclamando Padroeira deste Reino, a Virgem Nossa Senhora da Conceição”.

É natural que esta ordem real chegasse a Macau, apenas em 1647 e daí ser feriado no próximo dia 8 de Dezembro. Serve este para venerar a Imaculada Conceição, um dos quatro padroeiros que Macau já teve, a par de S. João Baptista, Santa Catarina de Sena e S. Francisco Xavier, tendo espelho no quinto, o Santo Nome de Deus, assim chamada pelos portugueses a cidade no início. Juntam-se a estes, como protectores para a comunidade chinesa, Kum Iam (Guan Yin), comparável a Nossa Senhora, Á-Ma (Mazu) para os marítimos e Na Cha, contra a peste.

Antigamente começava hoje (1 de Dezembro) a celebração do oitavário à Imaculada Conceição e a 8 de Dezembro a sua festa, com missa e procissão.

O culto

Os monges franciscanos tinham sido “os primeiros que no século XIII professaram em público, de viva voz e por escrito, a crença da Conceição Imaculada e estabeleceram a festa deste augusto Mistério em todas as suas igrejas. Vários doutores e teólogos desta Ordem se tornaram célebres por seus escritos na defesa desta crença, contra alguns que a impugnavam, quase todos pertencentes à Ordem dominicana e difundindo-a com incansável zelo e ardor, e sendo imitados por insignes e piedosos varões, foram seguidos com entusiasmo, não só pelo comum dos fiéis, como pelas corporações mais sadias e distintas então existentes na Europa”, do Boletim do Governo do século XIX.

Se a Imaculada Conceição foi a última padroeira a ser consagrada em Macau, o seu culto é tão antigo quanto o estabelecimento dos portugueses e “nos primeiros tempos o Senado, ou Governo, fazia à sua custa a festividade da Conceição em 8 de Dezembro, mas seguindo-se de perto ao estabelecimento (em 15/11/1579) da ordem franciscana em Macau, a instituição, na Igreja dela, da Confraria da Conceição, de cujo culto aquela ordem era zelosa propugnadora, o Governo daí em diante só concorria, ainda em 1844, com a prestação de 100 patacas para ajuda dos gastos da dita festividade, que ficou a cargo da referida Confraria, ainda hoje existente, e que esteve ricamente dotada”, como referido nesse Boletim do Governo.

A Confraria da Conceição, que rendia o seu culto à Mãe de Deus, estava encarregada da organização destes festejos. “A 23-XII-1781, o Senado assentou ficar (perpetuamente) Presidente da Confraria de Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Macau, a pedido da mesma Confraria, que se via impossibilitada de arcar com as despesas da festa”, segundo Benjamim Videira Pires, que refere, “visto ser o Protector, que concorre anualmente com vinte taéis”.

No início, as celebrações à Imaculada Conceição eram realizadas no Convento de S. Francisco até que, com esse templo arruinado, em 1850 passaram para a Sé Catedral. Já como Padroeira, a festividade ocorria com uma extraordinária solenidade, havendo missa cantada acompanhada a órgão, com assistência das autoridades políticas, religiosas e os principais moradores da cidade e onde todos os vereadores do Senado comungavam. Após a missa, ao som de uma salva feita desde a Fortaleza do Monte, saía em procissão, à roda do largo da Catedral, o andor de Nossa Senhora da Conceição, seguido do Santíssimo Sacramento conduzido pelo Bispo Diocesano, sendo acompanhada em cortejo com a guarda de honra, que incorporava em peso a própria guarnição e o Governador, pegando os vereadores da Câmara nas varas do pálio.

Estátuas da padroeira

A imagem da Imaculada Conceição de Maria encontra-se em muitas igrejas de Macau, assim como logo desde 1640 no frontispício da Igreja da Madre de Deus. “Após a Restauração, a desejo do Rei D. João IV, por volta de 1647/48 o título da Igreja e do Colégio mudou-se para Colégio e Igreja da Imaculada Conceição”, segundo Benjamim Videira Pires que segue dizendo, “A igreja do mosteiro das Clarissas era também dedicada à Imaculada; e os Franciscanos, na sua Igreja de Nossa Senhora dos Anjos ou da Porciúncula, possuíam um altar à mesma evocação”. Já Luís Gonzaga Gomes refere que em 1936 foi demolida a antiga Igreja da Imaculada Conceição e nesse lugar construída a nova Igreja de S. Clara, em estilo gótico.

No Salão Nobre do edifício do Leal Senado, encontra-se um oratório com as estátuas de Nossa Senhora da Conceição no centro do altar e à esquerda a de S. João Baptista, ambos Padroeiros da Cidade e onde outrora, todos os Senadores ouviam Missa e comungavam nas festas de cada um dos 4 Padroeiros. Para construir (ou reconstruir) esse oratório foi pedida autorização pelo Senado a 31 de Dezembro de 1818, sendo deferido por Dec. Régio de 28 de Setembro de 1819, que manda nesta ocasião declarar ao Bispo Diocesano para que ele haja de conceder as licenças necessárias para a erecção do pretendido Oratório, onde antes da Ordinária Vereação dos Sábados, se haja de celebrar Missa. E continuando com P. Manuel Teixeira, o Oratório ainda hoje existe, mas já não se celebra ali Missa, nem sequer se reza antes das sessões camarárias.

Na Igreja do Seminário de S. José há o altar dedicado à Imaculada e no alto da Colina da Penha encontra-se a sua estátua, assim como na gruta aí existente.

A “17-9-1871 Bernardino de Sena Fernandes convocou os subscritores do Colégio da Imaculada Conceição, para tratar do encerramento deste estabelecimento de educação e instrução, por se terem retirado da Colónia as professoras que regiam esse colégio”, segundo Gonzaga Gomes, que refere ainda, a “19-2-1906 devido aos esforços do Bispo Dom João Paulino de Azevedo e Castro, chegaram os padres salesianos Luís Versiglia, Ludovice Olive e João Fergnani, acompanhados dos mestres de oficinas Feliz Boresto, Luís Carmagnala e Gaudêncio Rota, para fundarem o Orfanato da Imaculada Conceição, para crianças chinesas”.

No feriado oficial de 8 de Dezembro, em honra da Padroeira de Macau Imaculada Conceição, já sem oitavário a anteceder, ocorrerão na próxima sexta-feira apenas duas missas na Sé Catedral, às 11 horas em português e às 17 horas em inglês.

1 Dez 2017

O dom das lágrimas

Ele voltou um olhar de amor
Para que Pedro o bem- aventurado apóstolo
Dissolvesse com lágrimas amaríssimas o pecado da tríplice negação.

 

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ofrer é um nobre mistério se interpretarmos a vida como uma manifestação onde a dor é presença constante – os antigos textos litúrgicos cristãos tinham as Oblatas, aqueles belos poemas que davam o dom das lágrimas para amaciar a tormenta das dores secas e mudas que no peito se tornam pedras duras e insuportáveis. Os códices medievais foram também eles invocações para os males, afastar maus pensamentos, pedir chuva, afastar as tempestades e, por fim, também e sempre, consagrados ao efeito benéfico de melhorar a condição da vida.

Há nestes poemas litúrgicos o desejo de que o pranto acorde a consciência à sua ligação divina, mas talvez que a nossa forma de viver nos remeta mais para Ulisses que preferiu cobrir a face com o seu largo manto púrpura quando, ao escutar um canto, se envergonha que lágrimas lhe caíssem na face. A temperatura do sofrimento porém não esmorece com ou sem elas, mas são elas, essa compunção, que nos aproximam de um estranho amor que não sabemos revelar e na quente abundância do seu dom nos libertam e nos fazem talvez sentir uma inegável saudade de Deus.

No tempo do riso e da abundância, de fluxo para a felicidade simples, como o de agora, talvez haja estranheza nestas coisas. Afinal, tão naturalmente combatidas como quedas ou frágeis manifestações, mas na realidade estamos a perder grandes dons que eram libertadores e a entregarmo-nos a todo o género de recursos que nos desvinculam da nossa natureza sagrada. Daí uma certa rudeza nos afectos, uma legião maciça de caritativos, uma domesticação indevida para um bem que não sente mais que uma politicamente correcta adesão; se o coração é esse órgão de fogo há que restar de nós alguma água para um húmido silêncio e uma fresca acalmia: corremos o risco de carbonizar sem o dom das lágrimas: « Junto dos canais de Babilónia/ nos sentamos a chorar/ com saudades de Sião». Saudades da terra, saudades de um rio… Esta importância do pranto era então visto como efeito libertador, como um signo de salvação.

Por vezes estamos dolorosamente cansados, tendencialmente nervosos e fartos de tudo – convalescemos – estamos prostrados sem saber como acudir a tanto desanimo parecendo não aguentar alguns ciclos da vida e damo-nos conta que já não choramos, que nos fomos tornando um lume qualquer que se esgota, vimos o mundo secar, arder, os efeitos atmosféricos tão aflitos quanto a nossa alma esquecida e lembramo-nos de coisas simples e redentoras, despojados então de efeitos queremos um chão para regar com algumas lágrimas e que dele possa nascer uma planta que seja a salvação. Mas não só a liturgia cristã original está prenhe destes bens, o pungente grito da lamentação têm-no os judeus em farta abundância naquele Muro onde todo o choro é visto como um elo que une um povo inteiro. «Vacilas por ternura Deus omnipotente/ da pedra fonte de água viva rompeste/ a um povo sedento/ retira da nossa dureza a compunção das lágrimas/ longo pranto por nossos pecados concede/ pois vendo-nos assim te compadeces/ e obtemos remissão».

Houve efectivamente uma era muito líquida, que não será certamente parecida com a de hoje, aquele tempo do sangue, suores e lágrimas, havendo um domínio claro de um tal elemento como esfera transbordante. Vamos até às águas de Noé e depois já em terra vêmo-lo a plantar uma vinha, que de líquido forte passa a ser um poder manifestado. Estamos inundados de um estranho amor e nem por isso sorrimos ainda, aqui. Na tradição bíblica, o riso não é desperto pois que dele advém um princípio modelador, só a gravidade acorda a lembrança divina.

Na maior parte são textos do latim litúrgico-cristão o que os torna de uma grande plasticidade na composição através dos séculos e nas sociedades onde se inserem, mas creio que não perderão jamais a primeira essência pois quem os transcreve está em sintonia com a função original. Há matérias que se habituam a ser esquecidas ao ponto de quase desaparecerem, mas quando isso acontecer de nós não sobrará grande coisa que também valha ainda a pena lembrar.

30 Nov 2017

Pino com contorção & ventosa

25/11/2017

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onvidaram-me para participar de um dossier em torno de Clarice Lispector, que em 10 de dezembro conhecerá uma data redonda. É impossível recusar o desafio, ainda que tenha de fazer um pino com contorção & ventosa, dada a proximidade do prazo e a obra imensa da brasileira.

Ninguém escreve como a Clarice. Veja-se o retrato de uma velha senhora ao espelho: «Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva húmida, mole assim como gengiva desdentada.»

E como todos os grandes escritores que prefiro as suas frases estão pejadas de saltos quânticos, de uma lógica que só pelo isomorfismo se explica: «Ah Ulisses, pensou ela para o cão, não te abandonei por querer, é que precisava fugir de Eduardo, antes que ele me arruinasse totalmente com sua lucidez: lucidez que iluminava de mais e crestava tudo. Ângela sabia que os tios tinham remédio contra picada de cobra: pretendia entrar em cheio na floresta espessa e verdejante, com botas altas e besuntada de remédio contra picada de mosquito. (sublinhado meu)» Da lucidez decapitadora de Eduardo passamos sem preparação para o veneno da cobra, afinal o mesmo mas noutro reino, noutro nível de realidade.

Enfim, suspeito que a Clarice que nasceu ucraniana e se considerava brasileira de gema afinal era chinesa e por isso «sua escrita se faz pelo avesso — sendo a escuta do que se

cala ou a visão do que se oculta (Yudith Rosenbaum)».

Numa coisa coincidimos. Ambos achamos que o mundo é uma coisa vasta demais e sem síntese possível, e somos (no possível) felizes nisso e na ideia de que se encontrássemos a verdade não conseguiríamos pensá-la, pois esta seria impronunciável – sem que tal visão nos atemorize.

Recordo uma discussão que tive com uma namorada, instrutora de ioga, a partir da surpresa que lhe chegou ao ter-lhe dito que tinha muitos momentos em que não pensava. Ela considerava improvável, eu, pelo contrário, estava atónito com a insistência dela de que seria impossível não pensar. E às tantas perguntei-lhe, Ouve lá, tu quando fodes pensas no quê? Não me respondeu. Nunca desejei para mim esse tipo de insónia branca.

Muitas vezes basta-me ser e esvazio o pensamento como o comboio nos carris.

Talvez eu seja aquele cavalo de que fala a Clarice: «A forma do cavalo representa o que há de melhor no ser humano. Tenho um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas quando vejo outro cavalo então o meu se expressa. Sua forma fala.»

26/11/2017

Escreveu Valéry, em carta a um amigo: “Sonho com uma poesia curta – um soneto – escrita por um visionário requintado que seria ao mesmo tempo um agradável arquitecto, um algebrista sagaz, um calculador infinito do efeito a produzir”.

Parece-me profundamente entediante esta festa da inteligência.

Creio que um algebrista deste calibre – e Valéry não desmereceu sê-lo, tal como Pessoa – só escreve e escreve e escreve – ambos deixaram demasiados quilos de papel grafado – porque deseja desesperadamente que uma página o surpreenda com o que nunca antes havia imaginado e agora brote como um alimento nunca mastigado, algo desaustinado que o transporta ao medo, ao furor ou à paixão.

28/11/2017

Está confirmado, vou reeditar o meu livro de poesia Arte Negra (Fenda, 2000), um volume de mais de duzentas páginas. Do ciclo Cemitério dos Prazeres, o 1, o 2 e o 5: «Não sei que sucesso/ obterás. Depenas uma pedra,/ obstinas-te, lavas o ar/ com um pano húmido.// Em redor a morte ceva/ as letras mudas, carcome/ um mapa de seda/ na nascente do teu rosto.// Não sei que sucesso,/ assim solícito e crédulo,/ obterás, pois a anda das imagens/ já sentou a mixórdia/ no lugar de Deus.», «Uma infância perfurada/ por zepelins. Hoje, de comando/na mão, zappas. Melancolia/ que te sufoca o amor e as veias,/ uma a uma, esvaziadas de Deus.// Mas a que outra luz/ acederia o coração se o lugar/ não foi capinado, se a treva amarinha no interior das gavinhas/ sem tu a teres capinado –/ e os anjos e os rinos/ quase extintos? Vinte unhas/ são a energia que ultima/ o escuro mate da morte.»; «Cem anos depois do cinema/ bombeias ainda o branco em páginas/ sem consolo: candelabro/ exposto ao vento e que só encheu/ de mistérios areias movediças.// És o canhoto de um anjo/ ainda que o bico, o adunco da rapina/ que nenhuma entranha desperdiça/ queira lá saber de ícones/ e esburaque o ar que nos resta!// O mal não se decompôs em frames,/ é, como o infinito, cesta que não decora/ o fortuito nome dos seus ovos./ Que importa! Escreve e respira fundo!»

29/11/2017

Com o espírito boçal e traquinas de quem roça a insanidade mental, Trump gabou os novos aviões invisíveis do exército. Os aviões invisíveis têm sobre os pepinos invisíveis o defeito da algazarra, de resto transformam igualmente a morte numa salada.

Mais felizes os dias em que o combate não era anónimo e quem morria conhecia o nome de quem o matava.

Sinto-me um monge do século XXI a compor inúteis hexâmetros latinos.

30 Nov 2017

OI, de Luís Brito

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]i é o quarto livro de Luís Brito. Três deles de prosa e um de poesia, embora este de poesia esteja dentro de um dos livros de prosa, precisamente o livro que aqui nos traz. Todos os três de prosa são livros imersos na vivência da viagem. O humano abre-se à viagem quando se abre ao outro. Abraçar o outro é começar a viagem. O livro está dividido em vinte e seis partes: vinte e quatro arrepios (é assim que o autor divide os capítulos, por arrepios) e dois interlúdios, um em prosa – “O Ser Português” – e outro em poesia – Jejum (e que teve entretanto uma edição autónoma pelas edições Tea For One).

Mas antes de falarmos sobre o livro, é necessário uma breve nota acerca do título do mesmo. “Oi”, que aqui para nós é apenas o modo como os brasileiros cumprimentam os outros, no Brasil é uma interjeição que pede explicação. Porque no Brasil há “oi” com e sem ponto de interrogação. E o livro refere-se ao “oi” com interrogação. Oi? Quer dizer exactamente, “desculpe, não entendi”. E o não estou a entender, pode ter várias razões: ou porque você está a ser indelicado, “mas o que é isso?”; ou porque você não se fez ouvir claramente, “pode repetir, por favor”; ou porque simplesmente o que você diz parece não fazer sentido, de tão estranho que parece, “pode explicar, por favor?” Oi? Por conseguinte, o autor deixa claro que se trata de um livro imerso no Brasil, na sua cultura, na sua perplexidade.

O livro começa no aeroporto de Lisboa e no de Madrid, muito cedo, de madrugada, quando os voos são mais baratos. E o narrador vai iniciar uma viagem ao Brasil com a sua ex-namorada, a X, com quem tinha já planeado e comprado os bilhetes muito tempo antes do tempo se fazer sentir. Agora a viagem, que deveria ser uma celebração, é uma tortura, uma espécie de pena a pagar. O narrador viaja com X, mas logo à saída do aeroporto de São Paulo, separam-se no táxi, depois dele a deixar em casa de familiares, e de ela o aconselhar a ir alojar-se num hostel em Vila Madalena. Ele está apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por ele. Separam-se no início do livro, e ele irá percorrer todas as páginas com ela na cabeça, com ela no coração, com ela na imaginação, que é o lugar aonde nunca se deve levar uma ex-mulher. Mas como se diz no Rio, “não tem tu, vai tu mesmo”. Ou na letra de uma canção When I need to replace her / I am a eraser / anything goês, repetida ao longo do livro, como um refrão do próprio livro. Começa aqui uma viagem das mais estranhas que, hoje em dia, um homem pode encetar: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo.

Provavelmente todos os livros, desde a Ilíada e a Odisseia, dividem-se entre livros de vingança e guerra, por um lado, e livros de viagem por outro; embora os livros de amor sejam também livros de guerra ou de vingança, e livros de viagem. E neste livro de Luís Brito, que é um livro de viagem, estabelece-se logo desde o início um paralelismo entre a viagem e a relação amorosa. Já não se trata apenas do paralelismo entre a viagem e a aceitação do outro, como em Alcatrão, que é um modo de nos entendermos a nós, aqui a viagem encontra um outro modo de nos fazer ver mais sobre nó mesmos: o nós no outro.

Assim, as relações fortuitas, casuais, as “one night stand” são o modo de se ser turista e as relações duradoiras o modo de se ser viajante. Escreve logo na segunda página (página oito do livro): “O problema não és tu – sou eu –, ou o problema não sou eu, o problema é o mundo. É ele que nos torna incapazes de amar, ou talvez seja a pequenez asquerosa do nosso país que nos põe tão tristes e mesquinhos. Separações e divórcios trocados por envolvimentos efémeros. Shots de prazer que em nada compactuam com aquilo que deve ser uma vida a dois – paciência, perseverança, diálogo e caminho na infelicidade.”

Já desde Alcatrão, o seu primeiro livro, Luís Brito traça uma ontologia do ser viajante em contraposição ao ser turista, mas aqui vai mais longe. Neste seu livro, a viagem é muito mais interior do que exterior, as paisagens traçadas são mais subjectivas do que objectivas, são mais acerca do humano que escreve do que dos humanos que são “escritos”. Não no sentido de um auto-centramento, mas antes no reconhecimento de que o outro descrito é uma extensão nossa, ainda que se faça da própria vida uma contínua viagem pelo mundo. Assim, quanto mais o mundo estica, mais o humano encolhe. Podíamos ler à página 169, de Alcatrão, o seguinte: “Saídos de casa começamos por prestar vassalagem à diversidade.

Admiramos os tons de pele e as culturas, vivendo a excitação do incógnito e os choques dos momentos sempre novos. Depois, com o tempo e a prática, ganhamos profundidade na observação e desvendamos comportamentos mais parecidos com aqueles a que chamamos nossos.” Nesse livro, entendíamos o exercício de  viajar como uma tentativa de se perder de si mesmo, isto é, como um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos. Mas aqui, em Oi?, a viagem é a viagem no outro. E também aqui, nesta terra que nos perdemos e nos encontramos. E viajar é parar. Viajar é ter atenção.

Provavelmente, tudo aquilo que o turista evita, pois – escreve Brito, ainda na mesma página da anterior – “Não há nada mais terrível do que uma evidência erguida à nossa frente.” E esta evidência a que o autor se refere é a nossa própria existência, que assume contornos de factualidade na confrontação com o outro diante de nós, do outro em quem atentamos, realmente. Pois há na existência um tremendo paradoxo: a procura de alguém e a impossibilidade de ficar. Luís Brito começa o capítulo “Segundo Arrepio” com as seguintes palavras: “Porque nos juntamos em rebanhos? De quem estamos à procura quando nos pomos no meio da multidão?” Este ímpeto não é o da viagem, mas o do turista. Ir é o verbo turístico por excelência, ficar é o verbo do viajante. Só fica quem viajou, pois quem nunca partiu não fica, está ali agarrado ao lugar como uma árvore agarrada à terra onde foi plantada. Mas quem viaja, mais cedo ou mais tarde irá ficar em outro lugar.

Desde o início, o narrador está perdido. Perdido de amores e perdido no mundo. E Luís Brito – penso que aqui podemos estabelecer esta intimidade entre narrador e autor – não se perde nele mesmo, porque não há um ele mesmo onde se perder. Ele perde-se no mundo a cada instante, neste caso na noite paulista, vertiginosa, como no exemplo radical de David, um sem-abrigo que tinha sido internado num manicómio pela sua tia, de modo a ficar-lhe com a herança, e que lá, no manicómio, foi violado por um enfermeiro e contraiu HIV. É o Brasil “hardore”, que o põe a duvidar, não apenas de si mesmo, mas da sua existência: “David, o homem que parecia um judeu fugido de um campo de concentração, foi-se embora e eu fiquei sozinho em São Paulo. Se é real nunca saberei. Se eu próprio sou real, também é uma questão sem resposta. Por isso aqui está o livro.” (p. 24)

[continua]

28 Nov 2017