António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasAutópsia de Tucídides [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo se podem compreender palavras como prova indirecta (tekmêrion), prova directa ou sintoma (sêmeion), e testemunho directo (autós parên). Como constituir rigor (akribeia) no apuramento da verdade (alêtheia) em Tucídides? Tucídides opera com palavras que diagnosticam a irrupção de um conflito civil do mesmo modo que descreve a febre tifoide. É assim também que se debruça sobre o modo como enfoca a realidade a partir do ponto de vista de escritor: historiógrafo: o da autopsia. Assim, as considerações metódicas, o diagnóstico da guerra civil em Corcireia e a descrição da Peste, poderão dar-nos pistas da lógica da descoberta da verdade, do carácter exaustivo da análise de Tucídides. A autopsia leva a um redução à causa ou às causas que principalmente podem explicar o horizonte de sentido em que ocorrem. As três frentes de análise exploram o horizonte do humano (a anthrôpeia physis). Elas partem do meio em que nos encontramos inseridos. Põem-no a claro nos seus contornos. É no campo da essência humana que os sintomas se manifestam. A sua análise é uma etologia que visa a remoção dos obstáculos da doença e procuram obviar a potência destruidora da guerra. É no horizonte de sentido do humano que o próprio quadro de sentido se perde, se esvazia, se deturpa, mas assim também procura recuperar o sentido de palavras como a honra e a glória e destruir os efeitos nocivos do que nos constitui a nós como humanos: a luxúria do poder (archê), a ganância (pleonexia) e a ambição (philotimia). A vida é susceptível de uma epidemia pandémica. Mas é no interior dessa pandemia que procuramos viver. A identificação da causa das coisas é uma peculiar forma de projectar em antecipação essa possibilidade. O acesso ao passado tem uma difícil base de credibilidade. Não há um tekmêrion, uma marca distintiva, que permita saber o que efectivamente se passou em cada episódio. O tekmêrion é uma prova argumentativa. O substantivo é o complemento directo do verbo τεκμαίρομαι. Numa primeira acepção significa “atribuição”, “investimento de sentido”, mas também intenção. Depois de Homero quer dizer ajuizar a partir de sinais ou pistas. Fazer estimativas. Conjecturar. Formular hipóteses. Um tekmêrion enquanto o complemento de um tekmairesthai, permite uma interpretação de cada dado avulso, pondo-o em conexão, num contexto com uma sequência. A interpretação da sequência ou série é mais do que a soma de cada episódio avulso. A evidência não resulta, contudo, de um contacto directo, ao vivo, com os acontecimentos que estão em causa. A investigação da verdade é difícil para a maior parte das pessoas. É por isso que tendem a voltar-se para o que está pronto, disponível e à mão. A passagem do tempo cria um distanciamento inultrapassável. Dilui-os no reino da pura mitologia. Como é possível desconstruir toda a camada lírica e mítica da narrativa? Como podemos reconstruir a situação para vermos olhos nos olhos a realidade? Será o processo de trazer o passado ao presente? Ou viajar no tempo e ficar deposto no passado? Percebemos que muitos dos que estiveram presentes contam de modo diverso o que aconteceu com uma identidade de sentido. De resto, estar no presente em que uma situação se dá pode não querer dizer senão criar um facto avulso. O método alternativo é o de tentar descobrir a partir dos sinais (sêmeia) mais evidentes o que aconteceu no passado. Há uma enorme dificuldade em emitir um juízo sobre o que se passa num presente sobretudo quando esse alguém está completamente envolvido nesse presente. Depois, quando o tempo passa, o vigor eficaz do presente perde-se e é o passado que assume a importância. Um dos problemas fundamentais que se põe resulta do relevo e acentuação que se dá ao que acontece. O nosso envolvimento directo com uma determinada situação presente cria uma posição. O passado pode, portanto, ofuscar o presente. As situações por que passamos quando o tempo era o tempo cria uma marca indelével. É relativamente a esse passado que podemos desvalorizar a importância do presente de agora. Mas decisivo é isolar e reconhecer os elementos que caracterizam o passado já a projectarem-se para o futuro, a constituírem futuro.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasEnsino da Língua Portuguesa em Macau [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo Pessanha chega a Macau a 10 de Abril de 1894 e, no dia seguinte, o Echo Macaense traz um artigo com o título O Estudo da Língua Nacional, que refere: “O ALVITRE que apresentamos para tornar obrigatório, ou ao menos facultativo, nos três primeiros anos dos cursos do liceu, o estudo de latim simultaneamente com as outras duas disciplinas consignadas no mapa da distribuição das disciplinas ora em vigor para os liceus em geral, tem despertado a atenção pública sobre o assunto, e mereceu da parte do nosso amigo Z o bem elaborado artigo que abaixo se lê. “O nosso amigo manifesta a sua descrença sobre a probabilidade de ser adoptado esse alvitre, embora reconheça a sua utilidade porque, como ele bem o diz, nos tempos que correm dá-se mais importância às aparências do que à realidade e o que querem são os diplomas legais dos exames e não os conhecimentos sólidos da verdadeira ciência. “Se é verdade que existe essa tendência nociva, cumpre-nos o dever de reagirmos contra ela, para não irmos de mal a pior. “Para os alunos do futuro liceu de Macau, os documentos de exames serão quase inúteis, se não forem acompanhados de uma instrução sólida e real. “Para os que quiserem seguir os cursos superiores no reino, não poderá haver maior calamidade do que irem daqui mal preparados na instrução secundária, pois ficarão desapontados e muito prejudicados no seu futuro, porque, ou não poderão prosseguir nos seus estudos superiores, ou terão de estudar de novo a instrução secundária. Para os que quiserem seguir a carreira do comércio nestas paragens, ainda serão mais inúteis esses diplomas legais de exames, porque no decurso da sua vida ninguém perguntará por eles, e só terá valor o que eles na realidade souberem. “É por isso que nos parece necessário adoptar medidas que obriguem os alunos do liceu a estudarem a valer, e virem a saber bem as disciplinas que cursarem. “Em primeiro lugar é preciso que eles saibam bem o português; portanto se, para o desenvolvimento deste estudo, se tornar preciso que eles estudem o latim, não deve haver dúvida alguma em lhes impor a obrigação de estudarem mais esta disciplina, o que, como já temos demonstrado anteriormente, se pode fazer sem se afastar da legalidade. No mais, parece não haver discrepância entre o nosso alvitre e as considerações muito sensatas do nosso amigo Z.” Instrução pública em Portugal O programa de estudos a ser seguido em todos os liceus de Portugal traz o problema de não dar horas suficientes à língua portuguesa para os alunos do liceu de Macau, na sua maioria deficitários pois em casa não têm o costume de a falar. Continuamos pela carta do amigo Z publicada no Echo Macaense de 11 de Abril de 1894. “Sr. Redactor, seu artigo prendeu-me a atenção pela importância da matéria e também pela sensatez do alvitre que apresenta para remediar o mal de que V. Exa. se queixa, e que muito receia se agrave com a criação do liceu. A importância da cultura da língua nacional é uma coisa incontroversa, já pela sua extraordinária influência no desenvolvimento intelectual, já por ser um dos principais característicos de qualquer nacionalidade, chegando muitas vezes a ser, por assim dizer, a única força de coesão dos diversos elementos étnicos que entram por vezes na formação duma nação. Ninguém, pois, duvida da importância do estudo da língua nacional, que deve sobrelevar ao de qualquer outra disciplina. (…) Sendo assim, é realmente para causar a todos sérias apreensões o receio que V. Exa. manifesta de que, com a organização do liceu, este estudo se torne ainda mais deficiente de que o é já, apesar dos esforços da Escola Central e do Seminário, pela redução que se terá de fazer no tempo e por conseguinte na matéria do ensino. Para este mal, propõe V. Exa. como remédio o estudo simultâneo, por três anos, do latim com as outras disciplinas que constituem o curso de liceu, pensando, e bem, que por essa forma se iria inculcando insensivelmente e solidamente o conhecimento da língua portuguesa, que, como todos sabem, é derivada da latina, afora outras vantagens intelectuais que o estudo desta língua inquestionavelmente proporciona. “Se admiro por um lado o interesse que V. Exa. toma pelo progresso intelectual, legítimo e sólido dos filhos desta terra, por outro lado admiro a ingenuidade, desculpe-me a franqueza, com que V. Exa. lança em circulação uma lembrança, sensata é verdade, mas que vai de encontro às tendências desta nossa sociedade fin de siècle, em que só se pensa nas aparências, que valem tudo, seja qual for a realidade, que é coisa de que ninguém se importa. Isso é assim em tudo, e a essa influência não escapa a instrução pública. “É conhecido, confessado, reprovado, e quem sabe se amaldiçoado, por todos, publica e particularmente, o estado mesquinho e caótico da instrução pública em Portugal, pela sua organização, pelo seu método, pelos seus compêndios, pelos seus programas, contra os quais bramam todos, na imprensa, em obras especiais, em conferências públicas, e até no parlamente; e, contudo, todos dão aos seus filhos essa mesma instrução condenada pela voz pública. “E porquê? Porque é que não procuram desviar-se desse rumo que conhecem como errado e que um importante jornal de Lisboa chegou a chamar o caminho da idiotice? “A razão é muito simples: é porque é da época o não se importar com a realidade e a bondade das coisas, e apreciar só a aparência e a conveniência: fiz exame disto, tenho curso daquilo, possuo habilitações legais, e por isso estou no caso de ocupar tal lugar, e… acabou-se! Quanto a saber, pensar-se-á nisso, quando houver vagar e ocasião. Contentamo-nos todos com isto, e como isto basta, é de razão que nos contentemos. É o positivismo, e o positivismo é hoje a lei da vida. Nestas circunstâncias, não parece a V. Exa. que tenho razão em achar adorável a ingenuidade da sua lembrança em querer maçar os estudantes de Macau com um estudo mais sólido do português por meio do latim, quando o programa não exige isso e no próprio Portugal o estudo tanto de português como de latim está em maré baixa? “O curso de português é só dum ano, e eu não quero crer que haja em toda a extensão da monarquia portuguesa um homem tão obtuso, que acredite que, em tão pouco tempo, com um programa tão acanhado, e com livros tão mal engendrados, se possa saber razoavelmente a nossa língua, tão bela, mas tão difícil, quando em França e Inglaterra o estudo da língua nacional leva anos consecutivos no curso secundário com livros preparados na máxima perfeição. Ninguém acredita em tal; mas… a lei diz que isso basta, e basta; e se basta para lá, deixe, Sr. redactor, que baste também para cá.” Estamos em 1894, ainda antes do início do primeiro ano electivo do Liceu. Assunto cuja problemática se arrasta desde meados do século XVIII, quando o primeiro professor régio, José dos Santos Baptista e Lima para ensinar a língua portuguesa muitas vezes necessitava de intérprete para perceber o que diziam os seus alunos.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDos importúnios e dos meus engates [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a mesa ao lado da minha, contava um amigo a outro sobre o seu pai camponês que este lhe confidenciara no leito de morte que lastimava não ter conseguido apurar se a galinha quando põe o ovo, fica com aquilo a arder. E dizia-o, pesaroso (o pai), acentuava (o filho), com pena da galinha. Ouvir isto a meio de um gole de cerveja atrapalha-nos, incapazes de ajuizar se cuspimos a cerveja pelo nariz, de riso ou de estupefacção. Isto sim, são problemas. Talvez, sedando a galinha diariamente, ela não sinta e a postura fique indemne, ocorre-nos. Brinco, mas quando em 1988 fiz a minha primeira crónica, para a Elle portuguesa, ela versava sobre a maravilha que é a epidural. Em miúdo estarreceu-me a energia, a resistência à dor, da protagonista de A Mãe da Pearl Buck: a camponesa afastou-se das companheiras que consigo se afadigavam na monda do arroz e refugiou-se num barraco para dar à luz. Quarenta minutos depois, enfaixado o bebé contra si, voltou ao trabalho para catar as ervas maninhas. Nunca mais vi esta “facilidade” narrada e pelo contrário muitas amigas me falavam do seu pavor, da violência da dor e dos traumas pós-traumáticos. Por isso quando chegou a ocasião de ter um filho optámos pela epidural. E a experiência superou todas as espectativas. A mãe das minhas filhas mais velhas (podem perguntar-lhe, ela gosta de contar), literalmente, durante o parto recordava-me situações e piadas dos irmãos Marx, ao mesmo tempo que em sentindo as contracções fazia força para expelir o bebé. Estava eu mais atrapalhado. Eu vi, com estes que a terra há-de comer, etc. Por isso quando ouço injúrias ou discursos catastrofistas sobre a técnica e o mundo de hoje não consigo comungar e lembro-me sempre daquele parto e doravante lembrar-me-ei deste camponês que lastimava que aquilo das galinhas fique eventualmente assado, porque ambas as coisas significam conquistas, quer de sensibilidade humana e social quer de evolução científica que são muito positivas e irrenunciáveis. E esta consequência em extremo de um acto de sedução (não é líquido e nem sempre desejável que uma “conquista amorosa” acabe em parto) transporta-me ao tema destas últimas semanas, o de se os homens podem ou devem “importunar” as mulheres. Desconfio que este verbo da Deneuve foi usado de forma irónica, pelo que alvitro ter-se feito uma tempestade num copo de água. Fui sempre um péssimo importunador. Um sedutor trapalhão; da ala Woody Allen. Quem leu o meu conto O Beijo no Arame, do livro Éter (Abysmo, 2015), onde em 60 páginas discorro sobre a agónica epopeia que foi o meu primeiro beijo, imaginará que fantasiei muito. Não é verdade, quase não precisei de inventar. E só aí à décima terceira namorada (depois de desperdiçar doze) é que consegui dar o primeiro beijo. Ou melhor: que alguém mo deu, abençoada importunadora. Na minha imprestável vidinha só caíram na minha teia de importunador as que achavam graça à minha trapalhice, apesar da trapalhice. Aselhices à parte – e injustiças, quantas me deram tampa injustamente, oh la la! Deviam ser sujeitas ao foro criminal, as mulheres que se negam para deliberadamente praticarem actos de injustiça! – concebo o jogo da sedução como um consentimento o mais mútuo possível. O desejo não deve ser extorquido (a sê-lo que seja no sentido de uma reminiscência que em si mesmo desperta), ou, antes, não deve ser efeito de uma manipulação. Mesmo no engate, aposto na lealdade. Embora a minha técnica esteja sempre a engasgar-me, começo sempre por dizer a verdade: sou casado e amo a minha mulher. Facto é que o bonito na valsa do desejo – enfim, o que me foi dado experimentar – é que nela se revertem, anulam e liquidificam as querelas e as quimeras do poder. Impõe-se uma simetria na relação. Foi o que exigiu a Lillith a Adão, no leito, segundo as tradições rabínicas. Porque é que havia ele de estar sempre em cima dela, numa posição dominadora? (- embora, eu não tenha a certeza de que quem está por baixo não possa, eventualmente, dominar, admitamos que sim, que na generalidade…). O labrego não entendeu nada e preferiu sonhar com uma Eva submissa. Se se tem poder e se quer obter uma vantagem sexual por via disso, suspeito que isso não será mais do que o sintoma de uma patologia. À partida aquele coito terá o furor de um prego na neve, não existirá relação. Contudo, suspeito de uma histeria colectiva no caso daquelas actrizes que agora anunciam que não trabalharão mais com o Woody Allen. Foram duas, no espaço de uma semana. Previno já que me dou como culpado de inúmeras perversões. Lembrando que no espaço da confissão católica em que cresci pecados são tanto aqueles que foram cometidos como os que se quedaram na intenção, sei-me culpado de uma série de abusos maiores e menores. Uma vez virei a Dominique Sanda, nua, em cima de uma tábua de engomar e espreitei-lhe com uma lupa as trompas do Falópio. Tive essa intenção declarada. De outra vez lambi as orelhas da Debra Winger durante uma noite inteira até ela desmaiar de fadiga. A Deneuve nunca me atraiu – mas imaginei pôr dois caracóis a subir o dorso prateado da Sylvia Kristel, que estava de gatas, e muito atenta à minha leitura de Sodoma & Gomorra. Confesso que eu nem sequer me dei ao trabalho de as seduzir, embora tivesse tido essa intenção. Juro. Tudo isto é uma trapalhada, ou como me perguntava um amigo: Fiz anos e a minha mulher não se lembrou – está a pedir que a seduza? É tudo relativo, pá, respondi-lhe. Mas em mulher que não queira ser tocada não se toca.
Manuel de Almeida h | Artes, Letras e IdeiasIdeias, factos e ideais “Neste mundo onde se grita, ninguém ouve os gritos dos que sofrem.” Raul Brandão (1867/1930), escritor e jornalista português [dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]ostava de poder comunicar sensações que pudessem levar a uma partilha de sentimentos, percursos, diálogos…, já que vivemos num meio de sordidez moral, intelectual e estética. Não sei porque escrevo, talvez porque algo me dói – talvez devido aos charcos da escassez de ideias -, ou será paixão? Sempre tive mais dúvidas que certezas, desde novo que perdi a pressa de coisa alguma e, penso sempre que o melhor está sempre por vir – tenho uma consciência tranquila com o tempo -, mas nunca gostei de ouvir falar no esplendor tenebroso do destino. “Os meus destinos só estão bem comigo. Ou por eles triunfo ou por eles sou esmagado”, faço minhas as palavras de Amadeo de Souza-Cardoso. O tempo – esse derradeiro e implacável juiz -, sei o que é (« vivo com ele»), mas não sei explicar – parafraseando ideias de Eduardo Lourenço. Sempre achei que o tempo era um conceito mais constante. Enganei-me! Antes de pensar e agir, é preciso sentir. Pertenço a uma geração de transição, contradição e afirmação. Perdi a ilusão de que pela escrita se pode mudar o Mundo, só Almeida Garrett – quem mais podia ser -, acreditava que com a contundência da sua escrita podia mais do que a espada. Mas os grandes textos tornam-se impossíveis de se abarcar numa só Leitura. Estamos a chegar a um estado de saturação, o ritmo é frenético e electrizante que não nos deixa pensar.Vivemos dentro de um passo que não é o nosso, é o compasso das máquinas e dos computadores («o triunfo da correcção automática»). Sôfrega de atenção, actividade e consumo. Roubam-nos o tempo. Infelizmente já não temos tempo para silenciar o ruído…, saborear momentos…, ter capacidade para sonhar. Torna-mos a vida pragmática e racional. Temos de saber parar para reflectir! Sentir («viver») Macau –“ a maneira mais profunda de sentir uma coisa é sofrer por ela” – escreveu Gustave Flaubert -, é percorrer a sua geografia afectiva e sentimental. É combater vícios, sarar feridas, detectar maleitas. É lutar contra a falta de honestidade intelectual e coerência de pensamento, a falta de seriedade. É envolver-nos na sua alegria e tristeza («dramas e frustações») e, comprometemo-nos moral e éticamente com a cidade. Não se pode ficar inume a nada do que vemos e ouvimos à nossa volta. Sempre tive uma sensação de proximidade com Macau, sólida e delicada, sensual e familiar. É a penumbra das coisas íntimas que nos atravessam e nunca mais nos largam. Sinto-me abraçado pela utopia quotidiana da Cidade ( «romântica/sensível e material/vício») – «venho de um tempo em que viver em Macau era rasgar possibilidades». Sempre tive uma “fiel dedicação à honra de estar” -, para lembrar Jorge de Sena. Mas nada hoje em dia em Macau parece coerente e inteiro . Vive-se de fragmentos. Não existe uma linguagem de poder, criação e criatividade. A Gramática da idêntidade («auxíliavamos nos apontamentos») desapareceu. Macau é o deslugar do lugar… Uma Cidade excessiva, massacrada,torturada, flagelada. Fico triste de vê-la “maquilhada como uma mãe morta” – para lembrar Joan Margarit – , os «filhos» estão abatidos, moribundos, despedaçados, consolam-se! Não há uma paisagem ética. Há uma espécie de floresta encantada, recheada de perigos. Uma oposição entre hino e elegia. A maior parte dos portugueses a viver em Macau já deixaram de interrogar a vida – confiam nela -, criaram ilusões. Viram partir as referências (« gostam de olhar a Lua em noites de luar»). Os mais velhos olham o céu com menos admiração e mais receio. Nos últimos anos a realidade transformou-se em abstração para muita gente. Vivemos em cavernas de silêncio . Arrumam-nos os dias («um teatro de medos e esperanças um discurso de ficções e de metáforas»). Há luz do dia, nasce a angústia!… Precisamos de luz no coração. Não há consciência crítica nem fraternidade cívica. Se não houver uma ética de convicções, não haverá naturalmente uma ética da responsabilidade. Ninguém assume responsabilidade sobre nada – e, por isso o estado a que o Território chegou, é provavelmente, obra do acaso. Estudamos a narrativa da obediência e esquecemos a poesia da desobediência («em homenagem à “liberdade” verbal»). A população é educada para não reagir, não questionar, não prostestar. Vive-se em economia política do verbo («é triste não os sabermos conjugar») Degustamos a luz da poesia no silêncio da vida! Temos de criar um pensamento autónomo, não enfeudado em dogmas ou crenças. Sermos mais persistentes na exigência crítica, argutos analistas de ideias e factos, perscrutadores de paradoxos e sabermos interrogar constantemente. Não existe por exemplo uma actividade crítica original à materialidade formal . Uma das máximas da mundividência é o diálogo. Mas não existe diálogo se não soubermos quem somos. A propaganda é o colapso da linguagem. O «Poder» não é nem nunca será sinónimo de verdade e justiça, muito menos terá o monopólio da moral e da legitimidade. Exige-se seriedade, respeito, confiança e honestidade. Vive-se num ambiente infeliz, injusto, irrespirável («assemelhando-se a uma fábrica de preconceitos») –, que pode provocar a desintegração da sociedade («tornou-se amarga»). É uma sociedade que fabrica a solidão, a demência, a esquizofrenia. Existe défice de confiança -, a população ainda olha para o Governo com um profundo sentimento de orfandade, inevitabilidade e apatia -, pode ser dócil e empenhada, mas não é imbecil nem estúpida. Rejeita os discursos ambíguos («saber “renascer” a esperança»). Falo da falta da esperança e desgaste da estratégia. São vozes humanas que «devemos» saber escutar. Falta-lhes contudo o exercício da palavra («recurso das palavras»). Não têm o poder da frase evocativa. Vivemos entre o dogmatismo e a descrença. Temos de nos tornar mais vigilantes, mais organizados, mais cidadãos – uma cidadania activa e responsável. Existe um pessimismo generalizado e uma desmotivação colectiva. Crescem as franjas de indignados («a textura social agita-se»). Precisamos de “outra forma de vivência” – com uma agenda política sólida (« a relação com o “Outro”») e uma visão estratégia da sociedade e, não com artefactos ideológicos («sem alma e sem rosto»), nem com rigidez doutrinária. É preciso apostar em causas, ideias e projectos, de maneira a “construir” uma sociedade mais justa e inclusiva, com valores, solidária, coesa e humanista. A sociedade está a ficar mais egoísta, mais individual, deixou de ter uma visão colectiva. Uma sociedade tantas vezes intoxicada pelo consumismo e pelo hedonismo, pela riqueza e pela extravagância, pelas aparências e pelo narcisismo. O mosaico espiritual desapareceu, instalou-se a decadência moral na cidade. A dúvida e a incerteza, são um perigo, para o dia de amanhã…e, a ideia de que não há culpados…, pode-nos levar a pensar que a culpa seja «nossa». Afinal de contas a idade não serve só para envelhecer. Ou será? Os sonhos não envelhecem (sem nunca mostrar apreço ou subversão)…. e as árvores morrem de pé («o “medo” do sobressalto do despertar»). “outros amarão as coisas que eu amei” Sophia de Mello Breyner
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasBiografias e paradoxos [dropcap style≠‘circle’]B[/dropcap]rando — nalguns momentos de alguns contextos, um actor absolutamente extraordinário — é uma das minhas grandes embirrações, só superado pelos seus discípulos/lacaios Anthony Perkins e James Dean. Suponho que para partilhar da minha posição baste ler a biografia “Brando Unzipped” (“Brando mas pouco”), escrita por Darwin Porter. O actor assinou, em tempos, uma autobiografia, “Songs my mother taught me”, mas, nessa, tudo é revestido por uma sobrecapa de edulcorante cor-de-rosa. Gosto de biografias. À antiga, encomiásticas ou mesmo romanceadas. Quanto a esta nova tendência, desbocada e sem freios, devo confessar que me deixa, muitas vezes, perplexo. Que move estes biógrafos? É que Porter expõe, implacavelmente, o carácter e o comportamento do actor e os efeitos nefastos destes sobre quem o rodeava. A sua homossexualidade frenética, que funcionava a par de uma heterossexualidade ora vingativa ora cosmética, são centrais à análise que realiza. Bem assim, não poupa outras estrelas de Hollywood – a pedofilia de Spencer Tracy ou o masoquismo brutal de James Dean, por exemplo, entre muitos outros homossexuais encapotados, chocará quantos, ao longo de décadas, abrigaram os seus sonhos burgueses à sombra das mistificações dos grandes estúdios. O “closet” de Rock Hudson é, à luz do que é exposto nesta obra, algo de absolutamente trivial, embora o mal-estar que isso lhe causava fosse tanto que lhe provocou um tique que lhe destruía, continuadamente, a unha do polegar direito. Outras biografias têm revelado factos deste teor: Em “De Niro: a biography”, por exemplo, John Baxter expôs a homossexualidade do pai do actor, o pintor e escultor Robert De Niro, Sr., que chegou a ter um envolvimento amoroso com o enorme Jackson Pollock. Aliás, recentemente, De Niro filho assumiu o facto, com toda a naturalidade, acrescentando que teria gostado de discutir o assunto com o seu progenitor. “Ginsberg: A Biography”, de Barry Miles, entre muitos outros factos potencialmente chocantes, aborda as relações sexuais entre o escritor beat e o irmão mais novo, deficiente mental, do seu namorado. Ao escrever estas linhas, ando a ler uma espécie de autobiografia do romeno Ion Pacepa, responsável pelos serviços secretos de Nicolae Ceaușescu, em que a homossexualidade de Yasser Arafat é revelada. Repito: Que move estes biógrafos? No caso do último livro referido, trata-se, claramente, de um ajuste de contas. Mas, quanto aos demais, os seus autores são, supostamente, admiradores dos biografados. E, contudo, parecem achar por bem expor factos que os mesmos preferiram não publicitar. Porquê? Guiá-los-á uma espécie de moralismo? Se sim, parece-me altamente imoral (como, aliás, os moralismos quase sempre são). Ou estarei a complicar o que é simples e o objectivo dessas manobras será, simplesmente, vender livros, ganhar dinheirinho, à custa da privacidade alheia? Depois destas leituras, como é bom regressar a qualquer uma das vibrantes biografias que saíram da pena de Stefan Zweig e de que fui grande leitor na adolescência. A de Erasmo de Roterdão ou a de Fernão de Magalhães, por exemplo. Ou, até, à extensa e imaginativa biografia de Camões assinada por Campos Júnior. Não há verdade que valha uma boa estória. Em minha defesa, devo dizer que nada de pessoal me move contra os referidos biógrafos. Aliás, Darwin Porter assina, com Danforth Prince, a 17ª edição (2002) do guia turístico Frommer’s relativo a Portugal e aí, a propósito de um bar que tive no Bairro Alto, afirma (e prefiro não traduzir): You don’t have to be an avid reader to enjoy this place, but the breadth and scope of literary knowledge that has been mastered by its owner might leave you deeply impressed. Miguel Martins, who’s usually tending the bar, teaches courses (…) on the history of Jazz, and welcomes everyone – from the most conservative to the most counterculture of hipsters – into his nightlife joint. Simpático. Confesso que me dá algum prazer ver-me referido em letra impressa. Apercebi-me disso bem cedo – teria uns dezasseis anos quando o South Shore Chronicle, um jornal da Nova Inglaterra, publicou uma série de artigos sobre Lisboa em que me era dado algum destaque, pois servia de guia ao jornalista, o meu amigo Leo Pilachowski. Ganhei-lhe o gosto. Bem mais divertida é a biografia do grande Robert Mitchum assinada por Lee Server e subintitulada “Baby, I don’t care”. Permito-me contar-vos dois dos episódios aí relatados: Numa entrevista, a dado momento, perguntam a Mitchum, actor da “velha guarda”, sem grandes preocupações metodológicas, acerca dos seus “registos”. Sendo que boa parte da sua carreira fora dedicada aos westerns, ele responde: “Como actor, tenho dois registos: com cavalo e sem cavalo”. Um outro episódio, de graça dificilmente traduzível, ocorreu quando Mitchum se preparava para contracenar com uma actriz muito religiosa e extremamente avessa a palavrões. Constrangido, um membro da produção abordou o actor, conhecido por praguejar muitíssimo: — Senhor Mitchum, ela instituiu uma espécie de caixa de esmolas. Se alguém disser merda tem de meter lá um dólar. Se disser porra, dois dólares. O actor interrompeu-o, perguntando: — And how much does she charge for a fuck?
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDias ampliados (com os dedos) Santa Bárbara, Lisboa, 9 Janeiro Desacerto. Estes são os dias do desacerto. Se nunca me senti muito da vida («o meu filho é um atado»), agora tudo me sabe a deserto, solidão e danação. A paisagem tornou-se bruta e clara, nítida como lâmina, reflexo do sol nos olhos ao sair da noite. Atravesso-a dolorosamente inclinado para diante, quase tocando o chão que piso, só as pernas se mexem avançando contra o vento, a tempestade de areia, cego ao horizonte, a cheiros e gestos. O nevoeiro de chumbo encheu os ares da cidade. A cada esquina, uma pergunta rasga a rua. Que texto nos prepara para isto? Onde mora o sentido? Com que matéria podemos refazer a alegria? Há pedidos que jamais deviam ser atirados, granada de mão. Lisboa, 11 Janeiro 9h45: com ligeiro atraso para o costume, leio o Expresso Diário no metro enquanto levo pancada das mochilas. Às vezes riposto. O tema era o entediante jogo de empurrões entre Santana Lopes e Rui Rio. 9h55: hoje é só um lance de degraus que deixaram de rolar. Faz sentido complicar a vida de quem sobe ao umbigo do mundo. 9h56: ao telefone com a Elisabete acertamos formato, ilustradores possíveis, papel e espírito de um livro à volta de amores possíveis e impossíveis. 10h01: aceito o pequeno rectângulo, que agradeço e conservo: «Se quiser prender uma vida nova e pôr fim a tudo que lhe preocupa. Contacte o Prof. Karamba que ele tratará o seu problema com rapidez, honestidade e eficácia.» 10h06: reparei que a nossa janela ainda dizia o ano passado, pelo que arranquei o autocolante que anunciava a exposição anterior. 10h15: acedo à conta para ver de recebimentos e tratar de pagar miudezas e nem tanto. 10h25: espreito os emails, despacho os urgentes a que consigo dar resposta, passo outros tantos para a pasta a responder. Assusto-me com o que ali se agita, insectos encurralados. 10h26: chega finalmente o contrato da RTP por causa do Spam Cartoon. Por momentos, chamo-me Joaquim. O erro costuma ser variante do Cotrim, mas desta vez apõem-me o nome do meu avô, o que me faz sorrir. 10h40: irrito-me com a agreste ironia de que, se quiser os livros que ainda estão na insolvente distribuidora, terei, não apenas de pagar o handling, assim lhe chamam em estrangeiro, como o transporte das 17 paletes. Ainda recolhem dinheiro de vendas que jamais verei, mas os pobres precisam da minha esmola para fazerem o trabalho deles. 11h52: entregue que estava mais um Spam Cartoon, reunimos telefonicamente para discutir o que se segue. Com muito esforço, evitamos atirar ao palhaço, i.e., a Trump. E lá continuamos, mesmo depois de desligar, uma conversa de há meses sobre a questão do assédio. Com tanta subtileza em jogo, só lá vai com jantar. 12h45: liga-me a advogada por causa de aditamento a um contrato, coisa de família, que me obrigada a parar tudo, imprimir o dito em quadriplicado, rubricá-lo, assiná-lo e enviar para a minha irmã, por estafeta. 13h15: devíamos comemorar certo encontro, mas as urgências obrigam a almoço rápido, sem mais história que a dos afazeres rotineiros. As datas dos amores possíveis devem celebrar-se contra a agenda, solverem-se na carne dos dias. 15h00: reunião com o Alex Cortez e o Daniel Moreira para acertar detalhes do livro (e dois CD’s) «Poetas Portugueses de Agora». Entusiasmo-me com as múltiplas qualidades, as que ouvi e estas que vejo agora. 15h45: ajudo o Bruno [Mantraste] a montar a exposição relâmpago que inaugura daqui a umas horas. Não há razão para alarme. Estendo o fio que acerta o horizonte. Ajudo a complicar umas contas. Prego uns pregos. Maravilho-me com o que vejo. Os esboços possuem uma tal intensidade que parecem brilhar (exemplo aqui na página). O Teófilo bate à janela: vem inesperadamente dar uma mão. 16h30: por desacerto da atenção, consegui que acontecessem três eventos ao mesmo tempo. Peço à Mariana que acompanhe o Luís Maio, na sua sessão na biblioteca de Oeiras à volta do «Ninguém Sabe Onde Está». Ninguém quis saber. 17h30: vejo a mensagem do Mário Gomes a convidar-me a colaborar na belíssima revista Diaphanes. Uma tentação. 18h00: embate com a realidade do que se entende por grande público. Vejo-me cercado de velhas convenções e mal-entendidos. Entristece-me, apesar de o ter previsto. 18h25: ao desligar o telefone, ainda leio mensagem com ultimato em torno de projecto que me parece estratégico. Tento desajeitadamente remediar o estrago provocado pelo meu desarranjo com os tempos. 18h30: abrimos o segundo ano do Obra Aberta com os recém publicados [José] Anjos e Inês [Fonseca Santos] a falar de poesia, infância e o mais que se solta dos livros. Doravante e para complicar, acederei ao microfone. 20h05: regresso à exposição que já vai alta em animação e gente. Na janela, mora desenhado o título «Sebenta do Diabo». Nas mãos de cada um vejo palpitar coração abraçado por espinhos. 20h35: avanços pelos cumprimentos e saudações em direcção aos braços do Jorge Colombo, que não vejo há anos. Continua grande instigador da curiosidade, dispensário dos mais díspares saberes e atenções. Sacudimos conversa, estendemo-la e nela nos sentámos prazerosamente. 22h05: não se fez fácil fechar, com os de última hora a pôr pé na porta. E olhos no diabo da sebenta. Santa Bárbara, Lisboa, 12 Janeiro Os esboços, mais do que o acabado, aproximam-me do gesto criador, da fragilidade e da potência. A imperfeição suscita-me reconhecimento, dá-me o conforto de um qualquer entendimento dos rasgos que nos abrem o mundo para o ver por dentro. O conjunto de esquissos desta «Sebenta do Diabo» do Mantraste (editada em risografia e quase toda no vermelho (proibido) pela Stolen Books) não cessa de me comover, de me divertir, de me surpreender. O fim último dos desenhos foi tornado impossível pelo amor e a exposição original, por força das coisas, teve de se chamar: «Desculpem, Apaixonei-me e Não Fiz Nada». Os desenhos, aqui agrupados, por junto com alguns já apurados e coloridos, possuem cuidados diferentes, mas sem perderem em momento algum a intensidade do olhar original do Bruno. Relendo o fantástico S. Cipriano, invoca infância em ambiente rural («foi o meu avô que podou as vinhas do mal») com a ilustração de ditos e lendas e episódios e animais e plantas e fascínios: poços que têm no castelo o seu reverso, mergulho no desconhecido e construção da segurança. Rico de detalhes e composições, ingénuo e metafórico, denso e poético, sugere a cada passo que estamos rodeados de fogos e corações. E diabos. Barraca, Lisboa, 13 Janeiro Andávamos há meses a escavar em busca do título para o romance do Valério [Romão] que fecha a trilogia. Ele descobriu-o para satisfação do editor: «Cair Para Dentro.»
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA última garrafa (num consultório privado) [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]OUTOR: Pode até ser. (silêncio) RAUL: Pode até ser, o quê? O comprimido ou o livro? DOUTOR: Ambos. Ambos, meu amigo. Diga-me uma coisa, você já contou essa sua doença a alguém, para além de mim? RAUL: Claro que não, doutor. Não sou doido. DOUTOR: Claro que não. Precisava apenas de me certificar. RAUL: Porque pergunta isso? DOUTOR: Por nada. Curiosidade apenas. RAUL: (sorrindo) Parece que o doutor começa a estar bastante interessado no meu caso. DOUTOR: Efectivamente, estou. RAUL: Olhe, porque é que não fazemos um negócio? DOUTOR: Como assim?! RAUL: O doutor dá-me o comprimido e eu conto-lhe tudo acerca da minha doença, para que possa escrevê-la, logo assim que eu morra. E escreve como se não se tratasse de um caso real, mas fictício ou filosófico, como queira. Está a ver? DOUTOR: Está doido, homem? Não quero escrever nenhum livro, nem sequer seria possível escapar de tal situação. Ou você julga que pode ir para casa e tomar o comprimido na sua cama? Não! É preciso que esteja num hospital ou numa clínica e seja acompanhado por um médico que se responsabilize por todo o processo, que neste caso seria eu. Depois, obviamente, o seu caso teria também de ser reconhecido pelos outros médicos. RAUL: Não me pode dar o comprimido, simplesmente? Ninguém precisava de saber. DOUTOR: Como não? Assim que o encontrassem morto, vinham imediatamente aqui. RAUL: Mas ninguém sabe que aqui vim! DOUTOR: Como não?! Você está registado… RAUL: Não é difícil fazer desaparecer uma ficha médica, doutor. DOUTOR: Então e o que fazemos à enfermeira? Matamo-la? RAUL: Ela não se vai lembrar, doutor. Entra tanta gente aqui no consultório. DOUTOR: Claro que se vai lembrar. Você não é pessoa que passe despercebida. Mais a mais para uma mulher. Nem pense nisso. Vou esquecer que me fez essa proposta. (silêncio) DOUTOR: Deve ter sido a primeira vez que tentou algo de ilegal, não? Ainda vai acabar por começar a viver, homem. Se continua assim… RAUL: O meu problema não é moral, doutor. Se não parar de pensar desse modo, estamos aqui a perder o nosso tempo. Crê que não é possível fazer com que a enfermeira não se lembre de mim? DOUTOR: Suborno, quer você dizer? RAUL: Por exemplo. DOUTOR: A continuar assim ainda acaba mas é no governo, homem. Está mesmo a falar a sério? RAUL: Doutor, pareço-lhe homem para brincadeiras? DOUTOR: De qualquer modo, ainda que fosse possível, seria muito fácil saber-se que o comprimido saiu daqui. RAUL: Porquê? DOUTOR: Porque há registos de todos estes comprimidos. A polícia começaria a investigação imediatamente por aí. E como é que você quer que eu lhes explique a falta de um dos comprimidos. RAUL: Roubo. DOUTOR: Roubo? E assaltavam-me o consultório para levar um comprimido? RAUL: Porque não? Você até poderia corroborar a hipótese de eu ser um caso obsessivo, que tinha tentado tudo para que me desse o comprimido, que você rejeitou peremptoriamente. E até me tinha sugerido um amigo psiquiatra. DOUTOR: Então já não precisamos de omitir a consulta? RAUL: Não! Está a ver, só traz vantagens. Já não é necessário a cumplicidade da enfermeira. DOUTOR: E como é que você entrava aqui? RAUL: Não é difícil, doutor. Provavelmente o prédio não tem segurança. E assaltos é o que se vê mais por aí, doutor! Mais assalto, menos assalto, não faz muita diferença. Não é necessário muita explicação. DOUTOR: De qualquer modo, tinha de existir um arrombamento, por certo. RAUL: Também não é difícil. DOUTOR: Deixe-me perguntar-lhe uma coisa, que julgo que está a esquecer. Como é que você iria saber quais eram os comprimidos e onde estavam? (silêncio) RAUL: Pois essa parte já é mais difícil. DOUTOR: Esqueça isso, homem. E, para além do mais, não estou interessado na contrapartida do negócio. RAUL: Não quer escrever sobre o caso? DOUTOR: Talvez queira, mas como facto da medicina e não como ficção ou o que quer que seja. Começo, de facto, a acreditar que a sua doença é real, percebe? RAUL: Quer, portanto, manter-me vivo, é o que é. Estudar-me. DOUTOR: Se quiser pôr as coisas desse modo. RAUL: Eu não quero pô-las desse modo, doutor. Já lhe disse que não tenho tempo. Não me faltava mais nada! Além do que sofro, transformar-me em cobaia. DOUTOR: Mas parece que não tem muitas outras alternativas. (silêncio e o doutor serve mais whisky) RAUL: Escute, doutor. Desculpe voltar ao assunto. E se você dissesse à polícia que eu cheguei aqui armado e que, depois da enfermeira ter saído, o ameacei com uma arma para obter o comprimido. Você nada pôde fazer, senão entregá-lo. Assim que sair daqui, telefona imediatamente à polícia a participar o roubo e dá-lhe todos os meus dados, que estão na ficha, de modo a que eles possam intervir e impedir que use o comprimido. Está a ver? Uma coisa limpinha. Nem você se compromete, nem eu saio daqui sem o comprimido. DOUTOR: Mas seria necessário que a polícia encontrasse essa tal arma em sua casa. E não me vou arriscar a que você diga que sim e, depois, não há arma nenhuma. Quem se lixa sou eu. Compreende? RAUL: Podia ser uma faca! Trazia uma faca grande de cozinha comigo. Não vai duvidar de que tenho uma, pois não? DOUTOR: E se me pedem para descrever a faca, o que é que faço? RAUL: É fácil, doutor. Se quiser descrevo-lha ou, então, diz muito simplesmente que perante a surpresa e o medo nem sequer reparou nas características da faca. Que me diz? DOUTOR: Digo-lhe que começo a ter medo de si, é o que lhe digo. Porque você não desiste, realmente. RAUL: Se o doutor soubesse o que sofro não estranharia a minha insistência. Peço-lhe apenas um pouco de piedade, doutor, por favor. DOUTOR: É impressionante a mente pragmática que você tem! RAUL: É a dor que me traz todo este pragmatismo, doutor. DOUTOR: Responda-me com toda a sinceridade. Estaria disposto a matar, por esse comprimido? RAUL: Não lhe posso responder a essa pergunta, doutor. Nunca sabemos aquilo de que somos ou não capazes de fazer. Mas posso dizer-lhe que estou disposto a quase tudo para morrer. (o telemóvel toca novamente)
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCastor e Pólux [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos na era dos filhos gémeos, eles nascem de forma talvez pouco espontânea mas a realidade deste fenómeno não pára de crescer. Estar acompanhado, vir junto, começar unido, é uma plataforma de entendimento recente, e, esta dualidade quase nos remete para um corpo dominante com um alter-ego associado que firma o irmão, isto no tempo em que os casais se derretem à medida que o Sol sempre uno os faz perecer no asfalto, de modo que, e cada vez mais, de um, nascem dois, ao contrário de dois, nasce um. Tudo nos remete para o duplo a haver na medida em que também as doenças que tinham designações simples tais como, depressivo-compulsivo, são agora muito justamente designadas por bipolares. Creio que estas polarizações estão patentes na Terra como modelo bem demarcado, agora mesmo se gela no hemisfério Norte e se escalda no hemisfério Sul, as zonas intermédias sobem e descem num dia, muito mais do que esperamos (fortes amplitudes térmicas) e até no Sarah a neve cai. Castor e Pólux não eram filhos do mesmo pai, o que pode acontecer mesmo aos mortais gerando produções onde a família nuclear se esvai e se confunde com um qualquer modelo de produção fragmentada e como abarcar a mudança da multiplicação nestas individuais presenças que somos todos nós no rigor per capita onde construímos um mundo de severos independentistas? Parece um desafio a contemplar pois que nascemos algures um de cada vez e sozinhos e encaramos o mundo por essa perspectiva. Portugal é, no entanto, um país apto para os desdobramentos do ser. Veja-se a ficção nacional que está pilhada de duplos que falam entre si, que têm um si, que se contemplam em “si” que se projecta em outrem, que sendo o mesmo é outro alguém. Vejamos a noção de uma verdade ou situação simples que logo se transforma em outra coisa oriunda da primeira impressão recebida. Vejamos os motes que mudam para delírios não deixando para trás qualquer espécie de semelhança perante a avançada substância “manufacturada” de verdades transfiguradas. Não se dando conta de como isso é tão natural como o respirar, procura-se a “alma gémea” que incorretamente designada quer nem mais nem menos aludir ao grande amor, aquele que faz de espelho, que é igual a si, encaixa em si, é o outro por extensão sendo ainda o reflexo distendido por multiplicação de uma desassombrada imagem de si. Somos capturados para experiências de assimilação compulsiva e esta dinâmica constante abrange as leis que ora são assim, mas, e é neste mas, que entretanto muda, que se vai legislando outras realidades mutáveis feitas para que as equações legislares abranjam as caprichosas manobras das fissuras da objectividade dos factos. O isco da complexidade precipita no abismo as mais ricas naturezas e empata-nos a vida de forma incongruente. Os Dióscoros… os Diáconos… os Dinossauros são grandes Ovos chocados para resultar numa associação indivisível e só os deuses retiram o seu para resgate filial, os Homens, esses, adoptam tudo, os deles e os seus, são useiros e vezeiros na arte da consubstanciação. É claro que gostam mais dos seus que são menos perfeitos e menos capazes, mas essa é a melancolia humana que assim mesmo dos próprios deuses se defende. Os Diáconos que passaram a bispos começaram por roubar os filhos, não às lindas Ledas, mas às filhas do Homem que assim as subtraíram a um Ovo para uns ninhos de víboras, e que num local múltiplo passaram a ter vários nomes e muitas existências sem que ninguém coordenamente conseguisse alinhar por uma verdade simples e uma justiça salomónica. De Castor e Pólux (Dióscoros) sabiam apenas os antigos navegantes portugueses que se chamavam fogo-de-santelmo e que era tido por presságio favorável à navegação. / eu não sou eu nem sou o outro sou qualquer coisa de intermédio pilar da ponte do tédio que vai de mim para o outro/ : assim permanecemos arquetipicamente como novelos de lã de cabras sem pastor. – Vimos mas não vimos- sabemos mas desconfiamos – acreditamos em tudo que dê jeito – depois já não acreditamos – queremos – mas já nos finda o querer – somos- mas não somos – fomos – já éramos. Fingimos. Mas o poeta é um fingidor! Somos todos poetas, excepto os que o são e é neste binómio que andamos equivocados face a nós mesmos, esse ser remoto que entretanto se foi. Casas geminadas, condóminos fechados, lar simétrico ao lado, fabricação de duplos humanos em baixo, dúplex individual ( paradoxismo de uma existência limitada) toda a nossa estrutura ambiental e espacial nos empurra para o desaire, isto, quando um dos progenitores não foge com a tenra presa que é o filho subtraído a uma indizível questão. Os poetas que todos se acham deviam agora pegar em pequenas frases como estas nascidas de poetas que o foram: /preciso de espaço para ser feliz/e de outro tanto para ser raiz: Vasco de Lima Couto. Destes, porém, já ninguém quer saber. Há sempre espaço, afinal, para todos, nos poleiros de alguns. E se o voto é rentável para os Partidos, esses gémeos singulares, pode ser que o voto duplo cubra de festim esses laboriosos grupos cujos elementos são deles e de mais alguém. « Romeiro, meu romeiro, quem és Tu?» – Ninguém.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasFonseca Santos. 2018. Inês. Suite sem Vista. Lisboa. Abysmo. [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a poesia da Inês, há uma situação paradoxal que é explorada no laboratório vital. De uma forma activa, a compreensão faz ver, dá a ver. Por um lado, a interpretação estrutural dos espaços privados, públicos, subjectivos e cósmicos, é feita toda ela a partir do interior íntimo da sua habitação. Este interior é tudo menos geométrico. Não se opõe a nenhum exterior. É antes o ponto de irradiação da nossa vida. É heterogéneo. Permite uma geografia da instalação da existência e, por isso, faz vibrar também o desenraizamento. O existencial é constituído a partir da privacidade. Sente-se tensa a relação entre o limite extremo abobadado e o aquém, onde cada um tem, não o seu ponto de vista, mas o seu corpo próprio. Opera-se a personificação dos objectos. Melhor, porque não há objectos, das coisas. Há peças. Peças de mobiliário. O mobiliário é a totalidade das coisas, cidades e campo, edifícios públicos e privados, casas, quartos, hotéis: o recheio do mundo, as peças de mobiliário da nossa existência. Em ambos os casos, percebemos que é o quarto, recesso recôndito do amor e de tudo o que lá se faz sem amor, a partir de onde se expandem as vidas dos amantes num único mundo, numa única vida, numa eternidade à escala universal. E nem mesmo quando é uma suite de Hotel deixa de ser o sítio inóspito para onde somos atirados, despidos de nós. A morada provisória transforma-se numa morada permanente. Inverte-se o sentido habitual. Afinal a vida não é mudança mas a imobilização que nos pode prender a um sítio, num tempo que nunca mais se transformará. E, contudo, está em permanente mudança como Jonas na barriga da baleia no seu percurso interior e submarino. Ou, como nas antigas cosmogonias, a vida é a barca em que embarcamos e de onde desembarcamos. A cidade inteira, a Terra, o céu é o interior. Embora a astronomia tivesse afastado irremediavelmente a subjectividade das estrelas, para as transformar em objectos regimentados por regras e leis, ainda subsiste a compreensão para a claustrofobia das vidas das pessoas no seu encaminhamento, as pessoas que encontramos e aquelas de quem nos desencontramos, os que ficaram para sempre e os que se foram não menos para sempre. Em XII, lê-se este lugar, “suite sem vista”, “passa a subúrbio”. Mas é no próprio ponto de vista, na perspectiva, ou talvez melhor do acesso, que percebemos sempre de um modo negativo a presença dos objectos das nossas vidas, presentes, passados e a haver. Em I., lemos a “cegueira voluntária”, o “encobrimento” como espaço estrutural criador de opacidade para o presente, mas também o “esquecimento”. O esquecimento não é um acto psicológico negativo que nos faz esquecer apenas, ou não nos deixa lembrar, do passado, mas é o que pode apagar um mundo e por sua ineficácia também o manter vivo. Por mais que se possa “tapar os olhos”, não é possível “esquecer o cheiro do outro”. O outro está presente, mas é apenas a sua impressão, deixada em nós do passado. Com ele somos o estado em que fomos deixados. A vida é a lentidão do tempo reflectida na lentidão do movimento, da deslocação e na dificuldade ou aparente impossibilidade de acontecer qualquer transformação e mudança. “Os passos lentos/ devolvem o peso ao corredor”. O outro não é residual: “a sujidade das unhas como a humidade ou bolor interno”. A rapariga “cega atravessa paredes”, tem a densidade de um fantasma, porque como diz a filosofia existe em e por si, exclusivamente para si. Não é vista. É um fantasma a conviver com o fantasma daquele outro. Só olha para “A cama: só cama, demasiada, insultuosa/ tudo a dobrar ou excessivo para quem fica numa casa sem outro que a houvera habitado”. O quarto todo, a casa toda, é como se fosse o hotel, mesmo que habitado na suite, no melhor quarto. Mesmo que o hotel não fosse de beira de estrada, porque tinha sido um sítio para dois. E tudo sobra: “dois lavatórios pelo preço de um, dezenas de miniaturas// para o asseio, cofre, minibar, canetas, um postal,// a garrafa de Evian por cortesia.” Em II, descreve-se esta sobra. Há “metade da vida”, quando se “respirava a vida inteira cronométrica”. Desce-se ou sobe-se até “Ao lado, [até a]o casal demasiado brando,// roupões brancos, lençóis brancos, dedos brancos”. Qual o sentido da brandura? A da ternura ou a do tédio que permite ver o desfecho cruel mas inevitável de quem quer literatura e não a vida? A verdadeira solidão, porém, não é compreendida na sua dinâmica sem se perceber na ”desolação da abominação” como diz a teologia. Em III., a geografia da solidão é a da desolação da abominação, é a do abandono. E o gato vadio que é levado para casa e “mija” em cada canto não reclama um espaço para si. O que faz é para se reconhecer ainda, a partir de um detrito de si próprio: A cartografia da vida é ““um mapa mental que jaz sepultado onde outra mulher exibe a cabeça dele, um troféu// terra devastada de ninguém.” O outro é outro, é adulterado e alienado. E é afirmado na sua impermeabilidade a nós. Segue a sua vida, faz a sua vida, com outra pessoa. É esquizofrenia pensar numa criatura da nossa cabeça ser a criatura na cabeça de outrem, a fazer vida com outra pessoa. Se os espaços amplos permitem espraiar-nos, lidamos com espaços estreitos, espeleologicamente: a “escavar” (IV). Por onde vamos é “túnel”, só há “dentro” e é “sem vista”. E na demanda minimal por um sítio onde se possa estar, havemos de topar com a “caixa do primeiro luto”, “minúsculo caixão do passarinho negro”, “esqueleto do pássaro e o que outrora terá sido a rapariga.” O “passarinho” (Catulo) símbolo zoológico das delícias do amor, da promessa, da esperança. E também da despedida, da morte, do desespero. As formas de acesso identificáveis permitem-nos descer à altura do passado, ao subterrâneo, ao tesouro da vida (Santo Agostinho). Nenhuma memória sobrevive impune. É necessária a sua reconstituição afectiva. Todas as mortes, todas as nossas sobrevivências, estão arredadas do quotidiano. É necessário esconjurá-las, mesmo que depois nunca mais nos larguem. A vida é habitada por estes vários revestimentos. Somos variadíssimas pessoas que ainda temos contacto residual com vidas passadas, habitualmente em sossego. As memórias afetivas permitem esta compreensão de diversas vidas que temos e a dificuldade em acedermos ao modo como éramos sós ou com alguém, antes ou depois, nas diversas idades das vidas. A solidão configura a existência, crucifica-a. O outro despega-nos e desprega-nos como “iunx”, a ave condenada a vaguear uma existência sem fim, pregada às rodas de um carro, a rodar por todo o terreno, a toda a velocidade. A roda não é a da fortuna mas a da prisão onde Afrodite e Ares foram presos com cavilhas por um Hefesto ciumento. Outrora (V), era o tempo das cerejeiras. Era o tempo que marca o fim do inverno e o princípio da primavera. Era o tempo da contemplação da transitoriedade que é metáfora viva da vida na sua crónica curta duração, símbolo do Samurai no Japão não apenas da guerra mas também da sensualidade do fruto da cerejeira. Aqui há “cerejeiras a avançar agressivas pela rapariga dentro”. A sujidade luto das unhas, vestígio residual do outro, requer (VI): “corta-unhas”, “lâminas”, “eixos metálicos”, “dedos”. Mas também sobraram “peles”, “pensamentos”, “spleen”. O baço está cheio de bílis negra. E a melancolia actua como todos os grandes impérios: “ferindo e alastrando, sangrando”. (XIII): “Espelho e parede dão o mesmo a ver”. “Bebe de novo o tédio do lado rachado do corpo. E da boca da rapariga sai a palavra sangue.” É com o cerco feito à cidadela que pode nascer uma outra possibilidade (VII): viver e fazer literatura fazer amor e escrever sobre o amor escrever e ser inscrito. Mas a possibilidade de oferecer resistência ao vazio de sentido, à partida do outro, à abominação da recusa, à amargura da interdição pode não existir. Talvez o da nossa usura da vida por mor da arte e não por mor da vida. Porque só há outros para poder não haver outros. Só há encontros para poder haver desencontros. Só há promessa para poder haver despedida. E demora muito tempo a perceber que foi sempre esta a chave para a nossa compreensão do mundo. E sim (VIII) haverá “Silêncio, nenhuma voz, descanso ruminante de electrodomésticos, limpeza de quartos, porta, paredes, suite sem vista”, porque “A rapariga é a própria suite dentro da qual ela se encontra” (IX). A rapariga vê-se no seu interior como dentro de uma suite sem vista para a rua. Mas a rapariga poderá nunca ter saído de si. Quem quer ter a sua vida configurada pelo sentido da arte já deu a sua alma ao diabo ou tê-la-á vendido. Terá de compreender, e o mesmo quer dizer aceitar, que não há volta a dar. Foi para além do ponto, a partir de onde não há regresso: “Não te será permitido amar”. “O artista é irmão do louco e do criminoso.” (Thomas Mann). A presença invisível àquele outro único que poderia ter olhos para ela e de cuja presença depende a sua existência não é já actual. Ter pertencido a alguém é reflexo da memória no espelho. Um reflexo do reflexo, inconsistente outrora. Mas agora já não existente. Já só tínhamos o reflexo do próprio que era o outro. Agora, existindo só como fantasma, temos o reflexo do reflexo. O outro insinuou-se e ficou inoculado no próprio. O próprio é um reflexo que age ou reage ao outro na sua ausência. É residual em si de qualquer coisa que ainda tempera e dá um gosto, melhor, um travo do que foi. Mas, agora, é só “o amargo de boca”. Como sobrevive a rapariga “amputada de si, do outro que lhe dá prazer naquele sítio que como na alma acolhe o geodésico instante da loucura” (XI)?: “o olho do medo brilha e amplia o espaço onde não se pode estar// dentro das palavras é dentro das paredes da suite sem vista// cheiro insuportável da rapariga era o de quem escreve.” (XIV).
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasTédio profundo (“acedia”) [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]oão Cassiano, João Damasceno, João Crisóstomo com São Tomás de Aquino consideram a “despreocupação” um pecado mortal. Não um pecado venal (“perdoável”). A tradução do substantivo feminino latino “acedia,-ae” é polissémica. Ou “aborrecimento”, “tédio”. Ou “despreocupação”, “ausência de cuidado”. A etimologia da palavra na segunda acepção vem do grego “akedos”. “Kedos” quer dizer “cuidado”, preocupação. A grafia “A” em “A+kêdos” representa o alfa privativo. Assim, a palavra quer dizer “sem cuidados ou preocupações” “desprovido de cuidados ou preocupações”. O interessante é que a primeira acepção da palavra é inteiramente latina. Tomás de Aquino na Questão 35 da Suma Teológica concebe-a como um processo, não apenas como um estado de espírito, mental ou corporal. “A-cedere” é a situação de estar a tentar fugir a Deus. Esta fuga não é passiva mas é um debate dramático para nos libertarmos de Deus e do seu sentido (Theunissen). Deste modo podemos ler o sentido etimológico da palavra grega: tédio, aborrecimento, exaustão, fadiga, neura, etc., como o resultado de um processo activo de fuga. “Ab-horresco” é um verbo incoactivo de fuga em face do horror. Todo o aborrecimento é, de facto, o que provoca uma fuga em face do horror. Não é um horror que meta medo por causa de um ente, que crie a angústia do pavor, o pânico. É um horror que é interpretado como esvaziamento activo, falta de sentido, inanidade. As horas do dia não levam a lado nenhum, o tempo parece não passar. O tempo não passa. As horas passam ao largo. O fim do dia é exactamente tão estagnado como o princípio do dia. As semanas trazem sempre o mesmo desespero, o mesmo vazio, não fazem sentido, não orientam nem dirigem. São João Cassiano diz que a hora da “Acedia” chega ao meio dia, para inquietar os monges com a sua força máxima. A situação do aborrecimento inquietante do tédio de não ter nada para fazer, estar des-preocupado, é estudada no laboratório existencial que é a vida monástica. A divisão do tempo do dia é dado pelo tempo da oração, das refeições, do trabalho comunitário. Mas as pessoas que se encontram nos mosteiros afastaram-se das preocupações do dia-a-dia do mundo, da sua ambição, das várias tentações provocadas pela “cobiça, dos olhos e da carne”. A vida num mosteiro é pensada “de fora” como afastamento, exclusão, reclusão. No interior da vida pessoal quer dizer uma escolha activa para viver uma vida “a fazer a vontade de Deus”, uma vida que expressa a exposição ao sentido dos dias que vem de uma dimensão diferente, absolutamente diferente, da agenda do nosso quotidiano, seja ela profissional, seja ela afectiva ou até mesmo religiosa. Este ponto fundamental decide o princípio de compreensão de um fenómeno que projecta de certo modo a modernidade. O mosteiro e a vida monástica representam a vida com sentido, a cumprir-se na realização da vontade de Deus. É a possibilidade extrema e radical em que se fizeram todos os votos positivos para a consagração a Deus, uma vida dedicada a Deus. Não se trata apenas de abdicar do mundo nem de abdicar da ambição mundana. Trata-se de uma escolha positiva em que todas as acções são acções de graça. Orar é a expressão máxima da vida, porque resulta do contacto em “conversa” com o Pai. A “dieta” e o “regime” do dia são o resultado da renovação, que é o processo de “meditação” no sentido que configura o “monge” sob o “desígnio” e a vontade do Pai. Esta hipótese existencial faz sentido, preenche, enche o coração de alegria. O mundo e as suas ambições ficam de lado, esquecidas, obliteradas. Deixam de fazer sentido. Mas o que se passa na sexta hora quando a inquietação do monge é máxima? Há alguma recidiva? Quererá o monge regressar ao mundo, como o prisioneiro quer sair da sua cela para um mergulho atlântico ou sentir o calor do sol no rosto? Não. A possibilidade extrema do aborrecimento é o da fuga à vida, ao quotidiano, da repetição, da ausência de novidade, do mesmo que é inultrapassável. A eternidade é a vida no mosteiro com as mesmas divisões de horas, as mesmas refeições, o mesmo trabalho. Deus desapareceu do mosteiro. Um mosteiro sem Deus é como um templo em ruínas. O monge não tem já o mundo para onde regressar, porque nem o mundo é habitado por Deus. Atirado violentamente para a interrupção total da passagem das horas, o momento é de horror, desespero, angústia. Não há apenas a abertura à consciência de si próprio como eu. É a vida, o mundo, e Deus que surgem na abertura resolutiva (“Erschlossenheit”, Heidegger) total.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasTomada de posse e despedida dos Governadores [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ebruçámo-nos já sobre o Bastão de Comando entregue ao Governador e os bastões dos vereadores e ouvidor. Agora prosseguimos, descrevendo a pompa das cerimónias de uma tomada de posse e despedida de Governador. Em 24 de Janeiro de 1851, “o Governador Conselheiro Capitão-de-Mar-e-Guerra, Francisco António Gonçalves Cardoso, nomeado, por decreto de 17 de Outubro de 1850, para suceder ao Conselheiro Capitão-de-Mar-e-Guerra Pedro Alexandrino da Cunha, que falecera em Macau [a 6/7/1850, após 37 dias como Governador], veio de Hong Kong, onde se hospedara em casa de Eduardo Pereira, a bordo da corveta D. João I. O desembarque efectuou-se no dia 26, ao meio-dia, no cais chamado do Governador [situado na Praia Grande]. Após a recepção no Palácio do Governo, o novo Governador ouviu missa na capela do Palácio. À noite, às 7.00 horas, realizou-se um jantar com a assistência dos membros do Conselho do Governo e da Câmara Municipal, cônsules, comandantes das corvetas e fortalezas, autoridades e vários empregados públicos. Foi investido na posse do governo desta Colónia, em [3 de] Fevereiro de 1851, pelas cinco horas da tarde, na porta principal da Fortaleza de S. Paulo do Monte, entregando-lhe o [Bispo D. Jerónimo da Mata, Presidente do] Conselho do Governo a chave da dita fortaleza e o bastão e com eles a posse do Governo desta cidade com todas as artilharias e armas, apetrechos e munições de todas as fortalezas da guarnição. Depois da posse, o Governador dirigiu-se à Igreja da Sé, onde depositou o bastão aos pés da Nossa Senhora da Conceição e onde se cantou um solene Te-Deum, seguido de recepção no Palácio do Governo”, segundo Luís Gonzaga Gomes. E com este ilustre macaense, pelas suas Efemérides, continuamos: em 19 de Novembro de 1851, “o Capitão-tenente da Armada Isidoro Francisco Guimarães desembarcou às 15.00 horas, sendo recebido pelo Governador cessante Francisco António Gonçalves Cardoso e demais autoridades. Após a recepção, no Palácio do Governo, o Governador cessante dirigiu-se à Sé, para buscar o bastão que havia depositado aos pés de Nossa Senhora da Conceição, dirigindo-se, em seguida, ao Monte, seguido das autoridades. Após a entrega do bastão e das chaves da Fortaleza e troca de discursos, dirigiram-se os dois governadores para o Leal Senado, a fim de o novo Governador assinar o auto da posse, findo o qual voltou à Sé, para depositar novamente o bastão aos pés da Nossa Senhora da Conceição. Isidoro Francisco Guimarães, durante os anos da sua inteligente e próspera governação, conseguiu restaurar por completo o estado financeiro da província que, encontrando-se em 1852 deficitário, em 48.309 patacas, apresentou, em 1862, um saldo de 104.633 patacas”. Descrição oficial do acto de posse Sobre este mesmo assunto, no Boletim do Governo na “parte não oficial, Macao, Sábado, 22 de Novembro de 1851. No dia 19 do corrente, teve lugar a entrega do Governo de Macau, determinada nos actos oficiais que deixamos transcritos. Às oito horas da manhã desse dia embandeiraram as Fortalezas da Cidade, e próximo às três da tarde desembarcou nestas praias o novo Governador nomeado, o Exmo. Sr. Isidoro Francisco Guimarães Júnior, sendo recebido no cais pelo Governador antigo, o Exmo. Sr. Francisco António Gonsalves Cardoso, Juiz de Direito da comarca, Secretário do Governo, Ajudante de Ordens, Autoridades civis e Militares, Oficialidade do Batalhão Provisório, & c. e pelo Batalhão de Artilharia, formado em parada, que fez a devida continência. A Fortaleza de S. Francisco lhe havia salvado na passagem, bem como a corveta ao sair dela S. Exa. recebeu com a maior afabilidade as felicitações que lhe dirigiam. Depois partiu o Governador Cardoso para a Sé a buscar o Bastão que havia depositado aos pés de Nossa Senhora da Conceição e de lá dirigiu-se para o Monte, seguido das Autoridades, e da mesma forma foi postar-se em proximidade daquela Fortaleza o Batalhão de Artilharia. Depois das quatro horas chegou o novo Governador, acompanhado da Oficialidade do navio que acabava de comandar, a qual lhe queria testemunhar a sua respeitosa afeição seguindo-o de perto, por cujo motivo o mesmo Exmo. Sr. caminhou a pé até ao Monte. À porta da dita Fortaleza teve lugar a entrega do Bastão, pronunciando o Exmo. Dr. Cardoso, estas palavras: <Há nove meses que por ordem de Sua Majestade tomei conta do Governo desta Província, encargo este muito superior às minhas forças. Neste mesmo lugar recebi das mãos do Conselho do Governo este Bastão de Comando e tenho feito até hoje quanto é humanamente possível para desempenho da difícil empresa que me foi confiada e para prosperidade e bem-estar dos honrados habitantes de Macau: que tudo é pouco quanto se faça por este nobre povo. Entrego com muita honra nas mãos de V. Exa. o Bastão e a Chave desta Fortaleza, que me estavam confiados e espero das virtudes e vastos conhecimentos de V. Exa. ajudado de assíduo trabalho, e de coadjuvação dos habitantes desta Cidade, que seja feliz o Governo de V. Exa. e torne próspera a sorte de Macau>. O Exmo. Sr. Guimarães respondeu assim, <Exmo. Sr. Conselheiro Cardoso! Tenho muita honra em receber das mãos de V. Exa. as Chaves desta Fortaleza e este Bastão, insígnia da autoridade superior da Província de Macau, que o Governo de Sua Majestade e Rainha Nossa Augusta Soberana, me confia. Sinto que uma importante Comissão de serviço público, em que o Governo da Rainha tem de empregar a V. Exa. prive os dignos habitantes de Macau da fortuna de continuarem sob o Governo de V. Exa. – Governo a que V. Exa. se tinha dedicado com tanto acerto e tão incansável zelo e actividade. Permita-me V. Exa. que eu o felicite, ou antes a mim próprio e aos habitantes de Macau pelos brilhantes resultados que tem coroado tão nobres esforços como aqueles que V. Exa. tem empregado no melhoramento deste Estabelecimento. Posto que V. Exa. me lega uma empresa muito superior às minhas forças, é de justiça confessar que ela é hoje muito mais leve do que quando V. Exa. a tomou sobre si, neste mesmo lugar, ainda não há dez meses. Agradeço os votos pela felicidade do meu Governo, que V. Exa. acaba de fazer e creio tão sinceros, quanto é verdadeiro o interesse que V. Exa. sente por tudo que tem o nome de Português>. Depois, tornou a entregar as Chaves ao Comandante da Fortaleza dizendo-lhe: <Sr. Major. Entrego a V. Senhoria as Chaves e o Governo desta Fortaleza e estou certo que V. Sa. se haverá na guarda e defesa da Cidade de Macau, como cumpre a um militar bravo e honrado e como convém à honra da Bandeira Portuguesa>. Em seguida foram os dois Governadores e o Leal Senado assinar o auto da Posse; e o Exmo. Sr. Guimarães voltou a depositar na Sé, aos pés da Padroeira do Reino, o Bastão da Governança.” Cinco dias depois, a 24 de Novembro de 1851 o ex-Governador Francisco António Gonçalves Cardoso embarcou na corveta D. João I para Hong Kong, daí seguindo para a metrópole no vapor da mala.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasNebulosa Gisela Miravent [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão foi completamente inesperado, já a várias cabeças aquilo ocorrera. Mas foi grandioso e ainda assim imprevisto no momento preciso em que aconteceu. Nunca se acredita que o céu e o mar possam verdadeiramente trocar de lugar entre si. O acordo selado de madrugada desenrolou-se ao longo de um dia furioso e de luz indefinida. As vagas atingiram uma altura aterradora e bela; água e espuma em quantidades sobrenaturais foram lançadas ao ar e pregadas num espelho mágico, cheio de criaturas marinhas dentro. Inversamente, as nuvens lançaram-se num mergulho abissal e encheram antigos oceanos de uma massa onde tudo se podia perder. Até pedaços próprios. Nem tudo correu bem. Nem todos perceberam a tempo o que estava prestes a acontecer, pelo que peixes muito variados e plantas aquáticas multicolores ficaram para trás, sem possibilidade de se encontrarem com o seu mar – a não ser vendo-se ao espelho até ao limite da sua existência. E muitos pássaros bateram asas dentro de água, procurando atingir o céu ao contrário. Que ideia, pensavam todos, que ideia gigante e louca – o que lhes deu?, não chegava o abraço do costume, não tinham vivido sempre para o limite um do outro? Tantas vezes se interpelaram para lá do limite até… a cada tempestade baralhavam-se e tinham filhos: as criaturas mais estranhas que povoam a Terra… e agora? Terra gasosa e uma luz irradiada de um chão indeciso. Sobre as cabeças, um espelho poucas vezes transparente, carregado como nenhum céu nos dias em que se compõe como a derradeira ameaça. Uma gaivota olhava fixamente as nuvens de entre uma massa de água a que não conseguia escapar. As nuvens pareciam-lhe ondas, também iam e vinham, entravam umas pelas outras, variavam na forma e tonalidade. Não pensara que podiam ser assim bonitas: como pudera suceder que nos seus vôos de tão longas distâncias nunca se tivesse apercebido de que as nuvens eram todas diferentes entre si? Os olhos da gaivota desanimavam-se e ela não lutava, observava só, completamente espantada, a cavalgada daquelas massas de água em transformação contínua, de forma fantástica em forma fantástica. Sentia vertigens. Queria cair, mas o espelho fixara-a ali. Entre as nuvens, abaixo, peixes saltavam desolados por esse outro mar que já não lhes pertencia, as barbatanas incertas de como trabalhar aquele gás difuso, as guelras a quererem sustentar o líquido evadido para sempre. Era um espectáculo sofrido e poético. Os peixes, sobretudo, emprestavam às nuvens uma vivacidade de esplendor apocalíptico. E foi então que o viu. A princípio tomou a coisa por mais uma nuvem interessada na mascarada. A gaivota estava agora convencida de que as nuvens representavam incessantemente as formas que lhes calhara observar no tempo e se se configuravam em dragões a cuspir pela boca baforadas gasosas é porque os dragões existiam. Mas esta forma sofria de maneira contrária à alegria doida e pueril das nuvens. Não se movia ligeira, arrastava-se com esforço, a fazer uso não se sabe de que engenho e força. Era uma baleia azul, gigante entre gigantes. E sobre a baleia, num desajustamento de corpos cilíndricos impossíveis de se concertarem entre si, arrastava-se ele, em ensaio natatório condenado desde que o mar dera em céu e o céu em mar, ineficaz e triste de se ver: o espadarte. Fundo nos olhos da gaivota acendeu-se uma luz. Não parecia possível que no meio daquele tumulto de fim dos tempos fosse justamente aparecer-lhe o espadarte numa situação tão desoladora e irremediável quanto a sua. O seu espadarte. A memória socorreu-a desde o mais íntimo de si e devolveu-lhe imagens dos passeios suaves ou agrestes que haviam feito os dois tantas vezes, a mímica de que usavam para comunicar, a dança de corpos no limite do céu e do mar, a alegria transbordante ou a melancolia por conta de dias de fome e cansaço. Estava tão encantada quanto apreensiva. Logo o seu espadarte. Bateu asas. Bateu-se furiosamente de encontro à água porque só movimentando-se poderia desencadear um reflexo capaz de ser detectado pelo espadarte. Talvez. No entanto, quanto maior o vigor em que se implicava mais água engolia; em menos de nada afogar-se-ia para sempre. Semiconsciente, continuou sempre a bater as asas ou talvez já não as batesse senão em sonhos. Parecia não dar mais acordo de si. Nos seus olhos, a luz apagara-se. Pensou que pensava: tinha sido uma gaivota feliz e tinha havido um espadarte com quem partilhara os melhores momentos da sua vida. Depois caiu. … A baleia azul preparou-se para lançar um repuxo de água imemorial. O espadarte fixou os olhos na gaivota e concentrou-se em chamar a si as últimas energias. Beijou suavemente o corpo cravejado de cracas da baleia e, unidos num esforço superiormente combinado, a baleia ejectou toda a água que guardava dentro de si por entre a massa traiçoeira de nuvens e o espadarte, lançado a par do repuxo, empreendeu um salto em altura nunca antes visto, como se lembrava de ter tentado sem o mesmo sucesso quando quisera provar à gaivota que podia voar como ela. A sua espada embateu no espelho de água e quebrou-o. Enquanto o espadarte se projectou para o interior do mar invertido, a gaivota cruzou-se com ele numa queda inconsciente rumo ao seu céu de sempre. … O mundo é agora completamente outro. Tanto desapareceu, tanto se transformou. Outros adaptaram-se às massas de nuvens a vogarem eternas sob um capacete líquido e fantástico. No limite do espelho de mar, e no cimo do mais alto castelo de nuvens, o espadarte e a gaivota sorriem um para o outro enquanto coreografam o amor possível numa dança deslumbrada e feliz.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA Beleza Alheia [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início do século, comprei o livro nuns saldos da Livraria Buchholz, em Lisboa: Dans une autre beauté, de Adam Zagajewski. Custou-me cinco euros. Li-o de rajada e, encantado, falei dele aos amigos. Em vão, ninguém dava um tostão furado por outro polaco. A tolerância para os eslavos esgotava-se em três nomes: o Milosz, para alguns demasiado católico (uma barbaridade), o Herbert (que sofria de um excesso de racionalidade, outra idiotia) e a Szymborska (quase extraordinária, não fora ser mulher). E em me sendo perguntado o que acrescentaria o Zagajeswski, respondi, secamente, “bom, na verdade, tem os defeitos dos outros, além dos próprios…”. Fiquei sozinho com a minha descoberta, na altura desconhecia que a Susan Sontag e o Brodsky escreveram maravilhas sobre o livro. Calhou-me ir a Paris meses depois. Aí comprei o Mystique Pour Débutants, do Zagajewiski, tão delicioso como o título. Quis editá-lo na extinta Íman Edições, mas fali nas vésperas do “grande negócio” – sem desdouro embora igualmente sem glória. Neste ínterim o prestígio do Zagajewski subiu em flecha e hoje é o santo e a senha da actual literatura polaca. Tendo finalmente saído dele uma antologia portuguesa, Sombra de Sombras, na Tinta da China (2017). Não me vou ocupar da antologia portuguesa (oportuna e bem feita), mas antes discorrer sobre Dans une autre beauté – um sortido muito equilibrado de notas diarísticas, de livro de memórias, de caderno de pequenos ensaios e de aforismos -, cuja ideia matriz se vislumbra no poema que cito, incluído na antologia portuguesa: NA BELEZA CRIADA PELOS OUTROS: Só na beleza criada pelos outros/ existe consolação, na música/ e nos poemas dos outros./ Só os outros nos podem salvar, /mesmo que a solidão tenha o sabor/ do ópio. Não são o inferno, os outros,/ se os espreitarmos de manhã, quando/ têm a testa limpa, lavada pelos sonhos./ Por isso cismo muito sobre a palavra/ que hei-de usar, «ele» ou «tu». Cada «ele»/ é uma traição a qualquer «tu», mas,/ em troca, um poema de alguém fielmente/ oferece uma fresca, moderada conversa.» Contra a paranóia sartreana (“o inferno são os outros”), ao arrepio da mediocridade do regime político de tipo soviético em que cresceu e pelo qual se sentiu espoliado quer de “acessos directos à beleza criada pela tradição humanista”, quer “da evidência da verdade” – marcas de sensibilidade a que o regime contrapôs o dogma, a venalidade e a consequente corrupção do gosto em nome de uma estética sob programa -, Zagajewski viu na “beleza alheia” a evasão e um factor de contágio que excede em muito o campo da estética. Posto a beleza ser a lente que potencia a transmutação do olhar e abre, nos termos que o poeta usa, a passagem da solidão ao solidário. Ao transformar-nos, a beleza incita a apurar as miras da Verdade enquanto nos empurra para a consciência de que vivemos num tecido de «intertextualidades», face a cuja matéria nos situamos como um elo. O resgate da beleza propende-nos a uma maior humildade (galvanizada na contemplação e no estudo) e converte-nos em membros de uma comunidade – a dos receptores da obra de arte – que mantém a consciência de que uns poemas remetem, de algum modo, para outros poemas, umas canções remetem para outras, sucedendo o mesmo na pintura: isto faz da fecundidade da tradição uma eterna fénix. Ou seja, só quando nos convertemos em guardiões de uma tradição – a beleza alheia – é que nos alçamos a um patamar de fidelidade que, de modo a renovar-se a combustão que mudará a pele à fénix (e isto não é paradoxal mas complementar), exigirá ao autor o salutar cultivo da ironia e da crítica. Não existe assim tradição sem crítica e ironia e vice-versa. Embora nada disto dispense o fervor: um entusiasmo que nos impele. Eis o núcleo da «cosmovisão» zagajewskiana: uma pequena revolução ao jeito de uma conversa amena e passo a passo. E que não pode prescindir de qualquer detalhe da memória nem da tradição clássica. Um aspecto se abre aqui, de responsabilidade social: se cada um de nós se sentisse de facto o guardião de uma beleza não própria mas alheia, talvez esse peso não nos deixasse ceder à trivialidade e nos tornássemos criaturas de outra substância moral. Isto podia de facto ser o fundamento de uma ética, creio. O que não adivinhava e só agora me dei conta é que já tinha traduzido esta ideia em 95 numa narrativa, em As Cinzas de Maria Callas (Teorema, 97), um livro em que atesto os engulhos de ser pobre e de crescer na periferia de Lisboa antes do 25 de Abril (- tema que nos últimos anos se tornou moda). Aí narro um encontro meu com um homem mais velho do meu bairro, peão de um obscurantíssimo passado. Aterrando nos princípios de setenta naquele rincão pobre, como um antigo emigras nas Américas, gabava-se de uma paragem na Argentina, onde teria sido amigo do Onassis, e doutra, breve, em Hollywood, tendo no entanto acabado a sua malograda carreira de actor como a voz do Mister Ed, o cavalo que falava. Um dia o Arquimedes chamou-me ao seu anexo para, do nada, me emprestar um livro do Cesariny e me fazer ouvir ópera. Naquele tugúrio a que não faltava o bolor acontece a transmissão fatal: lega-me uma pequena urna onde jurava assentarem as cinzas de Maria Callas, das quais me tornava guardião. Eu tinha doze anos e aquela responsabilidade pesava-me e levou-me ao gesto insólito de, durante três anos, pedir aos meus pais como prendas de anos e Natal discos da Maria Callas. Veio o 25 de Abril e poucos meses depois a Maria Callas foi cantar ao Coliseu de Lisboa. Afinal fora enganado. Mas já estava mortalmente infectado pela diferença que era, contra todo o condicionamento da minha condição social, ser um apaixonado pela ópera e pela estranheza da dicção do Cesariny. Creio que não me acomodei como fiel de armazém devido ao deslumbre face à beleza alheia.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA última garrafa (Num consultório privado) [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]AUL: Então o que é que está em causa, doutor? DOUTOR: Remédio. O que está em causa é o remédio. Os outros encontram-no e você não. É isto que está em causa. RAUL: Não é que não tenha tentado. DOUTOR: Será? RAUL: Porque dúvida? Julga que… DOUTOR: Se quer mesmo saber, você parece-me demasiado decente para ter remédio. Para se ter realmente esforçado em encontrar um. RAUL: Não estou a compreender. DOUTOR: Está. Não quer é compreender, que é diferente. Meu amigo, você não tem qualquer problema com a vida. Você não tem é vida. Vive, tem responsabilidades, como já disse, mas, no fundo, está à parte dela. Em relação à vida, você está de fora. Porque não se quer sujar. Não é possível viver e não se sujar. Há que casar, há que trair, há que ser encornado, há que conspirar, aqui e ali, contra este ou aquele, há que dizer mal. Sou capaz de jurar que você nunca ganhou sequer um escudo ilícito. Isso não é viver. Você trabalha em contabilidade, já alguma vez se enganou propositadamente? RAUL: Julgo que o doutor está a confundir a vida com o mundo. DOUTOR: Estou? E qual é a diferença, é capaz de me dizer? RAUL: O mundo é o mundo, a vida é a vida. São palavras diferentes. E as palavras devem ter alguma razão. DOUTOR: Pois para resposta não está mal. Fica-se na mesma. RAUL: Olhe, posso dizer-lhe que o mundo não me dói, e a vida sim. O que se passa no mundo, o que as pessoas fazem, não me causa o menor abalo. Mas a vida é-me insuportável. Falava em decência, mas julga que me importa a fome que há no mundo, as guerras que o estão a destruir? Julga que me importa a miséria nas ruas, a violência, a droga? Nada disto me causa o menor abalo, doutor. Mas a vida dói-me. DOUTOR: E importa-lhe a miséria que habita cada um de nós, sem excepção? RAUL: Não, doutor. Porque isso é luxo que eu não tenho. Preocupar-se pela miséria do ser humano é um luxo. Como também é um luxo não se preocupar com nada, viver constantemente em diversão. Infelizmente, não me posso dar a esses luxos, porque a vida dói-me muito, doutor. (silêncio e, entretanto, o doutor serve mais whisky) RAUL: Obrigado. DOUTOR: No fundo, o que me está a dizer é que não é humano. RAUL: Talvez, doutor. A minha doença não me permite sê-lo. Mas não esqueça que essa ideia de humano é formada por os que não estão doentes. Talvez para os sãos, os que adoecem e recuperam, os irrecuperáveis não sejam humanos. Já pensou nisso? DOUTOR: Não, ainda não tinha pensado nisso. Talvez tenha razão. Talvez seja necessário pensarmos de novo o que é ser humano. RAUL: Talvez, doutor. DOUTOR: Por outro lado, pensar que algum dia se irá aceitar a doença como parte integrante do humano é ingenuidade. A doença é um intervalo na vida. RAUL: Na vida, não, doutor. A vida também pode ser uma doença, como pode constatar por mim. DOUTOR: Talvez então a doença seja um intervalo na existência, um intervalo no modo como se entende o mundo. (com ar de ausência) Sim, talvez seja mais isso. (regressando do seu curto estado de ausência) Mas está agora a compreender melhor o ódio que se tem aos médicos, não? RAUL: Sim… Até onde me pode ser possível, porque não tenho muita experiência acerca disso. DOUTOR: De qualquer modo, não diga ainda que eu constato a sua doença. Vamos tentar. Mas até agora… RAUL: Quer dizer que ainda continua a não acreditar no que lhe digo. DOUTOR: Não se trata disso, homem! Antes de mais acredito que não me está a mentir. Depois também acredito que me está a relatar algo que, embora estranho, não parece destituído de sentido. Ou você julga que se o julgasse doido ainda estava aqui a ouvi-lo? Pode não parecer, mas tenho mais que fazer. (pausa) Preciso é de compreender, percebe? RAUL: Perceber, percebo, doutor. Mas o problema é que julgo que está a ir pelo lado errado. Isto não se compreende. DOUTOR: A ser assim, estamos mal. Mas, seja como for, se conseguir compreender que não se compreende já é alguma coisa. RAUL: E, para isso, precisa de tempo. DOUTOR: Exactamente! Tempo. RAUL: Está a sugerir que venha aqui com regularidade e, de cada vez, passemos uma ou duas horas a conversar até que possa compreender que não compreende? E, entretanto, continuo a sofrer. DOUTOR: Bem, meu amigo, convenhamos que não lhe restam muitas outras saídas. Por um lado, você não se quer matar e, por outro, eu também não o mato. Não o mato é como quem diz, não lhe dou o comprimido que necessita para morrer em paz. (não deixando de falar, levanta-se e dirigi-se à estante com livros) Não vamos estar com ilusões. Qual era o médico que estaria interessado em compreender o seu problema e em ajudá-lo? Enviava-o para a psiquiatria ou, no melhor dos casos, para a neurologia e já estava. Passava a bola a outro, está a ver? Mas eu não. Eu quero realmente compreendê-lo. Quero compreender o que se está a passar consigo. Não me parece que tenha muitas alternativas, amigo. De qualquer modo, se quiser, se assim o entender pode procurar outro médico. Está à vontade para o fazer. Aliás, uma segunda ou terceira opinião será sempre melhor. RAUL: Doutor, eu não quero opiniões, quero um comprimido. Quero morrer, doutor. Agora diga-me com sinceridade. Julga que tenho realmente hipóteses de receber esse comprimido, ou não? (regressa à mesa com um livro na mão e pousa-o sobre a mesa) DOUTOR: Vamos a ver. Vamos a ver. RAUL: O problema, doutor, é que não tenho muito tempo. Não quero continuar a sofrer mais, nem quero morrer coberto de dores. DOUTOR: Calma, amigo, não desespere! Para já, isto vai bem encaminhado. RAUL: Isto o quê, doutor? DOUTOR: O seu pedido. RAUL: Vai então dar-me o comprimido? DOUTOR: Calma! Não disse isso. RAUL: Então o quê, doutor? (silêncio) RAUL: Responda-me, por favor! DOUTOR: (procurando uma página do livro) Você costuma ler? RAUL: Não, nem por isso. DOUTOR: Se não se importar, gostava de lhe ler uma passagem deste livro. RAUL: Faça favor! DOUTOR: «O único problema filosófico é o suicídio. (…)» Conhece o autor? RAUL: Não. Quem é? DOUTOR: Camus. Albert Camus. Escritor e filósofo francês, que morreu ao volante do seu automóvel em 1967 com 51 anos. RAUL: E o que é que isso tem a ver para a nossa conversa, doutor? Já lhe disse que não me quero suicidar. DOUTOR: Precisamente por isso! Você não quer viver, mas também não se quer matar. É um problema novo, homem. Compreende o que lhe quero dizer? RAUL: Não estou bem certo disso. Mas também é coisa que não me interessa. Já lhe tinha dito anteriormente que não me interesso por filosofias. DOUTOR: Mas o que é certo é que você, tanto quanto sei, e quer queira quer não, está a abrir um precedente para a compreensão do homem e das suas relações com a vida e a morte. RAUL: Pois, pode até ser. Mas não é coisa que me interesse, doutor. Aquilo que me interessa… DOUTOR: Já sei, homem! O que lhe interessa é o comprimido. RAUL: E, então, sempre mo vai dar, ou vai escrever um livro acerca de mim?
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasCronólogo [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos a iniciar um novo Ano com a sensação de transpormos uma porta deixando para trás os embates vividos, saldando dívidas, reciclando os cismas, atestando as fórmulas, esperançados que uma qualquer bonança nos acolha e providencie o fluxo no tempo circular. Chegamos a um momento em que os projectos se dissipam quando os muitos que foram se afiguraram impossíveis e desejamos a partir de um dado tempo organizar as horas e os dias, para terminarem bem que a vida é feita de regras bem mais do que de excepções. A enorme propagação de miríades de vontades embate muitas vezes no nosso cansaço com aquela impressão indelével da frase de Pessoa “nem invejas que dão movimentos de mais aos olhos” num aparelho deveras rudimentar como um corpo no cavalgar de asfalto que exercido de forma continuada nos prostrou exangues e feridos. Outros, porém, as vítimas do cansaço da paz adormecida não estarão mais livres, os arrastados por torpe calmaria sem futuros e com esquecimentos passados ou carregando-os na orla da imprecisão doentia de todas as seguranças. Como espectros ocupam os espaços, e sem razão aparente, vivem, porque sim. Este Fini Anual ciclo das Festividades é um aparatoso lastro de bloqueios na nossa já dorida insensatez, por mais vivência e desapego chegamos até aqui com a sensação de todos os reféns. Batemos os pés, dançamos por cima… no vento, com a impressão de fugir a estas duras penas, mas não blindados, que o mundo será sempre mais forte que a suspeição que temos de que exista. As mudanças climatéricas, as protuberâncias dos Estados, a difícil capacidade de gestão metidos que somos num recanto do Universo, são tão grandes que não há lugar por mais recôndito que nos pareça que fique incólume perante esferas tão radicais. A História, bem como a Pré-História Humana, tem-se arrastado, prosperado, mudado, pelos ciclos solares, e basta dele haver uma leve dissidência para que tudo se arraste e mude de um local para outro, de tempos para épocas, de eras para ciclos intermédios, um aluvião sem garante e sem fixidez nos foi legado como habitat, e se há épocas onde os equilíbrios se mantiveram serenos dando lugar a grandes Idades de Ouro eles são rompidos pela massa gravitacional que nos faz de novo peregrinos incansáveis dentro desta imensa organização. Os glaciares derretem, as águas sobem, os continentes desaparecem, as Atlântidas estão na nossa memória colectiva como filtros bem camuflados para não escusarmos jamais o transitório. Hoje é já um novo ano no século vinte e um, século que se torna cada vez mais radical, uma radicalidade de que não suspeitávamos nascidos que fôramos ainda nos tempos dos equilíbrios que entretanto se romperam, porque todos os equilíbrios existem visando a imponderabilidade da ruptura. Os Verões escaldam, os Invernos congelam, as chuvas breves e intensas passaram todas a tropicais, os ventos não deixam ninguém de pé, e, dir-se-ia que viver numa atmosfera assim requer dos corpos fortes adaptações uma vez que não somos matéria elástica nem o ritmo da montanha russa é o nosso maior exercício aplicado à sobrevivência. Tempo breve haverá que tenhamos de viver em cativeiro, em tubos com oxigénio – cápsulas – que serão as casas a nascer brevemente. Este tempo não só é para breve como já está acontecendo. Fazendo o ritmo das transumâncias, os “rebanhos” que agora somos, falta-lhes pastores, os nacionalismos querem aferroar a vida nas suas fronteiras e viverem a “longa metragem” dos herdeiros do nada, depois, vêm os patriotas mais amenos assim como as Primaveras, mas que se salvaguardam da onda inoportuna dos avanços dos que se movem em ritmo de fuga numa força extrema de sobrevivência. As comportas foram abertas numa antecipada e bem visível onda de choque que para toda uma Civilização adormecida não passa de charcos que querem roubar as suas seguranças, sem capacidade de acção estamos a ver os desastres, atónitos, sentados, erguemos muros, ostracizamos outros, numa ânsia de bote à deriva com duas pessoas a bordo, pois que os que se afundam podem por alarme fazer perigar os raros. Os governantes do mundo são ferramentas que operam agora num tecido imprevisto e que lhes desconhecem as dimensões, e não só arrastamos as leis severas da reconfiguração da massa, como estamos debaixo dos seus tratados impossíveis. E é neste momento que Voltaire volta a nascer «construir cada um o seu jardim» amuralharmo-nos, todos mais ou menos blindados num paraíso que cada um saberá, e onde se encontram os Arlequins que a tais quimeras presidem. Não tarda, quem andar lá por fora enlouquece, pois que encolhe e dilata num ano o que o elemento da elasticidade não permite, não raro nos vem à ideia que somos fustigados por caprichos, só esse “maravilhoso” Ano que jaz passado, vi não só seres irrespiráveis, como aqueles que já não podiam literalmente respirar. Aos poucos a Terra vai parecendo um amontoado de lixo a céu aberto com diversões escusas e ardentes artefactos numa enciclopédia ambulante de como atingir a demência em curtas manobras de Cruzeiro. Nesta altura festejavam os Romanos as suas Saturnais, grandes festividades! Saturno é o senhor absoluto do Tempo e nem sempre engole pedras pensando que são seus filhos, que esses, absorvem-se, mas as pedras são vomitadas, e neste caso, onde caírem erguem-se Templos. Depois, como já não se pode comer o filho dado que aos deuses são dadas outras apetências, pode-se em cima dela sacrificá-lo…mas que não , que não…era só uma experiência, mas mais adiante, sem apelo nem agravo, o Pai está mudo. Foi esta a linda história de Cronos que em Tempo se foi tornando, dando o seu monstro à medida da consciência de cada um. Lamartine obsequiou-nos com a bela expressão «Oh tempo, suspende o teu voo!» Suspensos estamos no Tempo. E ficar no Tempo é não ter de voltar a ele. E disse-o num monólogo eloquente o grande Vitorino Nemésio: “O Verão vai longo e dizer o quê a quem e como?” Efectivamente, já não temos gentes que nos interpelem assim. Cada um tem um plano que geralmente não resulta e todos juntos, fazemos finalmente o Caos. Nos Açores levantavam-se Ilhas por volta do solstício do Verão devido às placas tectónicas e muitos ficaram ruídos de espanto até Pessoa pegar naquilo tudo e fazer o belo poema das «Ilhas do Encoberto» Pois claro! “É em nós que é tudo”. Não é com Ilhas do Fim do Mundo nem com palmares de sonho ou não que a alma cura seu mal profundo e o bem nos entra no coração. Lembrei-me deles pois que são dignos de lembrança. Não tenho nenhuma razão maior para louvar, nem ninguém que me possa devolver o essencial que é tudo o que por ora convém saber.
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasO arqueólogo encavacado [dropcap style≠’circle’]P.[/dropcap] é um arqueólogo norte-americano, com quem trabalhei durante algum tempo, e que esteve na origem de me ser atribuído, em 1997, um vistoso diploma, devidamente emoldurado, a castanho e dourado, com os seguintes dizeres: Texas A & M University Recognizes Dr. Miguel Martins In appreciation of Excellence in Teaching within the discipline of Anthropology. Ora, acerca de P., não posso perder a oportunidade de contar um par de histórias: A primeira tem que ver com o seu irmão, portador de uma doença mental que não sei precisar qual seja mas que faz com que, a maior parte do tempo, viva internado numa instituição especializada. Todavia, segundo P., poderíamos passar um dia inteiro a conversar com o irmão sem que nos apercebêssemos de qualquer desvio à chamada normalidade. Acontece, apenas, que o rapaz se torna violento, tendo já obrigado à hospitalização de vários indivíduos, sempre que, na rua, vê mimos e homens-estátua. A outra história passou-se directamente com P., aquando da sua participação num congresso, algures na Califórnia. Aí, durante um dos momentos de convívio, conheceu uma rapariga, tendo havido imediato interesse mútuo, o que conduziu a que acabassem por passar a noite juntos, em casa dela. Tratava-se de uma faustosa vivenda, a que se chegava percorrendo uma alameda que desembocava num largo arborizado, usado como parque de estacionamento. Ora, a meio da noite, P. despertou e achou por bem regressar ao seu hotel. Não encontrando papel e caneta para deixar um bilhete, decidiu que regressaria, na manhã seguinte, para despedir-se da moça. Entrou no carro e, ao fazer marcha atrás, embateu numa árvore. Não se preocupou por aí além. Pensou: “Amanhã, quando me vier despedir, pedirei desculpa pelo sucedido”. Só que, no dia seguinte, estacionou no mesmo local, saiu do carro e, olhando a malfadada árvore, viu que esta, completamente tombada, arrancada ao solo pelas raízes, ostentava uma placa com a seguinte inscrição: “Plantada em 17??, esta é uma das árvores mais antigas da Califórnia”. Entrou em pânico e partiu imediatamente, sem sequer se despedir da rapariga. Não gosto de congressos, reuniões, conferências, debates, etc. Raro me apanham nisso e, quando vou, regresso quase sempre irritado comigo. Antigamente, gostava. Fosse como ouvinte ou como orador. Mas, antigamente, fazia tantas coisas que agora nem me passam pela cabeça. Política, por exemplo. Cruzes, canhoto! – digo hoje, procurando enxotar para bem longe de mim tanto disparate. (Convicções, bem vistas as coisas, nunca as tive, ou, melhor dizendo, sempre soube o que recusava mas, quanto ao que pretendo, isso sempre me remeteu, de imediato, para o plano do onírico – e ainda bem! O pensamento não é, no meu caso, uma operação que se realiza sobre a realidade mas sim aquém ou além dela). Numa dessas ocasiões, uma das menos disparatadas, participei, em Genebra, a convite de J., ex-deputado, empresário e divulgador de música rock, num congresso do Partito Radicale Transnazional. Aí, conheci figuras relevantes da política italiana, como Marco Pannella e Emma Bonino. Mas a figura deste partido que alguma vez teve maior mediatismo (para incómodo dos actuais dirigentes) estivera com ela em Lisboa, muitos anos antes, num contexto totalmente diverso — refiro-me a Ilona Staller, vulgo Cicciolina, actriz de filmes pornográficos, deputada e, depois, mulher e musa do escultor Jeff Koons. Aquando dessa sua passagem por Lisboa, Ilona visitou a Assembleia da República. A esse propósito, a poetisa Natália Correia, ao tempo deputada, escreveu a seguinte quadra: Estava o Parlamento em tédio morno Do Processo Penal a lei moendo Quando carnal a deputada porno Entra em S. Bento. Horror! Caso tremendo! Também conheci Natália Correia. Sem pretender com isso diminuir a sua erudição, devo dizer que era uma pessoa insuportável. Ouvi-la falar, na televisão ou ao vivo, era um teste à paciência de um santo. Como política, uma desgraça (em todo o caso, claro, melhor do que 95% dos que agora temos). Como poeta, quase sempre desinteressante (em todo o caso, claro, melhor do que 80% dos que agora temos). Poetas (quero dizer, escritores de poesia, que poetas é outra coisa, só às vezes — raro — coincidente), poetas irritantes, dizia, a roçar o insuportável, é, aliás, o que há mais — aí, a percentagem deve andar pelos 70%. Estas percentagens, como se calcula, são de uma cientificidade absoluta… O rigor, supérfluo e presumido, acessório da vaidade e, logo, da fraqueza, é outra coisa que me irrita. O interesse reside na exposição, não na veracidade. Acredito na star quality, não no método. Gosto muito mais do Humphrey Bogart do que do Marlon Brando.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasO mundo como zoológico do Homem Breve referência a 2017 e à nova lei do cinema que se avizinha [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] da nossa natureza de animal enlouquecido, actores e observadores que somos da nossa passagem no mundo, a tentativa de ver em permanência com olhar de satélite o planeta que habitamos, criamos e também destruímos. É o olhar humano mais próximo da ideia do lugar do olhar de Deus, entretanto múltiplas vezes assassinado e múltiplas vezes trazido às nossas vidas. Mesmo atendendo ao empenho fabril com nos entregamos à alienação da nossa condição trágica perante o nada. Do inevitável choque sem cinto de segurança com a morte, condição necessária ao “carpie diem”, é da nossa condição de falência enquanto máquina antropológica, a inquietude e a observação permanente. São as nossas práticas como seres sociais, condição do humano, que nos demonstram a condição de animal enlouquecido. A loucura pode ser heróica, gloriosa, trágica, permanente ou passageira, em função do pensamento dominante da época em que o pensamento e acções concretas se produzem, ou num tempo de análise posterior ao acontecimento. Somos a mais bela máquina horrível. Belos assassinos de nós próprios e do outro(s). É difícil o olhar distanciado e sem paixão sobre nós e sobre o outro. O tempo de vida de cada maquina antropológica em falência que cada um é vai se esgotando, felizmente na maior parte do tempo sem a permanente consciência dessa inevitabilidade. Mas a vida adiciona esse lugar do vazio cada vez mais preenchido dos companheiros mortos. No entanto, nesta esgadanhar da fera ao civilizado é quase sempre desse outro lugar da vida, que nos chegam as ressonâncias e até asserções mais orientadoras e construídas, o presente é produto do passado. Aqui neste lugar do mundo, é a voz milenar de Confúcio e Buda que ecoa em outras de um tempo mais próximo, Jorge Álvares, Camões, Marx, Nietzsche, Sartre, Bergman, Marilyn, Artaud, sim, são muitas, quase infinitas as vozes que nos habitam. Parece ser tendencialmente aceite que o pós-moderno já não nos serve e a hiper-realidade é uma constatação do real com toques glamorosos de uma maquilhagem Dior. O fracasso absoluto dos corpos afogados no mediterrâneo no movimento continuo do fluxo de gentes à procura do sonho da Europa, ou apenas em fuga da miserável condição da ausência pão, o som dos inaudíveis desastres interiores que a custo não queremos ouvir e com força de nervos arrancamos da carne e vamos expulsando para redes de esgotos escondidas, dizem-nos que é bom sermos felizes, supremamente gratos, e que para o sermos não é possível abandonar esse querer primeiro da infância do mundo justo e fértil. Neste nosso mundo há vários mundos. São muitos e diferentes tempos sociais e culturais que produzem os factos sociais que habitamos. Há um Oriente que afirma o sucesso da sua civilização milenar e simultaneamente de enorme modernidade no mundo contemporâneo, e uma europa que se recusa a olhar-se no melhor de si própria, envelhecida paradoxalmente pelo simulacro do novo. É tempo do Pós-Renascimento. Não é suficiente o cartesianismo positivista do iluminismo neste outro século, o XXI. Há por aqui a permanência de um eurocentrismo bacoco e desajustado do real, nos quotidianos da informação televisiva. A banalização do pensamento medíocre em doze letalmente excessiva. Para onde caminhamos é a pergunta, que beleza e horror construímos quotidianamente nas nossas fábricas, campos, cidades? As respostas são abertas, mas pergunta é sempre e continuamente necessária. A legitimação da Arte, passada a euforia dos melhores e piores de 2017, anuncia-se o chegar de uma nova lei para Cinema em Portugal, que continua a partir de um lugar mais pequeno do que o visível a partir de Portugal dos Pequeninos. Neste 2017 a terminar vi muitos filmes. Dos que vi, destaco S. JORGE, do Marco Martins – produção Portuguesa, filme premiado no Festival Internacional de Macau e outros, Veneza é deles. Já aqui escrevi sobre este tremendo filme. Noto também a obra COMBOIO DO AÇUCAR, do Licínio Azevedo – co-produção Portugal-Moçambique, filme que também tive a oportunidade de referenciar por altura do Fantas Porto 2017. Outros felizmente existem que merecem destaque, mas não este o assunto. A actividade do cinema em Portugal continua a ser olhada pelos decisores políticos como coisa menor, com a qual não importa perder tempo nem pensar recursos, estratégias, objectivos, para além daqueles gerais sempre bem enunciados nos preâmbulos do enquadramento legislativo – ao abrigo do artigo 78º Capítulo III no seu ponto 1 e 2, alíneas a) b) c) d) e) da Constituição da República Portuguesa . No entanto na prática a menoridade atribuída à produção e fruição cultural é uma evidência, desde logo no orçamento geral do Estado, mas também, e muito, nos articulados específicos e no funcionamento do ICA- Instituto Público ao qual cumpre desenvolver e cumprir as políticas públicas para o cinema. A realidade que o cinema vive é um ICA que tem como boa filosofia o lavar das mãos como na lenda bíblica de Pôncio Pilatos (relato de Mateus). A nova lei é de que se avizinha a publicação é uma versão com nova data da anterior. Ao que parece, também nestas matérias, é urgente convocar o olhar do Presidente Marcelo , esse gigante dos afectos e do bom senso esclarecido, é que, para além do lugar do cinema enquanto actividade económica a “anos-luz” da sua potencia entre nós, há esse outro lugar mais difícil e menos preciso em quantificar, mas de inegável relevância; o lugar do cinema na identidade, na construção do património simbólico, na estruturação de comportamentos, nas cinevisões do mundo, no desenvolvimento das cidades criativas e política externa dos Estados contemporâneos.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasPoesia – Georg Trakl Música em Mirabell[1] 2ª versão [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma fonte canta. As nuvens estão No azul claro, brancas, ternas. Pensativos, homens caminham em silêncio À noite através do velho jardim. Dos antepassados o mármore encaneceu. Aves em migração tracejam o longe. Um fauno com olhos mortos vê Sombras que deslizam para a escuridão. A folhagem cai encarnada da velha árvore E entra em círculos pela janela aberta para dentro de casa. Uma chispa de fogo encandece no espaço E pinta fantasmas perturbados pela angústia. Um estranho branco entra dentro de casa. Um cão precipita-se por corredores apodrecidos. A criada apaga uma vela. O ouvido escuta de noite sons de sonatas. Musik im Mirabell Zweite Fassung Ein Brunnen singt. Die Wolken stehn Im klaren Blau, die weißen, zarten. Bedächtig stille Menschen gehn Am Abend durch den alten Garten. Der Ahnen Marmor ist ergraut. Ein Vogelzug streift in die Weiten. Ein Faun mit toten Augen schaut Nach Schatten, die ins Dunkel gleiten. Das Laub fällt rot vom alten Baum Und kreist herein durchs offne Fenster. Ein Feuerschein glüht auf im Raum Und malet trübe Angstgespenster. Ein weißer Fremdling tritt ins Haus. Ein Hund stürzt durch verfallene Gänge. Die Magd löscht eine Lampe aus, Das Ohr hört nachts Sonatenklänge. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 13. Crepúsculo de Inverno[1] Dedicado a Max von Esterle Negro céu de metal. Nas tempestades encarnadas gralhas enlouquecidas de fome, voam de noite Lívidas, sobre o relvado do parque. Nas nuvens, congela um raio até morrer; E ante as maldições de Satanás, elas contorcem-se em círculo e em número de sete descem para poisar sobre a terra. Na podridão, doce e sem sabor, Aparam, em silêncio, os seus bicos. Ameaçam as casas das paragens em redor; Há claridade no teatro. Winterdämmerung[2] An Max von Esterle Schwarze Himmel von Metall. Kreuz in roten Stürmen wehen Abends hungertolle Krähen Über Parken gram und fahl. Im Gewölk erfriert ein Strahl; Und vor Satans Flüchen drehen Jene sich im Kreis und gehen Nieder siebenfach an Zahl. In Verfaultem süß und schal Lautlos ihre Schnäbel mähen. Häuser dräu’n aus stummen Nähen; Helle im Theatersaal. Kirchen, Brücken und Spital Grauenvoll im Zwielicht stehen. Blutbefleckte Linnen blähen Segel sich auf dem Kanal. [1] KL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag, p. 14. [2] https://lyricstranslate.com/pt-br/duu07-winterd%C3%A4mmerung-cr%C3%A9puscule-dhiver.html#ixzz50H6qb4AY
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasEnfartamento natalício [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] natal, na minha família, envelhece mal. Quando era criança e durante o tempo que estive em França, os únicos natais felizes eram aqueles em que a minha família (irmãs, cunhados e sobrinhos) chegava de Portugal para passar o Natal connosco. Os meus avós moravam no interior algarvio e pouco ou nada viajavam dentro de Portugal, quanto mais para fora. A vida do campo era duríssima e o tempo, embora desabitado do stress contemporâneo, não abundava. Os natais com avozinhos a contar histórias e crianças aos pulos na excitação das prendas, só os conheço da televisão. Com o tempo e como é natural, as pessoas vão morrendo e as famílias reorganizam-se em redor dos que nascem. No caso da minha família, os nascimentos são pouquíssimos. Temos tendência para a monocultura (rapazes) e para fechar a loja à primeira venda (um filho por casal). Como os casamentos e demais ajuntamentos não têm durado, a presença de cônjuges é pouco frequente. Ainda assim, o meu cunhado insiste em cozinhar como se fôssemos uma corporação de bombeiros a sair do ramadão. São semanas a comer sobras. A medida que os anos passam, a coisa torna-se cada vez mais deprimente. As pessoas chegam cansadas ou enfadadas à mesa – e, às vezes, ambas – e olham para o repasto com o fastio de quem se está a ver a comer a mesma coisa durante um mês. No tempo em que dávamos guarida a dois ou três convidados com famílias ainda mais depauperadas do que a nossa, esforçávamo-nos para disfarçar o enfado. Agora, o natal é só um jantar em jeito de exagero. A mãe queixa-se de não ter conseguido acabar de ver o telejornal, o sobrinho e cunhado disputam o comando da televisão da cozinha, a mana diz que detesta canja de cabeça de javali e come, enjoadinha, uma gamba “com demasiado sal”. Quem não bebe, nessa noite concede uma excepção. Quem bebe, bebe mais e mais depressa. O objectivo é a obnubilação rápida da consciência. Com a parca educação restante, dá-se os parabéns ao cozinheiro: “muito bom, acho que é o teu melhor borrego de sempre”. A coisa decorre com a alegria de um funeral até ao estertor final, sinalizado normalmente pelo início de um dos Sozinho em casa. As pessoas continuam a disputa pelo comando no sofá e o meu cunhado, infelicíssimo, fica a contemplar a quantidade de comida na mesa como se esta se houvesse transformado em dinheiro em chamas. Como estamos todos progressivamente mais pobres, não há prendas. Nem simbólicas. Tendo em conta de que não temos convidados, já não nos damos ao trabalho de fingir que comprámos qualquer coisa a pensar em alguém. Tapamo-nos com umas mantas à frente da televisão e deixamos o cérebro esbracejar sem grande vontade no lago de vinho em que o afogámos. Na televisão, sucedem-se os “filmes de família” – a expressão pela qual cunharam o amontoado de lixo que Hollywood tem vindo a produzir com abastança e regularidade. Daqui a vinte anos, com mais mortes e o mesmo número nulo de nascimentos, talvez possamos deixar de fazer de conta que no natal temos de fazer de conta e passamos, sem vergonhas, a dizer não à ceia natalícia. Seremos poucos, é certo, mais isso é somente uma razão mais para dizer não. Não à ceia, não à comemoração daquela coisa nenhuma, não a qualquer tipo de promoção da quadra. Como defesa, poderemos sempre dizer que as épocas festivas deveriam servir para nos sentirmos melhores e, por pouco tempo que fosse, especiais. Se nem para isso servem, de que servem então?
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasBastão nas mãos do Santo [dropcap style≠‘circle’]A[/dropcap] existência em Portugal do Bastão do Comando dado a um Governador fica-se a saber pelas palavras de D. Pedro de Meneses, na altura em que foi empossado como primeiro Governador da Praça de Ceuta, ainda em Agosto de 1415. Dizia ele perante D. João I: ” ‘Majestade, com este bastão é-me suficiente para defender Ceuta de todos os seus inimigos’; desde aquele instante, um bastão para jogar (Aleo) transformou-se no Bastão de Mando da Cidade, estando actualmente em mãos da Nossa Senhora de África, como Governadora Perpétua da urbe”, informa Gabriel Fernandez Ahumada. “No acto da posse dos governadores da Índia havia a cerimónia da troca do bastão pelo que se guarda no túmulo de S. Francisco Xavier. Esta cerimónia teve origem no facto de ter o Vice-Rei Conde de Alvor depositado ali o seu bastão, entregando ao santo a defesa do Estado quando esteve iminente a invasão pelo Savagy”, segundo se lê na Enciclopédia Luso Brasileira. Tal episódio ocorreu em 1683, após Sambaji (filho e sucessor de Shivaji, fundador do Império Maharathi) a 24 de Novembro desse ano, com um exército de vinte mil soldados, cavalos e elefantes, tomar às portas da cidade o forte da Ilha de Jua (St. Estêvão) e matado toda a guarnição. O Vice-Rei Francisco de Távora (1681-1686), já com o título de Conde de Alvor, atacou-o com quatrocentos homens, mas foi desbaratado. Desesperado, o Vice-Rei, vendo estar Goa perdida devido à supremacia dos maratas (denominação portuguesa para os maharatas), foi à Igreja do Bom Jesus e abrindo o túmulo de S. Francisco Xavier colocou-lhe nas mãos o bastão (símbolo do poder), assim como as patentes (símbolo de tomada de posse) e um papel nomeando-o defensor e protector de Goa e dos portugueses. Com isso esperava a sua ajuda milagrosa, entregando-lhe a responsabilidade da defesa de Goa. E não é que Sambaji inesperadamente retirou, apesar da sua supremacia. Para a crença popular foi um milagre realizado por S. Francisco Xavier, mas o que ocorreu para o súbito abandono da mais que provável conquista de Goa por parte de Sambaji foi este ter de ir defender as suas terras do ataque dos mongóis. A partir de então, muitos dos Governadores e Vice-reis da Índia tomaram posse junto ao túmulo do Santo. Bastões das diferentes autoridades Por alvará de 26 de Abril de 1626, Dom Francisco da Gama, que pela segunda vez ocupava o cargo de Vice-Rei da Índia (1622-28), concedeu à Câmara de Macau o privilégio de prover a vara de Alcaide desta cidade, em homem branco. Alvará mais tarde confirmado pelo Vice-Rei D. Francisco de Távora (1681-1686) e a 30 de Abril de 1689 pelo então Governador da Índia, D. Rodrigo da Costa, sendo a 30 de Dezembro de 1709 pelo próprio Rei D. João V. Uma história em que este bastão é referenciado ocorreu em Macau em 1710. Na altura, 13 de Fevereiro, os vereadores do Senado revoltaram-se contra o Capitão-Geral Pinho Teixeira e essa desobediência levou o Governador a mandar eleger um novo Senado. Os homens bons demitidos pelo Capitão refugiaram-se no Colégio de S. Paulo e o Governador enviou soldados para aí os prender. Os jesuítas reuniram-se com o Ouvidor e os notários na escadaria de São Paulo e aí atestaram os seus privilégios, ficando provado que a entrada forçada de soldados nas suas instalações era inadmissível do ponto de vista legal. O Capitão Geral mandou vir um canhão para despedaçar a porta maciça do seminário, mas como o tiro não conseguiu tal efeito, deu ordens para os canhões do Monte o arrasar, sendo tal evitado pela intercessão do bispo. O conflito continuou e três cidadãos foram consecutivamente eleitos para o lugar vago de juiz mas, assim que eram eleitos, reuniam-se aos seus predecessores, no Colégio, onde também procuravam abrigo muitos cidadãos. Os apelos do clérigo e da classe média resultaram na retirada das sentinelas. No aniversário da invasão holandesa, os senadores, bastão na mão, saíram do seu refúgio e, escoltados por muitos partidários armados de mosquetes, foram a um conselho-geral no Senado, celebrado com o fim de restaurar a tranquilidade pública. No entanto, o conflito só ficou sanado a 28 de Julho desse ano com a posse de um novo Governador, Francisco de Melo e Castro. Ascendência do Senado “Os decretos reais de 1709 determinaram que o Capitão-geral não interferiria na administração política e financeira que, por direito, pertencia ao Senado, e que, em vez de convocar os senadores em qualquer emergência, ele deveria deslocar-se à casa do Senado, onde lhe seria concedido o lugar principal na mesa do conselho que, habitualmente era atribuída ao vereador mais antigo”, segundo Montalto de Jesus, que refere, a “escritura constitucional datada de 1712, definiu a jurisdição política do Senado como abrangendo todos os casos que se relacionassem com o bem-estar e a tranquilidade de Macau, enquanto financeiramente confiava ao Senado o controlo exclusivo dos rendimentos e despesas da colónia [até que pelo Decreto de 20.9.1844 foi instituída uma Junta de Fazenda, tirando da Câmara a administração financeira]. O Capitão-geral, geralmente o orgulhoso filho de alguma família patrícia e histórica, tolerava mal esta ascendência do Senado. Mais a mais, a própria pompa da sua tomada de posse contradizia a sua posição de subalterno. Quando, às portas da cidadela, apresentava a sua carta-patente ao vereador mais antigo eram-lhe em troca entregues um bastão de comando e a chave da cidadela por entre uma salva de vinte e um tiros. Para seu desgosto, contudo, em breve veria a sua autoridade estritamente limitada ao comando de uma pequena guarnição”. Refere Armando A. A. Cação, em “1721, o Governador era investido na posse, na porta principal da Fortaleza do Monte, entregando-lhe o conselho do Governo e chave da dita fortaleza e o bastão e com eles a posse do Governo desta cidade com todas as artilharias e armas, apetrechos e munições de todas as fortalezas da guarnição”. No Senado “às nomeações anuais era anexada uma lista de sucessão. Na circunstância do falecimento de um senador a vaga era preenchida numa tocante cerimónia, na catedral. Os senadores reuniam-se à volta do caixão, o vereador na presidência pronunciava três vezes o nome do falecido, um médico atestava formalmente o óbito, a lista de sucessão era aberta e um substituto nomeado pelo vereador, que lhe entregava solenemente uma vara tirada da mão do falecido, pois cada senador possuía uma fina vara de madeira, insígnia de autoridade”, segundo Montalto de Jesus. Já a carta de 22 de Setembro de 1714, dirigida por Albuquerque Coelho ao Ouvidor Vicente Rosa, que o tinha colocado na prisão, refere a vara de Ouvidor desta Cidade. Como se percebe, para além do Bastão de Comando do Governador, havia também os bastões dos vereadores, do juiz… O que será feito desses bastões de Justiça e Comando? Se ainda existem, por onde andam? Relíquias importantes para serem expostas no Museu de Macau, ou pelo menos réplicas deles.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasParty Girl [dropcap style≠‘circle’]O[/dropcap] passado atravessa-se-nos. Já não é como dantes. Outrora, as memórias rebentavam como bolhas de água Castelo. Podiam ser muitas de uma só vez, mas depressa se acalmava a efervescência. O presente acabava por se impor no seu caudal. Nem a frescura ficava na cara. Agora, por vezes, é o contrário. Parece que uma memória assome o horizonte e nos expulsa do presente ou lava o presente para fora da sua eficácia. A memória não é só uma impressão fixa do passado com que ficamos. É afectiva. Vem não se sabe por que motivo. Ou sabe. São histórias passadas, mal concluídas. Não concluídas. Histórias abortadas de desencontros que levam à abominação da desolação. Atiram-nos para o facto bruto, puro e duro de a vida ainda ser e nós temos de continuar, sempre em frente. A afectividade destas memórias fixam-nos numa zona de impacto, numa terra de ninguém. Não estamos já no princípio. Longe disso. E estamos próximos do fim, mas há ainda tempo. Atiram-nos para um terra de ninguém. Este baldio é uma zona de guerra, como vemos nos filmes sobre os conflitos do Médio Oriente. Não percebemos como é que os soldados estão, pelo menos, na sua primeira comissão, muito menos quando cumprem mais comissões do que a segunda. Estamos num cenário de guerra que nada tem que ver com casa. Reconhecemos que os civis, mulheres e crianças, pobres todos eles, estão no meio do conflito e não podem sair dali. O que sucede de extremo com estas aberturas de zonas apocalípticas é que estamos em casa. Nós somos os locais. É aí a nossa casa. Não temos para onde regressar, porque geograficamente, estamos no sítio onde nascemos, vivemos e, em derradeira análise queremos ficar. Só que não podemos ficar num sítio completamente alagado por uma zona de guerra. A guerra é uma metáfora da abominação da desolação. Estamos num sítio inteiramente determinado pelo tempo. Vive-se em condições extremas. Entre picos de adrenalina, eufóricos, e voos precipitados em direcção ao despenhamento. Em nenhum lado é casa. Por todo o lado só há o inóspito. Todos os amigos estão expostos a essa situação radical e extrema. O futuro só traz um único alívio: a inconsciência ou a alteração radical dela. Ou, então, a morte. As memórias afectivas surgem das disposições mais antigas dos tempos. A origem e proveniência dessas memórias é a afectividade. Por isso, não importa bem qual é o seu conteúdo “cénico”, de quem é que nós nos lembramos, que histórias do passado é que vêm até nós. Os conteúdos são sempre totais. Implicam-nos numa relação com os outros, com o meio em que nos encontramos, com a nossa vida na sua totalidade. É a afectividade, o seu carácter emocional que é decisivo. A sua forma é sempre a mesma. É apocalíptica, porque nos revela qualquer coisa de nós na nossa relação com os outros especiais da nossa vida, com o sítio que é casa e deixa de ser, com a vida que é nossa, mas parece que somos expulsos dela. O seu conteúdo é vezes sem conta o das pessoas sagradas das nossas vidas. As pessoas sagradas são as que nos abençoam com as suas presenças, mas são também aquelas que nos danam. O sagrado está em tensão com o profano. Mas o profano, do ponto de vista do sagrado, é um horizonte integrado. “A teologia é séria, o inferno é certamente lá em baixo e o céu é lá em cima” (Rimbaud). E as memórias vêm do passado como tsunamis. Configuram-nos um presente. São saudades do passado. Saudades de um passado perdido, mas não esquecido. Não nos deixam esquecer de si. Ficamos presos delas. O presente é configurado por estas saudades que não sabemos matar. Melhor, a saudade é a falta que se sente. A falta, porém, é permanente. A saudade é permanente. Não podemos dizer exactamente que “temos” saudades. Deveríamos dizer que as saudades nos têm a nós. Nessas alturas a falta é tão constitutiva que não sabemos como podemos sobreviver num outro horizonte afectivo, como podemos ter tempo, sem regressar a outro local. Como pode ser reversível se tudo é irreversível? Como pode ser ultrapassável a vida inteira se é agora e agora é impossível? Como pode haver repetição, se tudo parece ser irrepetível? Hoje, vi-te. E eu como era. Não vejo bem como és. Sei, contudo, bem como sou.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasArcas São um simulacro recente as paredes com orifícios para arrumação que define o nosso «modi operandi» logístico; nada que nos faça já recordar qualquer modalidade de emparedamento: as paredes não ouvem mas muitas falam quando existem demolições e sismos, isto para não abarcar ainda os tectos falsos, os soalhos tapados, toda uma arquitectura de construção acumuladora de coisas que deviam pela sua natureza não ser reveladas. Por isso e ao longo do tempo usámo-las para agrupar elementos, sempre com ferrolhos, fechaduras, como de um cofre se tratasse. Elas eram uma espécie de condomínio fechado tanto pela magnitude das suas proporções como pela sigilosa presença dos seus conteúdos, não havendo habitação que não as tivesse para usos vários que ninguém obviamente ousava indagar. A sua remoção era difícil mas tinha a particularidade de não serem anexos e não estarem escondidas. Esta forma de “arcar” era para os antigos escravos que as moviam com o peso dos seus interiores constituindo assim uma particularidade móvel. E, voltando a algumas, a mais recente e impressionável será mesmo a Arca de Fernando Pessoa, cujas dimensões reduzidas conseguiu englobar a mais vasta obra da poesia portuguesa e páginas inteiras do mais soberbo ensaio. As Arcas têm fundos, não são objectos que simulem apenas uma aparência, e quem anda de um local para outro leva a sua Arca de forma inteira, nem que tenha de deixar as outras peças soltas nos exíguos lugares por onde passa. Uma espécie de outra Arca, a da Aliança, pois ambas continham apenas palavras: uma, o decálogo, a outra – muitas outras – de versos, eram depósitos de palavras de Deus dado que os poetas são receptáculos também dessa voz e não raro vejo-o a acompanhar a sua Arca como o rei David num contentamento estonteante que no nosso poeta era coisa rara. David dançava enquanto ela se movia; Pessoa pensava enquanto ela se mudava mas a beleza era mesmo por que não estavam fixas. E se uma era constantemente preenchida já a outra transportando em pedra a palavra, preenchia os requisitos imutáveis de uma Arca que não se expande. Pessoa deixou bem clara a definição entre Mala e Arca ao analisar Nossa Senhora no seu «Guardador de Rebanhos», que pastores eram estas gentes todas. Claro que em ambos os casos estamos distantes das belas ânforas de bondade uterina. Aqui, entre o que se traz e o que guarda, vai uma longa fila de sucessivos revezes femininos. O feminino tende a juntar muita coisa em espaços fechados – coisas de natureza vária – o que faz que se podendo ser apenas uma mala, não haja tal incómodo, mesmo assim vociferam as línguas que lá também cabe tudo. Mas a Arca onde coube mesmo quase tudo e não era de todo uma Mala, foi a Arca de Noé! Todos sabemos que as diversas alterações climáticas do planeta deram movimentos às águas sempre que a Terra mudava ligeiramente de eixo. Falam-nos disso todas as Civilizações e uma das mais belas constatações é sem dúvida o poema épico da Mesopotâmia «Gilgamesh», a primeira das obras literárias mundiais e que nos dá conta exactamente de um dilúvio, obra esta que tanto influenciou o Gênesis. Hoje esta Arca está no monte Ararat, a de Fernando Pessoa foi vendida e está no Brasil, e a da Aliança crê-se que se encontra debaixo do que é agora o Domo da Rocha o edifício mais sagrado do Islão. Há salteadores para as «Arcas Perdidas», há iniciativas prestes a saírem do seu conforto para as contemplar, fazem-se réplicas, pergunta-se pelas madeiras, mas só as Arcas reencontradas saberão transmitir-nos o segredo das suas funções. A do poeta saiu da sua terra, a da Aliança, está por assim dizer em terreiro inimigo, a outra descansa em ruína entre o Irão e a Turquia. Para réplica temos a «Nau Catrineta», que devia ser um sinal à “navegação” para não fazer esquecer a importância das Arcas. Tal era a semelhança entre a tripulação, que ambas soletravam para mim, algures, a mesma história. – Uma história de encantar! Hoje ouvimos falar em Arcas, mas só as frigoríficas, que é uma adjetivação que tem como fim conservar: mas conservar o quê? Coisas que se estragam. Ora nas Arcas não há decomposição, elas serviam mesmo de grandes salgadeiras, mas o interior delas desvaneceu-se para o frio glacial onde a leitura está rutelada, indicando apenas a espécie dos elementos. E são feias, abrasivas, temíveis, quem se adentra numa dessas industriais pode ficar morto e hirto. Funcionam por electricidade, se ela faltar, uma Arca destas é um depósito de coisas que apodrece, é uma barriga de aluguer para o monstro voraz insaciado que é o consumo, são enfim, a mais degenerativa forma de as nomearmos. Não nos lembramos destas coisas porque “arcamos” com as forças temíveis do grande entulho mundial, nem nos fixamos na desmesura destes imensos objectos, nem consta que tenhamos já Arcas em nossas casas, mas elas foram as componentes mais respeitáveis não só do mobiliário como dos grandes arquétipos Humanos. Hoje guardamos o seu imenso fascínio no nosso imaginário e se as tivermos sabemos como são singulares as suas presenças e como elas contam todas uma história, que começou por um sonho como os antigos enxovais, ao proteger folhas e folhas de papel, de pedras, e de caravanas de animais de várias espécies. As Arcas são ainda uma aliança e todas são sem dúvida – Arcas da Aliança – entre o fazedor e a sua obra, arcar sempre com o peso da responsabilidade movida quando nelas depositamos tantos sonhos. E alguma coisa ficou da mobilidade deste trajecto no «Papamobile» que é uma espécie de trono andante muito semelhante à velha Arca. Arcas, também foi algures um deus que governou a Arcádia, emocionamo-nos perante os «Pastores da Arcádia», a bela obra de Poussin que reflecte tanta coisa… a decifração das palavras tumulares… o prodigioso momento de reflexão das personagens… Esta era ainda a cidade da Idade do Ouro, o mais emblemático mito utópico. «Arcas Encoiradas», um grande romance de Aquilino Ribeiro. «Ouvi contar que outrora», de Ricardo Reis, ardiam casas, saqueadas eram as arcas/ e as paredes/. Caminhemos nestas coisas.
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasPadres, álcool e aquilo [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a minha família paterna, oriunda de uma aldeia da região de Coimbra, a influência dos padres sempre se fez sentir. Aliás, entre os meus inúmeros primos contam-se um arcebispo de Braga e o actual pároco da Sé de Lisboa. As missas por alma dos mortos são quase diárias e, nas festas de anos dos mais velhos, os padres são presença imprescindível. Naquelas aldeias, hoje quase despovoadas, a capelas só são abertas no Verão, para responder ao afluxo de gente que, ida de Lisboa, vai passar férias à terra. Ora, numa destas ocasiões, uma prima minha assistiu à seguinte situação: A capela estava cheia. Só mulheres. O padre começou o serviço. Passado pouco, uma fiel interrompeu-o: — Ó Senhor Padre, quando é que nos mostra aquilo? Ao que este lhe respondeu: — Calma. Isso é depois. Mas pouco havia progredido na sua função já outra voz se fazia ouvir do meio da assistência: — Ó Senhor Padre, quando é que nos mostra aquilo? A minha prima achava-se, naturalmente, intrigada. Finda a missa, porém, o mistério dissipou-se, ante a sua incredulidade. Com a maior desfaçatez, o padre pegou numa mala, pousou-a sobre o altar e começou a retirar do seu interior uma grande variedade de cosméticos, destinados a serem vendidos ali mesmo. Acumulava as funções de sacerdote com as de revendedor da Avon e não achava qualquer inconveniência em realizá-las a ambas no mesmo local. É um lugar-comum dizer que a realidade, por vezes, ultrapassa a ficção, e claro que isso depende da ficção de que se fala, mas dar-vos-ei três exemplos de histórias verídicas dignas de figurarem nos anais do neo-realismo ou do realismo mágico latino-americano. A primeira passa-se numa taberna da linda cidade de Tomar, onde vivi um pouco mais de um ano: Certo dia, pela hora do lanche, entrei na referida tasca, situada, se a memória não me engana, perto da sinagoga, e pedi uma cerveja, um queijo seco e um pão. Só depois comecei a observar a paisagem circundante. Era um verdadeiro repositório de pó, teias de aranha e serradura para encapotar a sujidade do chão. Ora, o proprietário, ante o meu espanto, achou por bem esclarecer, cheio de orgulho: — É bonito, não é? Tenho este sítio há trinta anos e nunca foi limpo! Limitei-me a responder-lhe que, afinal, me ia ficar pela cerveja. Embora não seja dado a grandes esquisitices, o queijo e o pão tinham, subitamente, perdido o seu encanto. A segunda história passa-se num bar de beira de estrada (aquilo a que os espanhóis, desempoeiradamente, chamam um puticlub), situado próximo de Palmela, onde fui levado por um amigo em cuja quinta de Azeitão me achava a passar férias. Encontrava-me sentado, bebendo o meu whisky e apreciando o panorama, quando a minha atenção se achou presa pela sucessão de pinturas parietais que pretendiam embelezar as paredes da sala. As primeiras, como convinha a um estabelecimento daquele género, representavam mulheres nuas, em poses convidativas. Muito bem. O problema surgia mais adiante, quando estas davam lugar a um pai e um filho caminhando, de mão dada, rumo ao sol, e, até, a um Cristo crucificado. Espantado, dirigi-me a um dos empregados de balcão e indaguei: — Ó chefe, sabe explicar-me o porquê destas pinturas…? Ao que ele retorquiu, visivelmente incomodado: — Não me diga nada! O pintor, a meio do trabalho, converteu-se aos Jeovás e fez este lindo serviço! Este episódio passou-se com o meu amigo T.: andava no Instituto Superior Técnico e tinha um colega que, aos dezoito ou dezanove anos, nunca tinha bebido álcool — nunca, sequer, o tinha provado (era aquilo a que os irlandeses chamam “um pioneiro”). Ora, numa festa académica, os colegas lá o convenceram a beber umas quantas cervejas. O rapaz sentiu-se mal e veio para a rua sentar-se num murete e vomitar. Acontece que, estando ele nesses preparos, por mero acaso (evidentemente), faltou a luz naquele quarteirão. Os colegas foram dar com ele lamentando o seu destino: — Meu Deus, o que é que eu fui fazer? Fiquei cego…
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasNapoleão em Santa Teresita [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde miúdo que guardo a sensação de que cada ano, mesmo no seu término, nos trata como se tivéssemos a irrelevância de uma mascote pronta a ser esquecida. Não vejo o que haja a comemorar. Além disso, nem todas as cicatrizes são tão espectaculares que mereçam o relato do que as produziu. Ganhei na última década o hábito de vir passar os derradeiros dias do ano numa lagoa, sem televisão, um lugar quase sem rede telefónica, com uma net gotejante, que exaspera quem dela necessite, e onde os fogos-de-artifício têm a fulgurância dos fósforos molhados no bolso de um esquimó. Chamo a este lugar, em homenagem à minha mulher, Santa Teresita. Bem me tentam os amigos para que com eles festeje em lugares de estardalhaço e dissipação; acabo sempre por desviar-me para esta modorra. Eles não sabem porquê, mas vou-vos contar. Meia-noite e dez sob o alpendre. As miúdas festejam cada “fulminante” que se recorta nos céus. Eu, nas costas delas, sentado à mesa, beberico a Ermelinda e espero uma visita. Todos os anos tenho uma visita. Tossem nas minhas costas, diligentemente encho de vinho a caneca que mantinha vazia ao meu lado e só depois olho por sobre o ombro. É Napoleão. Diz-me, Espero que não te importes, estava entediado em Santa Helena. Não, estás à vontade, esperava por ti. Convido-o a sentar-se Lembra-me como celebrámos o fim de ano em Moscovo. Na véspera caçámos o veado que agora nos era servido, e eu ao seu lado, com um martelo de ouro partia nozes, enquanto a pequena orquestra atacava uma polca. Um conde russo, que apostou no cavalo errado e espera futuras prebendas do imperador francês, introduzia-nos nas delícias da vodka artesanal e trouxe-nos duas irresistíveis gémeas ucranianas, com rasgados olhos fulvos, que partilharemos. São onze e trinta, faltam trinta minutos para o réveillon e Napoleão insiste em oferecer-me o comando da cidade de S. Petersburgo. Agradeci-lhe mas intuo que me quer desviar do meu béguin por Josefina (esperto como um alho, ele já entendeu) e rejeitei-lhe a oferta, contrapondo: “Tão a norte até o meu sangue tropeça no seu passo, se me queres ocupar preferia que me oferecesses Amsterdam, até porque estou comprometido com uma neta de Rembrandt”. Ele não me diz que não, replica apenas, enchendo-me o copo com mais uma dose de rum, “Deixa que o duende da bebida seja bom conselheiro!”. Passámos a noite em transe a recordar algumas noitadas em Viena de Áustria ou a discorrer sobre a cosmologia nas tatuagens dos quioquos. É disto que os meus amigos se foram esquecendo, aturdidos pela festa, urbana e desmemoriada. Na passagem, entre os anos, podemos ter uma visita. Nem vos conto os meus réveillons com Baudelaire, Stravinsky, Pasolini e em Cuba, com Lezama Lima. Com Lezama, vi à mesa (provei-o) o menu do banquete do Satíricon, que vos descrevo, deliciado: ovos de pavão, um papa-figos muito gordo untado de gema com pimenta, vinho com mel, grão-de-bico cornudo, uma vulva de porca estéril, empadas de javali, tâmaras frescas e secas, uvas, salsichas e chouriços, um bezerro cozido, uma franga gorda, à guisa de tordo, e ovos de pata encapuchados; um porco coroado de morcela e, em redor, sangue coalhado e miúdos de ave muito bem preparados; acelga e pão integral; lombo de urso; queixo fresco preparado com vinho abafado; um caracol por pessoa; empadas de tordo recheadas de passas e nozes; marmelos eriçados de espinhos. Não foi nada mau. À vulva de porca estéril tive de desfrutá-la às escondidas para que a minha mulher não notasse. Há três anos conversei com Picasso, que nessa noite me levou a Paris. Os sinos acetinavam o ribombar dos fogos. Já tínhamos aviado três garrafas de Bordéus, e ele mete na mesa uma bagaceira caseira. Todos os outros convivas estavam na varanda. Só nós dois quedávamos à mesa, e ele comentava, a voz já levemente pastosa, “… muita gente julga que não vendi de imediato as Demoiselles d’Avignon por apego à arte, tolos, eu sabia que os meus quadros iriam valer ouro nos leilões de arte, escuta o que te digo, daqui a setenta anos, só os quadros do Da Vinci se equipararão no valor que será alcançado pelos meus quadros nos leilões…”. “E isso, para ti, é importante?”, pergunto-lhe intrigado. “Bom, prefiro a água de uma fonte na montanha à que sai das torneiras de ouro, em Versailles, mas só o dinheiro nos pode dar a ilusão de que o nosso tempo não se gasta…E vais ver que um dia os árabes, com os petrodólares hão-de fazer museus onde quererão pôr a Renascença e as Vénus nuas a sair das águas, eles que sempre proibiram a representação do rosto e do corpo humano… Acho que o mundo enlouquecerá sem dignidade…”. Tomei aquela por uma conversa de ébrio, até que hoje, dia 1 de Janeiro de 2018, li no Público de 31 que o quadro de Da Vinci, Salvator Mundi, um dos símbolos da arte cristã, foi rematado num leilão por trezentos e oitenta e dois milhões de dólares, tendo sido a quantia expedida pelo Departamento de Cultura e Turismo de Abu Dhabi, a capital dos Emiratos Árabes Unidos, onde abrilhantará as paredes da sucursal do Louvre. E leio que, ao lado, os demais países árabes descobriram os museus e assaltam como gafanhotos de patas de amianto e cabeça em aricalco o mercado da arte. Não sei como a arte ocidental, a preferida por tais compradores – pelos vistos -, se compadecerá com os dogmas religiosos muçulmanos, mas é uma curiosidade a seguir com atenção. Esperemos que, como aventava Picasso, isto não seja mais um sinal do mundo estar literalmente chanfrado mas antes um indício de abertura. Temo agora que as conversas com os meus visitantes não sejam inocentes mas proféticas e ter quebrado alguma corrente mágica quando não aceitei governar S. Petersburgo. Embora toda a noite Napoleão, afinal o criador do Louvre, tenha revelado uma grande capacidade de perdão.