Musas sem metafísica

Horta Seca, Lisboa, 27 Outubro

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m indivíduo chega exaurido, ainda que ao começo dos dias, cada manhã travestida de etapa intermédia na escalada dos himalaias. Desconsigo responder às solicitações, que logo florescem até ganhar as maduras cores da urgência. E depois vai chegando esta sazão das datas redondas, com amigo atrás de amigo a propor-se apreciar, qualificar, classificar, ajuizar, julgar, analisar, considerar, rever, medir, mensurar, aquilatar, ponderar, examinar, aferir pedaços de vida.

Tenho andado com o meio século do Zé Luiz [Tavares] iluminado pela melancolia, que não falho de humor. «Do cimo dos telhados vejo/ coisas atiradas sobre o mundo:/ um livro a arder num incêndio/ valente. Muita merda a passar/ sob as pontes. (Alguma/ é a poesia que se pode). // Uma bicicleta ergue-se entre/ o escuro e os meus dentes –/ é a musa sem metafísica, e leva/ o mundo no guiador. (Agora é bem/preciso arrojo para se ser poeta/ sem a almofada do divino).» Ando, portanto, de bicicleta entre o escuro e os meus dentes, aliás pouco claros – coisas da vida.

Vai daí o Nuno [Saraiva], por causa da exposição que o Festival de BD da Amadora lhe dedica por estes dias, deixa cair a banalidade de estar a celebrar 30 anos de carreira, palavra estranha em quem terá sempre a idade da adolescência. Contém trajectória e correria, vereda e linha de autocarros, mas não soa bem se aplicada a profissões que não parecem trabalho. Conhecemo-nos há tantos incêndios e muitas luas. Pus-me a rever a LX Comics, primeira paragem da carreira que apanhámos lá para os lados de Alvalade a pensar no Bairro Alto, quando ainda era uma coisa e outra em nós. Folhear a velha revista deu-me belo motivo para procrastinar, arte que o Nuno pratica com afinco! Logo ali, o anti-herói, Ladislau, contava em preto e branco de contornos bem vincados, gesto tardo-Tardi, diria o outro, peripécias de uma cidade que se descobria hedonista e múltipla, com várias margens e outras tantas suburbanidades. O desenho das musas respirava óbvia, mas terna volúpia e terá sido por isso que o sugeri ao Júlio [Pinto] para o feliz casamento que pariu, nas páginas do Independente, a Filosofia de Ponta. Foi por aqui, neste sucesso transversal, que trouxe a bd para a idade adulta e para fora dos guetos onde tende a cair, que o Nuno se começou a agigantar novo Stuart. Ou velho Saraiva, que sei eu. Não por acaso, qualquer pretexto lhe serve para o homenagear (veja-se no desenho desta página, uma das muitas personagens que a Amadora reclama como suas). E hei-de ainda descobrir caricatura do Nuno a borra de café assinada Stuart. A colecção, que há anos enchi de imagens, velhas e novas, com o El Corte Inglés e que a Assírio & Alvim editou, a pretexto do Prémio Stuart de Desenho de Imprensa, finou-se quando preparávamos volume sobre o Saraiva. Este projecto, como outros, que desta palavra ambos gostamos, não ficará para sempre atrasado. Nele se perceberá que, como o velho mestre, parte da arte do Nuno está na recolha, agora com três décadas anos, das figuras que fazem cidade, que são a sua pele. A edição recente (Arranha-céus/EGEAC) do álbum para colorir, «Pintar as Festas», resume as folhas da alface tão frescas e exuberantes que o desenho dele vem tatuando nas mais recentes Festas da Cidade. Diz ele: «Um marujo guitarrista arranha uma guitarra-bacalhau. Um cantor disco-pop-xunga que en-canta no palco e que é elétrico na micro-sardinha e acústico no salpicão. Uma marchante toda moderna e cheia de genica, tatuada com andorinhas que parecem atrair algumas sósias tradicionais peças de cerâmica. Um DJ Pride com phones-manjericos, master dos pratos com sardinha e chouriça. Um marujo apaixonado pela peixeira que, por intuição lógica, lhe oferece um ramo de sardinhas.» Uma graça, que dá outra pincelada no seu mister, a que mistura os tempos, o real e o mito. Regressemos a anteontem, onde as figuras da modernidade se cruzavam de forma disléxico com o jargão de pensamento prêt-a-porter. Foi aquele retrato nosso de fim-de-século, delirante e sarcástico e prazeroso, que a Bedeteca de Lisboa quis celebrar, em 1996, dedicando a sua exposição inaugural à Filosofia de Ponta. Exaltávamos ainda a inextricável relação entre o texto e a imagem, afinal a matéria-prima da narrativa gráfica. Houve muito de exultação naqueles dias, naquela casa. Apesar de inúmeros incêndios e tristezas valentes. Acabei até como personagem em fulgurante bd do Nuno cujo tema outro não podia ser que os atrasos… e a cidade. Era episódio de projecto mais lato, cuja intenção era desvelar as muitas cidades que Lisboa esconde. Como que por acaso, na empresa mais recente, o folhetim com Ferreira Fernandes, que o DN publicou, também a capital se ergueu protagonista: Lisboa, Porto de Abrigo (no prelo, em versão aumentada). Do hoje mais visceral saltou o artista para aquele passado que não deixou nunca de regressar: o fado. Outra afinidade com o malquisto pintor das nuvens e das varinas, mas o Nuno amadureceu, procrastina um pouco menos e investiga bastante mais, tendo contribuído em muito para dar corpo a contornos sumidos das figuras e das histórias daquele género de melancolia meio gritada, meio chorada, por vezes até alegre. Setúbal, e o pretexto não foram as suas magníficas bocagianas personagens que viveram pelas ruas, dedicou-lhe, há um ano, uma primeira retrospectiva. Modesta, sem alcançar o preito que tarda, mas o país parece ter o atraso como fado. Alegro-me que a Amadora te tenha dado palco, quanto mais não seja porque as tuas figuras identitárias a vão encher de cor.

E afinal, o que são 30 anos na vida de um gajo?

8 Nov 2017

Casamento e divórcio durante a Revolução Cultural

Legenda FOTO: Certidão de casamento de 1971. À esquerda pode ler-se: O Partido Comunista Chinês é a nossa força motriz. O quadro teórico que nos guia é o Marxismo-Leninismo.

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ranscrevo em baixo, na integra, uma decisão sobre um divórcio de 1968. O Tribunal elencou os motivos da recusa do divórcio, que na época eram considerados justos e adequados.

O veredicto abria a Suprema Decisão com a citação de alguém que era, nem mais nem menos, do que o próprio Presidente Mao:

***

Suprema Decisão

Combatei o egoísmo e o egocentrismo, bem como o Revisionismo!

O vencedor da luta ideológica entre o proletariado e a burguesia é, por enquanto, desconhecido. Devemos continuar a resistir aos pensamentos burguês e pequeno-burguês. Se não compreendermos esta realidade e desistirmos da constante luta ideológica, cairemos no erro e na incorrecção.

Supremo Tribunal Cível do Povo de Pequim

Reg. No. XXX

Proponente:  Shi Dehong, sexo masculino, 38 anos, quadro do Secretariado da West Mining, Pequim

Citado: Pan Xiulan, sexo feminino, 35 anos, quadro do comité do partido na prefeitura de Xianning Província de Hubei.

Caso: divórcio

Shi Dehong e Pan Xiu-lan casaram-se em 1952.  Tinham uma relação normal e dois filhos: uma rapariga, Xiaoling, de 14 anos e um rapaz Xiaoxia, de 7. Recentemente, Pan Xiulan começou a ver o mundo com outros olhos e permitiu que a ideologia burguesa sobre casamento e família a dominasse. Por causa disso, em 1964, Pan Xiulan apelou para o Tribunal Popular de Mentougou, Distrito de Pequim, e interpôs um processo de divórcio contra o marido, alegando que o casamento tinha sido arranjado e que não se amavam um ao outro. Em Junho de 1965, o Tribunal Popular do Distrito de Mentougou declarou o divórcio por comum acordo (Reg. No. XXX). Shi Dehong recusou-se a aceitar o veredicto. Em Novembro de 1967, O Tribunal Popular Intermédio de Pequim manteve a decisão de divórcio de comum acordo (Reg. No XXX). Shi Dehong, insatisfeito com o resultado, continuou a lutar por uma reconciliação. Na sequência da sua luta apelou para o nosso Tribunal.

O Tribunal apurou que Pan Xiulan e Shi Dehong se conheciam e trocaram presentes antes do casamento, o que prova que tinham um relacionamento de livre vontade. O casamento não foi “arranjado”. O alegado “casamento arranjado” não é factual. Quanto à alegação “os esposos não se amavam um ao outro”, ela é única e exclusivamente derivada da contaminação de Pan Xiulan por ideais burgueses. Estamos perante um caso em que, no seio de um casamento e de uma família socialistas, se travou uma luta feroz entre a burguesia e o proletariado. A ideologia burguesa deve ser criticada e combatida a todos os níveis. Nunca podemos permitir que se espalhe livremente e que mine a prática do casamento e da família socialistas. Desde que Pan Xiulan tome como princípio orientador o “Combate ao egoísmo, ao egocentrismo, bem como ao Revisionismo!”, recorrendo ao pensamento do grande Mao Tsé Tung para criticar, assim como ultrapassar as ideias e os comportamentos burgueses respeitantes à família, o casamento poderá ser salvo e aperfeiçoado.

O Presidente Mao disse: “Ainda teremos de lutar por muito tempo contra a burguesia e a pequena-burguesia. Todas as ideias erradas, todas as ervas daninhas e todos os monstros terão de ser criticados, e nunca devemos permitir que andam à solta e proliferem.” Ao lidar com conflitos familiares e matrimoniais, o tribunal do Povo deve estabelecer a diferença entre o certo e o errado, baseado na teoria da luta de classes e no método de análise de classe e, ser sempre resolutamente crítico e resistente à ideologia burguesa. A decisão do Tribunal Popular de Pequim, Distrito de Mentougou, revela que a luta de classes entre as duas ideologias foi ignorada e demonstra ser um sub-produto da simpatia burguesa de Khrushchov pelos “sentimentos”. O Tribunal Popular Intermédio falhou por não ter condenado esta visão reaccionária de casamento, e por não ter corrigido o erro. Ambos os veredictos estão errados e devem ser anulados.

Em conformidade, o nosso Tribunal delibera o seguinte:

1. O Tribunal anula o (Reg. No. XXX) do Tribunal Intermédio de Pequim e o (Reg. No XXX) do Tribunal Popular de Pequim, Distrito de Mentougou.

2. Este Tribunal indefere o divórcio entre Pan Xiulan e Shi Dehong.

 28 de Junho, 1968

8 Nov 2017

Marcas do desejo

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á certas pessoas a quem, por algum dom natural ou por mérito próprio, os demais têm dificuldade em dizer não. Sendo objectivo, devo afirmar que há muito me apercebi de que faço parte desse número.

Quando tinha 15 anos, fascinado por um par de cachimbos por estrear que havia lá em casa e motivado, certamente, por uma imagética retirada ao cinema, resolvi que queria fumar cachimbo, e disse-o aos meus pais.

Faltavam poucos dias para, pela primeira vez, sair de Portugal sem a família. Iria uma semana a Londres, com um colega de Liceu.

No dia seguinte à minha declaração, minha mãe acompanhou-me a um depósito de tabacos que havia na Rua de São José e, aí, adquirimos uma calcadeira, escovilhões e, recordo-me, uma onça de Skandinavic Aromatic.

E lá fui eu para Londres, orgulhoso e deliciado, com o meu cachimbo entre os dentes.

No “Moby Dick”, a dado passo, Ahab afirma: “Oh, cachimbo meu, as coisas correm-me mal se os teus encantos se perderam!”. E assim é, de facto! – o cachimbo é bom companheiro em quase todas as ocasiões.

Na Ilha da Madeira, contudo, onde já estive perto de dez vezes, sabe Deus por que sortilégios (a humidade do ar?, o fantasma de Winston Churchill pairando sobre Câmara de Lobos?), apetece-me sempre fumar charutos. Gosto de caminhar pela cidade do Funchal, contemplando-lhe a flora e a arquitectura, enquanto aspiro o odor do charuto. Gosto de ir do Museu de Fotografia “Vicentes” ao Museu da Quinta das Cruzes, da Casa-Museu Frederico de Freitas ao Aquário Municipal, do Mercado dos Lavradores ao Museu Henrique e Francisco Franco, aspirando sempre aqueles aromas vindos do Brasil, das Caraíbas, das Filipinas ou de outras paragens do mar, remotas e tropicais.

Mais uma vez, ao gosto que tenho pela Madeira não serão, certamente, alheios os muitos traços da presença inglesa na ilha, traços esses, regra geral, bem conservados e postos em evidência, pelas autoridades locais ou pelos próprios britânicos.

Ora, isto faz-me pensar em cemitérios, outro tipo de locais que tendo a apreciar, e, nomeadamente, em cemitérios britânicos espalhados pelo mundo, que tive oportunidade de visitar: um no Lumbo, defronte da Ilha de Moçambique, datando da Primeira Guerra Mundial, em que repousam setenta e cinco almas e que, no meio de muita desolação, é mantido em impecável estado de conservação por um guarda para isso remunerado; o de Lisboa, onde, entre muita gente, prestigiada ou anónima, jaz o romancista Henry Fielding, o bem-humorado autor de “Tom Jones”; e o de Elvas, pequeníssimo talhão contendo, apenas, cinco sepulturas, datando de entre 1811 e 1863.

Contudo, os mais interessantes que conheço encontram-se, naturalmente, em solo britânico: são o Trafalgar Cemetery, em Gibraltar, e, sobretudo, o de St. Ives, na Cornualha, implantado numa colina verdejante, a beleza de cuja vista sobre o mar nos convida a demorarmo-nos.

No primeiro, uma placa presa ao gradeamento explica-nos: “Trafalgar Cemetery — Here Lie The Remains Of Some Who Died Of Wounds At Gibraltar After Nelson’s Great Victory In October, 1805, Those Killed During The Battle Having Been Buried At Sea. Other Graves Date From 1798.”

Falando de cruzes: Antoni Tàpies, o meu pintor preferido, em cujos quadros a cruz, sob diversas formas, está presente, diz, numa entrevista datada de 1987: “Uso símbolos espontânea e intuitivamente, o que me dá uma grande dose de prazer imediato. Isto parece terrivelmente simples e, hoje em dia, está talvez um pouco fora de moda falar da diversão como uma razão para produzir arte. Mas quando estou a trabalhar não analiso as razões porque escolho esta ou aquela forma, embora o pudesse fazer à posteriori. Durante muitos anos, trabalhei de um modo quase automático, inconsciente. Só quando os críticos começaram a questionar-me, como está a fazer agora, é que fiz um esforço para compreender o meu próprio trabalho em termos intelectuais, para entender por que é que tinha usado uma forma ou uma cor particulares num quadro. Quando ponho um símbolo num quadro, um x ou uma cruz ou uma espiral, sinto um certo tipo de prazer. Vejo que o símbolo dá ao quadro um poder particular, e não tento explicar por que é que isto acontece.”

Do mesmo modo, diria eu, não é preciso ser cristão ou fatalista para estabelecer uma empatia forte ou, até, muito forte com as cruzes dos cemitérios. Não é preciso pensar.

“Não pensar é o impulso mais íntimo do poeta”, afirmou o muito poeta António Maria Lisboa.

Creio que não escrever seria outro dos desejos desses homens e mulheres tão intimamente magoados pela realidade. Sendo-lhes ambas essas coisas impossíveis, escrever pouco, ou escrever com pouco, são, muitas vezes, as opções que lhes restam. Para proveito de todos nós.

O mesmo acontece com alguns dos actores que mais aprecio, praticantes do underacting, da economia expressiva: Robert Mitchum ou Lino Ventura, por exemplo, ou, no actual cinema norte-americano, Gene Hackman e Tommy Lee Jones.

Já quanto ao overacting a minha posição varia muito, consoante a sua qualidade e a adequação, ou não, ao propósito em causa. Peter O’Toole ou Peter Lorre, sempre. Marlon Brando ou Mário Viegas, às vezes. James Dean? Que irritação que aquilo tudo, invariavelmente, me causa!

Há uns anos, aprendi, com um especialista, a avaliar a lisura de uma tela com as costas da mão. Lisura desejável quando a textura não seja voluntária. Creio que, com a representação, é o mesmo: que seja lisa, a não ser que haja bons motivos para texturá-la.

7 Nov 2017

A Peregrinação – Um filme segundo João Botelho

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme é mauzinho. O João Botelho tinha pepitas de ouro entre as mãos, desbaratou-as em diálogos e flashbacks inventados, fantasiosos, redundantes, tanta vez metidos a martelo. Claro que cinema é ficção mas vejam como neste filme o mais puro, simples e excelente (tão ricamente complexo!) são as falas directas tiradas do esplendor do texto da Peregrinação. Depois, todas as figuras dos companheiros de Fernão Mendes, são, deliberadamente, feias, gente nossa, títeres fedorentos e andrajosos a entoar uma bem aproveitada música do Fausto Bordalo Dias.

O filme é pesado, não há alegria, uma gargalhada, o prazer de viver que existe mesmo entre ladrões e piratas, exceptuando-se uns copos de aguardente que bebem todos juntos logo a seguir a sobreviverem a um naufrágio. No entendimento de João Botelho, os piratas infelizes (era porém verdade o sofrimento a morte, quase dia a dia!) somos todos nós, antónios de Faria, miserável gente lusa de quinhentos, a roubar, a matar, a violar. Uma visão obtusa, radical, esquerdizante da nossa expansão, da nossa História. E, no entanto Fernão Mendes Pinto, no seu espantoso e admirável texto, leva-nos também pela mão a descobrir , a avançar pelo Extremo-Oriente, com o lufa-lufa dos mercadores e a azáfama das cidades, os quotidianos, a veniaga e o pícaro das situações. No que à China diz respeito, vejam-se as suas descrições de Pequim ou da Grande Muralha, quase tudo ausente no filme.

Aparece um português com uma prostituta chinesa, e Fernão Mendes Pinto a violar uma noiva chinesa, notáveis invenções de João Botelho, ou de quem o ajudou, com a originalidade de meter umas meninas chinesas, nada esbeltas mas bem despidas, no filme. Contudo, um momento brilhante desta Peregrinação cinematográfica são as palavras sábias de uma mulher chinesa endereçadas a Fernão Mendes Pinto. A recordar, a registar, a louvar. Mas repare-se, a chinesa violada é a mesma que aparece depois a dar uma lição de sabedoria ao Fernão Mendes Pinto. Isto faz algum sentido? Imagine-se a história ao contrário, uns chineses corsários de quinhentos, chegam a Setúbal. Em terra, o capitão do navio viola uma jovem e bonita noiva portuguesa. A rapariga aparece depois, meio apaixonada pelo corsário chinês, a dar uma lição de bons costumes e de cristianismo ao capitão chinês. Isto faz algum sentido? Será bom não nos cobrirmos de ridículo. O João Botelho alguma pensou que a sua Peregrinação em cinema pode passar na China, traduzida para chinês? Será vista com que olhos?

O prof. Jin Guoping andou vinte anos aflito no trabalho de tradução para chinês do texto original da Peregrinação. Teve mil dificuldades. Porquê? Também porque sabia que, sem um devido enquadramento da gesta lusitana na descoberta da Ásia, era assustadora a receptividade dos textos de Fernão Mendes Pinto no mundo chinês. Prevalecia a ignorância e a xenofobia chinesa em relação aos portugueses de quinhentos. Será bom recordar o provérbio chinês: “Muitas as ervas, cada uma com a sua sua gota de orvalho.” Ora as ervas também podem estar acastanhadas por pedaços de lama.

E que ideia estranha, essa de levar de barco os portugueses que assaltavam os túmulos dos imperadores China, na enseada de Nanquim, para as terras de Leshan, com o seu Buda gigante na província de Sichuan, a dois mil quilómetros de Nanquim, entre montanhas, bem no interior do Império do Meio… Nem rio, nem mar existiam para se chegar ao buda de Leshan.

Curioso também o intérprete de Fernão Mendes Pinto. Fala mandarim (no século XVI na China falavam-se sobretudo os muitos dialectos locais, só no início do século XX o mandarim é institucionalizado a nível império!) e chegado ao Japão o extraordinário intérprete já fala fluentemente japonês. Coisas que só acontecem no cinema feito em Portugal… E a pequena caravela quatrocentista, de vela latina, a aparecer como junco chimês e o junco chinês a aparecer como caravela de duas velas latinas…

E que final do filme tão eivado de sensaboria! Entendem-se as dificuldades da produção, mas concluir a gesta pela Ásia de um dos maiores e excelentes aventureiros de toda a nossa História com umas simples imagens da calmaria do mar, algures no Japão, de certeza em Sesimbra…

Mas vejam o filme, vale sempre a pena e, apesar de tudo, apesar de muitos tropeções, João Botelho consegue levar-nos até às paragens extremo-orientais.

TRAILER
7 Nov 2017

Um dia, dia um

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap] por aí adiante. Em novo crescendo. E assim segue depois a vida, a partir de uma fronteira tão nítida, passada lentamente para que todo o imenso poder da transposição se encarne, incorpore e entranhe, sentido real e irreversível. Um dia, que podia ser um daqueles dias de fim de ano, em que resolvo fervorosa, misticamente, supersticiosamente, ou enganando-me facilmente como a uma criança, focar nessa transição para o mesmo, o mesmo começar de novo, mas nunca o mesmo atrás, nessa correria sem retorno do tempo. Sem retorno de nada. Podia ser mas nunca é. Senão uma vaga euforia de luzes, em fogo de artifício, e que é isso mesmo. Ilusões de recomeçar. Nunca do zero, diga-se.

Num tabuleiro de jogo, num momento qualquer, acabar, recomeçar. Voltar a lançar os dados, voltar à casa da partida. E também aí nunca se muda estruturalmente, nada. Mas neste jogo, os dados estão lançados. Como disse Sartre. E já não há a casa da partida. Partiu.

Essa mudança, estudada e planeada aos mínimos detalhes, subliminar a ganhar espaço, talvez seja uma raridade que facilmente se deixa escapar desse cadinho de hipóteses, da vida. Uma raridade que, com sorte, acontece uma vez na vida. Como um grande amor. Alguém disse. Com muita sorte, duas. Às vezes, nenhuma ou muitas. Como a marcação de uma viagem destas que disse. Um dia, a grande mudança. Um dia, o dia um. Com sorte. Mapas. Planos de viagem e uma agenda ordenada e limpa. A casa. O relógio um pouco adiantado. A querer mergulhar em cada migalha de momento. Com uma respiração profunda que acalme a ansiedade toda, a insegurança toda, ou a pressa. É assim que deveria ser. Sem o atropelo de todos os tempos verbais, a alucinar em cada forma simples do presente do conjuntivo, ou do presente puro presente. O de indicativo. Talvez da consciência de ser. O presente, o dos verbos, do verbo, do olhar firme e do tacto para dar o tempo até ao final da respiração. Não antes. Nem depois. Aí, às vezes, também já é tarde demais. Esta precisão de relógio afinado pelas mais finas tecnologias, é tão fácil de falhar. A pontualidade da vida, talvez. Ou a pontuação certa de uma frase. Um olhar tubular sobre o momento, o fenómeno, o acontecimento.

Ou, ainda dos verbos, uma ânsia do infinitivo.

Depois há uma questão que paira um pouco turva acima e a sombrear toda a resolução. Esta preocupação de monitorizar a vida, calendarizar os grandes fenómenos que se apresentam, delimitar recordações e sistemas de ambições. Controlar algo de definitivamente intratável neste contexto, inclui quase tudo o que é sentir. Mas há um sentido possível a imbuir cada face deste prisma, uma localização confortável, um ponto de vista sobre esse patamar ou balaustrada em que debruçamos cada aspecto, cada parte, cada uma das ramificações. Querer dominar, só o dominável. De preferência e só da pele para dentro. E acrescentar encantamento formal ao possível. Fugir de roupas em série. Somente por medida e emendadas por mãos profissionais. A alta costura do sentir com um sentido de continuidade. Afinado. Como em escultura no mais puro e cristalino mármore de Carrara.

Portanto o dia primeiro de um reencontro. O maior de todos – que me desculpe algum amor de imensidão. A vida conduz. Sub-repticiamente mascarada de decisões sobre decisões. Mas algo se afasta, quase perde, perde, até que um dia, com muito tempo de intervalo entre uma véspera qualquer, e um dia, se designa e sente a aproximação do dia. Esse outro dia. Desse reencontro enorme e o maior de todos porque, disse-se, daqueles que ocorrem uma vez na vida. Com sorte. Com muita sorte: duas. Como um grande amor. Como nascer. Morrer.

De passagem, penso que ali estará o meu monstro com toda a sua pelagem e ferocidade e doçura e timidez. Pontual. Não pode faltar, nem este grande encontro seria o mesmo sem ele. Que enorme parte faltaria, como a figura da sombra presente.

Às vezes, pensar que se chegou, como uma multidão que fossemos, e por inúmeros caminhos que simultaneamente convergiram vindos das suas diferentes viagens de caminhos, a um mesmo lugar de paragem e de balanço completo. Um barco que amarou, baloiçou, encalhou. Em terra firme, no entanto. Ou atracou serenamente e sem tempo determinado num porto qualquer. A aguardar caminho. E que daí desse porto, como em cidade de rio, divergem como é da natureza múltipla dos caminhos, diferentes resoluções. E sabendo que o momento é de uma luz desigual e rara, e que os caminhos foram difíceis, e foram o que foram, quase todos eles. E que os viajantes, unos afinal, se encontram ali feridos, alguns de morte, e que ali se encontram todos porque o encontro tinha que ser entre todos. Não é necessariamente mau, é difícil. Mas é talvez um instante único. Talvez aconteça uma vez na vida, se acontecer. Não mais. Como um grande amor. Talvez, com sorte, aconteça uma vez na vida. Só porque tem que ser.

Às vezes avanço por esses corredores e é uma espécie estranha de alegria que me conduz como se de fora. E é nessa alegria que reconheço o meu monstro hirsuto, e nela que descanso a certeza pacífica de que é animal de mim para sempre. Animal feroz e perigoso que me acompanha e não posso abandonar por nenhum dos dois. E nesses dias em que o vejo seguro em mim, ali, é afinal o limite do corredor que me pára e estanca o futuro. E mesmo assim, como se para lá do espelho que tudo duplica mesmo em espaço e em luz, avanço para uma outra terceira dimensão e dela nasce a outra que sempre alimenta a respiração diária deste mesmo ar, deste mesmo mundo e desta mesma magia. Pensar o outro, naquela dimensão de si que nasce em nós e é dar-lhe uma vida. Não sei já nunca os limites da virtualidade. Pensar o outro em mim, o outro de mim. Em mim como outra. O olhar dos outros, o nosso olhar sobre o imaginado olhar dos outros, o nosso olhar ao espelho esquecendo os outros e tudo da mesma matéria fátua e de contornos difusos demais para ser fronteira.

Eu tacteio pé ante pé a vida. Que mais posso fazer nesta absurda sensação de que todo o ínfimo sopro irreprimido que se produz mesmo só no esforço de respiração necessário, perturba na pequenez devida, às vezes com escala inesperada, um algures momento de um qualquer lugar de uma qualquer criatura nesse vasto cadinho de redes interligadas em inadvertidas malhas. Qualquer marulhar de vida, por indecisa que seja, dá encontrões de indefinida tonalidade nas gotas ao lado. Em nós. Mesmo esquecendo os pesos pesados que indistintamente calcam por querer.

Depois do dia destes dias, ainda a minha alma anda por aí a silenciar luzes e estrelas várias que sente queriam vidrar a noite antes do tempo. Anda é dia e já a minha alma vagueia sem eira no entretanto indefinido do a vir. Ainda não chegou a treva que verá sentido nos astros luminosos do céu e já anseia neles serenar. Sorrisos remotos e ténues é o que há na noite, mas nela invisíveis. Eu. Talvez reconhecê-los e entre eles um será meu. Neste intervalo. Tendo os dias atingido forte, o que resta da noite e de algum sonho oriundo dos restos do resto? Alguma coisa de mim, alguém. Tudo, contudo. Os dias atingiram a linha traçada a vermelho e finalmente cumpriram. Os dias desta tempestade subterrânea de anos a germinar. De anos ou décadas. Germinou, floriu. Apanhou-me e atingiu. O fim. Agora resta o início. Nada como dantes, só eu igual. Mas sem pais. Sem chão em torno, como pequena ilha rochosa.

Medo grande, de sempre, instalou-se. Neste ano. Bastava isso, mas o mais se conjugou num verbo destruir em todos os tempos. Talvez em todos os tempos. Um hiato. Ou apenas uma mudança do tempo. O que fica, do que parte, o que parte e que parte de mim partiu, partiu para a frente da que parou. Ou está a partir. Mas ainda a parte do meio a alongar-se. Ás vezes, os silêncios desencontram-se no tempo. As pessoas, no espaço. E a vida, é. Nos dois sentidos, como um caminho. E em nós, o que nos desencontra do que somos, quando e onde? Remadores, de costas para o destino.

Por isso, um dia. Um dia destes. Pressinto-lhe a chegada, mas nem é um pressentimento. É mais uma decisão imprecisa. Longamente sentida a devorar caminho desde uma profundeza de difícil acesso. A criar uma precisão de difícil agendamento no calendário de um tempo tão difícil. A chegar. Um dia destes e quando chegar vou saber que chegou. E um dia difícil como os outros, mas principesco de pequeno almoço nocturno a esperar a madrugada. De ovos mexidos e fruta fresca e qualquer coisa de um colorido diferente para temperar a ainda noite. E pão quente. E só por isso será tudo diferente. Magia boa, ou pintura de guerra. A desenhar-se.

E o dia, esse dia será um dia um. Como os outros, mas em tudo diferente. Antes que chegue um dia menos um. Depois de um dia zero. E até ao crescendo menos infinito, da infinita inexistência do esquecimento. Que também virá, que fazer? Mas antes, antes virá o dia quase marcado na fronteira de um agora. E esse dia, dia um.

6 Nov 2017

A culpa é do Pitágoras

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando o José Rodrigues dos Santos publica um livro proliferam no FB os posts dos que “não leram e não gostaram”, dos desiludidos, e os posts com citações que se prestam a ser escarnecidos. Uma minoria revela lê-los com satisfação do conteúdo.

Contudo, os romances vendem cem mil exemplares – facto que leva o seu editor a estampar na última contracapa, a atrevida frase que se realça na foto – apesar de JRS, nas redes sociais, ser reivindicado por uma partícula de gente.

Infira-se então haver dimensões paralelas à literatura que contagiam a sua recepção.

Talvez o ar de Peter Pan que exibe o JRS – nunca envelhecendo a olhos vistos –, e a sua voz jovial de adolescente, ajudem: há lá avó que não quisesse aquele neto para si, um menino inexpugnável à morte. Traquinas para vestir fatos de astronauta e colocar chapéus de texano e dizer piadas no fecho do telejornal que vão directas ao coração do seu público, mas que como um verdadeiro queque sabe o seu lugar (- JRS é hábil nessa construção do afecto).

Acrescente-se o que Gadamer referiu quanto ao “volume” da linguagem, por oposição ao seu conteúdo proposicional ou apofântico, ou seja, na televisão, enquanto realidade física, a linguagem falada não toca nem afecta apenas o nosso sentido acústico mas também o nosso corpo na sua totalidade. Na televisão, a linguagem envolve-nos de um modo menos invasivo, é como um ligeiro toque do som na nossa pele. Daí que a televisão recupere uma “magia” atribuível à cultura oral, uma certa corrente de presença, sendo o ecrã uma fonte de mediação entre o nosso desejo de epifanias e o cepticismo que nos rodeia.

Há uma última dimensão, mais cínica. Esbocemo-la assim: juro que se houver um editor que coloque vinte mil livros de um romance meu nas livrarias com uma tarjeta que diga “3ª edição, mais de cinquenta mil livros vendidos” (e é irrelevante se é verdade ou não: o truque funciona), em mês e meio imediato esgotará os vinte mil porque é efeito dos números incitar à imitação e ninguém quererá subtrair-se à oportunidade de pertencer ao círculo que encontrou a panaceia para o seu vazio. Melhor ainda e mais rápido, se, sob pseudónimo, eu fizer publicar um artigo soez a atacar-me (método que usou o Camilo) ou se tiver muitos detractores porque um reparador sentido de justiça é acicate.

Está visto, eu mesmo devia promover os meus livros mas só tenho tido editores que confiam no poder da literatura – ingénuos! A literatura não vende. Digam-no os editores da Maria Velho da Costa, dos últimos Lobo Antunes, dos primeiros onze livros de José Saramago. O que de facto promove o livro são “dimensões ocultas” que despromovem a literatura, e quem tem culpa é o Pitágoras.

Achado um culpado passemos ao segundo aspecto

Vivo em Moçambique onde embati na mentalidade corporativa comum aos países do socialismo revolucionário; a qual se manifesta em aspectos medonhos.

Por exemplo, o mérito e a qualidade de algo nunca são mencionados como vectores de critério. O que importa é o colectivo, sobrepõe-se, e por isso nenhum indivíduo que faça algo de meritório pode esperar um elogio, um reconhecimento. A mediocridade não será igualmente objecto de alusão; porém, o caviloso é que os dois tipos de silêncio valham o mesmo. Este comportamento visa um objectivo claro: nivelar tudo. Não importa se é por baixo.

Da mesma estratégia faz uso a corrupção: se esta se estender a todos e não houver sombra de inocente quem possui legitimidade para apontar o dedo ao comportamento de um terceiro?

O sistema não autoriza que o mérito seja mencionado porque há que evidenciar que aos olhos do poder todos são iguais – ou seja, dispensáveis.         

O que gera uma perversa rede de dependências e esclarece porque há uns anos um inquérito de rádio junto a estudantes universitários sobre se consideravam mais importante acabar o curso com mérito ou ter o cartão do partido inclinava-se obscenamente para a segunda hipótese.

Ora, é extraordinário verificar que “a lógica de reconhecimento” que se instalou na sociedade de mercado dos países democráticos tem um cariz semelhante. Os números comandam e aplainam tudo, a mixórdia e os bens culturais de valor equivalem-se nos azimutes do menor quociente cultural que pauta a cultura de massas. Estranharmos que Erza Pound venda por ano em todo o território dos USA quatrocentos exemplares enquanto José Rodrigues dos Santos no nicho português vende cem mil exemplares, é inútil, pois a comunicação social colabora com esta distorção.

O mercado capitalista conseguiu transformar em fascínio e realizar com um fulgor único o que os sistemas socialistas tentaram mercê de tanto custo e sacrifício de gerações: decapitar o mérito, o trabalho intelectual, moldar na maioria a ideia de que todos os espíritos e bens se equivalem. Só o anonimato da expressão numérica conta. Que importa que o romance de JRS seja mau (caso seja, nunca li)? Não é nem o nome dele nem a literatura que estão em jogo nesta aposta.

Pelo contrário, na literatura «a forma é a satisfação de um conteúdo» (José Forjaz) que exprime precisamente aquilo que não se pode exprimir de outro modo. Entendem?

Quando abro um canal brasileiro e vejo que depois do samba, da bossa nova, duma plêiade de compositores extraordinários, o que se oferece agora como espectáculo é a música brega ficam evidentes os riscos deste triunfo do Pitágoras (brinco), do fascínio dos números, e desta paisagem de um regime cultural a “um só sabor”, como a propagada pelas indústrias culturais – as quais já vendem por música meros padrões sonoros.

É necessário uma nova espécie de crítica, uma espécie de urbanismo caosmótico que – dilucidando as linhas de nível de cada paisagem cultural e, reconhecendo-lhe as intersecções e os contágios – desenhe uma morfologia para os valores na pauta heteróclita das sociedades democráticas, sob risco de tudo sucumbir ao mais infame relativismo.

Vejamos como o sistema de ensino tem contribuído para esta hecatombe.

3 Nov 2017

Xian Xing Hai membro do PCC

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m 1938 Xian Xing Hai encontrava-se já casado com Qian Yun Ling quando chegou a Yanan, na província de Shaanxi, onde terminara a Longa Marcha e o Partido Comunista fizera a sua base. Vinha nomeado director do Departamento Musical do Instituto das Artes e aí leccionou composição e direcção de orquestra. “Desempenhava também funções de orientador de ensaios em muitas actuações musicais importantes. Em Maio do ano seguinte, foi encarregado do Departamento de Música e convidado pela Universidade Feminina de Yanan como professor a tempo parcial”, como refere Wang Ci Zhao.

Xian Xing Hai viveu com a sua esposa durante três anos e tiveram apenas uma filha, Xian Ni Na (冼妮娜) nascida a 15 de Agosto de 1939, ano em que se inscreveu no Partido Comunista Chinês, começando “uma nova vida artística. O ambiente de Yanan oferecia melhores condições para a criação. Nesse período, além de compor canções, começou a criar obras musicais de grande dimensão, concluindo grandes ciclos de obras para coro”, segundo Wang Ci Zhao, que refere nessa terceira etapa “As criações realizadas durante a estadia em Yanan, de 1939 a 1940, são sobretudo óperas e grandes ciclos de obras para coro. O estilo tem características bem marcadas que resultam da interacção entre as culturas do Oriente e do Ocidente. O seu conteúdo reflecte a firme vontade do povo chinês em derrotar os invasores japoneses e o seu inflexível espírito de luta”.

Para as pessoas tomarem consciência da necessidade de se unirem as diferentes facções chinesas contra o invasor japonês, o famoso fotógrafo Wu Yin Han fez o documentário Yanan Yu BaLuJun (Yanan e a Força Armada Número Oito) e o realizador Yuan Mu Zhi pediu a Xian Xing Hai para compor a música. Como só na URSS existia equipamento para realizar a parte sonora do filme, para aí seguiu uma equipa onde se encontrava Yuan Mu Zhi e Xian Xing Hai. Assim em Maio de 1940 Xian Xing Hai é enviado pelo PCC para a URSS, tendo tomado a última refeição em casa de Mao Zedong.

Decorria a II Guerra Mundial e pouco tempo depois da chegada, a 22 Junho de 1941 a URSS foi invadida pela Alemanha nazi e por isso, tiveram que parar a produção do documentário. Nesse ano faleceu Huang Su Ying, mãe de Xian Xing Hai. Este em Moscovo terminou os arranjos da sua Sinfonia nº 1 Emancipação Nacional, ou Libertação Popular, começada em Xangai no Verão de 1935 e cujo esboço inicial da partitura estava concluído no Verão de 1937. No frontispício escreveu: <Esta obra é dedicada ao grande Partido Comunista Chinês, aos membros do Comité Central do Partido e ao Honorável Líder, camarada Mao Zedong>. Também aí terminou a Suite nº 1 para orquestra, ‘Retaguarda’.

Vida dura no Cazaquistão

Xian Xing Hai e os restantes do grupo, sem nada para fazer em Moscovo, resolveram regressar à China e para tal pretenderam entrar por Xinjiang. Mas Sheng Shicai (1897-1970), que governou essa província entre 1937 a 1944, não permitiu que por aí passassem. Assim, em Setembro de 1941 tiveram que mudar de trajecto e pela República Popular da Mongólia tentaram chegar à China. Também por aí não conseguiram atravessar a fronteira, levando-os a seguir para a capital. Em Ulan-Bator arranjou em 1942 colocação “temporariamente no Clube dos Operários Chineses, onde deu aulas de Teoria Musical, História da Música e Regência de Coro aos chineses ultramarinos amadores de música”, segundo Wang Ci Zhao, que adita, “Além de participar nas actuações musicais do Teatro Central de Wan Bator, dedicava-se entusiasticamente à criação musical”.

A 9 de Dezembro de 1942 chegou ao Cazaquistão (na altura integrado na URSS) usando o nome Huang Xun para ter permissão de refugiado político e aí viver. Em Alma-Ata conseguiu sobreviver, contando com a ajuda de alguns músicos da capital e onde compôs uma Sinfonia dedicada ao Exército Vermelho da U.R.S.S. entre muitas outras obras musicais. A 30 de Janeiro de 1944 foi para a cidade Kustanay, no centro Norte do Cazaquistão, levando uma vida muito mais difícil que em Alma-Ata e trabalhando sem parar, compôs entre outras obras, a “Colecção de Canções Cazaquistanesas”. Em Dezembro de 1944 começou a ficar doente e foi internado no Hospital com uma pneumonia. Nesse período de tratamento, entre 27 de Janeiro e 15 de Fevereiro de 1945, compôs a obra para orquestra Rapsódia da China, KuangXiangQu. Mas os tratamentos não estavam a funcionar e o seu estado de saúde piorava dia para dia. Estava a II Guerra a terminar quando o casal Li Li San o encontrou muito mal de saúde e o enviou para o Hospital do Kremlin em Moscovo, onde permaneceu até morrer.

Após a morte

Depois de uma vida atribulada, rodeada de lutas e privações de toda a ordem, mas de uma intensa actividade criadora, morreu em Moscovo a 30 de Outubro de 1945, com apenas 41 anos de idade. Apesar disso legou aos vindouros uma vasta e valiosa obra de que a música chinesa se pode orgulhar. Das quatro fases de criação, as de maior importância são as compreendidas entre 1935 e 1940. A sua obra abriu novos caminhos e influenciou toda a música contemporânea chinesa. Segundo Veiga Jardim, “Na sua maioria, as obras de Xian Xinghai, nas quais se incluem um concerto e uma sonata para violino, duas sinfonias, duas cantatas, uma ópera e um grande número de canções para coro, são o resultado da combinação da linguagem musical chinesa com a ocidental, com o propósito de reafirmação de um estatuto ideológico definido. Imitada por muitos outros após a sua morte, a sua música tem, no entanto, uma espontaneidade e altitude que a distinguem de uma mera ‘música de regime’ ou ‘música com fins políticos’. As suas obras têm nas autênticas raízes populares folclóricas a razão primeira da sua existência”.

Devido ao casal Li Li San, Xian Xing Hai foi sepultado no cemitério público próximo de Moscovo, encontrando-se na lápide o nome Huang Xun – compositor chinês, membro do Partido Comunista. Já Wang Ci Zhao refere, “As cinzas foram guardadas numa velha igreja dos arredores de Moscovo e só viriam a ser transferidas para a China em 25 de Janeiro de 1983, sendo sepultadas oficialmente no Jardim Xing Hai de Lu Hu, nos arredores de Cantão, em 3 de Dezembro de 1985.

Devido aos dois anos e meio que Xian Xing Hai estivera refugiado no Cazaquistão, em 1998 o governo desse país mandou construir em Alma-Ata um memorial monumento ao compositor, assim como deu o seu nome a uma rua, cerimónias que contaram com a presença do Presidente da R. P. da China, Jiang Zemin e da filha do compositor, Xian Ni Na.

Em 2010 no Cinema Alegria em Macau foi estreado o filme Xing Hai, Estrela do Oceano, tendo como realizadores Xiao Gui Yun e Li Qian Kuan, então director da Fundação do Cinema Chinês. Filme que fala de Xian Xing Hai, nascido em Macau e em cujo quotidiano lacustre viveu a infância nos inícios do século XX. Aí foi realizado parte do filme, que mostra a pobreza da cidade onde muitos chineses viviam e refere ter sido a morte do pai, muito da responsabilidade das autoridades portuguesas.

3 Nov 2017

É isto um festival

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]rande parte da vida de um escritor é feita de outras coisas que não a escrita. Trabalhar é uma delas, e é uma realidade com a qual os escritores têm de conviver a maior parte da vida, porque aquilo que recebem pela sua actividade literária é, na maior parte das vezes, insuficiente até para levar a mais frugal das vidas em regime de campismo selvagem.

Outra das coisas que de certo modo constituem a carcaça daquilo que pode ser chamado “a carreira do escritor” são os festivais literários. Estes multiplicaram-se consideravelmente nos últimos dez anos. Neste momento, há dezenas de festivais por ano, muitos deles organizados sob a alçada da autarquia da cidade em que se inserem, o que acaba por revelar – perspectiva optimista – o reconhecimento por parte da classe dirigente do interesse crescente da população pelo mundo da cultura, em geral, e para a constelação livro, em particular. Ou – perspectiva pessimista – tudo não passa de uma moda contagiosa que a qualquer momento se vê ser substituída por feiras do chocolate, feiras medievais ou encontros de medicinas alternativas. O tempo o dirá.

Um festival literário é uma experiência diferente para cada escritor convidado. Uns, recusam sempre (o Herberto, por exemplo, termina uma carta de resposta a um convite escrevendo “a minha ambição é não aparecer”). Outros, aceitam de bom grado todos os convites porque estes se transformam numa oportunidade de conviver com os seus públicos, de ver ou rever amigos escritores, ou simplesmente de comer e beber à pala durante o decurso do festival. Para muitos, as razões sobrepõem-se num cocktail mais ou menos homogéneo de motivações equitativamente distribuídas.

Há um aspecto a ter também em conta: o escritor faz também parte de um determinado público de leitura e de leitores, embora numa categoria de “leitor especializado”. Ele próprio pode ter, em condições privilegiadas, a oportunidade de conhecer os escritores que admira. Lembro-me de quando conheci o Ruy Castro em Óbidos, há cerca de dois anos (o grande biógrafo em língua portuguesa, que escreveu uma biografia que muito me impressionou, a do Garrincha). E lembro-me de ter ficado com uma cara semelhante àquela que um adolescente dos nineties faria se estivesse frente a frente com o Kurt Cobain. E de ter sentido que disse tontices ainda maiores do que é costume. Not my finnest moment. Adiante.

Por vezes, quando as coisas correm menos bem, há muito pouco público e este dá a sensação de ter vindo ao engano. O moderador fez o trabalho de casa com demasiado afinco e vai desfiando penosamente e sem critério todos os acontecimentos de vida de todos os convidados. No tempo que resta para o debate propriamente dito, os convidados descobrem que se detestam e passam os quinze minutos sobrantes a insultarem-se uns aos outros, a despeito das tentativas canhotas de o moderador pôr alguma água na fervura. No final, ninguém esconde o alívio de ver aquele espectáculo chegar ao fim.

Às três da manhã, no hall do hotel, os mesmos escritores que tinham descoberto serem inimigos de infância abraçam-se e brindam à amizade e ao futuro.

31 Out 2017

A Sombra de Teseu [Terceiro Estásimo]

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]IPÓLITO

Muito obrigado, Teseu! Decidiste justamente.

TESEU

Continuo a acreditar em Fedra, Hipólito! Mas estás certo quando referes os diferentes comprimentos do fio de espada. Aguardemos que Fedra chegue.

(algum silêncio e Fedra entra em cena)

FEDRA

Que desejas de mim, meu marido? (vê Hipólito e fica surpresa e contrariada) Que faz ele aqui, meu amor?

TESEU

Fedra, Hipólito lembrou-me os ensinamentos que eu mesmo lhe dei: podemos ajuizar erradamente, mas não podemos ajuizar negligentemente. Por isso, quero exigir de ambos o mesmo comprimento de espada: factos e palavras. Já sei da tua parte do relato, quero agora escutar a de Hipólito e que estejas presente, para contrariar com factos, se possível, ou argumentando acerca da mentira das palavras dele.

FEDRA

Minha parte? Agora aquilo que digo é a minha parte e não a verdade? Desde quando a minha palavra ficou no mesmo chão de um cão sem dono?

TESEU

Por muito que me custe, Fedra, este é o preceito, este é o modo justo de proceder em relação a algo tão grave.

 FEDRA (furiosa)

Não me vou prestar a isto! E se queres saber, Teseu, não me importa se acreditas ou não em mim. Se preferes acreditar nele, acredita, e toma as providências necessárias a essa decisão, mas eu não vou ficar aqui, vou embora. (e sai)

HIPÓLITO

Não achas este comportamento estranho, Teseu?

TESEU

Deixemo-nos de hermenêuticas estéreis. Já escutei a parte dela, conta-me então agora a tua!

HIPÓLITO

Como tentei dizer-te antes, ainda nem o sol deu uma volta completa à Terra e Fedra estava no pequeno jardim do palácio tentando seduzir-me. Acabou mesmo por me dar um beijo na boca. Empurrei-a e fugi. Envergonhado com tudo.

TESEU

Envergonhado com o quê?

HIPÓLITO

Envergonhado com isso ter acontecido. Envergonhado por tudo. Por ti, por mim, por ela, por esta casa…

TESEU

Se o que dizes é verdade, então porque razão Fedra inventaria outra história, em que ela mesma sai prejudicada?

HIPÓLITO

Não vês, Teseu, que ainda que ela saia prejudicada, eu fico muito pior, nessa história que ela conta? Ela pode até acabar com o vosso casamento, mas acaba também com a minha vida.

TESEU

E por que razão ela quereria acabar com a tua vida, se tivesse acontecido aquilo que me contas? Por tê-la empurrado? Por tê-la rejeitado?

HIPÓLITO

Que sei eu do que pensa uma mulher, Teseu?

TESEU

Mas para quem não sabe, adiantas muitas conjecturas…

HIPÓLITO

Não são conjecturas, mas pura dedução.

TESEU

Pura dedução, disseste? Pura dedução? Pura dedução, Hipólito?

(desembainha a espada e rasga os intestinos de Hipólito; entra o coro de mulheres)

QUARTO ESTÁSIMO

CORO DE MULHERES

Pobre desgraçado, Hipólito!

Julgava estar protegido

Pela devoção a Ártemis,

Mas ninguém tem mais artimanhas

Do que a deusa Afrodite.

Contra ela nenhuma razão

Um dia irá ter efeito.

A intempérie duma paixão

Arrasará até amores;

De qualquer pai pelos seus filhos

Ou dum marido pela mulher.

Que mortal pode se defender

Deste tão poderoso ataque,

Se não arrancar os seus olhos?

É sempre por uma imagem

Que a história começa.

Também se conta que escutar

Pode ser mal de Afrodite.

Pois há palavras que não são

Nem neste mundo nem em outro,

Apenas mentira, ilusão.

Com uma palavra se morre,

 Se Afrodite assim quiser.

CORIFEU

Como vós estais enganadas!

Fedra, a única culpada,

É bem pior do q’ Afrodite.

Digo: foi ela e só ela

Que destruiu a sua casa!

A deusa acendeu-lhe o corpo,

Mas não acende a todos nós?

E destes todos, quantos cedem

À tentação de continuar

Até que não haja mais volta?

Nenhum deus tem esse poder

De sem nossa ajuda nos matar.

31 Out 2017

Xian Xing Hai ao serviço da Revolução

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] génio de Xian Xing Hai (冼星海), como músico e compositor, contrasta com as grandes privações e dificuldades materiais por que passou durante toda a vida e a sua luta quotidiana, levada pela vontade de aprender e de aperfeiçoamento, transmitiu-a pela acção política, aliando-a com a sua obra artística. No artigo da semana passada, escrevemos sobre a sua vida, desde 1905, quando nasceu em Macau, onde passou os primeiros seis anos, até regressar com trinta anos a Xangai, após os estudos feitos em Singapura, Cantão e Pequim e entre 1929 e 1935 em Paris. As criações durante a estadia em França marcaram a primeira das suas quatro fases musicais e “inclinam-se para o recital, o canto e a música de câmara”, como refere Wang Ci Zhao no artigo ‘A Vida e a Obra do Compositor Xian Xing Hai’ (R.C. n.º 26, II Série), de onde retiramos as citações.

Já em Xangai, no Verão de 1935 começou a trabalhar no manuscrito que viria a ser a sua primeira sinfonia, terminando dois anos depois o esboço inicial da partitura da obra ‘Emancipação Nacional’, ou ‘Libertação do Povo’.

Em 1936, “com o apoio de amigos conseguiu colocação na Companhia de Discos Bai Dai e na Companhia Cinematográfica Xin Hua, como compositor”, segundo Wang Ci Zhao, que adita, “Quando começou a guerra de resistência contra o Japão, em 1937, participou na ‘Associação de Canto para a Salvação Nacional’ de Xangai, como funcionário dos Assuntos Gerais. Deixou Xangai com o ‘II Grupo Ambulante de Teatro no Tempo da Guerra’ e passou por Suzhou, Nanjing, Kaifeng e Luoyang, para chegar em Outubro a Wuhan, centro da resistência”.

Veiga Jardim no artigo ‘Três Compositores de Macau’, na Revista Macau de Fevereiro 1994, refere, “Nessa época turbulenta, a sua arma foi a música, através da qual retratava os anseios de liberdade da nação chinesa. Compõe neste período a obra que o tornaria imortal: a Cantata do Rio Amarelo, mais tarde transformada, por membros da Sociedade Filarmónica Central da China, no Concerto para piano do mesmo nome. Após um breve período a trabalhar em estúdios de cinema, em 1938 é apontado director da Academia de Música da cidade de Lu Hsun (Yanan).” Já Wang Ci Zhao diz, “Em Abril de 1938, ingressou na III Repartição do Departamento de Política do Conselho Militar do Governo Nacionalista, dirigida por Guo Moruo [que em conjunto com Lu Xun, pseudónimo literário de Zhou Shuren, entre 1927 e 1928 tinham desencadeado o movimento literário revolucionário] e assumiu, juntamente com Zhang Chu, as responsabilidades do Trabalho Musical da Guerra de Resistência, ao mesmo tempo que se dedica às actividades de criação musical”. Nesta segunda fase, “As criações realizadas durante a estadia em Xangai e Wuhan, de 1935 a 1938, são principalmente adaptações musicais para o cinema progressista e canções de salvação nacional. O estilo é claramente influenciado pela nova música da China, cujo autor mais representativo é Nie Er. O seu conteúdo reflecte o ardor patriótico e as exigências anti-monárquicas e anti-feudalistas”, Wang Ci Zhao.

Em Wuhan, conheceu Qian Yun Ling (钱韵玲), filha de Qian Yi Shi (um conhecido membro do Partido Comunista) e a 20 Julho de 1938 celebraram o noivado, tendo Zhou Enlai patrocinado a viagem de lua-de-mel. Assim partiram de Wuhan para Xian e encontrava-se já casado quando chegou a Yanan.

“Em Novembro de 1938 aceitou o convite do recém-criado Instituto de Artes de Lu Xun, de Yanan, para onde se deslocou com a mulher para desempenhar as funções de professor do Departamento de Música, assumindo a responsabilidade pedagógica dos cursos principais, nas áreas de Teoria da Composição, História da Música e Direcção de Orquestra”, segundo Wang Ci Zhao.

A situação na China

Desde a morte de Sun Yat-Sen em 1925, na China vivia-se tempos difíceis, ocorrendo a luta interna no Guomintang, liderado por Chiang Kai-shek (1887-1975), que em 1927 expulsou os comunistas do Partido Nacionalista.

A 18 de Setembro de 1931 o exército japonês invadiu Shenyang, ocupando em quatro meses todo o Nordeste chinês (Liaoning, Jilin e Heilongjiang), cometendo graves atrocidades contra o povo chinês. Depois criaram o Estado do Manchukuo (1932-1945), com a capital em Changchun, na província de Jilin e colocaram o antigo imperador manchu Pu Yi, destronado em 1912 pela República de Sun Yat-sen, de novo como imperador, agora da Manchúria.

Wang Ming (1905-1974), chefe do Partido Comunista entre 1931 a 1935, era um dirigente pró-soviético e encontrava-se quase sempre em Moscovo. Por isso, em Janeiro de 1935 Mao Zedong ficou como líder do Partido Comunista e do Exército Vermelho. Tal deveu-se aos muitos erros estratégicos de comando em Outubro de 1934, quando o Exército Vermelho teve de retirar-se das províncias de Fujian e Jiangxi, dando-se início à Longa Marcha, que ocorreu até 1936 e durante a qual os comunistas, liderados por Mao Zedong, conseguiram evitar ser aniquilados pelas tropas de Chiang Kai-shek. Dos iniciais 130 mil participantes sobreviveram 30 mil, com quem Mao montou o seu exército.

Esperava-se que a Guerra Civil travada na China entre o Partido Nacionalista (GMT) e o Comunista (PCC) fosse suspensa para combater os invasores japoneses, mas tal não aconteceu. Os estudantes, descontentes com a política do Guomintang de não resistência à ocupação japonesa e virado apenas para o combate contra o PCC, a 9 de Dezembro de 1935 saíram em protesto à rua em Beiping (Beijing). Conhecido por Movimento de 9 de Dezembro de 1935, este movimento estudantil, que se estendeu a outras cidades, procurou colocar o foco na resistência à invasão japonesa. Também a tentativa do Partido Comunista, em conjunto com muitos dos líderes do GMT, para terminar com a guerra civil e combaterem juntos os japoneses, foi minada por Chiang Kai-shek. Este, tirando partido dessa aliança, tentou derrotar as forças comunistas em 31 de Outubro de 1936, quando deu ordens aos seus exércitos para atacarem o dividido Exército Vermelho, que em conjunto com as tropas do GMT combatiam os japoneses. Valeu ao Exército Vermelho os generais Zhang Xueliang e Yang Hucheng, à frente do exército nacionalista da região centro, não acatarem as ordens e assim conseguiu sair incólume do episódio conhecido por Incidente de Xian. Em 12 de Dezembro 1936, com a prisão de Chiang Kai-shek (libertado uma semana depois) e outros 12 comandantes, terminou a guerra civil, passando-se então a combater os japoneses. Mas era já demasiado tarde!

A 7 de Julho de 1937 os japoneses invadiram Beijing (Pequim) e depois atacaram o resto do país. Em 12 de Novembro de 1937 conquistaram Shanghai (Xangai), tendo morrido 60 mil pessoas e daí dirigiram-se para a capital da China, Nanjing, onde o Guomintang estabelecera a sua capital em 1928. Após um cerco, a 13 de Dezembro a cidade cedeu e deu-se o massacre de Nanjing.

Os japoneses ocuparam grande parte da China até ao fim da II Guerra Mundial, quando o Japão se rendeu incondicionalmente em 1945, ano em que faleceu Xian Xing Hai.

“Em Novembro de 1938 aceitou o convite do recém-criado Instituto de Artes de Lu Xun, de Yanan, para onde se deslocou com a mulher para desempenhar as funções de professor do Departamento de Música, assumindo a responsabilidade pedagógica dos cursos principais, nas áreas de Teoria da Composição, História da Música e Direcção de Orquestra.”

Wang Ci Zhao

27 Out 2017

Ideias de ver a deus

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]deus é uma palavra tão em desuso.

Fico aqui a pensar, agora que me sento finalmente aqui, junto às palavras. Elas a brincar em redor, umas, a seduzir-me, outras, a fugir, uma boa parte delas. E submersas, aquelas outras. Como a parte maior, mergulhada fundo e a desconhecer. Dos icebergues. A não deixar, como estes, começar a perder a sua natureza e mudar toda a outra. Degelar por toda a terra e mar a subir. E que estas palavras eram para ser um pouco outras, logo no início. Tantas vezes acontece. Como as cerejas que sempre trazem outras alegremente agarradas. A fazer força para acompanhar as que partem levadas por mão amante, ou para ficar como se todas ou nenhuma. Fossem sempre as palavras tão belas e saborosas como cerejas. Quando são boas. E quando são boas, são – santo deus – tão boas. Sentei-me aqui a pensar em deus. Em Deus, talvez. A pensar como e quando penso em deus, porque será que penso. Andei a pensar nisto ao longo do dia. Como penso ao longo de outros dias. Aos pedaços, entremeando tantos outros pensamentos e tantas outras coisas que coladas fizeram o dia. E sempre a pensar e sem conseguir distingui-lo com a maiúscula inicial. E sempre sem ter a certeza de que o pensava em minúsculas.

E, repentinamente, salta como uma suave intrusa esta outra palavra cuja ligação à ideia que trazia – eu – me distrai – ela – no pensar que talvez dizer adeus seja, por defeito, dizer até sempre. Ligando essa ilusão de eternidade com que a ideia de deus anda a par – e com que se beija à despedida aqueles de quem gostamos muito e para os quais queremos existir sempre e para sempre – a um instante de ausência eminente. Porque dizer adeus parece uma expressão carregada de inexistência a vir, maculada de uma tonalidade definitiva e talvez mesmo por isso tão menos usada hoje. Em que mundo se corre como se não houvesse distância, em que o éter do espaço cibernético nos traz vozes longínquas a qualquer momento como se no quarto ao lado e em que tudo parece tão transitório que nada se sabe sobre o devir de uma palavra de despedida.

E depois penso, que todas as palavras em momentos importantes, deveriam ser como as roupas de ver a deus. As melhores as mais límpidas e reservadas para nos apresentarmos sem mácula, no nosso melhor. Como antigamente se guardava o melhor fato para ir à missa. Ou, numa acepção mais ampla, para os domingos. Talvez os dias, então, das coisas maiores da vida. E aí, sem fingimentos, sem teatralização de nenhum sentir, as pessoas apresentavam-se, por vezes, como nunca nos outros dias. Algumas com os únicos sapatos menos castigados pelo tempo e o trabalho, e, mesmo velhos de anos, engraxados a brilhar como estrelas. A camisa branca de casamentos e funerais, imaculada. Mesmo se puída nos punhos e colarinhos. E uma alma, capaz de confessar todos os pecados e começar de novo. A semana. Ver a deus. Essa possibilidade de transcendência da insignificância que se sente ser. Talvez. De esperança.  Que não tenho.

Às vezes tenho pena. Uma pena enorme de não o sentir. Mas é uma imagem pejada de monstruosidades egocêntricas. Formulada pela natureza humana à sua imagem e semelhança. Ameaçadora de uma natureza vigilante e castigadora. Num sistema de trocas. Tudo o que me faz detestar uma ideia que faz jus á escala humana. O humano na tentativa de formular o transcendente. De o enquadrar numa moldura reconhecível em que a pintura não é bela. Mas há outras ideias soltas e possíveis. Para quem tenha uma fé, não reduzida a essa imagem. Ideias possíveis, que talvez um dia envolvam um espectador desprevenido num conforto etéreo e acalentador. Parece-me uma paisagem possível de vir à mente e se instalar como tantas outras igualmente fugidias ao tacto. Não penso que me venha a acontecer. Não espero. Não desejo. Mas é possível.

Não posso dizer que quando penso nele, ou Nele, procure um sentido qualquer que me falte. Ou mesmo que esse me falte, ou quando me falta, para além da profunda certeza de que a vida em si basta para se justificar a si própria em continuidade. É, na verdade um pensamento de que se me entretém a alma, sobretudo em momentos de alguma serenidade. O que explica que não me observo num interesse por um fenómeno que, se em si me intriga, o seja por razões de procura nesse lugar conceptual, que algo me acuda. À angústia, ao medo, ao desassossego ou ao desespero. A minha perplexidade é por pensar nele. E pensar se, só em si, esse não é um dos fundamentos de uma existência, que ao ser negada, se baseia numa outra expectativa, fórmula, imagem ou fantasia, em que – nessa – se diz e digo não se acreditar.

Não sei porque penso nele.

Sei que não acredito que acredite nele. Mas não me atormenta o assunto. Só não sei porque penso nele. E é isso que me faz reflectir. Que entre a comunidade científica muitos há que deixam em aberto a hipótese da existência, e que alguns, mesmo, fundamentem a inevitabilidade dessa, é um facto. Muitos filósofos encontram também argumentos e fundamentos para tal. Mas o que sempre me atormenta, é reconhecer em todos aqueles que mais reflectem neste assunto e muito mais sabem do que eu, a mesma e limitada contingência que me tolhe. Uma estrutura de pensamento que não pode transcender as fronteiras da razão culturalmente baseada na linguagem. Formuladas nas suas bases fundadoras por nós e para nós. Num circuito fechado de humanidade. Na impossibilidade de encontrar termos novos para o que é tão difícil de explicar senão à imagem do que se conhece. E ele, a ele, não se conhece. Ou a matemática. Esse outro mistério de abstracção cuja ligação ao real é tão difícil de absorver. Padrões, leis, equações complicadas como uma língua estranha a demonstrar modelos do universo. Uma noção do tempo e do espaço, que a nossa ínfima dimensão e experiência torna limítrofe. Como nos subúrbios de uma cidade maior. Haverá qualquer coisa de inexplicável com os curtos artefactos com que lidamos. Mais além. Para lá do abismo. À beira do qual ficamos a tentar alcançar com os sentidos, a explicar com as palavras que servem os rios mas não o sentido dos rios e o tempo antes dos rios. E bastaria pensar no tempo. Ficamos à beira. Talvez de deus. Sem alcançar.

No fundo, não me importa por hoje, avaliar a consistência do que não é demonstrável, mas possível, para além da capacidade conceptual com que tentamos entender todo este enorme fenómeno que é o universo. Essa enormidade basta para preencher a minha perplexidade, de abismais perguntas que não tenho dimensão para entender. A própria vida, exige respostas sem claramente formular as perguntas. Todos os dias. Deus, é só um ponto eventual e longínquo, mais atrás no antes do tempo. E que, a ser assim, ficará para muito depois, no depois do tempo. E que me intriga. Mas tão longe.

27 Out 2017

Caminhos tomados. Percursos feitos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]lex Cross (Morgan Freeman): Tu fazes o que és, Jezzie.

Jezzie Flannigan (Monica Potter): Queres dizer tu és o que fazes.

Alex Cross: Não. Eu quero dizer que tu fazes o que tu és, se nasceste com um dom. De outro modo, tornaste boa em qualquer coisa ao longo da vida. E aquilo em que tu fores boa, não podes tomar como garantido. Não o trais.

Jezzie Flannigan: E se tu traíres o teu dom?

Alex Cross: Então, trais-te a ti própria. É triste.

In A Conspiração da Aranha (Along Came a Spider, 2001)

Somos o que fazemos. É inexorável. “Fazer” tem múltiplos sentidos. “Fazer” pode ser exercer uma profissão, executar tarefas, desempenhar funções. Tem um sentido eminentemente pragmático. “Fazer” pode querer dizer “agir”. “Agir” é “pôr em prática”, mas também “omitir”. É dizer palavras da boca para fora ou cheias de significado. Ou calar-se. “Fazer” exprime acções aparentemente incompreensíveis. É quando se pergunta o que alguém está a fazer. É o que sempre fazemos e temos feito. Fazemos também nada ou tudo e mais alguma coisa.

Há uma razão para reduzirmos “ser” a “fazer”. O que é feito tem conteúdos e diversos, tem diversas camadas. Fazer enquanto trabalhar, produzir, agir, actuar, deixar estar tem o seu próprio sujeito. Somos o que fazemos em múltiplas frentes. O registo é biográfico. O seu espectro tão amplo quanto pode ser amplo tudo o que fazemos. Os interesses que temos, os nossos gostos, preferências, inclinações. O que fazemos resulta numa expressão de nós próprios. Fazer exprime o nosso ser. A nossa biblioteca de livros lidos, a discoteca com a banda sonora da nossa vida, os amigos que temos, toda a nossa produção profissional, consoante as profissões. Fazer é ser em acção. Mas pode ser também todas as palavras que pronunciamos e as que nem percebemos como nos vieram à cabeça. O que é feito, o que se faz, tem um conteúdo específico. Pode ser altamente especializado. Pode ser banal, como o café da manhã.

Quando somos o que fazemos, num sentido mais radical, não queremos dizer que somos o conteúdo do que fazemos. Não é o trabalho feito, independentemente das mais diversas profissões. Há profissões quase que exclusivamente remetidas para os outros e percebe-se que não somos os pacientes curados, os alunos formados, os clientes satisfeitos, os cidadãos felizes. Todas as profissões e trabalhos têm o outro como pano de fundo, mas directamente podem não estar ao serviço do público. Há quem trabalhe no escritório, portanto, indirectamente com o público e quem atenda ao público.

Fazer implica sempre um conteúdo e tempo, muito ou pouco. Pode fazer-se sempre a mesma coisa e pode fazer-se uma coisa uma vez na vida. O que se faz ou tem feito depende assim da vida que se leva. O próprio conteúdo da vida, fixo em diários, agendas e biografias, com o seu ritmo e o seu tempo- é o que fazemos.

O que fazemos não é assim apenas o que produzimos, o resultado do trabalho, pensamento, palavras, actos e omissões. É também o tempo do lazer, quando não fazemos nada, desanuviamos, espraiamos, vamos apanhar ar. Há quem não faça nada a vida inteira. Há quem esteja sempre a fazer coisas. Ainda assim, oscilamos entre as horas em que fazemos o que fazemos e as horas em que não fazemos nada. Estamos sempre a fazer alguma coisa, então. A vida que temos é a vida que levamos. Todas as nossas acções resultam de escolhas. As escolhas implicam acções.

Mas se somos o que fazemos, parece que reduzimos todo o nosso ser, a vida que levamos e temos, à ponta de um Iceberg. É, sem dúvida, a nossa realidade. Não podemos negar que fazemos o que fazemos, porque é esse o conteúdo das nossas vidas. O que fazemos expressa como conteúdo a nossa vida. E, contudo, há um elemento casual, acidental, no que fazemos. Os outros que encontramos influenciam as nossas escolhas. Seguimos rumos numa direcção e não noutras. Retomamos possibilidades abandonadas no caminho. Outras rejeitamos para sempre.

Podemos fazer o que somos? Pode o fundo do nosso ser acontecer-nos primariamente e só depois pôr em prática o que quer que isso seja? Podemos ocupar-nos e todos temos de trabalhar, podemos fazer a vida inteira tudo sem termos sido nós próprios? A saudade de um talento nunca tido, a possibilidade de um dom nunca reconhecido, a oportunidade de uma abertura nunca havida.

A vida pode ser o nada que é feito por não ter havido nada para ser. E, contudo, estamos continuamente forçados a ser, a ter de ser. Mesmo sem nunca termos sido nós próprios, até quando nunca pudemos fazer nada. Somos nada, quando nada fizemos. Somos nada, tendo tudo feito?

27 Out 2017

Revisitar Rashomon na era dos factos alternativos

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] jovem estonteante da porta ao lado morreu durante a noite. De manhã, a vizinhança reuniu-se para tentar descobrir a causa. Em baixo estão algumas das declarações registadas pela polícia:

– Eu vi-a sozinha no bar ontem ao fim da tarde. Tinha a cara completamente alterada. Deve ter sido intoxicação alcoólica.

– Ela esteve recentemente envolvida com vários homens. Deve ter sido um crime passional.

-Cruzei-me com ela no hospital a semana passada. Acho que foi fazer um teste ao HIV.

-Há anos que sofria de depressão. Acabou por se suicidar.

A verdade? Tinha morrido num acidente de viação.

A verdade só pode ser uma, mas a sua narrativa pode acabar por ser uma mentira. A ficção é a prova de que uma mentira tão elaborada e refinada pode ser tida como verdade. Este fenómeno é conhecido por Rashomon, cujo nome deriva do conto homónimo, passado ao cinema em 1950. Quando alguém Rashomina é porque não pode ter a certeza do que está a dizer.

Akutagawa Ryunosuke (1892-1927) publicou Rashomon em 1915.  Ficou conhecido como um “génio com ideias bizarras”, ideias que serviam para “escavar” a natureza humana e exprimi-la de forma única plena de interioridade e inteligência. Rashomon dá-nos uma alternativa moral.

O conto tem sete protagonistas que se encontram para resolver o assassínio de um samurai.

  1. 1. O lenhador foi o primeiro a encontrar o corpo do samurai “com uma faca enterrada no peito e folhas de bambu ensopadas em sangue à volta”. Perto do corpo encontravam-se cordas e um pente de mulher. O lenhador declarou-se inocente.
  2. 2. O monge contou aos outros que há poucos dias atrás tinha visto o samurai a cavalo na companhia de uma mulher. O monge declarou-se inocente.
  3. 3. O carcereiro informou que tinha prendido o ladrão que cometera assassínios por luxúria. Tinha morto mulheres e raparigas de forma extremamente cruel. A seu ver, este assassinato devia estar relacionado com o célebre ladrão.
  4. 4. A mulher idosa assinalou que o falecido era seu genro. Tinha um nome e 26 anos de idade. Era bondoso. Estava casado com a sua filha de 19 anos, uma mulher dura.
  5. 5. No final, o célebre ladrão confessa que matou o samurai porque o viu violar a mulher. Nessa altura decidiu matá-lo e casar-se com a viúva. Contudo, deu-lhe uma hipótese e desafiou-o em duelo. Lutaram durante 23 rounds até finalmente o aniquilar. Mas agora a mulher fugiu, deixando para trás o seu cavalo a mordiscar a vegetação da orla do bosque.

Nesta altura o leitor fica tentado a acreditar que o ladrão está a falar verdade. MAS,

  1. 6. A mulher aparece, e conta que o ladrão a violou e obrigou o marido a assistir. Profundamente envergonhada, agarrou na sua faca e matou o marido. O relato da mulher contradiz obviamente o do ladrão.
  2. 7. Surge então o fantasma do morto e conta que a mulher era maldosa e que contratou o ladrão para o matar. O ladrão suspeitou dos motivos da mulher e mandou-a embora. Ela aproveitou a oportunidade para fugir. A seguir o ladrão perguntou ao samurai o que queria que ele fizesse com a mulher. Deveria matá-la ou deixá-la ir? Comovido com a atitude do ladrão, o marido prontificou-se a perdoá-lo.  Finalmente o ladrão decidiu partir. O samurai resolveu matar-se com a faca que a mulher tinha deixado ficar para trás.

Akutagawa desafia a noção da “verdade única”. Em Rashomon a verdade encontra-se escondida no epílogo. No epílogo os mentirosos prestam juramento. E é aqui que começam a acreditar na sua própria realidade fabricada. 

26 Out 2017

Ensaios sobre a ordem e a desordem 2

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mais das vezes, pensar é emboscar-se. Emboscar-se sob bancos de corais já formatados e cujo resguardo compensa a nossa dependência externa com um aparato de coerência interna.

Aí “pensamos” para reflectir a ordem estabelecida pelo repertório a que aderimos – um partido, um determinado modo de vida, uma igreja, uma convicção escolástica: todas as respostas-pronto-a-vestir que nos tragam conforto – e não como seria desejável para explorarmos a fundo o “caos” do pensamento pensante. Ao “pensarmos de um modo assistido” inserimo-nos, certificamos que pertencemos ao sistema de interesses instalados. E embora nos galvanize a nossa satisfação, dado que os elementos de persuasão montam uma viva aparência retórica, esquecemo-nos de que um dos efeitos eficazes da ideologia é apagar o seu rasto e fazer-nos crer que estamos estanques à auto-ilusão.

Ora, demonstrou-o René Girard, nós, no mais das vezes, não queremos pensar, queremos apenas pertencer. Daí a importância da mimetização nas virtualidades do jogo social. E a boa execução da mimetização recompensa-nos com a possibilidade de sermos populares.

Eis um dos significados da palavra «popular». Outros significados florescem no mesmo tronco semântico.

Ser popular significa algo ou alguém ser muito conhecido, como designa o que seja próprio de uma classe social particular, a mais desfavorecida da organização social. Donde decorre, um terceiro sentido: a pertinência de algo “não elaborado”.

Roger Pouivet, num ensaio em que descreve a mudança das agulhas que faz a arte popular deslocar-se para os carris das artes de massas, esclarece – a arte popular deve reunir duas condições de acessibilidade: a primeira é económica, a segunda condição é cognitiva.

Uma arte popular não exige uma cultura de segundo nível, uma cultura clássica – a qual  supõe sempre uma aprendizagem de que está arredada a maior parte das pessoas.

No feliz exemplo de Pouivet, um novo registo das Variações Goldberg, de Bach, não custa mais caro que um novo cd da Celine Dion. Mas captar a diferença entre a nova interpretação da obra de Bach e os registos anteriores da mesma obra é cognitivamente inacessível à maior parte das pessoas. Eis uma razão para haver menos compradores para esta obra do que para a de Celine Dion.

Embora Bach tenha hoje mais compradores do que nunca, persistir em ouvir música clássica e tirar o pleno proveito da mesma já exige um manejo cognitivo cujo acesso só será franqueado pelos que se tornarem amadores de música e forem pacientes para estudar os vários níveis de leitura das obras – o que não se compadece com a lógica aditiva da massificação nem com a ansiedade da novidade que as indústrias culturais herdaram das vanguardas artísticas.

A arte de massas oferece-nos o que seja consumido rapidamente e não necessite do esforço da interpretação – e, por sua vez, para o consumidor, ter obnubilada a necessidade de compreender.          

Para ajudar-nos a entender a emergência sufocante da cultura de massas sobre os demais regimes culturais, será útil socorrermo-nos da tipologia estabelecida pelo alemão Hans Ulrich Gumbrecht, o qual defende que o mundo está polarizado entre as culturas do sentido e as culturas da presença.

As primeiras desenvolveram as tradições hermenêuticas e uma certa racionalidade afim da lógica e do discursivo. Já as culturas da presença são mais performáticas, associam-se ao corpo e desenvolvem um tipo de inteligência mais holística.

O que importa realçar é que Gumbrecht sintoniza com Pouivet neste diagnóstico sobre um dos principais motivos para a adesão “sem espinhas” à arte de massas:

«As finalidades da música de massas – e das artes de massas mais gerais – não são cognitivas, morais, religiosas, sociais, históricas, como o são as obras da cultura humanística. Elas são fundamentalmente afectivas» (e, neste sentido, poderão ser até terapêuticas).

O segundo grande motivo para uma adesão decapitadora associa-se a um vector básico que separa a arte popular da arte de massas.

As artes populares são de comum expressões de comunidades de que elas emanam. Há um lastro identitário. O que nos autoriza a localizar as origens do fado, do folk, da morna, do flamenco ou do sushi.

Pelo contrário, as artes de massa não reflectem as comunidades que com elas se identificam. Os U2 são ouvidos por jovens holandeses, chineses ou africanos. Talvez por causa do que adianta Pouivet:

«As obras da arte de massas dirigem-se ao comum denominador de seres que não partilham uma mesma cultura, no sentido humanístico, que não falam as mesmas línguas, que não vivem da mesma maneira. Madonna, os Rolling Stones, U2, mas também Matrix ou O Silêncio dos Inocentes, romance ou filme, interessam todos os seres humanos dos mais jovens aos mais idosos. Eles dirigem-se ao seu mais pequeno denominador comum não cultural.»

E para interessarem a todos, esclarece o francês, a estética destes produtos desenvolve aquilo que se chamam os efeitos genéricos do humano: a amizade, o medo, a alegria, o amor, o fascínio pelas máquinas, etc.

Por efeitos genéricos entenda-se o grosso modo: daí que hoje nas obras se privilegiem a estrutura sobre a linguagem e o detalhe, a funcionalidade sobre a deriva romanesca. As grandes subtilezas ficam do lado da poesia, ou do romance de cariz humanístico. Porque na verdade, mais de metade dos romances de hoje não passam do que dantes se chamavam as novelizações, ou seja, as adaptações dos filmes de êxito.

Mas como vendem e estando o esforço de classificar fora de moda –  ao arrepio de uma corrente que privilegia os matizes da «presença» – então os media tomam tudo por igual.

E isto ajuda-nos a discernir porque, a) um novo “romance” de John Grishman, ancorado ao “género” e ao cinema, conhecerá maior sempre cobertura mediática do que uma tradução, esta sim louvável, de uma obra de Arno Schmidt, b) porque a maioria expressiva dos jornais generalistas prefere tratar preferencialmente a cultura alheia do que a nossa, dando uma menor visibilidade, atenção e credibilidade ao que se produz na nossa língua. Mas não nos adiantemos.    

26 Out 2017

Das paranóias dos escritores

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]odos os escritores têm as suas paranóias. Alguns, enquanto estão a escrever. De escrever de pé, como Hemingway ou Virginia Woolf, a escrever deitado de barriga para baixo, como Twain, a escrever nu ou em roupa interior, como Balzac ou Cheever, existe quase sempre a presença de um hábito, superstição ou paranóia intimamente ligada ao processo de escrita.

A minha paranóia (maior) tem lugar na apresentação do livro e na sessão de dedicatórias que normalmente lhe sucede. Imagino sempre que todos os leitores a quem escrevi uma dedicatória se reúnem algures no exterior do local do lançamento para compararem aquilo que escrevi a cada um deles. E imagino sempre que, ofendidos com as inúmeras repetições das múltiplas dedicatórias que cada um julgava serem pessoais e intransmissíveis, me vêm devolver os livros entre exigências de recuperar o dinheiro que deram por eles e juras de desamor eterno. E já sonhei com isto mais do que uma vez.

Para contrariar esta apreensão irracional, de cada vez que me calha em sorte ter de escrever umas palavras de apreço a um leitor, tento invariavelmente grafar qualquer coisa que, pelo menos no contexto da sessão em causa, seja original. Às vezes descubro-me repetindo dedicatórias que escrevi a outras pessoas, noutros lugares, e fico com medo de existir a possibilidade de um e outros se conhecerem.

Desenvolvi algumas técnicas entre o amador e o incipiente para conseguir evitar tanto quanto possível a repetição. Faço ligações entre coisas que disse durante a sessão e a pessoa defronte. Talvez o olhar de uma das personagens do livro seja semelhante ao olhar do recipiente da dedicatória. Talvez seja a forma de andar ou a forma de sorrir. Talvez a voz. Quando nada aparentemente resulta, recorro aos objectos e perspectivas à minha volta: um naco de rio que avisto da janela, o céu, as cadeiras espalhadas anarquicamente pela sala. Às vezes, nada acontece e, quanto mais tempo falta, mais pressionado me sinto. Sorrio, respiro fundo, mexo no cabelo, volto a perguntar o nome. As pessoas na fila impacientam-se (felizmente, as filas são normalmente pequenas). Acabo por escrever “a fulano, um abraço forte do Valério Romão”. Vergonha.

Há dias em que tudo corre bem e cada dedicatória tem laivos de verso. Nesses dias, saio do local do lançamento com inusitada confiança, cumprimentando quem ainda esteja à porta. A tensão pré-lançamento é debelada e, como – imagino eu – no final de um concerto particularmente gratificante, há uma sensação de vitória que parece redimir todas as ocasiões nas quais tudo correu mal.

Quando não é assim, acabo por pensar quase sempre porque estou ali e na razão pela qual me sujeito àquilo. E empatizo com os escritores que se recusam a cumprir aquele momento específico do ritual ou mesmo todo o lançamento. E parecem-me tão sábios como paternalistas: “eu não te disse, Valério?” é o que repetem em uníssono.

Passado algum tempo, até a maior vergonha acaba por beneficiar da distância cronológica e do esquecimento que a acompanha e o “nunca mais, nem pensar!” transforma-se primeiro em dúvida “se calhar, se…” e logo em optimismo infantil “não, desta vez vai correr tudo bem, tenho a certeza”. E volto ao lugar do crime, insuflado de uma confiança tão exagerada como precária. Mas mal sento na carreira de tiro, arrependo-me. Tarde demais.

25 Out 2017

Desconcertos concertantes

Horta Seca, Lisboa, 17 Outubro

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ircula há um mês, mais coisa menos coisa, o N.º 4 de Cidade Nua – Revista de Poesia e Palavra que o Alex [Cortez] e o Nuno [Miguel Guedes] animam. Desta vez, cometeram a imprudência de incluir micro-contos meus, vã tentativa de fazer cócegas ao urbano lugar-comum. Confesso que o objecto me desconcerta, não pelo lado singelo e descomprometido, mas pelo grafismo que me parece casuístico e apressado. E o texto que se verga todo ao itálico, como se soprasse vento forte. Este nervoso miudinho não me impede que tenha voltado vezes sem conta aos textos que por aqui moram, em testemunho importante do momento. Oiço o Helder [Macedo] aceitar que a poesia pode ser espelho e a ficção lupa, «mas seria um espelho distorcido e uma lupa embaciada». Diz ainda que «a poesia não muda nada, mas pode iluminar tudo», para logo distinguir bem que a poesia não se encontra no que habitualmente se considera poético, que esse «banaliza tudo». Luz encontro, sublinho interruptores à toa no escorregadio papel. Há mais que estes, amostra para nos entendermos. José [Anjos]: «não tendo eu a delicadeza/que empurra às flores/os seus frutos». Paula Cortes: «e por vezes nem mesmo a noite/é a última palavra sobre o destino». Cláudia [R. Sampaio]: «mais um dia que se ajoelhou de faca na boca». Miguel Manso: «que tudo é logramento porquanto logra e doa/o estarmos». Catarina [Santiago Costa]: «Gostaria de morrer como as oliveiras/ – que apenas parecem plissadas, nunca defuntas –,/ albergar-te sempre».

Teatro da Trindade, Lisboa, 18 Outubro

Se não conhecesse Ramón Gomez de la Serna leria na palavra conferência um inevitável vestido de noite ou fato de gala ou, pior, cruzamento de ambos. Não se recusa convite caloroso e atempado, como foi este do Joaquim [Paulo Nogueira], ainda por cima quando o ciclo leva por título (R)Existência? Uma interrogação que esconde uma atitude, a reviver até o sabor daqueles dias, há tantos anos, em que cruzámos caminhos a pensar em alternativas. Entro na sala, com o desconforto habitual que me toma aquando do afrontamento de plateias. Conforta-me a chuva, ajuda até a concentração. Espreito o frenesi à janela e descubro na arcada um «vestígio de projéctil disparado em 25-4-74», ainda antes da placa mo assinalar com pompa. Calculo a direcção e ponho-me a divagar por que teria sido disparado do prédio em frente. Por estes quarteirões sempre coabitaram polícias e livrarias e editoras. De que calibre seria a arma?

«Pode uma editora dar sombra?», este o mote que escolhi há meses, prometendo logo mais questões que respostas, esse fruto da época. «Uma editora é uma árvore. Semeamos agora, mas estaremos vivos para recolher fruto ou sombra? Deve um livro ser comprado ou oferecido? Ainda se lê em papel? Uma editora é um projecto de saber radical: tem raízes e pensa em céu, gosta de sol e chuva, gosta apenas, gosta que se possa tomar o gosto. Para quê tantas editoras, as da indústria e as outras, as da pureza e as do cânone, as do espectáculo e as cultura? E só editores editam? Todas as editoras são iguais? Onde se guarda o enigma do fascínio da edição? A ânsia do autor queima o editor? Breve digressão sobre o passado e de costas para o futuro perigosamente à beira do abysmo.» Esqueci-me de brincar com o facto da editora mergulhar raízes em Horta Seca. E não podia contar então que estaria hoje a tentar resistir à falência de uma distribuidora, enfim, à dispersão dos leitores. Para não falar dos fogos, que afectam até as metáforas. Editamos contra isto mesmo, contra a morte. E que mais se pode dizer sobre isto? Levei ajudas, claro. Queria falar de desejo, com ligações à infância, daí ter usado para abrir as hostilidades o «Sem querer», filme partilhado com o João [Fazenda]. Sinopse selvagem: podemos amar tanto a ponto de conseguir transferir o objecto para o interior de nós? Publicar tem tudo a ver com isto, acho. Plantei depois jardim de livros à minha volta. Grandes de inventar cinema ou sussurrantes de simplicidade e silêncio, marcantes cada um por razões quase só minhas. Silêncio, só um livro o sabe plantar. Precisava partir do concreto para dizer alto da intuição, da luxúria, do falhanço e da biodiversidade de que falamos quando falamos de editar. Falamos de vida, pois, de conceber cada livro como único. Não pararia de descrever cada um, de os acariciar com palavras agora, que já o fiz com os olhos e as mãos, com o corpo todo. Livros únicos a percorrer de corpo inteiro, dos que anunciam potência de futuro, uma primavera sempre disponível e portátil, na vez de apenas transparecer o presente, por espectacular que seja. O presente será sempre de menos, se não trouxer passados ou madrugar amanhãs. Não nos entusiasmemos: este caixeiro-viajante traz para vender espelhos distorcidos e lupas embaciadas. E missangas. Antes de sair ainda fui tocar a ferida na madeira que fora árvore. Cicatriz em pau nunca fecha, solta sempre lasca, falha.

Mymosa, Lisboa, 20 Outubro

Se eu me contasse a mim mesmo daqui a uns anos, sentado frente a frente, não acreditaria. Espero ser sensato sentado, talvez incréu dos mais beatos. (Imploro, por deus, a ventura de não ser amargo…) Trazido pelo Henrique Amaro e pelo Rui [Garrido], tombou na mesa dos projectos outro dos que convocam memórias afectivas, daí a conversa escorrer, com detalhe e banda sonora. Na mymosa, direi eu a mim mesmo, houve tempo que isto acontecia, a magia do poético. Aqui há atrasado, brinquei com as sortes e tramei-me com erro em título, nem todas as traseiras trazem o que deviam, mereço a devida punição, ainda que isto ressuma a puro gozo, nome da editora adolescente que recolheu asas. (Quantos perceberão, mano Paulo [Caldinho Gomes] o que nesta frase agora mesmo desapareceu após ter aparecido?) O Rakesh-do-é-fim convocou à nossa mesa o João Moreno, que desdobra o presente no baralho das cartas de azar. Desconforta-me o jogo de mãos, o paleio de vendedor, a perda da razão atrás do como se faz, o fundo de boca do engano, conjunto que vem colado com cuspo à magia. Dito isto, o João atira-nos para a infância. Digno de se contar, o deslumbramento dos maduros a acreditar no impossível, a carta desejada a sair da boca meio mastigada, a sair na caixa selada onde sempre tinha estado embora tivesse sempre nos nossos olhos, e mais, número atrás de brincadeira, com a crença de cada um a ficar feita num oito, de copas ou paus, que importa isso. Na mymosa, chegou a ser assim isso do editar. Só me saem duques.

25 Out 2017

Do prazer

Time is what you make of it.

Anúncio aos relógios Swatch, 1996

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á muitos tipos de prazeres.

Há os prazeres prazerosos, claro.

Há os prazeres que acarretam algum sofrimento.

E há, também, o prazer da dificuldade. Este, regra geral, decorre de dois aspectos: o trabalho que foi necessário à sua fruição e o facto de esta implicar o encontro com outro – o criador – que trilhou esse caminho, incomum no seio de um tempo de facilitismos.

É esse o prazer que sempre me deram algumas obras de arte. E, a dado momento, quando esse mecanismo está em nós bem oleado, funcionando por si só, sem necessidade de manutenção, esses prazeres tornam-se imediatos, físicos, exactamente como os prazeres menos exigentes.

Blake, Pound, Joyce, Beckett, Lowry, o dadaísmo, o letrismo, etc, cabem, claramente, nesta categoria. (Permitam-me que lhes acrescente um português, quase desconhecido: Alberto Velho Nogueira).

O mesmo acontece, na música, com Kurt Schwitters, Luigi Russolo, John Cage, Luciano Berio, Mauricio Kagel, Frédéric Acquaviva, etc. Ou com o free jazz e a música improvisada. Sem Leroy Jenkins ou Kazushige Kinoshita, sem Derek Bailey ou Hans Reichel, a minha vida seria bem mais pobre e menos prazerosa.

Nas artes visuais, o mesmo sucede com Marcel Duchamp, Joseph Beuys e as suas extensas descendências.

Mas, claro está, estes prazeres não devem excluir o enorme prazer que nos dão a limpidez ascética, preclara, da música de Bach ou de Sainte-Colombe, ou dos versos de Camões, ou a pureza lúdica, essencial, dos pincéis de Raoul Dufy, Miró ou Calder.

Nada nasce de nada. E o sentido das vanguardas funda-se, profunda e solidamente, nas razões destes. Quando não, estamos no território do vómito sem sentido, que, oportunista, sempre alaga algumas frestas das vanguardas. E para esse não deve haver tolerância.

O mesmo acontece com a comida. A grande cozinha de autor é rara. A má cozinha de autor é ridícula. Serve, normalmente, para disfarçar a preguiça. Um grande cozinheiro não tem, necessariamente, de saber fazer uma perdiz à Convento de Alcântara, mas tem, pelo menos, de saber que ela existe e como é feita. Quando não, dêem-me, mil vezes, uma boa sertã de iscas e guardem para os CEOs as espumas e as granitas.

Há, ainda, outro tipo de prazer, que se vai tornando raro neste tempo de seriedades cosméticas, e que é, porventura, o que me cala mais fundo e melhor me individualiza. Falo do diletantismo, do apego a certas artes e ciências sem que se pretenda obter qualquer proveito pessoal que não o esclarecimento da curiosidade e, portanto, sem grandes preocupações estruturais e, sobretudo, sem qualquer remuneração.

Mais uma vez, os britânicos (alguns, claro está) servem-me de exemplo:

O birdwatching, a observação de aves, empenhada e informada, contará no Reino Unido com cerca de um milhão de praticantes.

O mudlarking, esmiuçar das lamas das margens dos rios em busca de antiguidades é, também, uma prática popular, desejavelmente realizada em articulação com arqueólogos e museus, cujas colecções amiúde enriquece.

A malacologia e a lepidopterologia amadoras, a recolha e o estudo de gastrópodes e bivalves e de borboletas, se praticadas conscienciosamente, são actividades extremamente gratificantes.

A filatelia, se saltar do patamar da mera acumulação para o da verdadeira curiosidade organizada, é um instrumento pedagógico valioso. Muito jovem, com ela aprendi, entre muitas outras coisas, boa parte do que ainda hoje sei de geografia política e da sua evolução.

Em todas estas actividades, existe o prazer de ir entendendo cada vez melhor o que se observa e os factores que o determinam, mas, à partida, tudo começa pelo simples prazer da contemplação. Da silhueta de uma pega rabilonga ou de um fragmento de cuspidor em porcelana, das pregas radiantes de uma concha de vieira ou dos padrões laranjas e negros das asas de uma monarca, ou, ainda, de um selo representando qualquer uma das coisas anteriores…

Recordo-me de, quando era miúdo, passar horas a olhar um conjunto de selos das ilhas Ryukyu estampados com belíssimos gastrópodes. E onde seriam as ilhas Ryukyu? Era imperativo esquadrinhar o globo terrestre até dar com elas, e que alegria ao encontrá-las!

Esse fascínio inicial por um objecto ligou-me, ao primeiro encontro, ainda numa ilustração de um livro, a algo que a maior parte das pessoas considerará tétrico, quando não mesmo repugnante — as cabeças humanas mirradas pelos índios jivaros da América do Sul. Trata-se de cabeças de inimigos, a que são retirados os crânios e que tomam então as dimensões de um punho fechado, mantendo, contudo, as suas feições e as longas cabeleiras.

Mais tarde, no Museu da América, em Madrid, e nos fundos do Museu Nacional de Etnologia, em Lisboa, tive a oportunidade de vê-las ao vivo. Que alegria, também então!

A surpresa, o inesperado, sobretudo numa época em que, desde tenra idade, somos bombardeados por informações que nos retiram quase todas as virgindades e, por conseguinte, a probabilidade dessas surpresas, têm um valor intrínseco, nas artes ou em quaisquer outras matérias. Convém, pois, estarmos abertos às surpresas ou deixaremos a vida passar-nos ao lado.

Uma história que ilustra bem este princípio é a seguinte:

Quando Georges Simenon propôs a primeira novela protagonizada pelo Comissário Maigret ao seu editor, Arthème Fayard, este respondeu-lhe:

— Estou disposto a publicar os seus “Maigret”, mas digo-lhe de antemão que não obteremos qualquer resultado. E isso por quatro razões: a) as suas histórias não são técnicas o suficiente; b) não há intriga amorosa; c) não existem nelas personagens suficientemente simpáticas ou antipáticas; d) acabam todas mal.

Os livros de Simenon, e os Maigrets em particular, tornar-se-iam, em breve, dos livros mais vendidos do mundo, para mais com um sem-número de adaptações cinematográficas e televisivas, em diversas línguas. Com os Maigret, Simenon fez-se um homem muito rico e enriqueceu muito os seus editores.

Fayard estava erradíssimo, é certo. Mas, honra lhe seja feita, editou o que lhe era proposto.

24 Out 2017

A Sombra de Teseu [Terceiro Estásimo]

(entra o coro de mulheres)

CORIFEU

Fedra é pior que víbora!

Fedra é pior que víbora!

CORO DE MULHERES

Que culpa tem, se Afrodite

Teceu o destino da paixão?

Ninguém se dá a sua vida,

Ninguém escolhe a sua morte.

CORIFEU

Mas vede como sofre Teseu!

(Teseu entra em cena e fala consigo mesmo)

TESEU

Um pai responde por um filho?

De que adianta tudo o que se faz,

Se os filhos serão sempre o que os deuses quiserem?

Para quê fazer filhos,

Se nos serão sempre menos que a nossa própria sombra?

Quem fará chegar o mal a um coração

E porquê, porquê?

E existirá maior mal do que um pai assistir à sua vida cair na lama

Pela acção de um filho?

Os tempos passados foram iluminados por desastres

E os futuros não serão melhores.

Porque teimamos ainda em prolongar a vida,

Através de novas gerações?

Com que forças hei-de agora mandar prender meu filho,

Condená-lo ao exílio,

Para se arrastar por terras desconhecidas sem nada

E sem ser nada entre essas gentes?

O exílio é pior que a morte!

É morrer todos os dias

E saber que se vai morrer sempre mais no dia seguinte.

Mas não matar um filho que merece a morte,

Concede-nos sempre um horizonte de espera que o mundo mude.

O mundo não muda, mas enquanto se espera pode mudar.

Mando Hipólito para mil mortes,

Mas fico com o coração nas amuradas da espera de que algo mude,

De que nada seja como tem sido.

Estas vãs mãos mortais,

Que nada podem fazer de verdadeiramente importante!

(entram guardas em cena)

CHEFE DOS GUARDAS

Mandaste-nos chamar, rei?

TESEU

Mandei, sim! Vão nos aposentos de Hipólito e prendam-no! E tragam-mo aqui, feito já prisioneiro.

(Hipólito entra em cena, com os guardas, e confronta-se com Teseu)

QUARTO EPISÓDIO

HIPÓLITO

Meu pai, que loucura vem a ser esta? Porque me fizeste prisioneiro em nossa própria casa?

TESEU

Ainda te atreves a perguntar porquê, miserável? Nem coragem tens para assumir perante mim aquilo que fizeste?

HIPÓLITO

Mas que fiz eu, meu pai? Que mal fiz, para ser tratado como um cão que morde o dono?

TESEU

Não escolheste bem a comparação, Hipólito! Um cão que morde o dono é ainda digno de pena, mas tu não! Tu és aquele que ataca no escuro da noite e pelas costas a parte fraca de quem te deu a vida.

HIPÓLITO

Não estou a entender o que minha mãe tem a ver com isto…

TESEU

Não é a tua mãe, mas a minha mulher.

HIPÓLITO

Fedra? Falas de Fedra?

TESEU

Sim, Fedra! Falo de Fedra, minha mulher, tua madrasta, tua rainha…

HIPÓLITO

Mas que mal fiz eu a Fedra? Ártemis é minha testemunha!

TESEU

Nenhuma deusa protegerá um homem como tu!

HIPÓLITO

Mas que fiz eu, meu pai?

TESEU

Não te atrevas a chamar-me de pai mais vez nenhuma, ou serei eu mesmo a acabar com a tua vida, trespassando-te aqui com o fio da minha espada!

HIPÓLITO (sorrindo de espanto)

Não acredito! Não acredito que aquela bruxa conspirou contra mim e que meu pai acreditou nas suas palavras!

TESEU (desembainhando a espada)

Cala-te, ímpio! Cala-te ou teus intestinos irão feder esta sala, agora mesmo!

HIPÓLITO (cala-se e depois volta a falar com moderação)

Teseu, escuta primeiro as minhas palavras, por favor! Nunca foste parco de justiça, não comeces agora.

(perante o silêncio de Teseu, Hipólito inicia a sua defesa)

Ainda nem o sol rodou um dia à volta da Terra, e Fedra tentou seduzir-me, Teseu!

(este joga a mão à espada, novamente, e Hipólito estende a mão, pede)

Espera, Teseu! Espera, por favor. Escuta tudo até ao fim, mesmo que te custe, pois essa é a tarefa de um juiz. Talvez pela ausência de notícias tuas, não sei, ela…

TESEU

És capaz de me dizer que não foste procurar-me em Atenas?

HIPÓLITO

Fui procurar-te, sim. Não era só eu que estava preocupado, mas também Fedra. Fi-lo para lhe dar descanso.

TESEU

Não é então verdade que quiseste tê-la como mulher e foste a Atenas em busca da prova da minha morte, de modo a que ela se entregasse a ti, como te tinha prometido se se confirmasse a minha morte, Hipólito?

HIPÓLITO

O quê? Que loucura é essa, meu… Teseu?  Que loucura é essa? Que renegue a Ártemis se tal enredo aconteceu de verdade! As palavras são capazes de tudo, Teseu. Meu pai sabe bem disso! Mas quererá isso dizer que seja verdade? Agora, aqui mesmo, posso dizer que matei Fedra. E as minhas palavras fazem disso verdade? Está por acaso Fedra morta?

TESEU

Deixa-te de palavreado, Hipólito! Quero factos! Factos!

HIPÓLITO

E exigistes factos a Fedra, quando a escutaste? Exigiste, Teseu? Ou só os exiges a mim?

(Teseu fica um pouco confuso e Hipólito aproveita para continuar)

Porque não chamas Fedra agora, aqui? E exiges de ambos factos. E escutas de ambos as palavras. Um frente ao outro, Teseu. Assim continuarás a ser o bom juiz que sempre foste. Não dês mais valor às palavras de um que às de outro. Ela é tua mulher e eu sou teu filho. Mas ainda que não fôssemos para ti senão estranhos, ou só um de nós o fosse, terias de escutar ambos com o mesmo comprimento de espada. Não te parece que tenho razão, que estou certo? Não foi assim que me ensinaste, desde cedo na vida?

TESEU (para o chefe dos guardas)

Envia alguém aos aposentos de Fedra, e que ela venha imediatamente ao seu rei, que é urgente.

(o chefe dos guardas dá sinal a um dos guardas e ele parte)

24 Out 2017

A jovem criada

A jovem criada

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e noite, sobre o prado nu,

Ela agita-se em sonhos febris.

Amuado lamenta, no prado, o vento,

E a lua está à escuta nas árvores

Logo empalidecem as estrelas em redor

E, exaustas de queixumes,

As suas faces de cera empalidecem.

Uma podridão exala da terra.

Triste, sussurra o canavial na lagoa

E, encolhida sobre si, gela de frio.

Ao longe, canta um galo. Sobre a lagoa

Dura e cinzenta, estremece a manhã.

Die Junge Magd

Nächtens übern kahlen Anger

Gaukelt sie in Fieberträumen.

Mürrisch greint der Wind im Anger

Und der Mond lauscht aus den Bäumen.

Balde rings die Sterne bleichen

Und ermattet von Beschwerde

Wächsern ihre Wangen bleichen.

Fäulnis wittert aus der Erde.

Traurig rauscht das Rohr im Tümpel

Und sie friert in sich gekauert.

Fern ein Hahn kräht. Übern Tümpel

Hart und grau der Morgen schauert.

 

A jovem criada

Na forja, retine o martelo,

E ela apressada pelo portão passa.

Incandescente o martelo o criado brande,

E ela olha para ele como se estivesse morta.

Como num sonho, ela é atingida pelo seu riso

E cambaleia em direcção da forja.

Agacha-se envergonhada com aquele riso,

Duro e grosseiro como o martelo

As centelhas espalham-se claras pelo espaço

E com gestos impotentes,

Ela procura agarrar as selvagens centelhas

E cai aturdida por terra.

 

Die Junge Magd

In der Schmiede dröhnt der Hammer

Und sie huscht am Tor vorüber.

Glührot schwingt der Knecht den Hammer

Und sie schaut wie tot hinüber.

Wie im Traum trifft sie ein Lachen;

Und sie taumelt in die Schmiede,

Scheu geduckt vor seinem Lachen,

Wie der Hammer hart und rüde.

Hell versprühn im Raum die Funken

Und mit hilfloser Geberde

Hascht sie nach den wilden Funken

Und sie stürzt betäubt zur Erde.

23 Out 2017

Início de vida do compositor Xian Xing Hai

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ormalmente acontece a quem se dedica de alma e coração a uma causa, ou a um ideal, passar enormes sacrifícios e privações, tendo geralmente a saúde afectada e uma morte prematura. A maioria, após passar esta vida permanecerá incógnito e só poucos atingem o reconhecimento. Tal ocorreu com o mundialmente conhecido compositor Xian Xing Hai, autor da Sinfonia Rio Amarelo, que nasceu em Macau em 1905.

O nome de Xian Xing Hai só apareceu em 1978, quando o Partido Comunista Chinês traduziu o seu nome pelo sistema hanyu pinyin (alfabeto fonético chinês vulgarmente denominado mandarim; um sistema de romanização dos caracteres da língua chinesa feito a partir da sonoridade das letras do alfabeto em língua inglesa e que a China após algumas reformas arranjou em 11 de Fevereiro de 1958). Até então e durante toda a sua vida, Xian Xing Hai fora sempre conhecido por Sinn Sing Hoi, pois era traduzido pela sonoridade do pinyin cantonense.

Sinn Sing Hoi, descendente duma família de pescadores oriundos de Pan Yu (Poon Yu, em cantonense), nasceu a 13 de Junho de 1905 na Praia do Manduco, em Macau, já o pai, Xian Xi Tai (冼喜泰) falecera. Durante seis anos viveu na casa do avô feita em palafita sobre o Rio do Oeste (Xijiang) com a mãe Huang Su Ying (黄苏英) e este. Após a morte do avô e para garantir a subsistência da família, em 1911 ambos emigraram para Singapura. Aí, enquanto a mãe trabalhava como empregada doméstica, o jovem com dez anos recebeu a sua primeira educação em troca de pequenos trabalhos que realizava para a escola estabelecida pelos ingleses. Já em 1916 “entrou para a Escola Yang Zheng, mantida pelos Chineses do Ultramar, que estava sob a tutela da Universidade de Ling Nan. Nesta escola recebeu a primeira educação musical. Aprendeu a tocar instrumentos, tais como oboé e piano, sob a influência do professor Ou Jian Fu”, como refere Wang Ci Zhao.

Aos 14 anos, Xian Xing Hai, acompanhado pela mãe, veio para Cantão na esperança de poder, com melhores condições, completar os estudos secundários, o que ocorreu dois anos mais tarde. Assim, em 1920 entrou na Escola Secundária da Universidade de Ling Nan em Cantão, onde depois frequentou o curso propedêutico da Universidade, enquanto dava aulas como professor para pagar os estudos e trabalhava como dactilógrafo para o sustento da família. Conseguia ainda tempo para a sua grande paixão, a música. Estudava e aprendia a sério o seu instrumento preferido, o violino, enquanto participava no grupo de sopros da escola, sendo também maestro.

Afirmação como músico

A viragem na vida de Xian Xing Hai ocorreu quando decidiu deixar Cantão e ir já sem a mãe para Pequim estudar música, composição e violino. Segundo Veiga Jardim, “Com poucos recursos, em 1926, viaja até Pequim, onde, através de amigos consegue obter uma melhor instrução musical bem como aulas de violino no já extinto Colégio de Artes de Pequim”. Já Wang Ci Zhao refere, “Estudou violino sob a orientação de Tuno, famoso professor russo, na Escola Nacional Especial de Arte de Pequim, dirigida por Xiao You Mei. Em Setembro de 1928, ingressou no novo Conservatório Nacional de Xangai, especializando-se em violino, mas frequentou também os cursos de Teoria Musical e Piano.”

Trocando “Pequim por Xangai, onde se matricula no tradicional e rígido Conservatório de Música” (…) “após um curto período, é expulso, em função do seu envolvimento no movimento nacionalista estudantil de 1929”, segundo refere Veiga Jardim. Nesse ano, “publicou no periódico do Conservatório, um artigo intitulado A Música Universal, onde apresentava pela primeira vez a sua posição sobre a música, que viria a manter por toda a vida. Defendia: (…) <Do que a China necessita não é da música privada ou da nobreza, mas sim da música universal. (…) A pessoa que aprende música [deve] assumir a importante responsabilidade de salvar a China enfraquecida>. Durante a estadia em Xangai, conheceu o dirigente do Movimento de Teatro Progressista e participou nas actividades teatrais da Sociedade do País Meridional”, como diz Wang Ci Zhao, subdirector do Conservatório Central de Pequim à data da publicação do seu artigo sobre a vida e obra de Xian Xing Hai.

Desgostoso com a expulsão do Conservatório de Xangai e sentindo necessidade de alargar os seus conhecimentos musicais, sendo apoiado por amigos, no Inverno de 1929, o jovem músico, então com 25 anos, resolveu emigrar para a Europa. Em Paris, viveu cinco anos em condições muito difíceis de sobrevivência, nada que já não estivesse habituado, pois logo desde nascença assim fora o seu fado. Veiga Jardim refere ter ele aí exercido “um sem-número de actividades que lhe garantiam o provimento para a sua subsistência, entre as quais se contam as de baby-sitter, telefonista e copista de partituras”. Conseguiu matricular-se no Conservatório Superior de Música no curso de violino com o famoso professor Paul Oberdoeffer, composição com Vincent D’Indy, teoria musical com Noel Gallon e direcção de orquestra com Labey.

Mais tarde, em 1934, aperfeiçoou-se na arte de compor, quando “ingressou por meio de exame na classe superior de Composição do famoso compositor Paul Dukas. Em 17 de Maio de 1935, Dukas faleceu subitamente. Xian Xing Hai foi obrigado a interromper os estudos e regressou ao seu país no Outono do mesmo ano. Aquando da estadia em Paris, compôs a obra ‘Vento’, para soprano, oboé e piano e a Sonata para Violino em Ré Menor. ‘Vento’ foi apresentada em Paris, onde recebeu crítica muito positiva”, segundo Wang Ci Zhao. Datam ainda desta época várias peças para piano solo.

“Após sete anos em França, e num estado de extrema pobreza que, em absoluto, não o impediu de continuar a compor abundantemente, decide, em 1935, retornar à China, no desejo de encontrar novas oportunidades”, como refere Veiga Jardim.

Após concluir os seus estudos regressou à China em 1935 e em Xangai ao ver o seu país a ser invadido pelos japoneses, juntou-se à luta de resistência. Veiga Jardim refere, “A opressão pela qual passava o seu povo, fizeram com que viessem à tona as memórias do tempo das revoluções estudantis em Xangai. A partir de então, movido por um altíssimo espírito patriótico, engaja-se no movimento emancipador escrevendo uma série de obras de cariz nacionalista”. Escreveu durante esta época mais de 300 canções, na maioria música de intervenção de cariz patriótico contra os invasores nipónicos. Com um grupo de teatro de que ele foi um dos impulsionadores, viajou para várias partes da China levando a mensagem de conforto e encorajamento à população na sua luta contra a dominação japonesa.

20 Out 2017

Actualizar. Reiniciar.

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]uardar. Não sei o quê, nem onde. É lá com ele. Olho-o. Antes ainda de abrir, adivinho. Actualizações. Sempre. Todos os dias em que nada lhe disse, nada lhe trouxe. Todos os dias, em que não me traz algo que ajude a desembrulhar as minhas questões para a vida. Para o dia. Para aquele instante em que deveria ser eu a actualizar a alma e a dar-lhe conta disso. Este caderno tecnológico e limpo, em que quase antevejo um subtil sorriso de troça, quando na minha precipitação de iniciar um trabalho, reter um pensamento que me ampara, ou arrumar esta casa cheia de objectos que proliferam como fungos, sim, quase lhe adivinho a malícia de, em vez de bons dias, começar por se mostrar indisponível. Temporariamente indisposto para colaborar, a necessitar de reinício, de actualizar as actualizações. Santo Deus. Esteve a dormir durante dias. Que raciocínios complicados se revolveram no seu interior adormecido que precisam uma ginástica e uma deferência para com estas suas complexidades, que passam à frente das minhas urgências. Depois começo. E lá está ele a fornecer mais possibilidades como um programa de moda, a fornecer tendências inadiáveis de estação, formas, comprimentos – de onda, talvez -cores para a alma senão o corpo. Padrões, texturas. Quando só quero escrever umas linhas. Rever a alma e os sonhos, voltando um pouco atrás, ou tentando prender um momento antes que se dissolva no esquecimento. Ao fechar, a mesma coisa. Quero sair, à pressa. Não. Sua excelência, perentoriamente recusa-se a colaborar sem mais umas actualizações. Caprichos insondáveis a que não posso deixar de ceder. Impaciente. Quando só quero fechar o caderno e arrumar a caneta. Sair, encerrar o assunto.

O contrário de mim. Questões de sistema operativo, talvez. Eu, sempre um pouco fora de moda, a oscilar entre apelos vários de várias épocas, do mundo, de mim. Numa cronologia de sentir, temperada de modo diferente ao do suceder de estações, tendências e mudanças. Tudo -sem querer – a um ritmo próprio.  Actualizações também, e paragens, mas às vezes, ao contrário deste PC mais novo e mais caprichoso que os outros, refazendo dados que numa linha de um tempo de trás para a frente, situaria do lado que passou. Coisas válidas. Coisas a não perder na voragem desse fio de sentido único.

Se me repito. Penso tantas vezes quando retomo as mesmas ideias, o mesmo sentir. Talvez. Como não repetir a casa onde vivo, o que vive comigo, o que mora, o que me habita? Como não me repetir na pessoa que sou através dos dias, das impressões, das emoções, do sentir. Um pouco retro. Um pouco démodée. Um pouco sem oscilações maiores que as das tempestades que me acolhem o acordar de sonhos tormentosos e felizmente no mesmo corpo, na mesma alma. Não posso tecer juízos sobre esta constância. Antes sobre tudo o que obriga a uma adaptação permanente. O que tende a forçar a uma renovação mais rápida e impertinente do que a simples renovação celular, a do ar nos pulmões. A uma mudança de imagem, de sentir sem tempo para lutos. Sem tempo para o tempo. Estes necessários e compulsivos updats da vida a pressionar como um hematoma. Um consumismo existencial a acompanhar o outro. As pessoas. Como se mudassem todos os dias e alguém tivesse algo a ganhar ou a perder ou a ver com isso. Sou tão old fashion, eu. Guardo sapatos com vinte anos. Guardo sapatos carinhosamente com mais tempo do que isso. Em tempo e em gosto. Claro que quando os calço, pregam-me sustos. Descolam. Talvez da realidade. Como eu, às vezes, no coração. Desabituados de caminhar. De aparência idêntica e fora do tempo – como gosto disso – e, no entanto, algo neles envelheceu. A saúde talvez. Nada que um bom sapateiro não remedeie como se nada fosse ou tivesse sido. Claro. A emenda do tempo.

E, quando penso em “Updates”, só me apetece dizer: I’m always dating the same. Dreams. Em que fico. sossegada no meu sentir de ontem. De amanhã. Nos meus lutos. Intempéries. Derretendo da mesma maneira.  Com as mesmas coisas. (Esta coisa talvez do feminino ou talvez de pessoas, de deixar o mar entranhar-se na pele como se não houvesse morte por afogamento. Uma coisa com a história de sempre. Este deixar-se. Entranhar. Deixar entranhar-se). O mar, o medo, gostar. Mesmo quando tudo se quebrar e segregar em pedaços ínfimos e irreparáveis, e todo o sopro se contiver de inércia e desconhecimento de qualquer caminho, e qualquer vontade de voar, e tudo parecer não estar. Mesmo quando. Ainda nada em mim será diferente, mesmo se não igual e hei-de morrer disso, de mim. Igual e diferente.

Nasci alguém assim com o tempo percorrido e mantenho-me delimitada pela mesma pele e a mesma casa. Escolhi. Esta. Fui tratando. Aquela, esta. No possível e através da experiência do tempo. Mas não tenho outra. Assim mantenho-a e mantenho-me constante e subterraneamente metamórfica no pouco que consigo que o tempo produza. Uma atenção sem pressa. Uma luta para conter a velocidade. Que não posso evitar. Linhas que conduzem. Que delimitam e limitam. Poalhas que tolhem os gestos e o caminhar. Dúvidas nos dados que se multiplicam. Como se hoje tivessem dez, doze faces e muitas mais pintas pretas do que dantes. Circunvoluções nos dias, vindos da tormenta das noites a atravessar sem sono. O que ensombra, o que enfarrusca ou faz brilhar. Um tudo. Mas o que sobra dos sonhos, sei lá bem porquê é o regresso de uma batalha imprecisa e inconclusiva.

Eu tento entender o medo. O meu medo, figura múltipla em árvore que invertendo redunda numa única raiz, causa, origem. Tento a todo o preço conhecer o que me tolhe. E tento entender os medos do outro. Sempre. E, às vezes exagerando talvez um pouco na expressão do dramatismo, vejo aí o bicho feroz e básico que projecta, reprime, define e redefine perpetuamente os passos de cada um por todo o lado, por onde vá, por onde não foi. Eu tento entender o medo. Mas o medo não é o género de criatura para se entender na noite porque aí, como é da sua natureza, exorbita e espalha-se por todo o espaço disponível da casa. Ou mais ainda.

Eu sei o que dói antes do sonho da noite e sei o que se acrescenta depois. O que me revolve no escuro, me chicoteia na emergência da luz, naquela fímbria fina por cima da portada da direita que nunca encosto o suficiente. A luz a chegar – mas gosto de a ver – e se a vejo chegar mau sinal para o descanso do corpo e da alma que não serenou no esquecimento do sono. Sei com que me deito. Acordo do sem dormir com mais equações do que sabia. A querer espantar uma espécie de agonia. Mas que se vai diluindo no dia. Esse dia a acudir ao reboliço da noite e a trazer talvez algum silêncio.

Penso tantas vezes no silêncio. Como uma coisa boa de sentir. Como um refúgio quente e confortável. Como uma frase de amor. Como uma arma de arremesso. Esse. De todas as espécies, e como um cientista dedicado, passo tempo a bafejá-lo para o caso de lhe faltar a respiração e desfalecer. A olhá-lo com olhar leve, para o caso de lhe doerem as articulações a caminhar para a idade. Os silêncios envelhecem como as pessoas e seguramente com as mesmas qualidades, defeitos e achaques. É preciso, por isso tratá-los com carinho e cuidado. Mas saber distingui-los. Os que são inofensivos daqueles que mordem por querer.

Penso tanto nisso quando os afectos desta vida me brindam com um. Distingui-lo. desembrulhar-lhe o papel bonito de silêncio, sem destruir o papel bonito. De silêncio. Desvendar a primeira aparição do rosto. Fechado. De silêncio. Entender que expressão minha, do rosto, esteve antes desse rosto pensativo e hermético. De silêncio. Perceber é tão difícil como saltar para o lado de lá do espelho e ouvir com o olhar desse silêncio específico, as palavras proferidas pelo meu olhar. E ouvidas de lá. Desse lado de lá. Desse silêncio que pode ser outro. Desse silêncio. E não do outro.

É assim. O labirinto. Em que as pequenas coisas que fazem a vida nos conduzem a perder. E as pessoas, os seus silêncios assim também. A perder. A deixar-nos perder. E a perder de vista.

O silêncio como toda a sua qualidade inexcedível, exige uma arte rara, momentos muito bem escolhidos e uma expressão, que de tão específica e adequada, faz dele uma obra de génio. Não confundir com qualquer sucedânea falta de resposta, qualquer engolir em seco ou qualquer contrafeita e artesanal habilidade de passar em frente. Um belo silêncio exige uma empatia no tempo e no espaço, que às vezes recorre aos olhos, espelhos que, quando querem, são límpidas portas da alma. Exige uma respiração como o canto, e que se sente, ouve ou intui na imperceptível reverberação dos átomos, no ar, nesse elemento comum. Exige às vezes o esboço de um gesto que não chega a ser mas conduziu o sensível, uma alma partilhada num território musical e sem perda.

Anda tão desvalorizado este silêncio e confundido com a fast food do nada que se diz porque não se tem disposição, vontade, coragem para mais. E quem diga que é uma boa resposta e tão válida como outras, nada entende da alma solitária e humana que murcha na secura do não entender. O nada é a resposta pobre. O parente pobre do silêncio. Já um grande silêncio nunca o foi. Essa arte de tudo deixar expresso na mais fina matéria do que é manuseável pelo universo sensível do humano que somos. Hábeis em manipular a expressão do todo que nos foi dado usar. O mundo anda feio. Como sempre andou. basta pensar nas cadeias alimentares e mesmo sem metáforas em curso, para cair na tenebrosa impressão de que todos os desígnios concorrem para uma contranatura que só a nossa alma consciente e o intelecto de que fomos munidos sabe-se lá porquê, afinal, nos salva. Com critérios que em simultâneo nos fazem sofrer com o visível e em tamanha medida também nos catapultam para a compulsão de fabricar um belo que não há. Somos peritos nisso. Se formos e quando somos. Em produzir coisas artificiais e de beleza que conforte a nossa desnecessária inconformada solidão. A da desadequação. À violência. À crueldade. Ao não sentido por inábil insatisfação. Mais. Do que o simples ser existindo, e porque a natureza se fez de fenómenos complexos e desta forma.

Subversivos é o que somos. E pouco naturais porque mais não conseguimos ser. Fugindo à barbárie de prosseguir a onda natural e sem ética, porque esta, humana. Aí chegamos. Ao contributo que sem querer ou sobretudo por querer rebelde, acrescentámos ao natural. A arte, o pensamento, a expressão. E o natural tem aspectos tão belos como ser natural na sua inocência de o ser e não intencional. Como o não é a maldade natural. A da natureza que se consome a si própria em ritmos de sobrevivência. Num equilíbrio qualquer que também aí, às vezes, se corrompe. Dramática. E, contudo, bela mesmo assim. Mesmo quando horroriza. Hesito, então, também às vezes, ante a maldade desta espécie humana. Entender-lhe os resquícios de fragilidade de quem – sendo-lhe dada mais consciência do que aos outros animais, e passe o criacionismo aparentemente implícito – sofre de excesso, de medo. Mais difuso por inúmeras vertentes do que é dado aos outros animais. Demasiadas pensamentos, demasiadas mudanças. Demaisiado em variáveis. Humanos. Demasiado humanos.

20 Out 2017

Valeu a pena

Omnia fui, et nihil expediti.

Séptimo Severo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que nasci, vivi rodeado de livros. Esses, os que já existiam lá em casa antes de mim, continuam sendo, e creio que serão para sempre, os que mais me marcaram.

Contudo, a dado momento, naturalmente, a biblioteca do meu pai deixou de ser suficiente para alguns aspectos da minha curiosidade e do meu gosto pessoal. Assim, comecei a comprar alguns livros e, sobretudo, a socorrer-me dalgumas das bibliotecas públicas que então existiam na cidade de Lisboa. As que os governos britânico e norte-americano nos proporcionavam (entretanto, ambas encerradas), contam-se entre as que me foram mais úteis.

É bastante provável que tenha sido aí que se geraram e estruturam vários aspectos da minha anglofilia, um amor por um Reino Unido que só muito tangencialmente existe e talvez nunca tenha existido de outro modo, por uma selecção que resulta numa invenção por medida. Mas não será sempre assim, com todos os amores?

Amo Madrid. Gosto do ruído das ruas e dos bares, dos seus restaurantes e tascas, do mercado de San Miguel e de outros mais pequenos, incrustados nos bairros, do Museu do Romantismo, da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, do Museu Lázaro Galdiano, dos três grandes museus, mesmo se com filas à porta, etc.

Também gosto muito de Bruxelas, da Bélgica, em geral, e de Bruxelas, em particular. Uma cidade mal-amada pela maior parte dos que a visitam. Gosto do pequeno Impasse Saint-Jacques, do teatro de marionetas Toone, de mexilhões com batatas fritas, do Museu dos Instrumentos Musicais, de um densíssimo ragout que comi num pequeno restaurante familiar ao pé do Menino Mijão, dos Musées Royaux des Beaux-Arts, da brasserie A La Mort Subite, etc.

Gosto muito de uma pequena vila piscatória na Cornualha, chamada Polperro.

Amo, mais do que qualquer outro lugar, uma minúscula aldeia de xisto, atravessada por um rio, no meio da Beira Litoral. Dessa, não vos direi o nome.

Acerca de Lisboa também não falarei muito. A minha relação com a cidade é demasiado pessoal, quase doentia, certamente dolorosa, para que a minha experiência possa aproveitar a terceiros. Não, não faz sentido eu falar da Lisboa que existe e não tenho idade para falar da Lisboa-aldeia, de aguadeiros e choras.

Contudo, recordo uma cidade em que muitos aspectos desta última sobreviviam ainda, nos bairros históricos, a par de cinemas e centros comerciais microscópicos, sobretudo nas Avenidas Novas, os quais anunciavam já os muitos desmandos que, paulatinamente, foram tomando conta da cidade, que ganharam dimensões assustadoras durante o “cavaquismo”, e que tiveram a sua apoteose no verdadeiro monumento urbanístico-arquitectónico à saloiice triunfante que é o Parque das Nações.

Limitar-me-ei aqui a listar alguns museus lisboetas que me encantam: a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, a Casa-Museu Fundação Medeiros de Almeida, o Museu de Macau, o Museu da Carris, o Museu Geológico (um museu de um museu…), o Jardim Botânico Tropical (apesar do estado ruinoso em que se encontra).

Como já devem ter percebido, os museus, alguns museus, sem didactismos ou tecnologias, mais ainda do que as bibliotecas, sempre foram os locais onde me senti melhor. Porque muitos deles estão quase sempre vazios, o que convém aos momentos em que me apetece fugir do mundo, porque não pertencem ao tempo e ao espaço presentes, porque combinam bem com uma certa forma de aristocracia, novecentista, vitoriana para ser mais exacto, que sempre cultivei de mim para mim.

Certa vez, inserido num grupo, fui realizar um espectáculo a Braga, ao Museu Nogueira da Silva, outro dos meus preferidos de Portugal (o predilecto é, certamente, a Casa dos Patudos, em Alpiarça). Ao chegarmos ao museu, que era suposto providenciar-nos alojamento, a senhora que nos recebeu disse que ficaríamos a dormir no próprio edifício. Supusemos que, nas traseiras, algures por detrás do belíssimo jardim, houvesse um anexo onde seríamos hospedados.

Qual não foi o nosso espanto (perdoem-me a formulação batida) quando fomos conduzidos a quartos que integram o espaço do museu e as camas de dossel e demais mobiliário foram postos à disposição dos nossos reais costados!

Em circunstâncias várias, tenho dormido em hotéis de muito luxo, aos quais, aliás, em geral, preferiria uma hospedaria modesta. Mas nunca antes nem depois daquela noite dormi num local tão condizente com os pergaminhos que a mim mesmo me outorguei.

De facto, às vezes, sabe bem sermos bem tratados. De tal modo que só então nos apercebemos do bem que nos faz, da falta que isso nos fazia sem que nos inteirássemos.

Há uns anos, decidi presentear-me, e à minha namorada de então, com uma viagem à Grécia, sem cuidar do facto de que a Páscoa ortodoxa decorria nesse período. O nosso destino final era a ilha de Spetses, uma das Ilhas Sarónicas, logo a seguir a Hydra.

Em Atenas, encontrámo-nos com um conhecido, calhou em conversa perguntar-lhe qual o melhor restaurante da ilha, tendo em vista o jantar da noite de Páscoa, e recebemos uma resposta cabal, quase impositiva.

O que não sabíamos é que a ilha iria estar repleta de atenienses e que uma chuva copiosa se abateria sobre todos nós.

Assim, ao chegarmos à porta do restaurante recomendado, uma turba cercava já a entrada, sem que, todavia, a sorte lhe sorrisse. As mesas estavam todas reservadas, e o mesmo deveria suceder nos demais estabelecimentos.

Preparávamo-nos, pois, para regressar ao hotel e debatermo-nos com uma longa noite de larica quando o dono do restaurante me perguntou: “Portugueses?”; e, ante o nosso espanto, nos conduziu à mesa que o tal conhecido, providencialmente, nos reservara.

E mais espantados e agradecidos ficámos quando, após o excelso repasto, nos foi servido, junto com uma travessa de sobremesas variadas, o anúncio de que a conta fora, previamente, saldada pelo nosso anjo da guarda.

Nessa noite, para mais embalados pelo marulhar das águas que lambiam as fundações do hotel, dormimos um daqueles sonos que não nos é dado dormir todos os dias.

19 Out 2017

Ensaios sobre a ordem e a desordem 1

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ornámo-nos mais pobres, à medida que fomos ficando mais ricos – farto de martelar isto nas aulas, constato que nada é levado a sério enquanto não ganha a autoridade da letra de forma. Impõe-se-me um esforço de síntese.

Comecemos pelo mais corriqueiro exemplo: o Michael Jackson não é um génio e a sua contribuição para a música será avalizada numa nota de rodapé de um subcapítulo sobre o século xx e a extensão pop-rock da música popular. Mas motiva cinco mil vezes mais artigos nos media do que, por exemplo, John Cage, este sim, um génio.

Por que se dá esta distorção das perspectivas?

Devido às falácias próprias às indústrias culturais, que ameaçam submergir-nos.

Acentuou-se nas duas últimas décadas o recrudescimento de uma inversão na ordem simbólica dos valores culturais, impelido por dois factores que se conjugam simultaneamente: pela primeira vez na história da humanidade vivemos mergulhados num caldo comunicacional simbiótico em que se enfeixam como ingredientes farrapos de distintos regimes de cultura (a Cultura Popular, a Cultura de Massas, a Cultura Humanista/Erudita, e a Cultura Digital – fiquemo-nos por esta tipologia, para simplificar), sem que se tome em conta que esses regimes, afinal, manejam modos de produção e mesmo pautas cognitivas diversas; depois, as “indústrias culturais” (digamos, o braço armado da Cultura Popular) fizeram da globalização o seu combate e tendem a procurar algoritmos que uniformizem o que se oferecia como estrias identitárias profundas e (até certo ponto) inconvertíveis.

Ora, de entre os vários dispositivos emanados pelos diferentes regimes de cultura, só os da denominada indústria cultural lograram a capacidade para atingir e disseminar-se por todo o mercado global – e a escala desta dimensão perverte tudo.

Vou exemplificar dois aspectos observáveis na última Revista do semanário Expresso.

José Mário Silva, “obrigado” pela pressão do que seja considerado mainstream (ele que não o fizesse e seria acusado de elitista, etc.), abriu a secção dos livros com uma crítica de página e meia ao último romance de Dan Brown, para avisar afinal que o romance além de falhado é fake (- previsível, quem enriqueceu a escrever tão mal vê necessidade de escrever melhor?), razão suficiente para só lhe dar uma estrela. E não foi por avarícia, acredite-se. Na página ao lado temos no curto espaço de uma coluna a recensão de Pedro Mexia ao último Roth saído em Portugal, com direito a cinco estrelas.

A lógica que preside ao critério desta ordem dos artigos é simples: Dan Brown, que esta semana lançou o seu livro na Feira de Frankfurt, é tratado como acontecimento – e aqui a suposta qualidade literário daquele produto é uma dispensável cereja no bolo. O marketing acrescentará ao produto a notoriedade q.b. para que ele se venda, a granel. Um filme que o adopte já estará negociado, etc. O resto é sustentado pela pressão do mercado sobre o gosto e as subjectividades enquanto aos disjecta membra da cultura irá sobrepor-se o poder das “instituições” daquele. E a ordem simbólica deste novo poder fixa e enclausura, satisfaz e codifica. O que implica rituais de assimilação, de interdição e de desqualificação – mesmo que nada disto passe do domínio do implícito.   

Para exemplo desta suave lógica de desqualificação (feita de forma inconsciente para si mesmo, a jornalista – que conheço – é boa pessoa) atenhamo-nos à entrevista a António Mega Ferreira, com chamada de capa igualmente nesta última Revista.

Mega Ferreira é um prolífico escritor que tem contra ele o estigma de ser um homem público e de ter sido e continuar a ser um gestor cultural de qualidade. Num país como Portugal, de parca imaginação, nunca se admite que alguém possa fazer bem várias coisas ao mesmo tempo, o seu eclectismo soa a crime inconfessado.

Como sou um teso, só lhe li o primeiro livro de ficção, O Heliventilador de Resende, que tinha mais do que a graça de ser bem arejado, e um dos dois livros de poesia, bom o suficiente para merecer uma atenção cuidada aos seguintes, mas li-o no registo biográfico, com Macedo, Uma biografia da Infâmia, e vários livros de ensaios, nomeadamente o D. Quixote : o literato, o justiceiro e o amoroso (2006), O deserto da Europa (2007), Viagem à Literatura Europeia (2014), Vidas Instáveis (2014) ou Viagem à Literatura Sul-Americana (2017). Neste género de ensaios que cruza a história da cultura com a da literatura, não vejo quem se meça com ele em Portugal. É o nosso Simon Leys.

Contudo, poucos o lêem ou se manifestam e ele próprio se queixa de não ter leitores: «Ou me lêem pouco, ou sou um péssimo escritor.» Há evidentemente um laivo de ironia neste queixume.

Na capa, retirada a citação do contexto, é que me parece essa ambiguidade perder-se de todo. Somemos agora a uma eventual leitura literal a observação final da entrevistadora, que roça a sentença: «Provavelmente António Mega Ferreira será lembrado como o homem que fez a Expo-98», ao que o próprio replica, elegantemente: «E se as árvores continuarem a crescer como cresceram até agora ainda bem» (- e foi imprudente a jornalista, de certeza que não leu metade dos 32 livros que o intelectual Mega Ferreira tem publicados).

Com que ficamos, subliminarmente, somados o título da capa mais o desfecho da entrevista? Com um autor que parece atestar a menoridade do que escreveu.

Não creio que Mega Ferreira o merecesse, não creio que a Ana Soromenho tivesse calculado esse efeito – apenas no elementar jogo de regras fixas (a chamada de capa de uma entrevista tem de ser uma citação, etc.) em que a informação se tornou calhou assim, fazendo realçar a perversa dimensão (atenção, não falo de intenções) oculta com que o sistema pensa por nós.

O Estado, escrevia Freud, proíbe ao indivíduo a injustiça, não para aboli-la mas sim porque pretende monopolizá-la, tal como faz com o tabaco e o sal. Se substituirmos aqui o Estado pelo Mercado, teremos lenha para continuar… (à suivre)

19 Out 2017

Da sorte que o azar trás

Monumental, Lisboa, 8 Outubro

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]este outonal Verão, acolhidos pela sombra expressionista do limoeiro, a que o Manel [San Payo] chama bonsai, montámos banca na EDIT, a Feira de Edições de Lisboa, erguida pela Filipa Valadares, da STET, pela terceira vez. Por causa do ar que me enche os bolsos, aproximei-me pouco das tentações. E se foram muitas, nesta festa de biodiversidade, com os mais díspares percursos, artísticos e da curiosidade, profissionais e do gozo, a desembocarem com faustosa riqueza no objecto livro. Riqueza não significa apenas essa luxúria dos materiais e dos formatos e das técnicas, que tanto irritam os viciados em doutrinação; mas e sobretudo a exuberância das ideias, por vezes simples, capazes de criar uma experiência completa para todos os sentidos. Por poucos que sejam os exemplares. Leitores, dos que usam o corpo todo, também existem. Comprovou-se, se preciso fosse, nas centenas que, colhendo ou cheirando, percorreram o refrescante jardim estendido ali por mais de 20 casas editoras. Para sussurrar, apesar da habitual desatenção mediática, que há mais livro para além do livro. E das livrarias (desatentas).

Mymosa, Lisboa, 11 Outubro

No último ano agravou-se, apesar da distância, uma ligação que, confirmo ao vivo e à mesa, temo ter acontecido há muito. Por admirar as várias facetas do trabalho do Rui Rasquinho, as bastante poéticas, como as outras mais pop-irónicas, chamei-o a jogo até que nos encontrámos no «Cidade em Forma de Assim» (ed. APCC), exercício delirante e trabalhoso em torno da ideia de utopia. Para as crianças que se atrevam. Isto sempre à distância, que ele vive em Macau. Ia escrever habitualmente, apesar da minha embirração com advérbios, tão conhecida na casa, mas não se vive habitualmente em Macau. Disso falámos, do fascínio com que as cidades nos consomem, também das imagens em que ardemos e até de música, de flamenco, por acaso, que ambos celebramos.

Nisto, entra Camané, que deixa como lastro do abraço o novo em que «Canta Marceneiro». Não deu para lhe dizer que entrou a meio daquele sapateado. Distraído, eu ainda não tinha visitado a casa que a sua voz ergueu a partir dos caboucos do mestre. Comecei ali a subir à pureza. «Naquela casa de esquina/ Mora a Senhora do Monte,/ E a providência divina/ Mora ali, quase defronte// Por fazer bem à desgraça,/ Deu-lhe a desgraça também,/ Aquela divina graça,/ que Nossa Senhora tem.» Irei com o Rui à Senhora do Monte, em horas tardias para escapar da turistada e dizer-lhe dos segredos do lugar onde Lisboa pode ser vista como abysmo. Por aqui, a graça e a desgraça moram na mesma rua. Vejo daqui.

Bicaense, Lisboa, 11 Outubro

A alguns, a vida assenta-lhes como pele. O mundo aconchega-se-lhes à passagem em coreografia, para mim, de espanto e simplicidade. Basta estarem para ser. As minhas nódoas negras, as cicatrizes de que tanto gosto, mostram que comigo a vida faz-se de arestas. Não me queixo, aprendi a viver com isso. O meu grande companheiro continua sendo o esforço. Sentamo-nos vezes sem conta em silêncio a olhar o mar, a ouvir música e a imaginar possibilidades. Depois levanto-me e trato de me arranhar, só por ir. Se nisto penso agora, culpo os Penguin Cafe Orchestra, caídos no ouvido. Em tempos, sem eles, tudo teria sido muito pior do mau que foi. Será o esforço um pinguim, como na capa do Matter of Life? O assunto surge também tintado de ironia por vir na sequência de se ter repetido no espaço de dias esta, para mim, estranha sensação de conforto. Preparo com os manos António [de Castro Caeiro] e Luís [Gouveia Monteiro] um programa de televisão. Pode até nem se confirmar, à semelhança de inúmeros anteriores, mas o que ganhámos já de entendimento e cumplicidade e gozo e aprendizagem compensou o pinguim, digo, esforço. A busca de sentidos faz sentido. Na dureza, está-se bem. Nasceria daqui samba se soubesse?

Horta Seca, Lisboa, sexta 13

Falta a caridade de uma reflexão ao fósforo «Um Dia Não São Dias», do António [Caeiro], sobre as sextas, 13, dia igual a nenhum outro. Qual bruxas, qual demónio! Por uma vez, não sacrificamos ao real e deixamos que o absurdo nos governe. Sem medo do medo. Atentos aos sinais, a querer por força crer. E rir, sendo outra a vontade. Gosto muito do 13, mais ainda se moldado em dia à sexta-feira. Esta concreta desfez-se pujante e mãe de múltiplas decisões, de planeamento e adiamento, de resolução e enterro de atrasos. As casas custam mais a arrumar aos que não sabem cantar. Quis o destino que ao crepúsculo me chegasse valiosa caixa de ferramentas, donde esta vontade de soltar a voz: e se a minha âncora fosse a lua. Podia ser verso de fado, házar?

Centros das Artes e Vila Flor, Guimarães, 14 Outubro

O mano Tiago [Manuel] saltou da criação e abalançou-se à organização: novo episódio na história hesitante da coisa desenhada, a Bienal de Ilustração de Guimarães. Cravou-me para membro do júri, e foi (quase) um prazer, basta dizê-lo para se arrumar na gaveta das éticas declamativas. Interessa sublinhar que a BIG surge distinta do que se vai fazendo neste país de macacos de imitação – primeiro aplauso. Há prémios a engordar as distinções, para os que vêm do passado (Carreira), como para os que se dizem do futuro (Revelação). Serão todos de hoje, tal a massa de onde emerge o Prémio Nacional, também assente em maravedis – segundo aplauso. Nada mau, se acrescentarmos a isto as costumeiras exposições, incluída a que está a cargo do fazedor do cartaz (nesta página), desta o enigmático Daniel [Lima] – mais palmas. Atenção às escolas secundárias, palestras e catálogo desenham o resto da teia que procura garantir raízes, em contra-ciclo aos mercados. De resto, puro prazer. O de ver a memória em acção, nos originais e palavras do iluminador de quotidianos (notas, selos, publicidade, livros e o mais), Luís Filipe de Abreu, resgatado do esquecimento muito pelo esforço do Jorge [Silva]; no volume da inestimável colecção D (conhecem?), da INCM; na exposição na Festa da Ilustração, em Setúbal, em 2016; e que agora nesta, acompanhada em mais uma bela lição dita, na manhã límpida de sábado. Subo ao largo do Toural para saborear a infância da Isabel em jesuíta que ilustra outras geometrias, antes de me perder em territórios conhecidos e noutros nem tanto. Estou sempre a perder rostos (Viva, Sebastião [Peixoto]! Olá, Bárbara [Rocha]!). Mais prazer, portanto, na alegria infantil das descobertas, mesmo depois de tantos salões, festivais, exposições. O Prémio Revelação, entregue à Carolina Celas, foi isso mesmo. Mergulho naquela frescura, nos materiais e perspectivas, tal qual a da sujidade preto e branco com que o João [Fazenda] pintou os contos da Granta. A coisa desenhada está viva! Irrequietude, com sabor a pastelaria fina?

Horta Seca, Lisboa, 16 Outubro

Na exacta madrugada destas linhas, metade do país ainda arde, a outra volta a chorar cinzas. Nesta altura não, mas estaremos em outra qualquer dispostos a enfrentar a realidade de que somos todos culpados? Que fomos nós quem escolheu saborear este coquetel de capitalismo selvagem e abandono das raízes, com pitada de corrupção (nos actores mais insuspeitos e não apenas nos políticos)?

18 Out 2017