Musas sem metafísica

Horta Seca, Lisboa, 27 Outubro

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m indivíduo chega exaurido, ainda que ao começo dos dias, cada manhã travestida de etapa intermédia na escalada dos himalaias. Desconsigo responder às solicitações, que logo florescem até ganhar as maduras cores da urgência. E depois vai chegando esta sazão das datas redondas, com amigo atrás de amigo a propor-se apreciar, qualificar, classificar, ajuizar, julgar, analisar, considerar, rever, medir, mensurar, aquilatar, ponderar, examinar, aferir pedaços de vida.

Tenho andado com o meio século do Zé Luiz [Tavares] iluminado pela melancolia, que não falho de humor. «Do cimo dos telhados vejo/ coisas atiradas sobre o mundo:/ um livro a arder num incêndio/ valente. Muita merda a passar/ sob as pontes. (Alguma/ é a poesia que se pode). // Uma bicicleta ergue-se entre/ o escuro e os meus dentes –/ é a musa sem metafísica, e leva/ o mundo no guiador. (Agora é bem/preciso arrojo para se ser poeta/ sem a almofada do divino).» Ando, portanto, de bicicleta entre o escuro e os meus dentes, aliás pouco claros – coisas da vida.

Vai daí o Nuno [Saraiva], por causa da exposição que o Festival de BD da Amadora lhe dedica por estes dias, deixa cair a banalidade de estar a celebrar 30 anos de carreira, palavra estranha em quem terá sempre a idade da adolescência. Contém trajectória e correria, vereda e linha de autocarros, mas não soa bem se aplicada a profissões que não parecem trabalho. Conhecemo-nos há tantos incêndios e muitas luas. Pus-me a rever a LX Comics, primeira paragem da carreira que apanhámos lá para os lados de Alvalade a pensar no Bairro Alto, quando ainda era uma coisa e outra em nós. Folhear a velha revista deu-me belo motivo para procrastinar, arte que o Nuno pratica com afinco! Logo ali, o anti-herói, Ladislau, contava em preto e branco de contornos bem vincados, gesto tardo-Tardi, diria o outro, peripécias de uma cidade que se descobria hedonista e múltipla, com várias margens e outras tantas suburbanidades. O desenho das musas respirava óbvia, mas terna volúpia e terá sido por isso que o sugeri ao Júlio [Pinto] para o feliz casamento que pariu, nas páginas do Independente, a Filosofia de Ponta. Foi por aqui, neste sucesso transversal, que trouxe a bd para a idade adulta e para fora dos guetos onde tende a cair, que o Nuno se começou a agigantar novo Stuart. Ou velho Saraiva, que sei eu. Não por acaso, qualquer pretexto lhe serve para o homenagear (veja-se no desenho desta página, uma das muitas personagens que a Amadora reclama como suas). E hei-de ainda descobrir caricatura do Nuno a borra de café assinada Stuart. A colecção, que há anos enchi de imagens, velhas e novas, com o El Corte Inglés e que a Assírio & Alvim editou, a pretexto do Prémio Stuart de Desenho de Imprensa, finou-se quando preparávamos volume sobre o Saraiva. Este projecto, como outros, que desta palavra ambos gostamos, não ficará para sempre atrasado. Nele se perceberá que, como o velho mestre, parte da arte do Nuno está na recolha, agora com três décadas anos, das figuras que fazem cidade, que são a sua pele. A edição recente (Arranha-céus/EGEAC) do álbum para colorir, «Pintar as Festas», resume as folhas da alface tão frescas e exuberantes que o desenho dele vem tatuando nas mais recentes Festas da Cidade. Diz ele: «Um marujo guitarrista arranha uma guitarra-bacalhau. Um cantor disco-pop-xunga que en-canta no palco e que é elétrico na micro-sardinha e acústico no salpicão. Uma marchante toda moderna e cheia de genica, tatuada com andorinhas que parecem atrair algumas sósias tradicionais peças de cerâmica. Um DJ Pride com phones-manjericos, master dos pratos com sardinha e chouriça. Um marujo apaixonado pela peixeira que, por intuição lógica, lhe oferece um ramo de sardinhas.» Uma graça, que dá outra pincelada no seu mister, a que mistura os tempos, o real e o mito. Regressemos a anteontem, onde as figuras da modernidade se cruzavam de forma disléxico com o jargão de pensamento prêt-a-porter. Foi aquele retrato nosso de fim-de-século, delirante e sarcástico e prazeroso, que a Bedeteca de Lisboa quis celebrar, em 1996, dedicando a sua exposição inaugural à Filosofia de Ponta. Exaltávamos ainda a inextricável relação entre o texto e a imagem, afinal a matéria-prima da narrativa gráfica. Houve muito de exultação naqueles dias, naquela casa. Apesar de inúmeros incêndios e tristezas valentes. Acabei até como personagem em fulgurante bd do Nuno cujo tema outro não podia ser que os atrasos… e a cidade. Era episódio de projecto mais lato, cuja intenção era desvelar as muitas cidades que Lisboa esconde. Como que por acaso, na empresa mais recente, o folhetim com Ferreira Fernandes, que o DN publicou, também a capital se ergueu protagonista: Lisboa, Porto de Abrigo (no prelo, em versão aumentada). Do hoje mais visceral saltou o artista para aquele passado que não deixou nunca de regressar: o fado. Outra afinidade com o malquisto pintor das nuvens e das varinas, mas o Nuno amadureceu, procrastina um pouco menos e investiga bastante mais, tendo contribuído em muito para dar corpo a contornos sumidos das figuras e das histórias daquele género de melancolia meio gritada, meio chorada, por vezes até alegre. Setúbal, e o pretexto não foram as suas magníficas bocagianas personagens que viveram pelas ruas, dedicou-lhe, há um ano, uma primeira retrospectiva. Modesta, sem alcançar o preito que tarda, mas o país parece ter o atraso como fado. Alegro-me que a Amadora te tenha dado palco, quanto mais não seja porque as tuas figuras identitárias a vão encher de cor.

E afinal, o que são 30 anos na vida de um gajo?

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários