Actualizar. Reiniciar.

[dropcap style≠’circle’]G[/dropcap]uardar. Não sei o quê, nem onde. É lá com ele. Olho-o. Antes ainda de abrir, adivinho. Actualizações. Sempre. Todos os dias em que nada lhe disse, nada lhe trouxe. Todos os dias, em que não me traz algo que ajude a desembrulhar as minhas questões para a vida. Para o dia. Para aquele instante em que deveria ser eu a actualizar a alma e a dar-lhe conta disso. Este caderno tecnológico e limpo, em que quase antevejo um subtil sorriso de troça, quando na minha precipitação de iniciar um trabalho, reter um pensamento que me ampara, ou arrumar esta casa cheia de objectos que proliferam como fungos, sim, quase lhe adivinho a malícia de, em vez de bons dias, começar por se mostrar indisponível. Temporariamente indisposto para colaborar, a necessitar de reinício, de actualizar as actualizações. Santo Deus. Esteve a dormir durante dias. Que raciocínios complicados se revolveram no seu interior adormecido que precisam uma ginástica e uma deferência para com estas suas complexidades, que passam à frente das minhas urgências. Depois começo. E lá está ele a fornecer mais possibilidades como um programa de moda, a fornecer tendências inadiáveis de estação, formas, comprimentos – de onda, talvez -cores para a alma senão o corpo. Padrões, texturas. Quando só quero escrever umas linhas. Rever a alma e os sonhos, voltando um pouco atrás, ou tentando prender um momento antes que se dissolva no esquecimento. Ao fechar, a mesma coisa. Quero sair, à pressa. Não. Sua excelência, perentoriamente recusa-se a colaborar sem mais umas actualizações. Caprichos insondáveis a que não posso deixar de ceder. Impaciente. Quando só quero fechar o caderno e arrumar a caneta. Sair, encerrar o assunto.

O contrário de mim. Questões de sistema operativo, talvez. Eu, sempre um pouco fora de moda, a oscilar entre apelos vários de várias épocas, do mundo, de mim. Numa cronologia de sentir, temperada de modo diferente ao do suceder de estações, tendências e mudanças. Tudo -sem querer – a um ritmo próprio.  Actualizações também, e paragens, mas às vezes, ao contrário deste PC mais novo e mais caprichoso que os outros, refazendo dados que numa linha de um tempo de trás para a frente, situaria do lado que passou. Coisas válidas. Coisas a não perder na voragem desse fio de sentido único.

Se me repito. Penso tantas vezes quando retomo as mesmas ideias, o mesmo sentir. Talvez. Como não repetir a casa onde vivo, o que vive comigo, o que mora, o que me habita? Como não me repetir na pessoa que sou através dos dias, das impressões, das emoções, do sentir. Um pouco retro. Um pouco démodée. Um pouco sem oscilações maiores que as das tempestades que me acolhem o acordar de sonhos tormentosos e felizmente no mesmo corpo, na mesma alma. Não posso tecer juízos sobre esta constância. Antes sobre tudo o que obriga a uma adaptação permanente. O que tende a forçar a uma renovação mais rápida e impertinente do que a simples renovação celular, a do ar nos pulmões. A uma mudança de imagem, de sentir sem tempo para lutos. Sem tempo para o tempo. Estes necessários e compulsivos updats da vida a pressionar como um hematoma. Um consumismo existencial a acompanhar o outro. As pessoas. Como se mudassem todos os dias e alguém tivesse algo a ganhar ou a perder ou a ver com isso. Sou tão old fashion, eu. Guardo sapatos com vinte anos. Guardo sapatos carinhosamente com mais tempo do que isso. Em tempo e em gosto. Claro que quando os calço, pregam-me sustos. Descolam. Talvez da realidade. Como eu, às vezes, no coração. Desabituados de caminhar. De aparência idêntica e fora do tempo – como gosto disso – e, no entanto, algo neles envelheceu. A saúde talvez. Nada que um bom sapateiro não remedeie como se nada fosse ou tivesse sido. Claro. A emenda do tempo.

E, quando penso em “Updates”, só me apetece dizer: I’m always dating the same. Dreams. Em que fico. sossegada no meu sentir de ontem. De amanhã. Nos meus lutos. Intempéries. Derretendo da mesma maneira.  Com as mesmas coisas. (Esta coisa talvez do feminino ou talvez de pessoas, de deixar o mar entranhar-se na pele como se não houvesse morte por afogamento. Uma coisa com a história de sempre. Este deixar-se. Entranhar. Deixar entranhar-se). O mar, o medo, gostar. Mesmo quando tudo se quebrar e segregar em pedaços ínfimos e irreparáveis, e todo o sopro se contiver de inércia e desconhecimento de qualquer caminho, e qualquer vontade de voar, e tudo parecer não estar. Mesmo quando. Ainda nada em mim será diferente, mesmo se não igual e hei-de morrer disso, de mim. Igual e diferente.

Nasci alguém assim com o tempo percorrido e mantenho-me delimitada pela mesma pele e a mesma casa. Escolhi. Esta. Fui tratando. Aquela, esta. No possível e através da experiência do tempo. Mas não tenho outra. Assim mantenho-a e mantenho-me constante e subterraneamente metamórfica no pouco que consigo que o tempo produza. Uma atenção sem pressa. Uma luta para conter a velocidade. Que não posso evitar. Linhas que conduzem. Que delimitam e limitam. Poalhas que tolhem os gestos e o caminhar. Dúvidas nos dados que se multiplicam. Como se hoje tivessem dez, doze faces e muitas mais pintas pretas do que dantes. Circunvoluções nos dias, vindos da tormenta das noites a atravessar sem sono. O que ensombra, o que enfarrusca ou faz brilhar. Um tudo. Mas o que sobra dos sonhos, sei lá bem porquê é o regresso de uma batalha imprecisa e inconclusiva.

Eu tento entender o medo. O meu medo, figura múltipla em árvore que invertendo redunda numa única raiz, causa, origem. Tento a todo o preço conhecer o que me tolhe. E tento entender os medos do outro. Sempre. E, às vezes exagerando talvez um pouco na expressão do dramatismo, vejo aí o bicho feroz e básico que projecta, reprime, define e redefine perpetuamente os passos de cada um por todo o lado, por onde vá, por onde não foi. Eu tento entender o medo. Mas o medo não é o género de criatura para se entender na noite porque aí, como é da sua natureza, exorbita e espalha-se por todo o espaço disponível da casa. Ou mais ainda.

Eu sei o que dói antes do sonho da noite e sei o que se acrescenta depois. O que me revolve no escuro, me chicoteia na emergência da luz, naquela fímbria fina por cima da portada da direita que nunca encosto o suficiente. A luz a chegar – mas gosto de a ver – e se a vejo chegar mau sinal para o descanso do corpo e da alma que não serenou no esquecimento do sono. Sei com que me deito. Acordo do sem dormir com mais equações do que sabia. A querer espantar uma espécie de agonia. Mas que se vai diluindo no dia. Esse dia a acudir ao reboliço da noite e a trazer talvez algum silêncio.

Penso tantas vezes no silêncio. Como uma coisa boa de sentir. Como um refúgio quente e confortável. Como uma frase de amor. Como uma arma de arremesso. Esse. De todas as espécies, e como um cientista dedicado, passo tempo a bafejá-lo para o caso de lhe faltar a respiração e desfalecer. A olhá-lo com olhar leve, para o caso de lhe doerem as articulações a caminhar para a idade. Os silêncios envelhecem como as pessoas e seguramente com as mesmas qualidades, defeitos e achaques. É preciso, por isso tratá-los com carinho e cuidado. Mas saber distingui-los. Os que são inofensivos daqueles que mordem por querer.

Penso tanto nisso quando os afectos desta vida me brindam com um. Distingui-lo. desembrulhar-lhe o papel bonito de silêncio, sem destruir o papel bonito. De silêncio. Desvendar a primeira aparição do rosto. Fechado. De silêncio. Entender que expressão minha, do rosto, esteve antes desse rosto pensativo e hermético. De silêncio. Perceber é tão difícil como saltar para o lado de lá do espelho e ouvir com o olhar desse silêncio específico, as palavras proferidas pelo meu olhar. E ouvidas de lá. Desse lado de lá. Desse silêncio que pode ser outro. Desse silêncio. E não do outro.

É assim. O labirinto. Em que as pequenas coisas que fazem a vida nos conduzem a perder. E as pessoas, os seus silêncios assim também. A perder. A deixar-nos perder. E a perder de vista.

O silêncio como toda a sua qualidade inexcedível, exige uma arte rara, momentos muito bem escolhidos e uma expressão, que de tão específica e adequada, faz dele uma obra de génio. Não confundir com qualquer sucedânea falta de resposta, qualquer engolir em seco ou qualquer contrafeita e artesanal habilidade de passar em frente. Um belo silêncio exige uma empatia no tempo e no espaço, que às vezes recorre aos olhos, espelhos que, quando querem, são límpidas portas da alma. Exige uma respiração como o canto, e que se sente, ouve ou intui na imperceptível reverberação dos átomos, no ar, nesse elemento comum. Exige às vezes o esboço de um gesto que não chega a ser mas conduziu o sensível, uma alma partilhada num território musical e sem perda.

Anda tão desvalorizado este silêncio e confundido com a fast food do nada que se diz porque não se tem disposição, vontade, coragem para mais. E quem diga que é uma boa resposta e tão válida como outras, nada entende da alma solitária e humana que murcha na secura do não entender. O nada é a resposta pobre. O parente pobre do silêncio. Já um grande silêncio nunca o foi. Essa arte de tudo deixar expresso na mais fina matéria do que é manuseável pelo universo sensível do humano que somos. Hábeis em manipular a expressão do todo que nos foi dado usar. O mundo anda feio. Como sempre andou. basta pensar nas cadeias alimentares e mesmo sem metáforas em curso, para cair na tenebrosa impressão de que todos os desígnios concorrem para uma contranatura que só a nossa alma consciente e o intelecto de que fomos munidos sabe-se lá porquê, afinal, nos salva. Com critérios que em simultâneo nos fazem sofrer com o visível e em tamanha medida também nos catapultam para a compulsão de fabricar um belo que não há. Somos peritos nisso. Se formos e quando somos. Em produzir coisas artificiais e de beleza que conforte a nossa desnecessária inconformada solidão. A da desadequação. À violência. À crueldade. Ao não sentido por inábil insatisfação. Mais. Do que o simples ser existindo, e porque a natureza se fez de fenómenos complexos e desta forma.

Subversivos é o que somos. E pouco naturais porque mais não conseguimos ser. Fugindo à barbárie de prosseguir a onda natural e sem ética, porque esta, humana. Aí chegamos. Ao contributo que sem querer ou sobretudo por querer rebelde, acrescentámos ao natural. A arte, o pensamento, a expressão. E o natural tem aspectos tão belos como ser natural na sua inocência de o ser e não intencional. Como o não é a maldade natural. A da natureza que se consome a si própria em ritmos de sobrevivência. Num equilíbrio qualquer que também aí, às vezes, se corrompe. Dramática. E, contudo, bela mesmo assim. Mesmo quando horroriza. Hesito, então, também às vezes, ante a maldade desta espécie humana. Entender-lhe os resquícios de fragilidade de quem – sendo-lhe dada mais consciência do que aos outros animais, e passe o criacionismo aparentemente implícito – sofre de excesso, de medo. Mais difuso por inúmeras vertentes do que é dado aos outros animais. Demasiadas pensamentos, demasiadas mudanças. Demaisiado em variáveis. Humanos. Demasiado humanos.

20 Out 2017

Valeu a pena

Omnia fui, et nihil expediti.

Séptimo Severo

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esde que nasci, vivi rodeado de livros. Esses, os que já existiam lá em casa antes de mim, continuam sendo, e creio que serão para sempre, os que mais me marcaram.

Contudo, a dado momento, naturalmente, a biblioteca do meu pai deixou de ser suficiente para alguns aspectos da minha curiosidade e do meu gosto pessoal. Assim, comecei a comprar alguns livros e, sobretudo, a socorrer-me dalgumas das bibliotecas públicas que então existiam na cidade de Lisboa. As que os governos britânico e norte-americano nos proporcionavam (entretanto, ambas encerradas), contam-se entre as que me foram mais úteis.

É bastante provável que tenha sido aí que se geraram e estruturam vários aspectos da minha anglofilia, um amor por um Reino Unido que só muito tangencialmente existe e talvez nunca tenha existido de outro modo, por uma selecção que resulta numa invenção por medida. Mas não será sempre assim, com todos os amores?

Amo Madrid. Gosto do ruído das ruas e dos bares, dos seus restaurantes e tascas, do mercado de San Miguel e de outros mais pequenos, incrustados nos bairros, do Museu do Romantismo, da Real Academia de Belas Artes de San Fernando, do Museu Lázaro Galdiano, dos três grandes museus, mesmo se com filas à porta, etc.

Também gosto muito de Bruxelas, da Bélgica, em geral, e de Bruxelas, em particular. Uma cidade mal-amada pela maior parte dos que a visitam. Gosto do pequeno Impasse Saint-Jacques, do teatro de marionetas Toone, de mexilhões com batatas fritas, do Museu dos Instrumentos Musicais, de um densíssimo ragout que comi num pequeno restaurante familiar ao pé do Menino Mijão, dos Musées Royaux des Beaux-Arts, da brasserie A La Mort Subite, etc.

Gosto muito de uma pequena vila piscatória na Cornualha, chamada Polperro.

Amo, mais do que qualquer outro lugar, uma minúscula aldeia de xisto, atravessada por um rio, no meio da Beira Litoral. Dessa, não vos direi o nome.

Acerca de Lisboa também não falarei muito. A minha relação com a cidade é demasiado pessoal, quase doentia, certamente dolorosa, para que a minha experiência possa aproveitar a terceiros. Não, não faz sentido eu falar da Lisboa que existe e não tenho idade para falar da Lisboa-aldeia, de aguadeiros e choras.

Contudo, recordo uma cidade em que muitos aspectos desta última sobreviviam ainda, nos bairros históricos, a par de cinemas e centros comerciais microscópicos, sobretudo nas Avenidas Novas, os quais anunciavam já os muitos desmandos que, paulatinamente, foram tomando conta da cidade, que ganharam dimensões assustadoras durante o “cavaquismo”, e que tiveram a sua apoteose no verdadeiro monumento urbanístico-arquitectónico à saloiice triunfante que é o Parque das Nações.

Limitar-me-ei aqui a listar alguns museus lisboetas que me encantam: a Casa-Museu Dr. Anastácio Gonçalves, a Casa-Museu Fundação Medeiros de Almeida, o Museu de Macau, o Museu da Carris, o Museu Geológico (um museu de um museu…), o Jardim Botânico Tropical (apesar do estado ruinoso em que se encontra).

Como já devem ter percebido, os museus, alguns museus, sem didactismos ou tecnologias, mais ainda do que as bibliotecas, sempre foram os locais onde me senti melhor. Porque muitos deles estão quase sempre vazios, o que convém aos momentos em que me apetece fugir do mundo, porque não pertencem ao tempo e ao espaço presentes, porque combinam bem com uma certa forma de aristocracia, novecentista, vitoriana para ser mais exacto, que sempre cultivei de mim para mim.

Certa vez, inserido num grupo, fui realizar um espectáculo a Braga, ao Museu Nogueira da Silva, outro dos meus preferidos de Portugal (o predilecto é, certamente, a Casa dos Patudos, em Alpiarça). Ao chegarmos ao museu, que era suposto providenciar-nos alojamento, a senhora que nos recebeu disse que ficaríamos a dormir no próprio edifício. Supusemos que, nas traseiras, algures por detrás do belíssimo jardim, houvesse um anexo onde seríamos hospedados.

Qual não foi o nosso espanto (perdoem-me a formulação batida) quando fomos conduzidos a quartos que integram o espaço do museu e as camas de dossel e demais mobiliário foram postos à disposição dos nossos reais costados!

Em circunstâncias várias, tenho dormido em hotéis de muito luxo, aos quais, aliás, em geral, preferiria uma hospedaria modesta. Mas nunca antes nem depois daquela noite dormi num local tão condizente com os pergaminhos que a mim mesmo me outorguei.

De facto, às vezes, sabe bem sermos bem tratados. De tal modo que só então nos apercebemos do bem que nos faz, da falta que isso nos fazia sem que nos inteirássemos.

Há uns anos, decidi presentear-me, e à minha namorada de então, com uma viagem à Grécia, sem cuidar do facto de que a Páscoa ortodoxa decorria nesse período. O nosso destino final era a ilha de Spetses, uma das Ilhas Sarónicas, logo a seguir a Hydra.

Em Atenas, encontrámo-nos com um conhecido, calhou em conversa perguntar-lhe qual o melhor restaurante da ilha, tendo em vista o jantar da noite de Páscoa, e recebemos uma resposta cabal, quase impositiva.

O que não sabíamos é que a ilha iria estar repleta de atenienses e que uma chuva copiosa se abateria sobre todos nós.

Assim, ao chegarmos à porta do restaurante recomendado, uma turba cercava já a entrada, sem que, todavia, a sorte lhe sorrisse. As mesas estavam todas reservadas, e o mesmo deveria suceder nos demais estabelecimentos.

Preparávamo-nos, pois, para regressar ao hotel e debatermo-nos com uma longa noite de larica quando o dono do restaurante me perguntou: “Portugueses?”; e, ante o nosso espanto, nos conduziu à mesa que o tal conhecido, providencialmente, nos reservara.

E mais espantados e agradecidos ficámos quando, após o excelso repasto, nos foi servido, junto com uma travessa de sobremesas variadas, o anúncio de que a conta fora, previamente, saldada pelo nosso anjo da guarda.

Nessa noite, para mais embalados pelo marulhar das águas que lambiam as fundações do hotel, dormimos um daqueles sonos que não nos é dado dormir todos os dias.

19 Out 2017

Ensaios sobre a ordem e a desordem 1

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]ornámo-nos mais pobres, à medida que fomos ficando mais ricos – farto de martelar isto nas aulas, constato que nada é levado a sério enquanto não ganha a autoridade da letra de forma. Impõe-se-me um esforço de síntese.

Comecemos pelo mais corriqueiro exemplo: o Michael Jackson não é um génio e a sua contribuição para a música será avalizada numa nota de rodapé de um subcapítulo sobre o século xx e a extensão pop-rock da música popular. Mas motiva cinco mil vezes mais artigos nos media do que, por exemplo, John Cage, este sim, um génio.

Por que se dá esta distorção das perspectivas?

Devido às falácias próprias às indústrias culturais, que ameaçam submergir-nos.

Acentuou-se nas duas últimas décadas o recrudescimento de uma inversão na ordem simbólica dos valores culturais, impelido por dois factores que se conjugam simultaneamente: pela primeira vez na história da humanidade vivemos mergulhados num caldo comunicacional simbiótico em que se enfeixam como ingredientes farrapos de distintos regimes de cultura (a Cultura Popular, a Cultura de Massas, a Cultura Humanista/Erudita, e a Cultura Digital – fiquemo-nos por esta tipologia, para simplificar), sem que se tome em conta que esses regimes, afinal, manejam modos de produção e mesmo pautas cognitivas diversas; depois, as “indústrias culturais” (digamos, o braço armado da Cultura Popular) fizeram da globalização o seu combate e tendem a procurar algoritmos que uniformizem o que se oferecia como estrias identitárias profundas e (até certo ponto) inconvertíveis.

Ora, de entre os vários dispositivos emanados pelos diferentes regimes de cultura, só os da denominada indústria cultural lograram a capacidade para atingir e disseminar-se por todo o mercado global – e a escala desta dimensão perverte tudo.

Vou exemplificar dois aspectos observáveis na última Revista do semanário Expresso.

José Mário Silva, “obrigado” pela pressão do que seja considerado mainstream (ele que não o fizesse e seria acusado de elitista, etc.), abriu a secção dos livros com uma crítica de página e meia ao último romance de Dan Brown, para avisar afinal que o romance além de falhado é fake (- previsível, quem enriqueceu a escrever tão mal vê necessidade de escrever melhor?), razão suficiente para só lhe dar uma estrela. E não foi por avarícia, acredite-se. Na página ao lado temos no curto espaço de uma coluna a recensão de Pedro Mexia ao último Roth saído em Portugal, com direito a cinco estrelas.

A lógica que preside ao critério desta ordem dos artigos é simples: Dan Brown, que esta semana lançou o seu livro na Feira de Frankfurt, é tratado como acontecimento – e aqui a suposta qualidade literário daquele produto é uma dispensável cereja no bolo. O marketing acrescentará ao produto a notoriedade q.b. para que ele se venda, a granel. Um filme que o adopte já estará negociado, etc. O resto é sustentado pela pressão do mercado sobre o gosto e as subjectividades enquanto aos disjecta membra da cultura irá sobrepor-se o poder das “instituições” daquele. E a ordem simbólica deste novo poder fixa e enclausura, satisfaz e codifica. O que implica rituais de assimilação, de interdição e de desqualificação – mesmo que nada disto passe do domínio do implícito.   

Para exemplo desta suave lógica de desqualificação (feita de forma inconsciente para si mesmo, a jornalista – que conheço – é boa pessoa) atenhamo-nos à entrevista a António Mega Ferreira, com chamada de capa igualmente nesta última Revista.

Mega Ferreira é um prolífico escritor que tem contra ele o estigma de ser um homem público e de ter sido e continuar a ser um gestor cultural de qualidade. Num país como Portugal, de parca imaginação, nunca se admite que alguém possa fazer bem várias coisas ao mesmo tempo, o seu eclectismo soa a crime inconfessado.

Como sou um teso, só lhe li o primeiro livro de ficção, O Heliventilador de Resende, que tinha mais do que a graça de ser bem arejado, e um dos dois livros de poesia, bom o suficiente para merecer uma atenção cuidada aos seguintes, mas li-o no registo biográfico, com Macedo, Uma biografia da Infâmia, e vários livros de ensaios, nomeadamente o D. Quixote : o literato, o justiceiro e o amoroso (2006), O deserto da Europa (2007), Viagem à Literatura Europeia (2014), Vidas Instáveis (2014) ou Viagem à Literatura Sul-Americana (2017). Neste género de ensaios que cruza a história da cultura com a da literatura, não vejo quem se meça com ele em Portugal. É o nosso Simon Leys.

Contudo, poucos o lêem ou se manifestam e ele próprio se queixa de não ter leitores: «Ou me lêem pouco, ou sou um péssimo escritor.» Há evidentemente um laivo de ironia neste queixume.

Na capa, retirada a citação do contexto, é que me parece essa ambiguidade perder-se de todo. Somemos agora a uma eventual leitura literal a observação final da entrevistadora, que roça a sentença: «Provavelmente António Mega Ferreira será lembrado como o homem que fez a Expo-98», ao que o próprio replica, elegantemente: «E se as árvores continuarem a crescer como cresceram até agora ainda bem» (- e foi imprudente a jornalista, de certeza que não leu metade dos 32 livros que o intelectual Mega Ferreira tem publicados).

Com que ficamos, subliminarmente, somados o título da capa mais o desfecho da entrevista? Com um autor que parece atestar a menoridade do que escreveu.

Não creio que Mega Ferreira o merecesse, não creio que a Ana Soromenho tivesse calculado esse efeito – apenas no elementar jogo de regras fixas (a chamada de capa de uma entrevista tem de ser uma citação, etc.) em que a informação se tornou calhou assim, fazendo realçar a perversa dimensão (atenção, não falo de intenções) oculta com que o sistema pensa por nós.

O Estado, escrevia Freud, proíbe ao indivíduo a injustiça, não para aboli-la mas sim porque pretende monopolizá-la, tal como faz com o tabaco e o sal. Se substituirmos aqui o Estado pelo Mercado, teremos lenha para continuar… (à suivre)

19 Out 2017

Da sorte que o azar trás

Monumental, Lisboa, 8 Outubro

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]este outonal Verão, acolhidos pela sombra expressionista do limoeiro, a que o Manel [San Payo] chama bonsai, montámos banca na EDIT, a Feira de Edições de Lisboa, erguida pela Filipa Valadares, da STET, pela terceira vez. Por causa do ar que me enche os bolsos, aproximei-me pouco das tentações. E se foram muitas, nesta festa de biodiversidade, com os mais díspares percursos, artísticos e da curiosidade, profissionais e do gozo, a desembocarem com faustosa riqueza no objecto livro. Riqueza não significa apenas essa luxúria dos materiais e dos formatos e das técnicas, que tanto irritam os viciados em doutrinação; mas e sobretudo a exuberância das ideias, por vezes simples, capazes de criar uma experiência completa para todos os sentidos. Por poucos que sejam os exemplares. Leitores, dos que usam o corpo todo, também existem. Comprovou-se, se preciso fosse, nas centenas que, colhendo ou cheirando, percorreram o refrescante jardim estendido ali por mais de 20 casas editoras. Para sussurrar, apesar da habitual desatenção mediática, que há mais livro para além do livro. E das livrarias (desatentas).

Mymosa, Lisboa, 11 Outubro

No último ano agravou-se, apesar da distância, uma ligação que, confirmo ao vivo e à mesa, temo ter acontecido há muito. Por admirar as várias facetas do trabalho do Rui Rasquinho, as bastante poéticas, como as outras mais pop-irónicas, chamei-o a jogo até que nos encontrámos no «Cidade em Forma de Assim» (ed. APCC), exercício delirante e trabalhoso em torno da ideia de utopia. Para as crianças que se atrevam. Isto sempre à distância, que ele vive em Macau. Ia escrever habitualmente, apesar da minha embirração com advérbios, tão conhecida na casa, mas não se vive habitualmente em Macau. Disso falámos, do fascínio com que as cidades nos consomem, também das imagens em que ardemos e até de música, de flamenco, por acaso, que ambos celebramos.

Nisto, entra Camané, que deixa como lastro do abraço o novo em que «Canta Marceneiro». Não deu para lhe dizer que entrou a meio daquele sapateado. Distraído, eu ainda não tinha visitado a casa que a sua voz ergueu a partir dos caboucos do mestre. Comecei ali a subir à pureza. «Naquela casa de esquina/ Mora a Senhora do Monte,/ E a providência divina/ Mora ali, quase defronte// Por fazer bem à desgraça,/ Deu-lhe a desgraça também,/ Aquela divina graça,/ que Nossa Senhora tem.» Irei com o Rui à Senhora do Monte, em horas tardias para escapar da turistada e dizer-lhe dos segredos do lugar onde Lisboa pode ser vista como abysmo. Por aqui, a graça e a desgraça moram na mesma rua. Vejo daqui.

Bicaense, Lisboa, 11 Outubro

A alguns, a vida assenta-lhes como pele. O mundo aconchega-se-lhes à passagem em coreografia, para mim, de espanto e simplicidade. Basta estarem para ser. As minhas nódoas negras, as cicatrizes de que tanto gosto, mostram que comigo a vida faz-se de arestas. Não me queixo, aprendi a viver com isso. O meu grande companheiro continua sendo o esforço. Sentamo-nos vezes sem conta em silêncio a olhar o mar, a ouvir música e a imaginar possibilidades. Depois levanto-me e trato de me arranhar, só por ir. Se nisto penso agora, culpo os Penguin Cafe Orchestra, caídos no ouvido. Em tempos, sem eles, tudo teria sido muito pior do mau que foi. Será o esforço um pinguim, como na capa do Matter of Life? O assunto surge também tintado de ironia por vir na sequência de se ter repetido no espaço de dias esta, para mim, estranha sensação de conforto. Preparo com os manos António [de Castro Caeiro] e Luís [Gouveia Monteiro] um programa de televisão. Pode até nem se confirmar, à semelhança de inúmeros anteriores, mas o que ganhámos já de entendimento e cumplicidade e gozo e aprendizagem compensou o pinguim, digo, esforço. A busca de sentidos faz sentido. Na dureza, está-se bem. Nasceria daqui samba se soubesse?

Horta Seca, Lisboa, sexta 13

Falta a caridade de uma reflexão ao fósforo «Um Dia Não São Dias», do António [Caeiro], sobre as sextas, 13, dia igual a nenhum outro. Qual bruxas, qual demónio! Por uma vez, não sacrificamos ao real e deixamos que o absurdo nos governe. Sem medo do medo. Atentos aos sinais, a querer por força crer. E rir, sendo outra a vontade. Gosto muito do 13, mais ainda se moldado em dia à sexta-feira. Esta concreta desfez-se pujante e mãe de múltiplas decisões, de planeamento e adiamento, de resolução e enterro de atrasos. As casas custam mais a arrumar aos que não sabem cantar. Quis o destino que ao crepúsculo me chegasse valiosa caixa de ferramentas, donde esta vontade de soltar a voz: e se a minha âncora fosse a lua. Podia ser verso de fado, házar?

Centros das Artes e Vila Flor, Guimarães, 14 Outubro

O mano Tiago [Manuel] saltou da criação e abalançou-se à organização: novo episódio na história hesitante da coisa desenhada, a Bienal de Ilustração de Guimarães. Cravou-me para membro do júri, e foi (quase) um prazer, basta dizê-lo para se arrumar na gaveta das éticas declamativas. Interessa sublinhar que a BIG surge distinta do que se vai fazendo neste país de macacos de imitação – primeiro aplauso. Há prémios a engordar as distinções, para os que vêm do passado (Carreira), como para os que se dizem do futuro (Revelação). Serão todos de hoje, tal a massa de onde emerge o Prémio Nacional, também assente em maravedis – segundo aplauso. Nada mau, se acrescentarmos a isto as costumeiras exposições, incluída a que está a cargo do fazedor do cartaz (nesta página), desta o enigmático Daniel [Lima] – mais palmas. Atenção às escolas secundárias, palestras e catálogo desenham o resto da teia que procura garantir raízes, em contra-ciclo aos mercados. De resto, puro prazer. O de ver a memória em acção, nos originais e palavras do iluminador de quotidianos (notas, selos, publicidade, livros e o mais), Luís Filipe de Abreu, resgatado do esquecimento muito pelo esforço do Jorge [Silva]; no volume da inestimável colecção D (conhecem?), da INCM; na exposição na Festa da Ilustração, em Setúbal, em 2016; e que agora nesta, acompanhada em mais uma bela lição dita, na manhã límpida de sábado. Subo ao largo do Toural para saborear a infância da Isabel em jesuíta que ilustra outras geometrias, antes de me perder em territórios conhecidos e noutros nem tanto. Estou sempre a perder rostos (Viva, Sebastião [Peixoto]! Olá, Bárbara [Rocha]!). Mais prazer, portanto, na alegria infantil das descobertas, mesmo depois de tantos salões, festivais, exposições. O Prémio Revelação, entregue à Carolina Celas, foi isso mesmo. Mergulho naquela frescura, nos materiais e perspectivas, tal qual a da sujidade preto e branco com que o João [Fazenda] pintou os contos da Granta. A coisa desenhada está viva! Irrequietude, com sabor a pastelaria fina?

Horta Seca, Lisboa, 16 Outubro

Na exacta madrugada destas linhas, metade do país ainda arde, a outra volta a chorar cinzas. Nesta altura não, mas estaremos em outra qualquer dispostos a enfrentar a realidade de que somos todos culpados? Que fomos nós quem escolheu saborear este coquetel de capitalismo selvagem e abandono das raízes, com pitada de corrupção (nos actores mais insuspeitos e não apenas nos políticos)?

18 Out 2017

A Sombra de Teseu

SEGUNDO ESTÁSIMO

 

CORO DE MULHERES

Ai que desgraça vem aí!

E Fedra arde de desejo.

É Afrodite e não Eros,

Quem a desvia do seu rumo.

Não tem mão em si, tudo fará,

Para vingar a sua carne

Que arde no sal da desfeita.

 

CORIFEU

Fedra mentiu sem escrúpulos,

Para seduzir Hipólito.

Não ponham as culpas na deusa.

Mulher com desejo é bicho,

Não respeita nem a si própria.

 

CORO DE MULHERES

Quem faz o que os deuses não querem?

Quem sabe o que é uma mulher?

Nem o tempo que tudo tem

Nos pode ajudar nestas questões.

Que pudemos saber da vida?

De quem é que somos migalhas,

De nós próprios ou dos deuses?

Fará alguma diferença

De onde nos chega não saber?

O que é mulher, que é homem?

Nem Fedra sabe dela mesma!

 

(Fedra volta à cena)

 

FEDRA

Que estou a fazer da minha vida?

Porque a arrasto para o lodo?

Que mal me liga àquele corpo?

 

(Fedra cala-se e anda como louca)

 

Mas Hipólito tem de pagar!

Mas Hipólito tem de pagar!

Mas Hipólito tem de pagar!

 

(novo silêncio e põe as mãos sobre o rosto)

 

Deuses, ajudem-me, por favor!

Que loucura esta que digo.

Que culpa tens tu, Hipólito?

De onde vem esta vontade

De castigar-te, Hipólito?

A virtude é a tua culpa.

 

(cai de novo no silêncio)

 

Esta demanda não tem razão,

Só o sangue pode acalmar-me,

Derramado em qualquer lado.

Nem que o universo rua!

 

(nova pausa, leva de novo as mãos ao rosto)

 

Tudo por causa de um corpo!

 

(Fedra sai de cena; a cena agora representa a chegada de Teseu ao palácio)

 

TERCEIRO EPISÓDIO

TESEU (gritando)

Onde está a minha mulher? Onde está Fedra? Alguém a pode avisar da minha chegada?

 

FEDRA (entrando em cena e sorrindo)

Estou aqui, meu senhor!

(estende-lhe os braços, abraçam-se e beijam-se)

Quantas saudades, Teseu! Quanta saudade! (volta a abraçar Teseu e depois pergunta) Mas que aconteceu, porque tanta demora e nenhuma notícia?

 

TESEU

Contra-tempos, Fedra, contra-tempos! Depois conto-te tudo com mais detalhes. Deixa-me agora olhar bem pra ti! Como estás bela, Fedra! Como estás bela, minha rainha!

 

FEDRA (sorri envergonhada e faz notar alguma preocupação)

Obrigado, meu marido! Mas já não sou a flor da Primavera, que por ti era colhida.

TESEU

Serás para mim sempre a mais radiosa Primavera! E acredita quando te digo que não sou só eu que vejo isso, Fedra! Qualquer homem daria um dos seus braços para estar aqui no meu lugar…

 

FEDRA

Daria, sim, porque nesse caso seria rei. (e riu-se)

 

TESEU (dando as mãos ao riso de Fedra)

Sempre com resposta pronta! Sempre fugindo dos elogios como uma serpente foge do falcão. Mas o que te digo é a mais cristalina água da nascente da montanha. Mas deixa-me perguntar àquele belo jovem que chega, e verás quão certo estou.

 

(Hipólito entra em palco)

 

É verdade ou não, meu filho, que Fedra é tão bela como qualquer rapariga do palácio?

 

HIPÓLITO (algo embaraçado)

Meu pai, não sou homem para adocicar palavras! Tão pouco homem para reparar na beleza dos corpos. Mas como você está? Que lhe aconteceu?

 

FEDRA (com ar irónico)

Hipólito realmente tem mais o que fazer do que reparar na beleza dos corpos, Teseu! Muito mais.

 

(Teseu parece intrigado, mas nada diz, olhando um e olhando outro; Hipólito mantém-se calado, olhando o pai)

 

TESEU

Meu filho nada de importante se passou! Apenas contra-tempos, como já disse a Fedra, mas amanhã contarei tudo com detalhes, ainda que não tenha nada de interessante ou misterioso para partilhar.

 

HIPÓLITO

Sendo assim, meu pai, dêem-me licença, vou retirar-me e deixar-vos a sós.

 

TESEU

Vai, sim, filho, falaremos depois. Agora tenho saudades desta beleza que não vês. (e abraça Fedra, com um dos braços)

 

(Hipólito sai de cena e Fedra e Teseu ficam sós; Teseu tenciona beijar Fedra, mas ela esquiva-se)

 

TESEU

Algum problema, Fedra?

 

FEDRA (mostrando-se preocupada, como se algo a atormentasse)

Nada, Teseu! Não se passa nada. Estou cansada.

 

TESEU

Cansada? Cansada de quê?

 

FEDRA

Cansada de esperar, meu marido! Cansada de esperar. De pensar no que poderia ter-te acontecido, o que estarias a fazer…

 

TESEU

Cansada de esperar, Fedra? Não é a primeira vez que me ausento tanto…

 

FEDRA

Mas assim tanto tempo sem notícias, é. Até mandei Hipólito ir até Atenas ver se sabia de ti…

 

TESEU

Mandaste Hipólito à minha procura? Mas qual a necessidade, a urgência de tal decisão, mulher?

 

(silêncio, Fedra não responde, tenta desviar o assunto)

 

FEDRA

O que importa é que estás bem! Que nada te aconteceu e regressaste na mesma alegria com que partiste.

 

TESEU

Infelizmente parece que sou o único com alegria nesta casa! Que se passou Fedra? Que aconteceu na minha ausência?

 

FEDRA

Já te disse que não aconteceu nada.

 

TESEU

Fedra, conheço-te como conheço o fio da minha espada! Sei bem quando algo te preocupa, quando escondes algum acontecimento que possa perturbar-me. (segurando agora Fedra, pelos ombros) Diz-me, por favor, que aconteceu?

 

FEDRA (depois de algum silêncio)

O que aconteceu, meu marido? O que aconteceu? O que aconteceu é que foste desrespeitado! E em tua própria casa. E por aquele a quem te deve o seu ser. Foi isto que aconteceu.

 

TESEU (afastando-se de Fedra e encarando-a estupefacto)

Que dizes? Que dizes, mulher?

 

FEDRA (encarando-o friamente)

Isso mesmo que pensas, meu marido! Isso mesmo!

 

TESEU

Meu filho tomou-te mulher, Fedra?

 

FEDRA

Inicialmente só se insinuava, Teseu. Mas rapidamente se tornou muito inconveniente. Foi quando tive a ideia… ai como vejo agora ter sido uma tão péssima ideia, meu marido!!!

 

TESEU

Mas que ideia foi essa?

 

FEDRA

Não sabíamos de ti há quase cinco meses e já não suportava as investidas de teu filho. Disse-lhe, Hipólito, se teu pai estiver realmente morto, serei tua, mas terás de trazer-me a comprovação da sua morte. Pois não poderei ser tua com Teseu viva. Pensei em ganhar tempo, e que entretanto tu chegasses, Teseu, entendes? (e agarra os braços de Teseu) Entendes, meu amor, entendes?

 

(o rosto de Teseu endurece)

 

Quando regressou, disse que estavas morto e exigiu de mim a promessa que lhe fizera. Este corpo ainda nem arrefeceu do corpo dele, Teseu. (tapa o rosto) Que vergonha, meu marido, que vergonha!

 

(o silêncio ocupa  a cena por algum tempo)

 

Entendes agora a minha preocupação, meu marido? Que devo fazer, meu amor, que devo fazer, dizes-me?

 

TESEU (que parece ter vindo da longínqua terra dos mortos, de Hades)

É Hipólito que tem de se retratar, não tu!

 

FEDRA (violenta)

Retratar, Teseu? Retratar? Pedindo desculpas, talvez, não?

 

TESEU (segurando-a e tentando acalmá-la)

Calma, mulher! Calma. Este crime pede exílio ou morte, como retratação.

17 Out 2017

Uma história de outro mundo

[dropcap style≠‘circle’]E[/dropcap]ra um pequeno planeta muito semelhante ao nosso, no qual hominídeos em tudo semelhantes a nós tinham chegado ao topo da cadeia evolucionária e alimentar. Tinham aprendido muito cedo a dominar a natureza; faziam chover onde era necessário chuva, o sol acontecia onde era necessário o sol acontecer e debelavam tempestades e terramotos com comandos vocais que accionavam complexas contra-medidas.

Tecnologicamente, eram muito mais avançados do que somos hoje. Como tinham inventado o teletransporte, não havia acidentes de trânsito ou engarrafamentos. Mas, como contrapartida, não havia ninguém na rua ou nas praias, ou junto dos lagos e das montanhas. As pessoas eram transportadas de uma casa para outra casa, consoantes as suas necessidades. O trabalho tornara-se obsoleto. O complexo industrial de produção de tudo quanto podia ser produzido entrara em autogestão. Não havia guerras, não havia doenças, não havia poluição. Quando as pessoas morriam, eram desintegradas e convertidas numa sopa de partículas que reencontrava o seu lugar no universo.

Existia um Deus, embora fundamentalmente não interventivo, ao contrário do nosso. E esse Deus estava tão velhinho que a sua omnipotência já não era o que a omnipotência deve ser. Já não conseguia, por exemplo, ver dentro de espaços cujo revestimento fosse sólido. Esta aberração óptica – comum a muitas divindades de provecta idade – aliada à tendência de recolhimento que progressivamente se instaurara naqueles hominídeos, faziam com que este Deus desfrutasse cada vez menos da sua condição divina. Era como ter um formigueiro de estimação num terrário, em casa, no qual as formigas evitassem teimosamente fazer túneis junto dos vidros.

Tremelico – tanto quanto uma alma pode tremer – e míope, Deus contentou-se durante alguns milénios em olhar para aquele mundo tão organizado e funcional como uma criança olha para as luzes de Natal. À medida que o planeta rodopiava sobre si próprio na órbita de um sistema binário de duas estrelas anãs brancas, as cidades que deixavam de receber luz solar acendiam as múltiplas luzes pelas quais pintalgavam a superfície do planeta imersa na escuridão.

Mas um dia, Deus desconfiou. E quando um Deus desconfia, a desconfiança tem um tamanho e alcance incomensuráveis. E se as criaturas dele tivessem perecido de uma qualquer doença arqueológica incapaz de ser debelada mesmo com recurso às tecnologias de que dispunha esta civilização? E se tivessem sido involuntariamente envenenados? E se tivessem pura e simplesmente renunciado àquela vida completa e perfeita em todos os sentidos menos no da imortalidade (o único atributo que Deus optara sempre por guardar exclusivamente para si próprio)?

A dúvida e a desconfiança entranharam-se como uma nódoa, e Deus não mais conseguiu ter sossego. Incapaz de perceber, pelo estado muito condicionado da sua audição e da sua visão, a verdadeira condição daqueles a quem chamava seus, o divino entregou-se a um desespero lento como quem se entrega à bebida. Deixou de ter vontade de ser, o que, para Deus, implica conseguir, de facto, não ir sendo, e, como uma estrela que parece infinita e intemporal até perecer, por vezes numa explosão frouxa e morna, Deus deixou-se ir até se anular.

Passados apenas alguns dias, as pessoas começaram a sair das suas casas.

17 Out 2017

Exames de ingresso ao Liceu

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma onda de assaltos à mão armada com revólver realizada por malfeitores, “que fugindo talvez dos antros de Tai Ping Xan de Hong Kong e que vem pagar o abrigo que lhe damos contra a peste negra, cometendo depredações e semeando terror nos ânimos da população chinesa, que está sobressaltada pela impunidade que os criminosos têm até aqui gozado desde o assalto feito à casa do jogo de fantan no Tarrafeiro”, como refere a 4 de Junho de 1894, o Echo Macaense. Tal parece não afectar a comunidade portuguesa, mais preocupada com a ameaça sobre Macau da peste bubónica e em Julho, os jornais, desviando atenções, referem ser importante conhecer as datas dos exames de admissão ao Liceu, para o grande número de jovens a preparar-se, mais se concentrar nos estudos.

Os exames finais de instrução primária, que dão acesso ao Liceu, efectuam-se nos dias 10 e 11 de Setembro de 1894 no edifício do antigo Convento de Santo Agostinho. “Funcionaram duas mesas, sendo uma composta do professor do Liceu, o Reverendo Cónego Falleiro, presidente, e dos professores de instrução primária, Rev. Pe. Alves e José Vicente Jorge e a outra, de Sr. João P. Vasco, professor do Liceu, presidente, e dos professores de instrução primária, Rev. P. Costa e Sr. Constâncio da Silva. Foram examinados e admitidos 29 rapazes e quatro raparigas”, segundo o Echo Macaense, que a 10 de Outubro de 1894 refere com o título Os Exames do Liceu, “Depois da instalação do Liceu, vários jovens que tinham feito os seus estudos no Seminário de S. José, requereram para fazer exames no novo estabelecimento escolar, pagando as propinas marcadas na lei. Verificaram-se os exames de algumas disciplinas, sendo uns examinandos aprovados, e outros adiados, sem dar isto lugar a queixa alguma. Aconteceu infelizmente no exame de português, 1.ª parte, que a maior parte dos examinandos foram reprovados, incluindo dois jovens que tinham sido aprovados com distinção e premiados no Seminário de S. José no 2.º ano desta mesma disciplina”. Tal resultado levou os jovens a ficarem “descontentes com este veredictum do júri, que eles classificaram de injusto. Este facto despertou em nós a curiosidade, e levou-nos a ir assistir aos exames da segunda turma. Podemos asseverar que as perguntas feitas pelo júri nem eram difíceis nem caprichosas, e dos três examinandos a cujos exames assistimos, pareceu-nos que dois responderam satisfatoriamente, titubeando às vezes, como era de esperar no estado nervoso em que estavam, mas revelando conhecimento suficiente da matéria; e, com certeza, sabiam muito mais de português do que os examinandos de inglês, a cujos exames também assistimos, sabiam desta língua. A impressão que nos ficou destes dois exames a que assistimos foi, que a aprovação no exame do Liceu, tanto em português como em inglês, não tem nenhuma importância prática como garantia de que os indivíduos ai aprovados saibam qualquer destas línguas. (…) A explicação do texto e a composição são pois os critérios por onde se pode aquilatar bem o conhecimento que um indivíduo tem de qualquer língua; mas nos exames de português a que assistimos não se recorreu a estas duas provas práticas, contentando-se o júri com perguntas acerca das definições e regras de gramática e com a análise gramatical e lógica de um trecho. (…) O exame, pois, é todo teórico. Quanto ao exame de inglês, ficámos ainda mais tristes com o que vimos. (…) Basta dizer que os examinandos nem sabiam ler as palavras mais fáceis, tanto assim que o professor cónego Falleiro não cessava de corrigir a pronúncia a cada momento; e contudo foram aprovados! Foi essa injustificável indulgência no exame de inglês, e no de filosofia, que concorreu muito para exacerbar os ânimos, quando se conheceu do resultado desastroso do exame de português, porque a equidade pedia que não houvesse dois pesos e duas medidas. (…) Se é este o sistema seguido modernamente em Portugal, fique então isto de prevenção para os jovens macaenses, a fim de que, no futuro, se quiserem ser aprovados, tratem de decorar e decorar muito, até que possam repetir como papagaios, que só assim conseguirão ser aprovados, embora não tenham digerido o que decoraram”.

Camilo Pessanha, ainda antes de chegar a Macau, já a 10 de Janeiro de 1890 criticava severamente o sistema de ensino português: <Cretinizados pelo medo à palmatória e pelo medo ao lente. Cretinizados por um livro abominável em que pretenderam ensinar-nos a ler, e depois pelo trabalho deprimente a decorar os compêndios à pressa, no fim do ano, para ficarmos distintos nos exames>.

Frequência feminina no Liceu

A 28 de Setembro de 1894 é o Liceu inaugurado pelo Governador, mas sem cerimónias solenes devido à família real se encontrar de luto, e começa com 33 alunos, “admitidos 29 rapazes e quatro raparigas”, segundo o Echo Macaense. Após quatro anos de instrução primária, ao aluno que ingressa no Liceu espera-lhe quatro anos para completar o curso geral, que lhe permitirá seguir a carreira comercial, mas se quiser prosseguir os estudos e entrar na Universidade, estudará mais dois anos no curso de letras, ou ciências. Desde 1894 a 1906 a frequência de alunos a estudar no Liceu variou entre 15 e 37 e segundo António Aresta, “com as cadeiras de língua e literatura portuguesa, língua francesa, língua inglesa, língua latina, matemática elementar, física, química e história natural, geografia e história, filosofia elementar e desenho. Para que as meninas tivessem acesso ao Liceu foi necessário efectuar uma sábia engenharia administrativa que consistiu nisto: fundir duas escolas do sexo feminino, nas freguesias da Sé e de São Lourenço, dando lugar a uma nova Escola Central do Sexo Feminino que ministrará a instrução primária elementar, a instrução primária complementar, as línguas inglesa e francesa, português, aritmética, história e geografia. Só assim tiveram acesso a esse novo patamar de escolaridade, o ensino liceal”.

No Quartel da Guarda Policial em S. Francisco, a 20 de Outubro de 1894 é inaugurada a Biblioteca da Polícia, criada por uma comissão de oficiais e aprovada pelo Governador Horta e Costa. Já a Biblioteca Nacional de Macau, anexada ao Liceu em 1895, funciona numa sala do decrépito edifício do antigo Convento de Santo Agostinho. O Reitor Dr. Gomes da Silva ao olhar aquelas instalações desadequadas para albergar salas de aulas, o gabinete de física, a biblioteca e o museu…, sem protestar, suporta porque lhe dizem ser provisórias. Mas aconselha a prudência que a mudança de edifício se faça o mais rápido possível.

13 Out 2017

Auto-decepção

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]a antiguidade, um dos fenómenos considerados mais estranhos era a auto-decepção. Há várias expressões para formularmos este acontecimento. “Enganamo-nos a respeito de nós próprios”. “Estávamos enganados”. “Foi uma grande desilusão”. “Nunca pensáramos que tal viesse a suceder”. “Estamos na ignorância” tanto que “nem queríamos acreditar”. Em todas as formulações há ambiguidade quanto ao objecto, isto é, quanto ao conteúdo específico da decepção, do engano, da ignorância. Pode ser uma circunstância ou uma situação, circunstância ou situação que podem ser episódicas ou crónicas, avulsas ou continuadas. Há vários exemplos a considerar, dos mais anódinos aos mais complexos e dolorosos. Pensávamos que ia estar bom tempo para a praia e não estava. Pensávamos que a neve para fazer ski ia estar em boas condições. Pensávamos que os resultados eleitorais iam ser uns e foram outros. Mas há também crónicas, como o tempo que passa, que envelhecemos, ou como diz o povo, não estamos a ir para mais novos. Também nos enganamos sobre pessoas. Achamos que são de uma maneira e são de outra. Temos sobre os outros expectativas baixas e eles superam-nos. Assim como temos grandes expectativas para nos enganarmos. Nós próprios podemos ser essas circunstâncias episódicas e anódinas. Achávamos que conseguíamos ir, mas não fomos. Gostávamos de ser de uma determinada maneira e não somos. Decepcionamos, ferimos, enganamos. Umas vezes sem querer outras vezes por querer, com gosto e com vontade.

Mas a auto-decepção dos antigos era mais esquiva. É mais difícil de identificar. É uma decepção que tem origem no si mesmo e que fere ou atinge esse mesmo si mesmo, esse protagonista estranho da vida. Diferente de todos os eus, de todos os eus que cada um de nós é na relação distinta que temos com cada um dos outros. Somos diferentes com todos os nossos amigos ainda que sejamos os mesmos. Somos diferentes com irmãos, irmãs, pais, mães, tios, tias, avós, porque temos uma relação construtivamente diferente com cada um deles. E somos diferentes porque com cada um deles é-nos pedido, exigido, reclamado ou dado sempre o diferente.

A auto decepção é a do si, a do “heautos”, uma qualidade estranha do que é próprio. Qualidade estranha porque é o que cada um de nós propriamente é, não os eus que cada um protagoniza, mas o próprio dos próprios. Simultaneamente é o que está mais afastado de nós, porque não nos tornamos ainda em nós próprios. O si é extenso e prolongado do primeiro ao último instante da nossa vida. Mas o si não é apenas o da realidade, aquele si do indicativo, que foi, é e terá sido. É sempre o agente complexo do condicional. O protagonista do que poderia ter sido e não foi e do que não deveria de todo ter sido e foi mesmo o que aconteceu. O agente do condicional irreal confronta-se com a realidade, sem dúvida. Sabe que o que é é mesmo o que é e o que não é é mesmo o que não é. Mas tem uma ânsia que tudo fosse de uma maneira diferente.

Em certa medida o si próprio projecta-se do futuro em direcção ao presente e ao passado. Projecta-se de um modo normal a partir das suas expectativas reais, que haja continuidade, que todos estejam bem e de saúde e o próprio também. Depois projecta-se como num sonho. Tem aspirações e vontades que saem para fora do que é normal. Atira-nos para fora da vigília, eleva-nos ao horizonte onírico onde podemos dormir acordados. Faz-nos vibrar em dimensões contrárias, diferentes da própria realidade.

O si próprio é também o horizonte do inferno e do pesadelo. Leva-nos aos sítios esconsos, aos lugares mais recônditos onde fomos, estivemos e habitamos. Relativamente a esses sítios intoleráveis, o irreal é a realidade. A própria realidade da vida que tínhamos parece ser um sonho que não conseguíamos ver enquanto estávamos a viver a nossa vida despreocupados com o que havia. Do ponto de vista do si, na sua viagem ao pesadelo do inferno, a nossa vida de todos os dias, neutra, passageira, anódina, leve parece ser um horizonte onírico onde viver é quase bom.

A auto-decepção resulta nisto: não percebemos bem o que temos nem conseguimos fazer uma avaliação concreta, muito menos não influenciada por nós próprios. Parece que tudo pode ser sempre melhor e que o que há é mau ou aborrecido. Mas quando os factos da vida nos mostram efectivamente sem apelo nem agravo como podem ser as coisas na dimensão onírica do inferno, a vida de todos os dias é o nosso paraíso perdido.

13 Out 2017

Os crimes públicos

10/10/17

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]dianta Olivier Rolin que Michaux viajava «para expulsar de si a sua pátria, as suas amarras de cultura grega ou romana, ou germânica ou hábitos belgas».

«O que é uma civilização?», pergunta o belga a fechar Um Bárbaro na Ásia para responder com uma radicalidade que não receia o paradoxo: «Um impasse (…) Um povo devia ter vergonha de ter uma História».

Como isto acerta na mouche, ou com mais precisão, na tsé-tsé, visto da minha varanda de Maputo sobre os falhados estados africanos e a ignóbil façanha com que os “libertadores” se locupletam alarves, limpando os pés ao capacho em que converteram o seu povo.

Ser «enraizado», escarnece Rolin, «deixemos isso para as beterrabas».

Uma nação só está madura quando se esquece de si mesma. Não a que esteja alienada de si, como a nação colonizada, mas esquecida, ou seja, tão saturada de si que prefere entregar-se ao cosmopolitismo. Aí não lhe dão as febres nacionalistas, que resultam de uma identidade cultural ter caído na patologia da abstracção. E educa os seus cidadãos para serem cidadãos do mundo.

Entretanto, a confrontação no conflito catalão está assegurada e será estúpido acreditar que se vai confinar ao campo institucional e aos tribunais.

Com verdadeiro destemor (cojones ele tem) Puigdemont, no seu discurso de hoje, foi o mais longe possível na retórica da independência e sem declarar guerra aberta reiterou a falta de fidelidade ao rei (aliás, em vez da bandeira da independência imediata ergueu a da República, o que para bom entendedor…) e face à sua provocação a violência que vimos no dia do Referendo, apesar de um aparente apelo ao diálogo, vai crescer. Repare-se, primando por um cinismo exemplar, Puigdemont suspendeu a  independência para reafirmar a legitimidade desta, o que deixa sem recuo Rajoy e o rei Felipe.

Eu que fui a favor do Referente, tinha sérias dúvidas sobre a necessidade de uma suposta independência da Catalunha, porque nem tudo o que é plausível é o mais funcional. Agora é totalmente incerto o que vai acontecer.

Rajoy, que deveria aproveitar a oportunidade para alterar a Constituição e transformar a Espanha num estado federal, dando maior autonomia às nações hispânicas, não vai resistir – até para mostrar como a legalidade tem por si a força – a aplicar o artigo 155, jugulando a honra catalã.

Aí será o ponto do não retorno. E a irracionalidade vai crescer como os cogumelos.

Uma última proposta: exporte-se o Costa (por muito dinheiro) para a Catalunha. Ele negoceia, ele reconcilia.

10/10/2017

Ontem baixei vinte livros da net, de três autores de quem gosto muito: Philippe Sollers, François Cheng e Pascal Quignard. Para quem como eu vive sem boas livrarias nas imediações é um consolo. Fiquei radiante, e simultaneamente apreensivo. A facilidade com que hoje se fura o pneu que permite ao autor viver à tona de água é alarmante.

Em Moçambique não há livrarias, ou só as há de best-sellers e que carregam no preço do livro, que chega a custar meio ordenado mínimo. A única teta à mão é a net, e a pirataria campeia. É a única e verdadeira indústria cultural por estas paragens. O jovem ou lê um dos vinte e muitos livros do Mia Couto – é um exemplo – que hoje se baixam na net, ou não lê.

Ainda esta semana descobri na net um livro de que acabei de fazer um posfácio para uma segunda edição (nem sei se já saiu da tipografia), de uma ensaísta brasileira. É um livro fantástico que cruza filosofia e estética e que aborda os regimes da figuração do corpo na arte da primeira metade do século XX. Inclui-o na bibliografia obrigatória de duas disciplinas e já pus duzentas pessoas a lê-lo. Agora baixa-se, gratuitamente.

Tudo isto está errado e está certo. Do ponto de vista antropológico os desfavorecidos têm de corrigir os desequilíbrios sociais, as entropias, e às vezes os danados da terra só pelo crime se resgatam.

Como autor fico alarmado.

Há definitivamente que estabelecer-se um novo tipo de contrato social para que a rica opulência de alguns (em Inglaterra publicam-se por ano 9000 livros só do género infantil, em Moçambique 100, de todos os géneros) não degenere nesta tribulação dos direitos intelectuais.

Antes que, como diria o Xie Lingyun, o Yang na sua frescura renda o Yin exausto.

11/10/2017

“Os mortos não têm mais a palavra, ou antes, têm-na mas seca, sem a água que a faça viver. E por isso em muitas culturas se faz a libação à terra, para devolver com a humidade um pouco de palavra aos mortos”: leio numa entrevista de Geneviève Calame-Griaule sobre os Dogons.

Eram belas as tradições quando eram realmente vivas, antes de se converterem em tradicionalismos tacanhos e de uma severa esterilidade.

Preparando entretanto uma colecção de livros orientais, petisco à esquerda e à direita, e apanho esta coisa maravilhosa do Sri Aurobindo sobre as realizações espirituais: «esta assombrosa reverência pelo passado é algo desconcertante e temível! Ao fim e ao cabo, o Divino é infinito e o desdobramento da Verdade pode ser um processo infinito ou ao menos que permita o espaço para novos descobrimentos e novas afirmações, inclusive, até novos conseguimentos…». Isto é importantíssimo e convém repeti-lo: o tradicionalismo faz de Deus um coxo e dos seus atributos infinitos algo determinado com régua e esquadro. A mim que sou um ateu intermitente um tal conceito handicapado não afecta. Mas é perturbador pensar que supostos crentes abraçam com fervor e de cara lavada a hipótese de uma amputação divina, como se não se sentissem culpados por transformarem Deus num galo capão.

A aventura espiritual, que a há, aquela que nos transforma, é que não consente em tais limites. É mesmo uma questão ética.

12 Out 2017

Os dias cobram dívidas

Horta Seca, Lisboa, 2 Outubro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue obituário escreveria o coelho, personagem principal da crónica mais pequena da nação, tantas vezes surrealista em toda a potência e delícia do termo, para dizer da vida e obra do seu criador, Jorge Listopad? Não arrisco vestir-lhe a pele. Sei que devo a Listopad teatro, palavras, cidades, visões, servido o ensemble com irrequieta frescura. Desejava arrastar o dia à procura de flores e frutos na horta de papel onde guardo alguma daquela sua flora. «Jorge é o mesmo que Jíri. Listopad é ‘Novembro’. Nasci em Novembro. Agora o Jorge tem a mesma raiz, estão todos ligados à terra; são lavradores. Portanto, sou o lavrador de Novembro.» Assim se nomeou em autobiografia, passados os oitenta. Custa-me saber que o lavrador de Novembro deixou de amanhar a horta que mantinha na teia de um palco.

Horta Seca, Lisboa, 3 Outubro

Raspo dos dias apenas o mel. Quando devia estar a arrumar a casa, batem-me à porta com projectos. Primeiro o Bruno [Portela], que arrasta consigo a fotografia. Arrasta por alto, rente ao tecto onde habita. Gosto dos seus modos. De fazer. Neste país que prefere estender passadeiras, o Bruno desenvolve tapetes onde nos podemos sentar mediterraneamente, uns num canto, outros a meio, mas no conforto do encontro. Anima, com o Luís Vasconcelos, o ponto de encontro do fotojornalismo nacional, a Estação Imagem, iniciativa que vem rasgando o país para o mostrar melhor, que convoca parceiros internacionais de ofício e olhar, que anseia por preservar a memória, que procura resposta simples para o complicado: sobrevivência. Depois, também se pode discutir gostos. Assentados. A espessura das ideias que trouxe, como as que levei eu para a troca, adiante as partilharei.

Com o Alex [Cortez] chega-me, de seguida, o desafio de acolher em livro os «Poetas Portugueses de Agora», a mais recente empresa da Lisbon Poetry Orchestra, banda rica de vozes ditas e instrumentos tocados, quase canções com o texto a dançar sobre a rica tessitura de baixos e guitarras e tecladas e sopros de variegada respiração, além de mais cordas convidadas. Os versos são de próximos de agora ou nem tanto: Daniel Jonas, Cláudia [R. Sampaio], Paulo [José Miranda], Valério [Romão] e Filipa Leal. Ditos por Paula Cortes, Miguel Borges, André [Gago] ou um Nuno [Miguel Guedes] acabado de conhecer há uns 40 anos. Lá está: como dizer não ao presente? E o embrulho, que não terá apenas um CD, vem com aspiração a objecto, desenhado pelo Daniel Moreira, que ilumina ainda os detalhes. O Alex não tocou apenas argumentos, trouxe EP que oiço em modo vertigem. Diz o Paulo na voz do André: «Os dias batem-nos à porta/ os dias cobram dívidas/ cobram dívidas// ser-se cobrado/ é como andar à chuva e ter coração/ e precisar de respirar/ e precisar de andar/ e precisar de cuidar das plantas que enfeitam a varanda/ ou as marquises dos arredores de Lisboa.»

Horta Seca, Lisboa, 4 Outubro

Distinta estava a noite na auto-estrada. O escuro não se assume na via rápida, nem mesmo em pleno coração do Alentejo. Vislumbro ao correr do vidro as constelações, a mancha leitosa da via láctea. Não me podia alhear, que assim o exigia o cansaço de quem conduzia, de sul para norte, de quem me conduz, nas direcções cardiais. A Lua dizia mais luz, de cheia que estava. Nisto, o mal-estar. Mal dou por mim, ao quilómetro cento e trinta e seis vírgula oito, detalhe ampliado, aquele oito infinitamente maior que o resto dos numerais ordinais, tenho a meus pés uma mulher estendida no asfalto, sem dar cor dela. De que branco seriam os nossos rostos na escura noite nívea da auto-estrada, sem darmos por nós, um acordado outro nem tanto. Tomo por justa esta imagem para os dias que passam velozes.

Casa da Cultura, Setúbal, 5 Outubro

Ninguém dá por ela, como convém a um bom fotógrafo. A Graça [Ezequiel] desfaz-se nos cenários, nas paisagens, nos momentos. Ninguém a vê. E por isso o seu território outro não é que os bastidores. Mesmo quando fotografa o palco, o que nos dá a ver é o outro lado, o da preparação, o esboço antes do risco final, o momento em que o artista se apaga para deixar entrever o indivíduo. Em performance ou repouso, de atenção presa ou distraído no acaso, alguém foi apanhado sendo. Apenas sendo, vibrantemente existindo. Daí o negro, a enorme quantidade de negro que estas fotos contêm (conferir nesta página com a de Helder Macedo). No palco, pouco mais há além do negro profundo, a cor da arte, e precisamos do olhar e da câmara da Graça para libertar a luz destes rostos. Eles estão a criar para nós, a dizer que não podemos ser apenas isto, que no negro se encontram todas as cores que precisamos para abrir mundos neste. Ensaiando ou descontraindo, como representando ou dizendo, o escritor, o artista, o actor, o músico são mais, são maiores. Por serem nós, por que nos fazem ser com eles. Atenção, com eles, que não como eles. Por ora, estes esboços estão perto no sul feito de beira-rio.

Horta Seca, Lisboa, 6 Outubro

Podia a entrada estar datada de 11/9, o dia exacto e icónico em que disponibilizámos este denso e fulgurante ensaio do António [Araújo]: «Consciência de Situação – Um Ensaio Sobre The Falling Man». A partir de uma fotografia célebre, a de Richard Drew a que alude o título, o António ajuda-nos como nenhum outro a enfrentar a ferida que se abriu nos nossos mundos, em 2001. A queda é o eixo desta poderosa reflexão, que vai muito além da costumeira compilação de notas de leitura, provavelmente de toda a bibliografia sobre o assunto, para tocar a história da fotografia, o miolo do jornalismo, a análise de comportamentos em situações de risco real, a filosofia e a religião unidas pela umbilical ideia de salvação, mas também de beleza ou presente. Este pensamento vem, como gosto tanto, insuflado de um sopro de – ia escrever emoção, mas é – humanismo, que me comove e perturba, mesmo nas descrições violentas, nas esmagadoras reflexões, nas poéticas construções. Apesar de ser sobre este incandescente assunto, há-de concluir, são as «divagações vazias que constituem a melhor metáfora do nosso tempo». Não será o caso, garanto. «Na manhã de 11 de Setembro de 2001, as câmaras de televisão filmaram uma mulher na rua, horrorizada pelos corpos em queda do cimo das Torres Gémeas. Aos gritos, dizia: «há ali gente a saltar, gente a saltar! Acho que estão a tentar salvar-se!» Ninguém pode tentar salvar-se saltando de um 102.º andar de um edifício. Tudo depende, no entanto, do que entendermos por “salvação”. Em função disso, o grito descontrolado daquela mulher pode ser encarado como uma frase insensata e ditada pelo pânico; ou, pelo contrário, como a observação mais certeira e sagaz alguma vez feita sobre os suicidas do 11 de Setembro.» Sei bem onde estava (e com quem estava, certo, Cristina [Sampaio]?). Mas nunca mais soube onde estamos.

P.S.: Cultivo a superstição de contrariar a vontade de abrir o livro mal me chega da gráfica. Costumo dar logo com a gralha grasnando. Confirmou-se: na 123, esquecemo-nos de limpar a repetição da capitular.

Horta Seca, Lisboa, 7 Outubro

Divertido, não fora perturbador. Percebo melhor a tatuagem do presente: business as usual. Estás bem? Péssimo, respondo: exausto por isto e por aquilo, além de que a minha distribuidora faliu. Que maçada! Olha, o meu livro, quando sai? E a factura, quando me pagas? ‘Bora jantar? ‘Bora, respondo.

11 Out 2017

Uma frescura de asas

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]oltar para o limbo das coisas transfiguradas, não misturar as fontes com as formas nessa incessante busca de afastamento face aquilo que no sensível se mantém, mergulhando assim no dom inalterável. Descarnar, não querer efeitos, retirar o excesso de humano, vencê-lo, secar o pântano acre-doce do instinto que alimenta espectros – movimento extinto – (…) tempo, suspende o teu voo (…) Ficar puro como a ideia, vigiar, estar preparado para o défice de compreensão dos transferidos para as zonas dos impactos, não mais nos alimentarmos de presas vencidas cuja deglutinação ajudou a subjugar os que servem de repasto- herdeiros dos medos- testar em cada um a superação humana por um processo alquímico muito próprio, não alinhar na corrente transacta de um corcel de Fados e de prantos, não ver a arena por onde as festas anunciam o banquete pois se tangerdes uma lira as próprias feras lerão na superfície das provas uma outra mensagem. Instar, inibir qualquer gesto de traição, colar a nós os sacrifícios como forma de deposição das armas.

É a sombra que salva a voz do assombro e no negro alvíssimo que transluz, devemos nós, os que temem as côres, resignar-se a tecer o tempo como um círculo de frágeis fios, pois que, sem a tenaz noite que de tão escura é sempre nova a voz poderá sair um ronco carregada de poeiras que são os pensamentos e o grande arco trazer somente a ilusão colorística que um deus maligno compôs para seu disfarce. Sangra, sangra, mas não te queiras na gleba. Lá, bem dentro do seu labirinto, está o Minotauro e se te apressas na marcha forças com leis te virão buscar carregadas de aflições, criaturas bestializadas ao serviço do centro: enquanto tardas, guarda a fonte. — Relembrando títulos de livros de autores de alma timbrada e tão longínquos — . António Quadros e ao pensar que ao existirem me servem hoje de uma gratificante brisa! Estamos no meio das experiências da côr, no auge da dobra fractal de similitudes alteradas onde se fez de quase tudo um amontoado de sujeições : o mundo grito, o mundo claque, o mundo clube, o mundo cor, que de cor, só o coração.

Tempo haverá em que o elemento humano estará quase ausente e se dele não restar a qualidade da sua brisa que é o único dom da sensibilidade criativa, saibamos que nada o desgastou mais do que esta felicidade sem esperança, mais, muito mais do que a dos seus tempos felizes na miséria. Neste labor de reter o melhor que foi Homem chegar-se-á a um ponto em que o conteúdo humano da obra seja tão escassa que quase não se veja, a Humanidade será lembrada pela sua secreta perfeição, de tal ordem que se pensará que fôramos uma tribo tão pequena quanto aquele povo inventado, nas horas mortas todos morremos sem que seja necessário outro entretenimento. Então, só depois a nossa consciência “sentou-se na sombra profunda quando por sobre a cabeça o ulmeiro murmura… e canta, quando a água santa e sóbria assaz bebeu, escutando ao longe no silêncio o canto da alma”… Horderlin .

É esta a Asa, a sombra profunda que salva a palavra da claridade do raio. A frescura e a sombra correspondem ao Sagrado e a palavra funda o seu advento.

Já não há rebelião, outrora até os anjos a tinham e das suas centelhas se fizeram fogueiras, mas o enxofre gerado tinha ainda a molécula do bom cheiro a Bode e frases mágicas que produziam efeitos mais fecundos que alucinogénios, havia na sombra, sombrias formas que criavam cismas tão divinos como quaisquer santos, havia uma dor de fundos imprevistos e talvez o cérebro estivesse em outros momentos da sua liturgia, havia isso tudo que criou indómitos espectros, que hoje, quase os visitamos sem supor do cativeiro a que estiveram sujeitos e olhamo-los sem malícia, esse artefacto não tinha, nem sabia, o que poderia ser ainda o coro de uma tragédia, hoje, mergulhados nela, achamo-nos paradoxalmente os mais felizes dos Homens.

Que as sombras partiram e a frescura é menor, que tudo se transforma sem que nos transformemos à velocidade dos ventos, que aqui retidos entre domínios imponderáveis se nos esgota o oxigénio e o escuro apagão é tido como o fim dos nossos quotidianos. Não brilha mais para nós o azeviche que precede a luz, a nossa natureza gosta da noite do néon mas não quer ver o efeito das sombras que produz, que sombras, são benignas, as dos ulmeiros quando murmuram… e sem eles, não há ao longe canto. Se dizem estas Asas no fim que a finalidade é libertarmo-nos libertando os outros, todos somos uma proposta ampla de Liberdade que será necessário aguardar com o sentimento do dever realizado. Pela noite entram os amantes, sempre caminhando para ela, pare então tempo o movimento triste que alimentou um brilho insuportável. Nós, os cegos, somos uma visão madura de Deus, usamo-lo nas vestes ainda tingidas de preto total , não ousamos, contudo, não somos encarnados, quase, brancas Aves, pois que todos os fantasmas o são.

Tingidos neste suporte toda a sensação não sentida como desejo é enfim glorificada num imenso adeus às armas pois que não nos fizeram vorazes e nos manteve na rota certa para a dádiva e não para criar raízes no próprio esquecimento. Para não nos tragarem, escondemos os dons, e para continuar, oferecemos os serviços, nenhum gratidão é suficiente para agradecer tamanhas coisas.

11 Out 2017

As listas

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ra o século XV. Jacques Coeur, rico mercador da corte de Carlos VII, explorava, entre muitas outras actividades proveitosas, a mineração de prata de Pampailly, perto de Lyon.

Em inícios dos anos 90, era eu um jovem adulto, candidatei-me a participar nas escavações arqueológicas desse complexo mineiro, dirigidas por um professor da Sorbonne, de longas barbas brancas, arquétipo do soixante-huitard.

Recordo-me de que, quando nos encontrámos pela primeira vez, brindou-me com esta tirada, seguida de um abraço:

— Portugal? Otelo Saraiva de Carvalho!

Creio que trabalhei nessas escavações cerca de dois meses, de que guardo hoje, apenas, uma meia-dúzia de imagens e sensações, coadas pelo tempo: o cheiro da terra húmida, repleta de minhocas que o nosso trabalho repetidamente amputava; a bondade das refeições, em que aprendi a apreciar esses pequenos pepinos em vinagre chamados cornichons; uma breve aventura sexual com uma jovem franco-cabo-verdiana, de volumosíssimos cabelos loiros, encarapinhados, quase sempre contidos por um lenço, mas esplendorosos quando soltos; um par de visitas a um château próximo, propriedade de um casal de velhos anacoretas, que, quando estavam de feição a receber visitas, içavam uma bandeira branca num mastro, e que, a propósito da sua assumida xenofobia, me afirmaram: “Sabe, nós detestamos estrangeiros, em teoria. Mas temos tido o azar de gostarmos de todos os que conhecemos”; uma breve viagem a Belfort, quase na fronteira com a Suíça e a Alemanha, cidade em que os caracteres franceses e germânicos se confundem; um fim-de-semana em Paris para visitar uma namorada colombiana, que trabalhava na UNESCO e morava na recatada Rue Serpente, no Quartier Latin, e com quem continuo a contactar de vez em quando, embora não nos vejamos há anos.

Dessa viagem tinha, ainda há algum tempo, uma recordação física: uma cassete de Archie Shepp, saxofonista de jazz, comprada no Quai des bouquinistes.

Ora, há alguns anos, não tendo como aceder-lhes ao som, deitei para o lixo um saco cheio de cassetes, incluindo a dita. Suponho que esse desprendimento, extensivo a todo o tipo de bens materiais, signifique que compreendi que os objectos não fazem falta à memória.

Pelo contrário, creio que a limitam no que tem de mais estimulante – a capacidade de se desconstruir ou destruir, de se reconstruir ou reinventar.

De facto, nos últimos anos, tenho dado ou vendido quase tudo o que tinha, a começar pelos livros, a maior parte deles imediatamente a seguir a uma única leitura. Faço-o não tanto por necessidade mas por ter a noção clara de quais os que me voltarão a interessar no futuro, que são, percentualmente, bem poucos, até porque, se, por um lado, tenho este desapego à propriedade, por outro, gosto de ler quase tudo, mesmo coisas que sei serem muito pouco valerosas ou das quais tenho consciência de ter pouca capacidade de entendimento.

Assim, de alguns milhares de livros que cheguei a possuir em dados momentos, e dos muitos milhares de que, ao longo do tempo, fui proprietário, guardo, agora, poucas centenas.

Muito menos, ainda, são os discos.

Fotografias, por razões que não importa precisar, fiquei com pouquíssimas (a minha infância, por exemplo, ficou, para mim, quase indocumentada).

Tenho, também, alguns desenhos e fotografias de autoria de artistas amigos.

E, quanto a outros objectos, se excluirmos a roupa, em que também não sou pródigo, não ocuparia muito espaço a lista exaustiva de quanto possuo!

Voltando aos livros, gosto muito mais dos que partilham a vida vivida do que dos que têm o despudor de impor aos demais a entropia do escritor, isto é, a quantidade de energia deste que não é convertida em trabalho mecânico. Ou seja: desconfio daquilo a que se costuma chamar Literatura.

Um dramaturgo que conheço desde que éramos crianças, isto é, há mais de quarenta anos, escreve, a dado passo, no seu único livro de poemas: “estou já demasiado anglo-saxónico para escrever coisas que não sejam listas”.

Às vezes, também eu sinto que as listas – sem acréscimo de comentários – bastam a cumprir a função do texto, tanto junto do próprio escritor como junto dos leitores: fixar a memória sem recurso a objectos.

10 Out 2017

A Sombra de Teseu

[dropcap style≠&#39;circle&#39;](A[/dropcap] cena representa o jardim do palácio de Trezena; Fedra e Hipólito acabaram de jantar e estão sentados num pequeno jardim privado do palácio)

 

(SEGUNDO EPISÓDIO)

FEDRA

Parece que recuperaste do cansaço da viagem, Hipólito! Pelo menos, é isso que aparentas. Estou certa?

 

HIPÓLITO

Está certa, sim, Fedra. As palavras que disse acerca das más e das boas notícias acabaram por me dar algum ânimo.

 

FEDRA

Fico contente por ter ajudado. Nesta tua viagem aconteceu alguma coisa de diferente?

 

HIPÓLITO

Como assim, de diferente, Fedra?

 

FEDRA

Uma experiência nova. Um olhar novo acerca do mundo.

 

HIPÓLITO

Continuo sem entender, Fedra. Que experiência nova poderia acontecer numa viagem?

 

FEDRA

Hipólito, meu querido, tanta coisa pode acontecer numa viagem! E para alguém jovem e belo como tu, não é somente tanta; tudo pode acontecer. Vives precisamente o tempo de todas as possibilidades, o tempo do infinito que habita os mortais por um período determinado. És hoje esse infinito determinado dos mortais, Hipólito. Que pode acontecer numa viagem, perguntas tu! É como se perguntasses, o que pode acontecer numa vida? Pode acontecer tudo, querido Hipólito.

 

HIPÓLITO

Parece-me que estou a entender o que diz, minha madrasta, mas isso não se aplica a mim.

 

FEDRA

Não se aplica a ti, porquê, Hipólito? Por acaso és um deus, aos quais as leis que regem os mortais não se aplicam?

 

HIPÓLITO (um pouco embaraçado)

Não sou um deus, Fedra, mas sou um devoto obstinado da melhor das deusas, Ártemis. E isso, só por si, faz com que onde quer que eu ande, ou com quem quer que ande, não haja senão a mesma possibilidade de devoção a ela e à sua castidade.

 

FEDRA

E por que dizes que Ártemis é a melhor das deusas, Hipólito? Conheces todas as deusas, todos os deuses para te pronunciares dessa maneira tão peremptória, tão pouco conveniente a um mortal?

 

HIPÓLITO

Não, Fedra, não conheço. Mas do mesmo modo que não preciso de conhecer tudo o que existe, para saber aquilo que me convém, também não preciso de conhecer todas as deusas e deuses para saber aquela que me convém, e que é para mim a melhor.

 

FEDRA

Entendo-te, Hipólito! Mas não podemos julgar os deuses pela nossa medida. O que é um bem pode ser um mal e um mal pode ser um bem, vindo dos deuses e aos nosso olhos. Não achas que o amor entre um homem e uma mulher possa ser um bem, um grande bem?

 

HIPÓLITO

Se for um amor carnal, não. Nenhum amor carnal pode ser entendido como algo superior. Por isso te digo, sem quaisquer dúvidas acerca deste assunto, Afrodite nunca poderá igualar-se a Ártemis; ser-lhe-á sempre inferior.

 

FEDRA

Cuidado com as palavras, Hipólito, os deuses são-nos superiores, mas também padecem de paixões. E não te parece que sem Afrodite, nós mortais, não poderíamos procriar, e assim perpetuar-nos pelo tempo? Não te parece que a nossa imortalidade, ao contrário da dos deuses, passa através do corpo, da união dos corpos?

 

HIPÓLITO

Fedra, minha madrasta, não quero ofender nenhuma deusa, mas não posso deixar de pensar o que penso e assim dizê-lo, se mo pedirem. Esses são os ensinamentos de Ártemis. Quanto à união dos corpos, não vejo nisso nenhuma elevação. Vejo antes uma maldição que nos concederam, aos sermos obrigados a descer ao corpo, para fazermos de deuses e originarmos um filho. Na realidade vejo isso como um grande embuste, Fedra. Os deuses concederam-nos uma pequena imitação deles mesmos, a um preço muito elevado: o de termos de não ser somente alma e espírito. Termos de descer ao corpo para procriar é uma rocha presa ao pé, que não nos deixa voar. Trocava facilmente essa imitação dos deuses por mais uma dívida aos deuses, Fedra.

 

(fica com o olhar longe)

 

FEDRA

E que dívida é essa, que querias contrair com os deuses, em troca da procriação, Hipólito, posso saber?

 

HIPÓLITO (regressando desse olhar longe e fixando agora Fedra nos olhos)

Que os deuses, eles mesmos, nos dessem os filhos, sem que precisássemos de nos deitar com uma mulher.

 

(faz-se silêncio)

 

FEDRA

Hipólito, tens assim uma imagem tão terrível do amor?

 

HIPÓLITO

Do amor, não, Fedra. Do amor carnal! Do amor que Afrodite semeia nos mortais, necessário até para o nascimento dos filhos, mesmo que não exista qualquer elevação entre os pares que se juntam para a concepção dos mesmos. O nascimento dos filhos, hoje, tanto pode ser entre as piores pessoas quanto entre as melhores. E pode até ser entre ambos cruzados, um bom e outro mau. Um filho, Fedra, por si só, não prova nada. Até, ao que parece, nos deuses há os bons e os maus. Olha o exemplo de Zeus que fez uma filha de excelência, Ártemis, e outra…

 

(Fedra tapa-lhe a boca, com furor)

 

FEDRA

Por favor, querido, não digas mais nada!

 

(ficam por momentos nos olhos um do outro e a mão de Fedra entre eles; por fim, Fedra recua um pouco e continua a falar)

 

Há amor carnal, Hipólito, que é realmente como tu pensas que é todo o amor carnal; mas há amor carnal que é elevado, meu querido. Vê o caso de Eros, filho de Afrodite! Não te parece que ele promove verdadeiros encontros, que o amor que nasce de suas flechas é elevado, apesar de despertar um desejo avassalador entre os amantes? Não há um verdadeiro encontro entre dois mortais sem uma atracção fulminante pelo finito e infinito de cada um, Hipólito; uma atracção pelo corpo e pela alma. Este é o amor de Eros! Este é o amor que sinto, Hipólito!

 

(cala-se, de repente, fica ainda um pouco a fixar os olhos de Hipólito, que também a fixa, mas depois desvia-os e vira-se de costas)

 

HIPÓLITO (depois de algum silêncio)

Mas como pode o desejo ser bom, Fedra? Explica-me isso, por favor! Como, se ele mesmo é um alheamento de nós próprios?

 

FEDRA (voltando-se para Hipólito, sorrindo um pouco)

Meu querido, tudo neste mundo pode ser bom e mau, dependendo de nós e do uso que fazemos do que sentimos. Não direi tudo, Hipólito, mas quase tudo. Para ti, nesta vida, o mundo todo é terra ou água, céu ou fogo. Mas devo dizer-te que poucas coisas são assim tão completamente estanques na vida, meu querido. E porque para ti não há nada senão os opostos, como se o mundo não passasse de uma eterna guerra, não consegues ver que o amor carnal de que falas é a paixão sem medida, a paixão sem nada em comum, que não seja o corpo. E que o verdadeiro amor carnal, o amor que nasce das flechas de Eros, é o fim da guerra, a paz entre os opostos; o reconhecimento por parte do corpo de que o desejo só existe mesmo, só existe com tamanha intensidade, porque o corpo viu a alma fora de si, e a alma reconheceu nesse corpo que não é o seu, a imagem perdida com que sempre sonhou.

 

HIPÓLITO

Dito assim, Fedra, parece bonito. Parece até que é verdade, e até dá vontade de senti-lo…

 

FEDRA (aproxima-se de Hipólito, toca-lhe no rosto, olha-o, fala)

E é verdade, querido! É tão verdade como estarmos agora aqui os dois, sozinhos, e sentindo tudo isto, como se o sentimento fosse as asas das palavras que vamos dizendo um ao outro; olhos que falam, meu querido! O que sinto por ti, Hipólito, é amor, é verdade. (e beija o enteado na boca; o beijo dura algum tempo, até que Hipólito empurra Fedra, que se desequilibra)

 

HIPÓLITO

Que vergonha! Que vergonha!

 

(acaba a cena e entra o coro de mulheres)

10 Out 2017

AL BERTO em filme versão pop gay

[dropcap style≠&#39;circle&#39;]O[/dropcap] filme AL BERTO, do realizador Vicente Alves do Ó, teve estreia comercial a 5 de Outubro de 2018. Um filme é sempre o resultado de duas coisas, o olhar de quem o filma e as condições de produção que o circunscreveram. Este axioma encerra e contém todos as variáveis, equipas artísticas e técnicas, contextos, estéticas e pensamento cinematográfico, distribuição e mercados. Este AL BERTO é o do Vicente Alves do Ó.

Na nota biográfica que se pode ler na página da Assírio & Alvim, editora da obra poética do AL BERTO, prémio PEN de poesia em 1987, lê-se : “Poeta e editor português, de nome completo Alberto Raposo Pidwell Tavares, nasceu a 11 de Janeiro de 1948, em Coimbra, e faleceu a 13 de Junho de 1997, em Lisboa. Tendo vivido até à adolescência em Sines, exilou-se, entre 1967 e 1975, em Bruxelas, dedicando-se, entre outras atividades, ao estudo de Belas-Artes.

Publicou o primeiro livro dois anos depois de regressar a Portugal.

Em mais de vinte anos de actividade literária, a expressão poética assumida por Al Berto, o pseudónimo do autor, distingue-se de qualquer outra experiência contemporânea pela agressividade (lexical, metafórica, da construção do discurso) com que responde à disforia que cerca todos os passos do homem num universo que lhe é hostil. Trazendo à memória as experiências poéticas de Michaux ou de Rimbaud, é no próprio sofrimento, na sua violenta exaltação, na capacidade de o tornar insuportavelmente presente (nas imagens de uma cidade putrefacta, na obsidiante recorrência da morte e do mal, sob todas as suas formas) que a palavra encontra o seu poder exorcizante, combatendo o mal com o mal. É neste sentido que Ramos Rosa fala de uma “poesia da violência do mundo e da realidade insuportável”: “a opacidade do mal ou a agressividade do mundo é tão intensa que provoca um choque e um desmoronamento geral”, mas “à violência desta destruição responde o poeta com uma violenta negatividade que é uma pulsão de liberdade absoluta, que procura por todos os meios o seu espaço vital.”, sublinhando ainda a forma como esta espécie de “grito de fragilidade extrema e irredutível do ser humano, do seu desamparado infinito, da sua revolta absoluta e sem esperança”, se consubstancia, ao nível do estilo, num ritmo “ofegante, precipitado, como um assalto contínuo feito de palavras tão violentas como instrumentos de guerra” (cf. ROSA, António Ramos – A Parede Azul. Estudos Sobre Poesia e Artes Plásticas, Lisboa, Caminho, 1991, pp. 120-121).”

No filme do Vicente Alves do Ó, conhecemos um Al Berto nos anos de 1975, em Sines, regressado do seu exílio em Bruxelas.

Importa notar que 1975 é o ano quente, o tempo de maior tensão social e cultural vivido na sociedade portuguesa depois dos anos de convulsão do final da regime Monárquico e implantação da República nos anos de fronteira do séc. XIX para o Séc. XX.

O mundo estava ainda dividido em mundo livre, o mundo Ocidental de economia de mercado aberto, e o mundo para lá da “cortina de ferro” , a Europa Oriental e a sua zona de influência , de sistema comunista, mercado planificado e onde o Estado era assumido como um poder de classe, mas naquele caso, a classe dos proletários.

Em Portugal sonhava-se as possibilidades do mundo. Sines avançava nos projetos já anteriormente decididos ( Estado Novo) da grande indústria da energia a partir do petróleo. Sines, a vila porto de pesca, vivia novos enxames, gente que chegava das ex-colónias e ali procurava um recomeço de vida, e mão de obra à procura do salário.

A Sines chegava também o poeta. A casa apalaçada da sua família tinha, como tantas outras, sido objecto de expropriação. Desabitada, era o lugar ideal para um Maio de 68, não em Paris, mas em Sines. Este é o contexto.

O filme mostra um AL BERTO em que o seu capital de transgressão pouco mais parece ser do que o desregramento e o amor homossexual . Poderá a muitos não parecer pouco. Para mim é. Pouco se percebe, para quem não o saiba já, do tempo social e histórico em que a narrativa acontece. Pouco se sabe da profunda sensibilidade estética, do homem que na sua vida e já naquele tempo teve como lugar absoluto a sua obra literária.

Por essa altura, 1974/75 escreveu “ À PROCURA DO VENTO NUM JARDIM D’ AGOSTO” , em “atrium” , lê -se:

“ luta de sonâmbulos animais sob a chuva, insectos quentes escavam geometrias de baba pelas paredes do quarto, em agonia, incham, explodem contra a límpida lâmina da noite, são resíduos ensanguentados do ritual.

na cal viva da memória dorme o corpo. vem lamber-lhe as pálpebras um cão ferido. acorda-o para a inútil deambulação da escrita.                                                  abandonado vou pelo caminho de sinuosas cidades, sozinho, procuro o fio de néon que indica a saída.

eis a deriva pela insónia de quem se mantem vivo num túnel de noite, os corpos de Alberto e Al berto vergados à coincidência suicidaria das cidades.

eis a travessia deste coração de múltiplos nomes: vento, fogo, areia, metamorfose, água, fúria, lucidez, cinzas.

ardem cidades, ardem palavras, inocentes chamas que nomeiam amigos, lugares, objectos, arqueologias, arde a paixão no esquecimento de voltar a dialogar com o mundo, arde a língua daquele que perdeu o medo.

germinam fluidos mágicos por dentro da matéria contaminada do corpo, os órgão profundos gemem assustados pelo excesso, nunca mais voltámos a encontrar um paraíso. a pausa para respirar não existe, o tempo dos grandes desertos absorveu a seiva dos adolescentes dias.

a insónia, essa ferida cor de ferrugem, festeja noctívagas alucinações sobre a pele. no ácido écran das pálpebras acendem-se quartos alugados onde pernoitamos. são enfim brancos esses pedaços de memória onde dávamos abrigo e sossego aos corpos.

para sobreviver à noite decidimos perder a memória. cobríamo-nos com musgo seco e amanhecíamos num casulo frio, perdidos no tempo, mas, antes que a memória fosse apenas uma ligeira sensação de dor, registámos inquietantes vozes, caminhámos invisíveis na repetição enigmática das máscaras, dos rostos, dos gestos desfazendo-se em cinza. escutámos o que há de inaudível em nossos corpos.

era quase de manhã no fim do cansaço. despertava em nós o vago e trémulo desejo de escrever.

 

O filme AL BERTO do Vicente Alves do Ó, acontece, propõe-se acontecer no tempo desta escrita, e tem o mérito de nos permitir regressar a ela, de exigir mesmo esse regresso a todo do corpo da escrita do poeta, porque é aí, e só aí, que sentimos o batimento do sangue, o sal das lágrimas, o espanto e o horror do mundo, neste combate em que raramente se passa o estágio de aprendiz ofuscados na euforia das guitarras eléctricas e esparsos fios de mel.

Vicente Alves do Ó, é um realizador inteligente, sabe o que quer, sabe onde está. Sabe também que cenas como a vandalização da livraria que coloca no filme não aconteceram. Sabe que a homossexualidade e o comportamento transgressivo da norma sexual é um dado permanente e comum, embora sempre um interdito, no quotidiano das comunidades, sejam rurais ou citadinas, agora ou ontem. Mas a associação direta do artista, da sensibilidade inerente à prática e exercício duro, solitário, feroz, radical, da arte, à homossexualidade, coisa muito vista cá no burgo, é uma falácia, como outras. Ser homossexual não é passaporte para ser poeta, ou cineasta, ou pintor, como evidentemente também não é impeditivo, nem barreira.

Hoje, quando passam 20 anos ( o tempo corre veloz) , da morte do Alberto e do Al Berto, SINES vive-o como o seu máximo e justo herói. AL BERTO é património e identidade de SINES, tal como o Festival Músicas do Mundo recentemente distinguido – a 19 de Setembro- pela Plataforma Europeia de Festivais , entre os 715 festivais de todas as áreas artísticas, um dos seis vencedores desse prémio europeu.

Ou a excomunhão farisaica de que nos fala Vicente Alves do Ó, de uma vila a expulsar um dos seus habitantes, não tem uma ligação assim tão direta ao real vivido pela comunidade, ou a mentalidade da comunidade mudou totalmente, e o pecador é agora o santo eleito.

Inocente também não é colocar o partido comunista português como o agente principal da repressão à liberdade de costumes do poeta. É uma visão, a do realizador, e terá sempre o mérito de trazer à discussão o cinema português e o poeta Al Berto.

No filme temos alguns rasgos do imaginário e do real, e em várias sequências estivemos perto de um tratamento com maior profundidade da complexidade do pulsar da realidade social nesse tempo retratado, mas quase sempre, a inquietude e o sonho do mundo, fica reduzida a um registo pop gay.

O poeta AL BERTO resiste, foge, como sempre fez, arde no caminho solitário como cometa, resiste consciente da sua efemeridade, foge da tela para a obra, a palavra escrita, onde permanecerá maior e voz singular.

10 Out 2017

Do comércio local

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]nde vivo, num bairro da baixa de Lisboa, é raro o dia em que não se inaugure uma loja nova. E isto num espaço relativamente reduzido que compreende a distância do café mais perto da minha casa ao mini-mercado igualmente mais próximo. São creperias francesas tradicionais, lojas de roupa africana, espaços de co-work e os inevitáveis tudo-em-um paquistaneses ou indianos.

As lojas, no entanto, estão quase todas vazias. Apesar de se apresentarem impecavelmente limpas, apesar dos sorrisos com que nos brindam do outro lado do balcão aqueles que estão encarregados de receber os clientes, os clientes, esses, teimam em não aparecer. Não sei qual é a demanda por roupa africana, donuts porto-riquenhos ou café normalíssimo a dois euros. Mas não tenho de saber. Não sou parte interessada na dinamização e rentabilidade dos sítios que oferecem esses produtos ou serviços. O problema, no entanto, é que mais ninguém parece saber.

A massificação do turismo em Lisboa parece ter contagiado a maioria dos lisboetas de gene empreendedor com uma espécie de febre do pioneiro. A presença de tanta gente na rua provoca no aspirante a milionário a ilusão de que seria apenas abrir uma porta numa loja virada para a rua para começar imediatamente a enriquecer. Só assim se parece conseguir explicar a tanta porta aberta corresponda tanta loja vazia.

Entretanto, e apesar da multiplicação pipoqueira de tudo quanto é gelataria indie e decoração vintage, à zona onde habito falta ainda uma pastelaria decente onde não seja necessário empenhar um órgão para comer um pastel de nata e um minimercado que compita com o minipreço. Bem sei que abrir uma pastelaria ou um minimercado não possui o glamour associado a concretização do sonho de ser o legítimo proprietário de uma banca de smoothies orgânicos, mas é capaz de ser mais interessante de uma perspectiva económica. E talvez o factor económico tenha alguma importância quando se trata de abrir um espaço comercial.

No mundo dos negócios, o conservadorismo e a inovação têm a mesma importância na dinamização do mercado em que o negócio se insere: as pessoas que aderem às dietas paleo-crudo-mesozóicas são as mesmas que precisam de fazer uma fotocópia ou de comprar vegetais. Quem compra comida africana também há-de eventualmente comprar cigarros. Há uma série de necessidades porventura menos trendy que, ainda assim, compõem uma fatia bastante apreciável do mercado.

A isso acresce o facto de os turistas, esses canalhas, não serem os autómatos gastadores que deveriam ser. Ao que parece, o homo turisticus, apesar da fama esbanjadora, tem critério. Ou seja, mesmo que seja enganado naqueles restaurantes de fama duvidosa na baixa e pague trezentos euros por um bacalhau com natas, dificilmente comprará com a mesma facilidade aquele porta-chaves com camarões de plástico multicolores e réplicas de olhos de mocho que se vende na loja de “artigos típicos das caraíbas na perspectiva das religiões sincretistas e da magia negra”. Ou um gelado de sardinha e maionese. Mas a insistência em prover de soluções desnecessárias a maior parte das lojas recém-abertas que se vê por aí tem porventura origem no mesmo fenómeno que ocorre com as bandas que parecem tocar apenas para os músicos que a integram. Espero que, pelo menos, se estejam a divertir.

9 Out 2017

Poesia de Georg Trakl

A jovem criada[1]
Dedicado a Ludwig von Ficker

1

Amiúde, junto ao poço, ao entardecer,

Vemo-la, enfeitiçada, de pé, a

Tirar água, ao entardecer.

Baldes a subir e a descer.

 

Nas faias, esvoaçam gralhas,

E ela parece-se com uma sombra.

Os seu cabelos amarelos esvoaçam

E no pátio chiam os ratos.

 

E fascinada pelo declínio,

Baixa as pálpebras inflamadas.

Erva seca em declínio

Cai a seus pés.

 

Die junge Magd

Ludwig von Ficker zugeeignet

 

1

 

Oft am Brunnen, wenn es dämmert,

Sieht man sie verzaubert stehen

Wasser schöpfen, wenn es dämmert.

Eimer auf und nieder gehen.

 

In den Buchen Dohlen flattern

Und sie gleichet einem Schatten.

Ihre gelben Haare flattern

Und im Hofe schrein die Ratten.

 

Und umschmeichelt von Verfalle

Senkt sie die entzundenen Lider.

Dürres Gras neigt im Verfalle

Sich zu ihren Füssen nieder.

[1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag.

A jovem criada

2

Silenciosamente, trabalha no quarto

E o pátio há muito que está deserto.

No sabugueiro, à frente do quarto,

Um melro canta o seu lamento.

 

Prateada a sua imagem, no espelho, olha

estranhamente para ela, no lusco-fusco,

E a imagem entardece pálida no espelho,

E estremece perante a pureza da rapariga.

 

Como num sonho, canta um criado na escuridão,

E ela olha-o fixamente, abalada pela dor.

Uma vermelhidão goteja através da escuridão.

De repente, o vento sul sacode o portão.

 

Die junge Magd

2

 

Stille schafft sie in der Kammer

Und der Hof liegt längst verödet.

Im Hollunder vor der Kammer

Kläglich eine Amsel flötet.

 

Silbern schaut ihr Bild im Spiegel

Fremd sie an im Zwielichtscheine

Und verdämmert fahl im Spiegel

Und ihr graut vor seiner Reine.

 

Traumhaft singt ein Knecht im Dunkel

Und sie starrt von Schmerz geschüttelt.

Röte träufelt durch das Dunkel.

Jäh am Tor der Südwind rüttelt.

9 Out 2017

A Pharmacia Popular

[dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]ários assuntos atravessam a estadia em Macau de Camilo Pessanha e a construção da Avenida Almeida Ribeiro é um deles. Imaginariamente delineada já nos jornais desde 1890, essa avenida só fará a ligação do Porto Interior com a Praia Grande em 1926, está a falecer o poeta. A história da Avenida Almeida Ribeiro, por vezes mal contada pois dá-a como terminada em 1915, mas tal só acontece do Porto Interior ao Largo do Senado. Cinco anos para construir essa parte da via, demorando do Senado à Praia Grande mais dez, e só quando o morro é destruído, com grande contestação da comunidade chinesa de Macau, é a ligação em linha recta feita até à Praia Grande.

Para remediar o corte da Rua da Sé, que fica sem a parte tomada pela Avenida Almeida Ribeiro, é pensada uma ponte, mas a Rua Central, ganhando uma boa centena de metros, começa agora a um nível mais baixo, na Avenida Coronel Mesquita, que da Rua da Praia Grande vai até ao Cinema Apolo. Daí o Largo do Senado onde, para Oeste se liga a Avenida Almeida Ribeiro, que em 1926 estende o nome e ocupa a então Avenida Coronel Mesquita; e nessa transferência de nomes passa a Avenida Coronel Mesquita a designar uma via na parte Norte da cidade.

Percorre também toda a estadia em Macau do poeta a história das obras do porto, desde o desassoreamento do Porto Interior à construção do novo Porto Exterior para albergar navios de maior calado. Já para a Lotaria da Santa Casa da Misericórdia de Macau não há aqui espaço.

Luz eléctrica na cidade

Entre 1898 a 1919 apenas funciona no Liceu Nacional de Macau o curso geral, sem o complementar e como o currículo é parecido com o do Seminário de S. José e do Colégio Feminino de Santa Rosa de Lima, o Liceu tem uma fraca frequência de alunos. Por isso é o Instituto Comercial de Macau fundado pela Portaria n.º 59 de 10 de Agosto de 1901, ficando anexo ao Liceu e tutelado pelo Leal Senado. Tal dura apenas até 1903, pois dissolvido é em 7 de Outubro integrado no Liceu.

Sobre um museu para a cidade, Pessanha, nas suas cinco estadias em Macau, escuta e fala sobre a sua criação, mas o único que conhece é o de História Natural criado no Liceu em 1895 pelo Reitor Dr. Gomes da Silva. Ano da existência da Pharmacia Popular, fundada a 5 de Dezembro na Rua da Praia Grande, comprada em 1910 pela família Nolasco.

Quando Camilo Pessanha vai para Portugal em Agosto de 1905, está por inaugurar o sistema de iluminação eléctrica em Macau, o que ocorrerá em Fevereiro de 1906 e a verá ao regressar em 18 de Fevereiro de 1909, para a sua quarta estadia que se desenrolará até 10 de Setembro de 1915.

No dia seguinte à chegada, a 19 de Fevereiro de 1909 Camilo Pessanha reassume o cargo de Conservador do Registo Predial e a 11 de Março é nomeado professor de Economia Política e de Direito Comercial, tomando posse a 2 de Junho do cargo de professor de Noções de História Universal, História da China e especialmente das suas relações políticas e comerciais e História Pátria. Em 29 de Junho de 1910 vê ser inaugurado o novo farol da Guia, sendo a altura sobre o nível do mar de 105,7 metros e cuja torre de 14,5 metros passou a ser circular, tendo no topo o novo aparelho luminoso de terceira ordem, uma aparelhagem moderna de rotação que veio de Paris, com uma distância focal de 0,375 metros e uma intensidade de luz cujo alcance era de 25 milhas. No mesmo ano é aberta a Avenida da República e dá-se início ao projecto de abertura da Avenida Almeida Ribeiro.

Carestia

O jornal Vida Nova de 2 de Janeiro de 1910 refere que “a construção de habitações na parte da Colina da Penha levou ao desviar de alguns veios de água que alimentavam a fonte do Lilau e devido também à exploração de várias pedreiras na referida montanha secaram algumas pequenas nascentes; “de modo que os habitantes daquela zona da cidade que dantes se utilizavam da água daquela fonte e nascentes, hoje vêem-se na necessidade de servir-se da água da Fonte de Inveja que, segundo dizem, já não é tão abundante como noutros tempos. Dizem também que o corte das árvores daquela montanha influiu para o desaparecimento de algumas nascentes”.

De Macau, Pessanha ausenta-se de 19 a 22 de Novembro de 1911 para ir a Cantão à procura de objectos de arte chinesa, segundo Daniel Pires que refere, no final do Verão de 1912, Pessanha mora num casarão antigo do século XVII ou XVIII de alvas varandas, cerca do Hotel da Boa Vista e “em cujas espaçosas salas e largos corredores se desenrolava a suave e ridente fantasmagoria do seu museu chinês…”, observação de Alberto Osório de Castro.

À falta do inebriante absinto consumido em Portugal, Camilo Pessanha em Macau substitui-o pelo ópio, que sente falta na sua estadia na metrópole e o faz regressar a 21 de Maio de 1916. No dia seguinte, a Pharmacia Popular muda-se para a casa n.º 16 do Largo de Senado, onde Beatriz Basto da Silva refere ter estado a antiga Farmácia e Drogaria Franco e Companhia.

Nessa quinta estadia em Macau de Camilo Pessanha e última, o jornal O Progresso (Semanário independente, Dedicado à Propugnação dos Interesses Portugueses no Extremo-Oriente, com redacção e tipografia na Rua do Hospital n.7 e Director Luiz Nolasco) de 1 de Outubro de 1916, num artigo de fundo, na primeira página a prolongar-se à seguinte, com o título Carestia da Vida revê os preços dos produtos de primeira necessidade entre 1910 e 1916, num trabalho de curiosa caturrice. Durante esse período, “a carne de vaca aumentou 33%, a de porco 80%, o arroz 44%, peixe 60%, galinha 100%, pombos 125%, batatas 100%, laranjas 25%, pão 60%,carvão 54%, petróleo 72%, lenha 60%, açúcar 88%, leite de lata 48% e biscoitos de soja 38%. Toda a gente berrava contra a carestia de vida, mas em geral ignorava-se quantas vezes, em números…”

6 Out 2017

“Affairs” humanos

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]êm início relações humanas, mas não têm fim. Acabam mas não no sentido em que é como se nunca tivessem sido. Pelo menos, não, algumas. Mas talvez falemos de relações humanas, daquelas que se travam no núcleo duro das nossas existências, aí onde a batida cardíaca ganha o seu bombear.

A própria expressão “relações humanas” é complexa e ambígua. Todas as relações do humano são humanas. O mundo em que vivemos está completamente revestido pelo ser do humano. Nós próprios reconhecemos de algum modo ser humanos. A relação do humano com Deus é humana, ainda que de Deus para nós possa não o ser, a partir de uma certa teologia. Tudo o que é humano é em relação: de si para si, de si para o mundo, de si para Deus, de si para os outros. Ainda, desde sempre que estamos remetidos para outros, outros que estão vivos e na proximidade espacial e afectiva. Outros também que sabemos terem existido, os antepassados que estão na boca daqueles que nos estão próximos, pais e mães dos avós, conhecidos contemporâneos deles. Pode ser também com um sem número de pessoas que constituam a nossa árvore genealógica incógnita e as árvores genealógicas dos outros que conhecemos. Cada pessoa é constituída pela ausência de todas as pessoas que são condições de possibilidade da sua história, mesmo que não façam parte da sua história. Sem haver histórias para contar acerca delas que tenham sido vividas na primeira pessoa. Podemos ainda compreender que estamos remetidos para incógnitas futuras, quem serão, como serão, os nossos descendentes, os descendentes dos descendentes dos nossos familiares e amigos? Como são os pais para os órfãos de pais incógnitos? Todos nós somos um feixe complexo e emaranhados de relações com todas as pessoas que conhecemos e com todas as pessoas que não conhecemos, como se a nossa fachada apenas fosse a ponta de um iceberg constituído pela multidão de gente com quem convivemos mas também com a multidão de gente muito mais vasta, a perder de vista, que não conhecemos, a humanidade, as gerações de gerações passadas e futuras e todos os nossos contemporâneos que nunca veremos a não ser a porção finita e limitada das pessoas que conhecemos.

Das pessoas que conhecemos, umas houve e há que sempre lá estiveram, pai e mãe e avós e tios e irmãos ou primos mais velhos, aquela parte da família que já vive quando acordamos para a vida. Outros há que conhecemos ao longo da vida, fomos tendo como amigos, como os outros que se tornaram nossos. Fazer um amigo é um acontecimento histórico, não apenas porque existe um momento em que não o conhecemos e um momento em que o conhecemos, mas também porque nós próprios somos diferentes se não tivéssemos conhecido essa pessoa. Seríamos diferentes, se não tivéssemos os amigos que temos. Seríamos outros. Nem saberíamos distinguir quem seríamos agora que somos conjuntamente com esses outros que se tornaram e ficaram amigos. Somos definidos pela presença de familiares e amigos que são os nossos. A sua presença é indelével. Podemos não os ver com a frequência com que os víamos nas tardes infinitas e oníricas da infância e da juventude. Podemos já não os ver. Houve outros que morreram e outros que se afastaram e ficaram, por isso, vida fora.

E, contudo, vivem em nós, mesmo se não vivem já connosco. É que os interrogamos, quando queremos saber como reagiriam, o que fariam, que conselhos têm ou teriam para dar. A sua presença é completa, ainda que desaparecidos. São os nossos mortos, que cruzam as nossas casas e as asas das suas vidas desaparecidas batem ainda o ar das nossas cidades, fazem a corrente de ar que bate portas e estilhaça os vidros das janelas. Passam por nós com a densidade suficiente para lhes adivinharmos a presença.

Há também aqueles que por um qualquer mal-entendido, bem entendido para uma das partes e mal entendido para a outra das partes, se afastam e irremediavelmente para sempre. Até podem reencontrar-se algures, décadas mais tarde, ao abrir de uma porta, ao dobrar de uma esquina ou lá ao longe. Não sabemos bem como os dois reagirão, se mal se bem. Se será indiferente e é como ver um fantasma já morto, mas que não enterráramos. Mas esses outros de que nos afastamos e nós afastados dos outros somos habitamos uma dimensão diferente do ser. Nunca nos despedimos e vive em nós a amargura da injustiça que fica em nós, objectiva ou só nossa. Viverá também talvez alguma alegria dos dias felizes, se calhar pouca, porque tudo se esfuma em face da tristeza e da melancolia.

Não é é como se nunca tivesse sido. Ninguém desaparece como se nunca tivesse existido. A amargura atesta-o e a amargura é a abominação da desolação.

6 Out 2017

Jantava com Poirot

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]u jantava com Poirot. Ontem morreu. Talvez jante de novo com ele hoje, ou um destes dias. É triste morrer uma personagem de ficção. Já basta que as do real, mesmo longínquo, o façam. Às vezes penso que as mortes que nos vão passando pela vida, se não colocam uma ausência concreta no quotidiano dos dias, são quase tão irreais como essa. Mesmo o morrer de uma fantasia, é triste.

Todos os meus ângulos são susceptíveis à insónia, ao bloqueio das articulações numa cãibra de mutismo, à cacofonia do dia que é, e às anquilosidades do terror da palavra errada, aos murmúrios de tempos que acertam em lugares diferentes do relógio. Aos subornos dos ponteiros, às aplicações exponenciais e desperdiçadas. Todos. Vítimas de me pertencerem antes de mais. Na deriva da informação e do silêncio. Em que marear é tarefa de remotos e expeditos marinheiros a pensar no sentido, no fim. Da viagem. Essa que não sei. E por isso, todos os meus ângulos sofrem da mesma insone e desassossegada perplexidade sem fim. Da mesma indisciplina irreprimível da insónia como do sono em desmaio abismal que, outras vezes, me atinge.

Há dias em que a manhã me encontra como se num parque subterrâneo em que a noite e o esquecimento me estacionou como veículo. Muito se constrói nas infraestruturas de um espaço e de um ser. Dúvidas de ser, talvez. Mesmo as que nunca. Talvez em algumas pessoas o tempo, rasteiramente como um vento que, raso ao solo, arrasta poeiras, torna por momentos indefinida a vista do chão, ou como ter os pés mergulhados numa água que por refracção deforma. Talvez o tempo, sim, traga alguma desconstrução. Da memória de certezas de coordenadas espaciais. Os eixos xyz, inseparáveis na geometria, no turbilhão da noite sideral dos sonhos, a dar pequenas e irónicas reviravoltas sobre si.

E em outros segundos que sucedem a outros e antecederam os que a seguir desabam sem predição nem adivinhação possível, uma nesga estreita abre-se e de súbito toda uma janela de porvir imediato se dá a ver. Não é feia esta paisagem solitária em névoas luminosas de uma luz qualquer que se espreguiça por detrás. Impúdica. Não é triste, ou mais do que outras emoções quando breves, esta melancolia de aceitar o aceitar, porque nada mais se pode fazer ou querer. Dentro de fronteiras da possibilidade de agora. Deste momento ímpar, se bem que repetido aleatoriamente pela vida de antes. Talvez pela de depois, também. Que dizer do que nos castiga, de ser tristes ante a enormidade de tudo o que se apresenta em paisagem. De uns escassos minutos de eternidade a outros, sempre a vastidão se mostra. E nela todas as variantes de mundo a ver. Mas, às vezes pelo tiro da manhã, como um puzzle desfeito. Quem dera um álbum de retratos parados, sólidos de linhas e sombras e sorrisos para o sempre. Aquele que nunca é. Mas de algum modo se poderia tornar ilusão, abrindo-lhe as páginas como de um sonho arrumadinho de uma noite só. Nunca esta miríade de mundos a assomar logo pela manhã do acordar confuso. A querer uma área límpida de caminho a percorrer na calma de uma manhã como nunca se repete em outras, mas uma manhã única para viver em cada dia. Porque o tempo não fez de mim a forma de uma seta, a determinação de um raio e a persistência cega de uma lâmina, é pergunta que não tem lugar na mesa de uma convivência serena, com uma consciência que me caiba em mim. Por isso shsss… medir as palavras em sonoridade, voltes e sangue. Que a vida insinua-se tormentosa e vinga-se em violência nos elementos.

Dúvidas do sentido. Nessa reviravolta dos eixos. XYZ, por momentos a girar sobre si. Vaga memória de sentido. Mas a única firme a do sentido sentimento. Ou a nitidez sentida da sensação. Mesmo na confusa abordagem ao acordar do dia. Tão confusa de sentidos confluentes, dúvidas de verbos e tempos verbais. E pessoas. Sobretudo pessoas. Sujeitos de orações. Como se nada pudesse determinar em que momento do mundo ou da vida me situar em cada incidente da consciência encerrada no mutismo interior. O interior da casa. Nada.

Procuro, mas não há esta entrada no dicionário de sentir. Antes dispersa por páginas e páginas. Penso coisas como por que letra começa cada palavra. E nem assim. Se organiza numa topografia convincente este início de manhã. Dias em que afinal me levanto de um salto, em fuga e sem mesmo quase querer, nesse abrupto espantar o conforto da cama, caem as peças afinal num lugar qualquer e esqueço as dúvidas iniciais. Toda aquela desarrumação confusa. Substitui-se por uma outra mais reconhecida. Suspiro de alívio.

Antes. A fímbria estreita irregular. E arenosa, para piorar a, já de si, insegura forma de poisar cada pé apressadamente, desastradamente a correr a correr e ao lado o espaço, sempre em névoas, que não deixam ver o sem fim do abismo abaixo da montanha, em que me dou a correr. E as portas em que passo em frente trancadas e então porque corro se simplesmente as adivinhei mal e abertas de longe quando afinal não era mas é a imponderável variação de cenários que não têm uma ordem vislumbrável. O que foi aberto, e talvez já não e não sei porquê nem porque corro para onde para quê?

Sem mais, afinal, do que a mais intensa necessidade de recolher ao interior casa onde habita o monstro. De estimação, descuidado, ausente e emudecido à força. Entro e deixo-o rugir até a insuportável agonia de tolher asas, me apurar o ouvido ao tom. Talvez lhe doa algo, o estômago ou os ouvidos como a mim. Talvez lhe doa algo afinal e para além dos dentes afiados e ameaçadores, as garras ou cascos rudes – não consigo ver – haja afinal a dor. Também ele, mas com ruído. Penso como conheço mal esse mal que me habita e que descuro por o achar ausente no mais dos dias. E afinal é só a pequena afinação do ouvido. Ao tom. E daí até há habitação plena deste oco de pele sangue e vísceras que me arrasta pelo mundo, ser completa, é um segundo sobreposto no outro, como se não houvesse vazio que me chegasse vindo da intempérie e da negação. Ou outro. De que se fazem os medos? Perguntava ontem em olhar transido sobre as múltiplas páginas sem beijos. Disso, que são páginas a soltar ao vento e deixar nas rotundas de percepções moribundas. Folhas a secar.

Penso de novo no labirinto dos dias. Aquele de fundos corredores, bem ao fundo de um dos quais repousa o monstro conhecido desconhecendo-o ainda assim. Os passos decisivos que não podem passar além da exaustão. A trilhar com pegadas profundas e cada vez mais escavando um solo que era liso. A ficar revolto dos passos que nunca calcam a mesma porção de dúvida. O desconhecido desse chão, das reviravoltas do percurso esquina sobre esquina, sobre outra e muitas outras esquinas – ou as mesmas em outras vistas. As luzes baixas a mudar de momento para momento, irreconhecíveis assim. As mesmas ou outras é uma outra interrogação no percurso. O bosque nocturno não se revela no todo. Nunca no todo. Ao caminho cabe o momento próprio. As trevas renovam-se na folhagem fantasmagórica, mas são outras porque o olhar o é. Irreparável de humano, para o confronto com algum cristal. Alguma fórmula de mineralização permanente. O bosque sofre de males de organismo. Vivo, habitado dos passos. Numa deriva em que se cruzam caminhos e passos em sentido contrário. Quase uma voracidade num e noutros. Caminho e caminho eu nele. Mas sei de limites imprecisos, no momento impreterível de aliviar uns e outros. Momento a adivinhar no indizível invisível. Velado tormento e dilema entre persistir ou insistir. Aquela tonalidade ligeiramente diferenciadora entre o peso leve e a leveza feroz e arrasadora. Talvez devesse aprender com a crosta terrestre a elevar a ferida até à lava tumultuosa, lágrima fatal para o que apanha em redor. Por isso, talvez, não o faço. Por isso, talvez. Dentro.

 

Passo o bálsamo nos lábios. Creme no corpo, recordações na alma e uma compressa húmida e tépida de sonhos no olhar cansado a desejar e a temer, a desejar e a adiar o sono sem agitação permitida. Ao lado, na almofada fofa de penugem de ganso, desmorona no ressonar abrupto e entrecortado de longas aspirações, o monstro de sempre, feito corpo e sensações tácteis pelo caminho. O caminho do sonho permitido afinal. Temido. Adiado. Volto o rosto a ver se está por detrás dos ruídos roucos e do ranger de dentes assustador. Ou é uma ilusão em fuga, que se esqueceu do som ao partir. Ruge. Descanso. É o estômago, penso. Talvez. Ou algo que não eu. Digo-lhe: estou aqui? É belo e sinto-lhe vaga penugem como uma aura de determinação, de doçura. Sim, parece-me que disse. É suave para além dos rugidos de fantasia. Um anjo, talvez. Porque os anjos são monstros bonitos e grandes a ocupar a cama inteira, a alma inteira, a noção de noite de vazio e de silêncio. Tudo sem espaços. Por isso gosto dele. Contente com a conclusão nocturna. Abro a caixa de bombons e trinco um, determinada a adormecer apesar do açúcar, num alo de doçura – o mesmo do açúcar que recobre violento ondas de sabor do cacau negro que vem dos campos de longe – e depois lembro-me que é bom para a digestão e ofereço-lhe um que dorme sem sentir este aroma que é inconfundível e recusa, claro, e dorme de súbito e de novo como sempre sem aviso nem resolução. Mas teimo em deixar-lhe um sabor adocicado nos lábios distraídos e acorda por momentos. Agradece sem saber o quê. Sentiu.

Fora. Apressadamente, continuo, tocando sempre a áspera parede ao lado, quase num abraço quando o caminho estreita ainda mais. Algures há um passo de montanha. Senão a porta, o passo. Caminho. Caminho porque ao fundo, num lugar que não sei mas vejo, e que quando vir poisando os olhos, mesmo não sabendo, está. Caminho. Sem parar, porque ao fundo, imprecisamente ao fundo, o meu monstro – talvez carinhosamente – espera.

6 Out 2017

Arrojado esforço

Horta Seca, Lisboa, 28 Setembro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e súbito, a mensagem: chegou o Carlos Lopes. Dava jeito aqui que usasse relógio que escrever que o olhei, mas vivemos mergulhados nas horas, sendo impossível escapar-lhes. Era meia hora antes do combinado, pelo que tive que correr. Está certo, natural será que um campeão seja mais rápido e nos obrigue a correr. Os corredores param o tempo, sabemo-lo desde os gregos, abertos à contemporaneidade pelo esforço de professores como o mano António [de Castro Caeiro]. «Sem dúvida, o melhor de tudo é a água./Mas o ouro, que imita o fogo a arder na noite,/distingue-se em excelência de todas as outras riquezas.» Abre logo assim a primeira das Odes Olímpicas, de Píndaro. O ouro visitava-nos e trazia a água da simpatia, vede que combinação. «A fama de Pélops brilha, ao longe, nas corridas das Olimpíadas,/ onde a velocidade dos pés entra em disputa/ e o arrojado esforço é levado ao extremo da força./ O vencedor tem, assim, para o resto da sua vida/ uma serenidade doce como o mel// em virtude do prémio das competições. / Mas não há bem mais supremo para um mortal do que a glória desse dia. / E eu tenho de coroar aquele homem / com a canção do cavaleiro, ao modo eólico.» Que sopro é este que me empurra para me armar em Píndaro e coroar Carlos Lopes com qualquer canção, modesta que seja? Tranquilos, que não me atreverei ao poemar celebratório que logo se parte à passagem da primeira hora. (Sim, estou a pensar naquele passe de Manuel Alegre para Eusébio…) Mas um dos meus heróis está aqui, à distância de um abraço, aquele que abriu loja de desporto na colina mais íngreme da cidade, na montanha maior da minha infância, a das vistas alargadas e arejadas, onde revisitei tantas revoluções, paixões, projectos. A Penha de França não terá sido Olimpo, mas avizinhou-se. Se não bastasse o ouro ganho longe, «onde a velocidade dos pés entra em disputa/ e o arrojado esforço é levado ao extremo da força», acompanhado por cá nas cores que ainda pareciam preto e branco, ainda tinha ido montar bazar nos meus lugares, no topo que exige o máximo da respiração. Ei-lo aqui, à distância de outro abraço, trazendo a frescura da humildade, do bom humor. A selfie não foi apenas a fotográfica, ele desenhou auto-retrato que concorrerá com a medalha que o André [Carrilho] lhe esculpiu. Corro a pô-la na parede, em eólico lugar.

Roterdão, Lisboa, 29 Setembro

Quem chegasse, na exacta hora marcada, tinha que abdicar de um dia soalheiro para entrar nas quatro da manhã de uma sexta ou sábado. Mais: tinha que ultrapassar alguém que se esforçava por prender na entrada uma pesada cortina antes de descer à cave que o ar condicionado teimava em fazer frigorífico. Foi uma entrada a pés juntos no Festival Silêncio. Este cenário, dramático, mas casual, fez-se apropriado para a ocasião: dizer, na voz alta de Joana Bértholo e André Neves, que o olhar múltiplo do Pedro Neves Marques se materializara em ficção. «Morrer na América», que resulta de uma colaboração da Arranha-céus com a kunsthalle lissabon, de João Mourão, leva-nos ao coração da mais icónica e mítica América. Decadente e tecnológico, contraditório e imagético, apocalíptico e, afinal, tão humano, esse coração cujo pulsar tão bem o Pedro capturou. A sua escrita, com raízes na ficção científica, atinge um grau de detalhe único, alimentando um fluxo em contínuo que se torna hipnótico e nos captura como floresta densa, prenhe de cambiantes visuais e tonalidades de pensamento. Houvera atenção e logo se veria que estamos perante um caso sério. Ah, mas são contos, esse parente pobre da miserável literatura. De um dos mais fulgurantes, Liberator, registo: «Neste novo mundo, pelo lutamos, a morte acontece apenas sob a forma de assassinato. Matar Édipo é hoje a única maneira de os jovens se apoderarem da morte, contra, e para lá, do impulso de morte do capital. E neste novo mundo, o que não falta são Édipos por matar; não há falta de reacionários, pedagogos e contrarrevolucionários por abater. Daí que, ao mínimo sinal de mudança, sejamos considerados indiscriminadamente como terroristas. É também essa a razão por que, hoje como naqueles primeiros tempos de mudança, a perseguição política é uma constante.»

Roterdão, Lisboa, 30 Setembro

O dia começou, de facto, ao fim da tarde com os No Precipício Era o Verbo a lançarem o álbum/cd em Lisboa, para um Musicbox cheio, outra casa do maratonista Alex Cortez, que fez as honras e sublinhou o carácter integrado do projecto, do cuidado musical ao cuidado estético. No mais, foi a intensidade do momento e a alegria de folhear o livro na cidade, entre amigos. Banal, apenas isso, o facto de termos andado pelo país, de Paredes de Coura às Caldas da Rainha, antes de o apresentarmos na grande e propícia e ventosa cidade.

Continuou depois com Goraz Voraz, a primeira mostra deste «projecto de spokenword pluri-multi-tutti-desfacetado contra a metronomia do cansaço doble». A partir do topo da bateria, mesmo junto às nuvens baixas, foi orquestrada pelo José Anjos, com o violino da Maria do Mar, o baixo de Pedro Salazar e o hangdrum do Luís Brito a iluminar as paisagens construídas pela Inês Fonseca Santos, a Liliana Ribeiro, a Rita Taborda Duarte, a Cláudia R. Sampaio. O mano Luís [Gouveia Monteiro] apresentou-se com um deliciosíssimo inédito, Alter-eco, para nos dizer que somos os sotaques, as pronúncias, afinal, as vozes. A Catarina [Santiago Costa] também se ergueu tonitruante. A experiência ganhou irritação e interesse ao ser atropelada por uma atitude que se tornou moda em algum poetar destes dias, a arrogância desordeira travestida de gesto político. Não serei eu a explicar a diferença: estudassem.

O cartaz do Rui [Garrido] (que ilustra esta página), criado propositadamente para a ocasião, diz como se há-de a voz erguer do caos: «from the guts to the throat». Terá que ver com gritar ao microfone?

Roterdão, Lisboa, 1 Outubro

Eleições? Nem dei por elas. Futebol? Quase nem dei por ele. Por duas vezes, durante a semana, vi abrir-se nos meus dias uma clareira, durante os ensaios para o que aqui aconteceu. Primeiro, o volume Má Raça, feito para as imagens fortes do Alex [Gozblau], fizeram-se espírito com as improvisações do Filipe [Raposo], mal esta voz triste disparava os versos em melancólicas trajectórias. Fui tecla do piano. Mais entrado na noite, vi-me no Botequim de há 30 anos, deslumbrado com os modos tonitruantes, tão terna e dramaticamente tonitruantes da Natália Correia. Estava com irmãos, o Luís [Gouveia Monteiro] e o João [Maio Pinto], dizendo poemas da sua Antologia de Poesia Erótica e Satírica no fio na navalha, digo, no fio das cordas de uma guitarra eléctrica. Tomara Tu Ter uma Tia assim fez-se projecto-projéctil. O mais extraordinário, penso agora, despido da emoção, foi a naturalidade do sucedido. Não apenas da suave balística dos encontros e cumplicidades, ditas e não ditas, mas sobretudo do veludo de estar em palco. Em comunhão.

5 Out 2017

Entre o instante e o tempo

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m tradução livre, como na vida. Sinto-lhe o olhar omnipresente e severo de sempre. Ali sobre a mesinha que ladeia a cama em que me esqueço de tudo. Aqui, no pulso a moderar ou a apressar pulsações, passos, palavras, na sua respiração própria, audível, inconfundível. Um olhar que acompanha sempre e procura o meu. Comanda no que pode. Preciso desses olhos sempre a definir o momento. A dar-lhe um nome. É que eu atraso-me para a vida. Perco-me. Confundo os nomes. E sempre que o olho vacilo em denomina-lo. Uma pressa em separar-lhe os rostos. Sobrepostos nesse mostrador redondo e lunar.

Cronos. O que tenta mover a minha vida de sempre. Absurdo e tirânico. A mergulhar-me nesta culpa de nunca lhe dar contas certas do que me dá para os gastos. E o outro. Como dois padrinhos inseparáveis para a vida. Preferia-os fadas madrinhas, talvez mais doces, compreensivas e cúmplices na minha imperfeição. Mas não. O de baptismo, com a marca indelével do que é rápido e imparável, inultrapassável na corrida, e o de casamento sereno e contido, sempre em espera de uma resposta sim. Padrinhos severos sempre a seguir-me, em todos os momentos na sua ordem, e em cada momento único em si, com esse olhar duplo para que não falte ao duelo diário. Ali, entre as árvores logo pela manhã. Mal acordada e já confusa como se soprada pelo vento que emana quase perceptível daqueles olhos. O que me faz correr. O que me obriga a parar. Que olho a pedir ajuda desesperadamente. Que me deixe parar e proteja do outro. Que faça valer uma magia maior. Que me tire a arma das mãos e me deixe esquecer do que e para o que ali estou. Todas as manhãs. Assaltada pelo rodopio de coisas em camadas baralhadas e complexas. Desarrumadas pelo rápido mergulho no sono, pelos ecrãs de cinema que no escuro me tomaram os olhos fechados. Tudo a ter que organizar todos os dias. Olho as roupas certinhas e direitas na cadeira da véspera, e não entendo porque não ficou ali, assim, a vida inteira à espera da manhã.

É para ele que me viro como para norte. A eternidade voláctil e possível do – apesar de que – nunca mais, para sempre tenuemente, fugaz eternidade do enquanto dura. De um, o outro, reflito a mágoa de ver perecer a memória no espaço do que já é tarde, que é perda, e na aversão angustiada ao que não é. Já. E, não o sendo, já, marcado com o sinal vermelho do irrepetível e impossível de reter. Esse Cronos em corrida. Que faz correr e olhar para trás a ver se toda a memória nos segue obediente. Arrumo como consigo as memórias, no abismo do espaço indexado à dor da perda. Delas apego-me sobretudo e obsessivamente aos objectos que, físicos e visíveis, em Cronos e Kairós, se tecem numa teia de cronologia desde o passado e prometem permanecer. Em registo, em memória e em futuro. Não mais que os objectos, quero para memória. De que não vivo, que me tomam espaço e tempo meu, mas de que cuido como bichos de estimação. Porque mesmo a história que contam todos os dias, é uma realidade presa a eles e ao olhar com que os toco. Quando a vida se diverte em inventar formas e fórmulas múltiplas de se fazer ausente. O que foi, em memória, é suplantado pelo que já não é. Não há memórias boas. Assim. Em certos dias. Por isso me arrastam para esse duelo diário e surdo, esses personagens que apadrinham. E os sonhos. Que me acompanham como sombra amiga de cada passo para a vertigem do momento seguinte. Ou os anjos. Se for a mesma coisa. De outro modo, seria insuportável. Cronos.

E a procura de uma paisagem tranquila, é ânsia dramática no vórtice de imagens que me assaltam. Uma geografia de rigor na necessidade de conversar a sós com Kairós. O meu favorito dos dias. Que procuro com os olhos inquietos quando não o sinto nítido. E procuro sempre. E tudo se define na cor da paisagem. Uma harmonia de desencanto ou de uma alegre serenidade.

O que não existe mata ou mortifica, é a questão que o Cronos dos dias, espreitando eu desconfiada o relógio, como se aí existisse ele, eu, me coloco. Ou a vida no eterno presente. Porque o que o monstro engoliu, na sua voracidade incontornável, não pode nunca voltar em memória que não seja a da falta, da morte, da diferença entre ser e já não ser, existir e já não existir. O que há de bom nos fotogramas que vêm ao de cima dessa espuma, é tocado da intolerância que se gera no contacto com a morte. Do tempo. De cada fracção de tempo. Já nada é. Do que foi. O que é, situa-se no eterno e intangível presente. Esse espaço habitado em transição por Cronos, sempre voraz e sempre atento. E o outro, também. Numa luta sem quartel e sem vencedores. Nós nunca. O tempo, talvez saia com esgar vencedor, mas, se nos vence em definitivo, procurando outra morada. Talvez se ame, sem poder evitar, na realidade, esses dois parentes, sempre a competir, sempre zangados, mas sem se perderem de vista. O que me devora – e nada em mim quer restar para sentir a falta do que foi devorado – e o da eterna ventura de viver o presente, como como se existisse sólido e dádiva de renovação. Sim, como dois padrinhos atentos, num duelo de século passado, em que ambos nos querem bem e mal mas trabalham para o mesmo fim na sua competição. Para nos deixar escolher dentro de limites que nos ultrapassam. E a habilidade da seta a desferir. Na luz variável das manhãs, das tardes, mesmo no limite das noites quase à beira de fim de dia. Quando um nos derrota e atira em frente para a solidão do momento, o outro refaz o olhar e apura o tiro. Quando um obriga a olhar para trás, o outro se o chamamos com delicadeza e empenho, encobre o primeiro. E envolve no seu abraço confortável.

E no meio disto, rendas e tecidos delicados do vestir para a vida e do sentir, porque se ama os padrinhos como família benfazeja e incontornável. Não consigo poder deixar de amar um e outro desses padrinhos, rivais mas sempre presentes. Cronos cruel e devorador insaciável. Ou o tempo: esse grande escultor, como o denominou Yourcenar. Devora, imparável, como imparável esculpe o momento em síntese em que somos. Constrói apagando. Destrói para limpar. Dá lugar mesmo que da natureza da magoa ao presente que é Kairós, mais difícil de ver, misturado de pinceladas do outro, a querer confundir. A testas a acuidade com que o conseguimos distinguir pelo meio das árvores. O do instante súmula e síntese de tudo o que fomos. O potencial do que seremos após a próxima síntese. Confusos de identidade. Esses dois. Como lugares. Oscilo entre um e o outro. Outros dias, ao contrário.

29 Set 2017

Dias de outono

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] tempo da comunhão é cada vez mais passado. É cada vez menor. Mais curto. É uma franja de tempo em que nos encontramos, como numa refeição, agora, quando há tempo. Cada vez mais almoços de trabalho e jantares de colegas. Cada vez comemos mais sós. Com a cabeça apoiada no armário da loiça. Engole-se a sopa da tigela, sem colher. Mete-se pão à boca. Não há tempo a perder. E para quê já nem sabemos bem.

Uma interrupção mínima no que achamos que é o trabalho. Mas nem é tempo para o trabalho. Podemos perder tempo sem o lamentarmos. É o tempo em que estamos blindados a exercer uma profissão, o momento em que convivemos mais connosco. Nem é para reflectir ou para progredir. É para nos esquivarmos ao outro tempo vazio em que somos obrigados a ter que nos ver a sós connosco. Quando olhamos o abysmo de tudo a ser sorvido rapidamente, décadas de tempo engolidas, pessoas desaparecidas e as divisões das casas que se mantêm iguais. Talvez com os livros que envelheceram e ganham a cor do tempo. Tudo desbota, perde saturação e cor. Nos momentos em que se percebe a passagem do tempo, já nem tristeza se sente. É uma angústia colossal. Ciclópica. O início dos anos lectivos, os aniversários, o fim das férias grandes que agora é como se fossem as últimas. Não sabemos quantos de nós vamos sobreviver até ao final do ano lectivo, se vamos celebrar o Natal e vamos de férias. Quando o Outono chega, mata um Verão que não foi bem Verão a não ser porque a estação é quente. Já nem vamos à praia, nem temos tardes infinitas à espera do jantar, nem noites de véspera de dias grandes. Fazemos exactamente o mesmo que fazemos se não fosse Verão. Já nem saímos para lado nenhum. Ficar é ter partido. A estranheza dos sítios é essa. Tudo igual. Tudo muda, sendo igual. E inventam-se os sortilégios que nos resgatam um pouco ao abysmo, uma memória que voa até nós pesada com o bater de asas de aves antigas, já sem existência biológica. Frases musicais soltas das crianças que brincam no pátio da escola, como se as gargalhadas soltas tivessem sempre o mesmo suporte: crianças ou adolescentes à beira de mergulharem para o abysmo, sem perceberem que os dias dourados são estes, sem serem especiais a não ser por serem vividos por quem está a começar a vida e tudo é novo e nada é estafado. Fica tudo depois velho de mais, esbatido, esfumado, neutro. A idade em que toda a gente é gira ou o parece e o mundo é hospitaleiro, não há assassinos e ninguém traiu outrem só por ser. Só por ser traímos outros, sempre sem querer. Nem sabemos porque só por sermos ferimos outros. E somos feridos por outros.

A ausência não é só a da distância. Nunca é, mas pode confundir. As fronteiras coexistem paredes meias em campos de vida que não se tocam já. E quando do passado vem alguém que ainda tem contas a prestar ou quer que lhe prestemos contas, não se apercebe que nada nunca chega bem, quando chega ao fim. Somos diferentes de nós e a distância a que nos encontramos dos outros é inexorável.

Se houvesse uma abertura disposicional, dar-se-ia a viagem ao passado. A vibração, modulação, baloiço, embalo. Cair na juventude, na disposição de que tenho num breve lapso de tempo uma ténue penumbra, como uma brisa ou corrente de ar que me traz o aroma de então, o modo de sentir as coisas.

O Outono transfigura a paisagem. Regresso ao ano lectivo de todos os anos lectivos. Nunca saí da escola. A disposição de uma vida cheia de salas de aulas, caloiros que pela primeira vez têm o primeiro semestre do primeiro ano. Já nem sei bem o que ensino e regressar à escola é regressar a qualquer coisa como uma prótese que me protege de não sei bem o quê: salas de aula e recreios e bibliotecas e jovens pessoas a quem ensino as condições de possibilidade da experiência.

O fim da tarde é mortiço como é a vida toda transformada numa segunda-feira. Realmente o Outono é uma grande segunda-feira que não chega a terça, nem vem depois de domingo. O ano lectivo não tem as férias grandes entre si e o final do ano lectivo transacto. É um começo estilizado. Já sem início. Um começo falso. Tudo à beira do fim. Sinto brisas, ventos, correntes de ar, ventanias, tudo como uma inundação, um alagamento. Chegam aromas de paisagens improváveis com fragrâncias quentes. Entre obscurecimentos e o clarear da aurora, há uma iluminação irreal, tonalidades de Setembro. Tudo mergulha no Inverno que virá. Há uma saturação no ar que frustra o início.

Disposição no seu sentido: Nada do que é parece. Não há dentro nem fora, nem entrada nem saída, nem fundo nem superfície. E, contudo, é frustrante este mega em mim. A mim.

29 Set 2017

As afinidades colectivas

23/09/17

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]ue árido viver a solidão quando o sujeito insiste em afirmar-se de “uma só peça” -uma poça tem pouco enredo. Outra forma muito distinta ocorre quando o sentimento avulso de estar ilhado se torna apostila e nos refazemos em arquipélago, entrosados num feixe. Tem sido essa a minha experiência do “exílio”.

Isolado do meu meio ambiente “natural”, qualquer incidente ganha as perspectivas de uma categoria que se irisa ao vento, porque o mais leve tecido de dúvidas e expectativas nos compromete, gerando uma tensão dinâmica. Desabrocha aí uma energia, dir-se-ia desaforada, que desencadeia a paisagem interior que equilibra o que nos assalta pelos poros e o olhar parecia esgotar.

Contra a cronologia dos acontecimentos ergue-se então a trama luminescente das afinidades electivas e a realidade que nos sitia evola-se num ramo, confina-se. E onde antes só jorrava a imaginação agora associa-se a memória, num ajuste novo, o mais fecundo quando a memória é ejectada pela imemorialidade arquetípica.

Sem ficarmos livres do mal, já vivemos aí num universo paralelo, obliquamente simples, isto é plural, com uma consciência em arquipélago ou em continuada transumância.

É assim que imagino “o encontro” de Pessanha com Ruben Dario (1867-1916) como um outro eu, que nele fez carne, a carne do verso reminiscente. Nunca tinha lido o sul-americano com a devida atenção e as afinidades que confessa o poeta de Clepsidra em relação ao autor de Azul… encorajou-me. Ruben Dario, é simplesmente monstruoso, volve até perdoável a saturação dos cisnes.

E várias coisas são coincidentes. Começando pelos elos familiares, pois igualmente Dario padece do sentimento de que a sua origem é um desconcerto que engendrou desvarios: “A voz do sangue, escreve, que flácida patranha romântica!” Também ele escolhe viajar cedo e parte para o Chile, reside em Costa Rica e Guatemala; mais tarde rumará a Espanha, que encantará (como Pessanha em Portugal, exultam com ele os salões e os ágapes), em França é elogiado por Victor Hugo e prende-se de amizades com Verlaine e Gautier; desembarcará nos States… e a sua liberdade vai brotando de um patriotismo que, paulatinamente, se faz universal.

Igualmente em Dario, a sintaxe do poeta não é senão a matemática de sua música. E onde quer que esteja, apesar da absoluta seriedade do seu trabalho literário, não se entrega à vida como um literato e antes bebe e fuma e não hesita em empregar palavras fortes e o seu humor é truculento, sendo um dandy que frequenta a prostituição. Se num campeia o ópio, no outro há uma feroz entrega ao vinho e ao uísque, ao ponto da calcinação. A ambos interessa sobremaneira «desacreditar a realidade», posto que carregam a sua própria realidade consigo. E pede Dario Em Prosas Profanas: «Ámame en chino, en el sonoro chino de Li-Tai-Pe». E podia não ter escrito mais do que estes dois versos: «La onda, cuando el viento canta,/ llora.», que chegava.

Experimente ler a biografia Yo, Ruben Dario, de Ian Gibson, que hoje se baixa, free, na net.

24/09/17

O problema com a Catalunha é a existência de cinquenta bandeiras que aguardam por precedência para assomarem às janelas. Catapultada a Catalunha nas nuvens da independência suceder-se-á uma marcha de imensos esqueletos até aqui escondidos nos armários e que poderão significar uma pulverização de inúmeros países europeus.

Portugal deve à Catalunha a sua independência dado a Espanha em 1640 ter preferido manter a riqueza catalã à perfídia em que o carácter luso se transformara.

Também eu intelectualmente devo muito à Catalunha. Muito do precário pensamento que consiga elaborar, a nível filosófico, estético e cosmoteândrico, devo-o às drageias que fui recebendo de Barcelona. Eugenio Trías, para a filosofia, Rafael Argullol e Xavier Rubert de Ventós para a estética, Raimon Pannikar para a antropologia das religiões, e Pere Gimferrer, Joan Brossa e Gabriel Ferrater na poesia, são minhas referências quase diárias há vinte anos. Gostaria de saber o que Trías, a par de Ortega y Gasset, o grande filósofo hispânico do século XX, pensaria desta derrocada para que o estulto autoritarismo de Mariano Rajoy, que ele toma por destemor, empurrou o país.

Já não há recuo – sou a favor do referendo catalão. Com angústia, mas só depois se avançará com legitimidade para quaisquer tipos de negociações que esclareçam a nova relação entre as duas nações ibéricas.

26/09/17

No dia em que as mulheres são autorizadas a conduzir na Arábia Saudita – meu Deus, adivinho o abuso dos polícias de trânsito que aproveitarão para exigir às mulheres que tirem o tchador para supostamente conferirem o rosto do motorista com as fotos nas cartas – leio que o rapper norte-americano B. o B quer enviar satélites para o espaço para tentar encontrar a curva da Terra.

«O artista deu início a uma campanha de GoFundMe para tentar provar cientificamente que o planeta azul é mesmo plano e descobrir a curva da Terra, pois sustenta que se o planeta tivesse a forma circular isso seria possível perceber a olho nu.

Por isso. B. o B, pretende lançar satélites no espaço para refutar o que a ciência e a tecnologia têm como provado. Para dar corpo à sua ideia necessita de 200 mil dólares – 168 mil euros ao câmbio actual – e da autorização das autoridades, refere.»

Pois se a curva das ancas de uma mulher se percebe logo a olho nu, como pode a curva da Terra, que é muito maior, não se notar de imediato? E deve ser esmagador viver com a certeza de que triliões de imagens manipuladas nos querem enganar, de que não há um cientista ou um astrónomo de confiança no mundo! E porque mentem tanto o Papa e os telescópios? A lua é chata como uma moeda!

A mim choca-me que um artista tão grande venda tão poucos cds que precise de pedir emprestado 200 000 dólares. Estou devastado!

Eu por 250 000 dólares provaria que a Terra tem a forma da popa do Elvis Presley. Só elucubra quem pode!

28 Set 2017

O armazém que verte lágrimas pelos anos 80

Os Milagres do Armazém Namiya (Namiya Zakkaten no Kiseki, ナミヤ雑貨店の奇蹟) estreou no passado dia 23 no Japão

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] filme, co-produzido pela Emperor Motion Pictures e pela Wanda Media, é baseado no romance homónimo de Keigo Higashino. No entanto, esta não é uma história típica de Higashino, autor japonês que ficou conhecido pelas suas obras de crime e mistério. Este belo romance ganhou a 7ª Edição do Prémio Chūōkōron e vendeu mais de 1,6 milhões de exemplares na China.

Três jovens fogem depois de um assalto e escondem-se durante algum tempo numa casa abandonada. Situada na periferia da cidade, numa zona com pouco trânsito, a casa tem uma parte residencial e um armazém. Por cima da porta do armazém está afixado um grande cartaz onde se pode ler: Armazém Namiya. Como é óbvio, a loja está fechada há muito tempo. Mas, enquanto os jovens estão escondidos algo de estranho acontece. No silêncio da noite, ouve-se cair uma carta na caixa do correio. O remetente é uma jovem atleta que pede apoio emocional e aconselhamento especializado para a sua participação nas Olimpíadas de 1980, que se irão realizar em Moscovo. A carta tinha sido escrita há 40 anos atrás! Os jovens gangsters decidem responder. E a atleta volta a escrever-lhes. À medida que a troca de correspondência continua, apercebem-se que o mundo dela começa a avançar a um ritmo acelerado, enquanto o tempo dentro da loja permanece virtualmente imóvel, desde que mantenham a porta fechada. Os três tomam consciência desta situação através do artigo de uma revista antiga que tinha sido abandonada dentro das instalações. Há perto de 40 anos, pouco antes da loja ter fechado, o velho proprietário, Yūji Namiya, tinha conquistado alguma notoriedade por dar conselhos prudentes e gratuitos a desconhecidos que lhos solicitavam. Depois da morte da esposa, percebeu que ajudar os outros a ultrapassar os seus problemas dava sentido à sua vida. Mas, extraordinariamente, Yūji Namiya tinha previsto que qualquer coisa  de semelhante viria a acontecer, e deixou escrito no testamento que a loja teria de ficar como a deixou…

Este filme, bastante nostálgico, leva-nos de volta ao Japão dos anos 80, antes de se ter deixado corromper por um estilo de vida consumista e stressante. Nessa altura, mesmo em Tóquio, quase não havia supermercados e as donas de casa faziam as suas compras nas lojas de bairro, como o Armazém Namiya. Hoje em dia, estas lojas de bairro, os banhos públicos e os restaurantes familiares foram substituídos por lojas de conveniência abertas 24 horas e por cadeias de supermercados. E por falar em cartas, quando é que foi a última vez que pegou numa caneta e se entregou a este singelo e antiquado ritual?

Veja o trailer aqui: bit.ly/2jUHPit

Os Milagres do Armazém Namiya

Realizador: Ryuichi Hiroki

Drama/ Fantasia | 129 min

Língua: Japonês

27 Set 2017