Jardim de sombras

Santa Bárbara, Lisboa, 17 Setembro

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uase o costume. Esvai-se o mês por entre os dedos, sobra tanto do que devia ter sido feito ou dito, cresce frondosa e por podar a grande árvore dos atrasos: dead line, linha morta, assim lhe podia chamar. Os seus estranhos frutos, as urgências colhem-se ao abrir do dia, para consumirem o oxigénio do que importa, até das raízes com que devia ocupar parte do dia. Além de sombra, o que viverá neste jardim? Ao costume junta-se a assombração de uma urgência maior, a de retirar os livros, vestígios de corpo por erguer, do armazém que se tornou cemitério. Durmo inquieto, numa atalaia de melancólica impotência.

Remolares, Lisboa, 18 Setembro

Desenvolvi uma alergia a reuniões. São indispensáveis, bem sei, até para, aqui e ali, ganhar o tempo da organização, mas preciso de um intervalo, de parar a torrente. Não vai nunca parar, pois não? Forma terei que arranjar de a conduzir para o lameiro onde alimentará em abundância o milho ou trigo ou outra semente do pão. Nas férias da infância grande aconteceram noites ainda maiores de espanto e utilidade, quando acompanhei o avô Joaquim ao topo da Gardunha buscar a água, que se conduzia depois por regos e caneiros até ao seu sítio, que era então de esperar. A noite inteira de sacho na mão, atento às instruções, acreditando que dominava a água, que lhe aprendia as forças. Dava jeito agora essa sabedoria, aplicada à força líquida que me atravessa e molha e enche de lama, às vezes cheirosa como terra molhada, outras nem por isso. Preciso muito de silêncio pelo que apetecia fugir deste acerto de detalhes acerca da nossa participação no Festival Silêncio, que ocupará o Cais do Sodré e os sentidos de muita gente, no final do mês. O Alex [Cortez] atira-me para as mãos o jornal que anuncia a programação e esmaga-me com a quantidade e a qualidade das propostas que celebram a palavra tendo por eixos a Voz e Maria Gabriela Llansol. A abysmo estará naqueles dias pelo Roterdão, com lançamentos e, sobretudo, concertos que cruzam a poesia dita com a música tocada, ou vice-versa. A isso voltarei, até porque me deixei implicar de viva voz em dois desafios que me assutam. Perdido em pleno jardim de confusão, irei arriscar ler o meu (e do Alex [Gozblau]) Má Raça, acompanhado pelas improvisações do Filipe [Raposo]. Não destoará, por tanto, o lado cabaré daquela voz, que me parece já tão longínqua, um eco. Será ainda pretexto, para apresentarmos os Tomara Tu Ter uma Tia Assim, banda em debandada com o Luís Carmelo e eu a lermos a antologia [de poesia erótica e satírica] da Natália [Correia], enquanto o João Maio Pinto pinta o ambiente à viola. Deixemos isso para depois, regressando ao bojudo jornal, que me frusta por me provocar com que o tempo me fará perder: as maratonas de leituras e performances e ciclos e debates e conferências. «O que é o texto em face do silêncio? O seu receptáculo.» Llansol oferece o mote para um mundo de transversal diversidade que reflecte a cidade no seu sítio: lugar-farol que usa a palavra literária para nos conduzir pelas tempestades. Em festa. O Alex [Cortez], e equipa, vêm erguendo um corpo que se arrisca tornar no mais desafiante dos festivais, literário muito para além da literatura. Fiz bem em ter ido a esta reunião. Mas vim com outro desafio: a edição do disco/livro dos Lisbon Poetry Orchestra. Terei tempo para responder?

Horta Seca, Lisboa, 19 Setembro

Chegam-me a conta-gotas os ecos da passagem da equipagem abysmo pelo furacão Macau. Mano após mano, vejo-os tocados pelo fascínio. O Valério [Romão] regressou apaixonado, aprendeu a combinatória dos ideogramas e receitas de Tom Yum. O António [Caeiro] sublinha a melancolia dos seus tons. O Paulo [José Miranda], dono de outra experiência, até escrita, trouxe terno distanciamento, projectos que se podem tornar comuns, e uma mão-cheia de livros, selecção da colheita do Carlos [Morais José] nos terrenos férteis do Oriente. Além de uma, tão bela quanto portátil, Clepsydra em versão missal para esta geração dos 150 anos de Pessanha, e de outros a que voltarei com água na boca, veio com o seu Karadeniz – Entrevista com um assassino em formato de livro. Outro exercício no qual o Paulo faz de um género esqueleto onde apôr as carnes da reflexão, aqui sobre a morte e o acto de matar, a soldo ou gratuitamente, em fúria ou na mais aplicada das preparações. Afinal, pretextos para aflorar o tema que explodirá no seu próximo e explosivo romance: a responsabilidade.

Horta Seca, Lisboa, 21 Setembro

O perfume de Macau está também na exposição do André [Carrilho]. Atrito, que continua e encerra, diz o autor mas não acredito, o percurso começado com Inércia, reflexão pintada sobre a viagem e a paisagem, sobre o tempo que precisamos para perceber as subtilezas, de cor e luz e sombra, do que nos rodeia, para encontrarmos o nosso lugar, o nosso olhar. Montar as imaculadas reproduções, fruto da mestria única do Francisco [Vaz da Silva], encheu-nos de prazer, a mim e ao mano Luís [Gouveia Monteiro]. Dar a ver segundo afinidades narrativas, de cor ou de lugar, proximidades, perspectivas, temas, para além da cronologia ou do autor, pôs-nos nas nuvens, tal a leveza e gosto que brota do pincel do André. Mas onde ele se transcende, e voa além da tradição da aguarela, é pelo gesto que recolhe o peso e o movimento das cidades. E Macau ou Hong Kong (como o caso que ilustra esta página) chegam-se à frente como protagonistas. O negro sujo, o vermelho de sangue, o amarelo do tempo dançam para nos oferecer a noite, que aqui se faz mais verdadeira por não depender da natureza. A cidade faz noite quando lhe dá na real gana.

Esta exposição está integrada na «rentrée cultural da 7.ª colina de Lisboa», que pela oitava vez abre em simultâneo (e festa) quase 40 espaços dedicados à arte contemporânea, ideia e esforço do Cláudio [Garrudo] e da Ana [Matos]. Dá gosto, só vos digo.

Horta Seca, Lisboa, 22 Setembro

Para uma pequena plateia de luxo, foi apresentado, pelo José Teófilo [Duarte] com acento na relação do pensar com o fazer, o Escrytos, do Paulo Pires, subido do sul, tendo por companhia o instrumento. A sua costela de programador puxa para o cima da conversa esse terço temático do volume. Mas há mais, muito mais por onde ali andar. No final, de olhos fechados, encheu a rua com um sopro, que ele tão bem toca nas suas páginas: «Cerram-se os olhos por momentos e a esperança, o desencanto, a ironia, a melancolia, a (violentíssima) ternura, a alegria ganham no acordeão uma dimensão singular de expressividade e densidade psicológicas através dessa fascinante mecânica, plena de essência e complexidade (feita de ar, fole, palhetas, caixas harmónicas de madeira e “corredores” ora abertos ora oclusos – como os labirintos da subjectividade humana), que ora alinha, ora solavanca/questiona e “desarruma” o corpo e o espírito.»

Fim de tarde do costume, aqui no jardim de sombras.

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