As listas

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ra o século XV. Jacques Coeur, rico mercador da corte de Carlos VII, explorava, entre muitas outras actividades proveitosas, a mineração de prata de Pampailly, perto de Lyon.

Em inícios dos anos 90, era eu um jovem adulto, candidatei-me a participar nas escavações arqueológicas desse complexo mineiro, dirigidas por um professor da Sorbonne, de longas barbas brancas, arquétipo do soixante-huitard.

Recordo-me de que, quando nos encontrámos pela primeira vez, brindou-me com esta tirada, seguida de um abraço:

— Portugal? Otelo Saraiva de Carvalho!

Creio que trabalhei nessas escavações cerca de dois meses, de que guardo hoje, apenas, uma meia-dúzia de imagens e sensações, coadas pelo tempo: o cheiro da terra húmida, repleta de minhocas que o nosso trabalho repetidamente amputava; a bondade das refeições, em que aprendi a apreciar esses pequenos pepinos em vinagre chamados cornichons; uma breve aventura sexual com uma jovem franco-cabo-verdiana, de volumosíssimos cabelos loiros, encarapinhados, quase sempre contidos por um lenço, mas esplendorosos quando soltos; um par de visitas a um château próximo, propriedade de um casal de velhos anacoretas, que, quando estavam de feição a receber visitas, içavam uma bandeira branca num mastro, e que, a propósito da sua assumida xenofobia, me afirmaram: “Sabe, nós detestamos estrangeiros, em teoria. Mas temos tido o azar de gostarmos de todos os que conhecemos”; uma breve viagem a Belfort, quase na fronteira com a Suíça e a Alemanha, cidade em que os caracteres franceses e germânicos se confundem; um fim-de-semana em Paris para visitar uma namorada colombiana, que trabalhava na UNESCO e morava na recatada Rue Serpente, no Quartier Latin, e com quem continuo a contactar de vez em quando, embora não nos vejamos há anos.

Dessa viagem tinha, ainda há algum tempo, uma recordação física: uma cassete de Archie Shepp, saxofonista de jazz, comprada no Quai des bouquinistes.

Ora, há alguns anos, não tendo como aceder-lhes ao som, deitei para o lixo um saco cheio de cassetes, incluindo a dita. Suponho que esse desprendimento, extensivo a todo o tipo de bens materiais, signifique que compreendi que os objectos não fazem falta à memória.

Pelo contrário, creio que a limitam no que tem de mais estimulante – a capacidade de se desconstruir ou destruir, de se reconstruir ou reinventar.

De facto, nos últimos anos, tenho dado ou vendido quase tudo o que tinha, a começar pelos livros, a maior parte deles imediatamente a seguir a uma única leitura. Faço-o não tanto por necessidade mas por ter a noção clara de quais os que me voltarão a interessar no futuro, que são, percentualmente, bem poucos, até porque, se, por um lado, tenho este desapego à propriedade, por outro, gosto de ler quase tudo, mesmo coisas que sei serem muito pouco valerosas ou das quais tenho consciência de ter pouca capacidade de entendimento.

Assim, de alguns milhares de livros que cheguei a possuir em dados momentos, e dos muitos milhares de que, ao longo do tempo, fui proprietário, guardo, agora, poucas centenas.

Muito menos, ainda, são os discos.

Fotografias, por razões que não importa precisar, fiquei com pouquíssimas (a minha infância, por exemplo, ficou, para mim, quase indocumentada).

Tenho, também, alguns desenhos e fotografias de autoria de artistas amigos.

E, quanto a outros objectos, se excluirmos a roupa, em que também não sou pródigo, não ocuparia muito espaço a lista exaustiva de quanto possuo!

Voltando aos livros, gosto muito mais dos que partilham a vida vivida do que dos que têm o despudor de impor aos demais a entropia do escritor, isto é, a quantidade de energia deste que não é convertida em trabalho mecânico. Ou seja: desconfio daquilo a que se costuma chamar Literatura.

Um dramaturgo que conheço desde que éramos crianças, isto é, há mais de quarenta anos, escreve, a dado passo, no seu único livro de poemas: “estou já demasiado anglo-saxónico para escrever coisas que não sejam listas”.

Às vezes, também eu sinto que as listas – sem acréscimo de comentários – bastam a cumprir a função do texto, tanto junto do próprio escritor como junto dos leitores: fixar a memória sem recurso a objectos.

Subscrever
Notifique-me de
guest
0 Comentários
Inline Feedbacks
Ver todos os comentários