Dias de outono

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] tempo da comunhão é cada vez mais passado. É cada vez menor. Mais curto. É uma franja de tempo em que nos encontramos, como numa refeição, agora, quando há tempo. Cada vez mais almoços de trabalho e jantares de colegas. Cada vez comemos mais sós. Com a cabeça apoiada no armário da loiça. Engole-se a sopa da tigela, sem colher. Mete-se pão à boca. Não há tempo a perder. E para quê já nem sabemos bem.

Uma interrupção mínima no que achamos que é o trabalho. Mas nem é tempo para o trabalho. Podemos perder tempo sem o lamentarmos. É o tempo em que estamos blindados a exercer uma profissão, o momento em que convivemos mais connosco. Nem é para reflectir ou para progredir. É para nos esquivarmos ao outro tempo vazio em que somos obrigados a ter que nos ver a sós connosco. Quando olhamos o abysmo de tudo a ser sorvido rapidamente, décadas de tempo engolidas, pessoas desaparecidas e as divisões das casas que se mantêm iguais. Talvez com os livros que envelheceram e ganham a cor do tempo. Tudo desbota, perde saturação e cor. Nos momentos em que se percebe a passagem do tempo, já nem tristeza se sente. É uma angústia colossal. Ciclópica. O início dos anos lectivos, os aniversários, o fim das férias grandes que agora é como se fossem as últimas. Não sabemos quantos de nós vamos sobreviver até ao final do ano lectivo, se vamos celebrar o Natal e vamos de férias. Quando o Outono chega, mata um Verão que não foi bem Verão a não ser porque a estação é quente. Já nem vamos à praia, nem temos tardes infinitas à espera do jantar, nem noites de véspera de dias grandes. Fazemos exactamente o mesmo que fazemos se não fosse Verão. Já nem saímos para lado nenhum. Ficar é ter partido. A estranheza dos sítios é essa. Tudo igual. Tudo muda, sendo igual. E inventam-se os sortilégios que nos resgatam um pouco ao abysmo, uma memória que voa até nós pesada com o bater de asas de aves antigas, já sem existência biológica. Frases musicais soltas das crianças que brincam no pátio da escola, como se as gargalhadas soltas tivessem sempre o mesmo suporte: crianças ou adolescentes à beira de mergulharem para o abysmo, sem perceberem que os dias dourados são estes, sem serem especiais a não ser por serem vividos por quem está a começar a vida e tudo é novo e nada é estafado. Fica tudo depois velho de mais, esbatido, esfumado, neutro. A idade em que toda a gente é gira ou o parece e o mundo é hospitaleiro, não há assassinos e ninguém traiu outrem só por ser. Só por ser traímos outros, sempre sem querer. Nem sabemos porque só por sermos ferimos outros. E somos feridos por outros.

A ausência não é só a da distância. Nunca é, mas pode confundir. As fronteiras coexistem paredes meias em campos de vida que não se tocam já. E quando do passado vem alguém que ainda tem contas a prestar ou quer que lhe prestemos contas, não se apercebe que nada nunca chega bem, quando chega ao fim. Somos diferentes de nós e a distância a que nos encontramos dos outros é inexorável.

Se houvesse uma abertura disposicional, dar-se-ia a viagem ao passado. A vibração, modulação, baloiço, embalo. Cair na juventude, na disposição de que tenho num breve lapso de tempo uma ténue penumbra, como uma brisa ou corrente de ar que me traz o aroma de então, o modo de sentir as coisas.

O Outono transfigura a paisagem. Regresso ao ano lectivo de todos os anos lectivos. Nunca saí da escola. A disposição de uma vida cheia de salas de aulas, caloiros que pela primeira vez têm o primeiro semestre do primeiro ano. Já nem sei bem o que ensino e regressar à escola é regressar a qualquer coisa como uma prótese que me protege de não sei bem o quê: salas de aula e recreios e bibliotecas e jovens pessoas a quem ensino as condições de possibilidade da experiência.

O fim da tarde é mortiço como é a vida toda transformada numa segunda-feira. Realmente o Outono é uma grande segunda-feira que não chega a terça, nem vem depois de domingo. O ano lectivo não tem as férias grandes entre si e o final do ano lectivo transacto. É um começo estilizado. Já sem início. Um começo falso. Tudo à beira do fim. Sinto brisas, ventos, correntes de ar, ventanias, tudo como uma inundação, um alagamento. Chegam aromas de paisagens improváveis com fragrâncias quentes. Entre obscurecimentos e o clarear da aurora, há uma iluminação irreal, tonalidades de Setembro. Tudo mergulha no Inverno que virá. Há uma saturação no ar que frustra o início.

Disposição no seu sentido: Nada do que é parece. Não há dentro nem fora, nem entrada nem saída, nem fundo nem superfície. E, contudo, é frustrante este mega em mim. A mim.

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