Arrojado esforço

Horta Seca, Lisboa, 28 Setembro

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e súbito, a mensagem: chegou o Carlos Lopes. Dava jeito aqui que usasse relógio que escrever que o olhei, mas vivemos mergulhados nas horas, sendo impossível escapar-lhes. Era meia hora antes do combinado, pelo que tive que correr. Está certo, natural será que um campeão seja mais rápido e nos obrigue a correr. Os corredores param o tempo, sabemo-lo desde os gregos, abertos à contemporaneidade pelo esforço de professores como o mano António [de Castro Caeiro]. «Sem dúvida, o melhor de tudo é a água./Mas o ouro, que imita o fogo a arder na noite,/distingue-se em excelência de todas as outras riquezas.» Abre logo assim a primeira das Odes Olímpicas, de Píndaro. O ouro visitava-nos e trazia a água da simpatia, vede que combinação. «A fama de Pélops brilha, ao longe, nas corridas das Olimpíadas,/ onde a velocidade dos pés entra em disputa/ e o arrojado esforço é levado ao extremo da força./ O vencedor tem, assim, para o resto da sua vida/ uma serenidade doce como o mel// em virtude do prémio das competições. / Mas não há bem mais supremo para um mortal do que a glória desse dia. / E eu tenho de coroar aquele homem / com a canção do cavaleiro, ao modo eólico.» Que sopro é este que me empurra para me armar em Píndaro e coroar Carlos Lopes com qualquer canção, modesta que seja? Tranquilos, que não me atreverei ao poemar celebratório que logo se parte à passagem da primeira hora. (Sim, estou a pensar naquele passe de Manuel Alegre para Eusébio…) Mas um dos meus heróis está aqui, à distância de um abraço, aquele que abriu loja de desporto na colina mais íngreme da cidade, na montanha maior da minha infância, a das vistas alargadas e arejadas, onde revisitei tantas revoluções, paixões, projectos. A Penha de França não terá sido Olimpo, mas avizinhou-se. Se não bastasse o ouro ganho longe, «onde a velocidade dos pés entra em disputa/ e o arrojado esforço é levado ao extremo da força», acompanhado por cá nas cores que ainda pareciam preto e branco, ainda tinha ido montar bazar nos meus lugares, no topo que exige o máximo da respiração. Ei-lo aqui, à distância de outro abraço, trazendo a frescura da humildade, do bom humor. A selfie não foi apenas a fotográfica, ele desenhou auto-retrato que concorrerá com a medalha que o André [Carrilho] lhe esculpiu. Corro a pô-la na parede, em eólico lugar.

Roterdão, Lisboa, 29 Setembro

Quem chegasse, na exacta hora marcada, tinha que abdicar de um dia soalheiro para entrar nas quatro da manhã de uma sexta ou sábado. Mais: tinha que ultrapassar alguém que se esforçava por prender na entrada uma pesada cortina antes de descer à cave que o ar condicionado teimava em fazer frigorífico. Foi uma entrada a pés juntos no Festival Silêncio. Este cenário, dramático, mas casual, fez-se apropriado para a ocasião: dizer, na voz alta de Joana Bértholo e André Neves, que o olhar múltiplo do Pedro Neves Marques se materializara em ficção. «Morrer na América», que resulta de uma colaboração da Arranha-céus com a kunsthalle lissabon, de João Mourão, leva-nos ao coração da mais icónica e mítica América. Decadente e tecnológico, contraditório e imagético, apocalíptico e, afinal, tão humano, esse coração cujo pulsar tão bem o Pedro capturou. A sua escrita, com raízes na ficção científica, atinge um grau de detalhe único, alimentando um fluxo em contínuo que se torna hipnótico e nos captura como floresta densa, prenhe de cambiantes visuais e tonalidades de pensamento. Houvera atenção e logo se veria que estamos perante um caso sério. Ah, mas são contos, esse parente pobre da miserável literatura. De um dos mais fulgurantes, Liberator, registo: «Neste novo mundo, pelo lutamos, a morte acontece apenas sob a forma de assassinato. Matar Édipo é hoje a única maneira de os jovens se apoderarem da morte, contra, e para lá, do impulso de morte do capital. E neste novo mundo, o que não falta são Édipos por matar; não há falta de reacionários, pedagogos e contrarrevolucionários por abater. Daí que, ao mínimo sinal de mudança, sejamos considerados indiscriminadamente como terroristas. É também essa a razão por que, hoje como naqueles primeiros tempos de mudança, a perseguição política é uma constante.»

Roterdão, Lisboa, 30 Setembro

O dia começou, de facto, ao fim da tarde com os No Precipício Era o Verbo a lançarem o álbum/cd em Lisboa, para um Musicbox cheio, outra casa do maratonista Alex Cortez, que fez as honras e sublinhou o carácter integrado do projecto, do cuidado musical ao cuidado estético. No mais, foi a intensidade do momento e a alegria de folhear o livro na cidade, entre amigos. Banal, apenas isso, o facto de termos andado pelo país, de Paredes de Coura às Caldas da Rainha, antes de o apresentarmos na grande e propícia e ventosa cidade.

Continuou depois com Goraz Voraz, a primeira mostra deste «projecto de spokenword pluri-multi-tutti-desfacetado contra a metronomia do cansaço doble». A partir do topo da bateria, mesmo junto às nuvens baixas, foi orquestrada pelo José Anjos, com o violino da Maria do Mar, o baixo de Pedro Salazar e o hangdrum do Luís Brito a iluminar as paisagens construídas pela Inês Fonseca Santos, a Liliana Ribeiro, a Rita Taborda Duarte, a Cláudia R. Sampaio. O mano Luís [Gouveia Monteiro] apresentou-se com um deliciosíssimo inédito, Alter-eco, para nos dizer que somos os sotaques, as pronúncias, afinal, as vozes. A Catarina [Santiago Costa] também se ergueu tonitruante. A experiência ganhou irritação e interesse ao ser atropelada por uma atitude que se tornou moda em algum poetar destes dias, a arrogância desordeira travestida de gesto político. Não serei eu a explicar a diferença: estudassem.

O cartaz do Rui [Garrido] (que ilustra esta página), criado propositadamente para a ocasião, diz como se há-de a voz erguer do caos: «from the guts to the throat». Terá que ver com gritar ao microfone?

Roterdão, Lisboa, 1 Outubro

Eleições? Nem dei por elas. Futebol? Quase nem dei por ele. Por duas vezes, durante a semana, vi abrir-se nos meus dias uma clareira, durante os ensaios para o que aqui aconteceu. Primeiro, o volume Má Raça, feito para as imagens fortes do Alex [Gozblau], fizeram-se espírito com as improvisações do Filipe [Raposo], mal esta voz triste disparava os versos em melancólicas trajectórias. Fui tecla do piano. Mais entrado na noite, vi-me no Botequim de há 30 anos, deslumbrado com os modos tonitruantes, tão terna e dramaticamente tonitruantes da Natália Correia. Estava com irmãos, o Luís [Gouveia Monteiro] e o João [Maio Pinto], dizendo poemas da sua Antologia de Poesia Erótica e Satírica no fio na navalha, digo, no fio das cordas de uma guitarra eléctrica. Tomara Tu Ter uma Tia assim fez-se projecto-projéctil. O mais extraordinário, penso agora, despido da emoção, foi a naturalidade do sucedido. Não apenas da suave balística dos encontros e cumplicidades, ditas e não ditas, mas sobretudo do veludo de estar em palco. Em comunhão.

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