João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasJardim de sombras Santa Bárbara, Lisboa, 17 Setembro [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uase o costume. Esvai-se o mês por entre os dedos, sobra tanto do que devia ter sido feito ou dito, cresce frondosa e por podar a grande árvore dos atrasos: dead line, linha morta, assim lhe podia chamar. Os seus estranhos frutos, as urgências colhem-se ao abrir do dia, para consumirem o oxigénio do que importa, até das raízes com que devia ocupar parte do dia. Além de sombra, o que viverá neste jardim? Ao costume junta-se a assombração de uma urgência maior, a de retirar os livros, vestígios de corpo por erguer, do armazém que se tornou cemitério. Durmo inquieto, numa atalaia de melancólica impotência. Remolares, Lisboa, 18 Setembro Desenvolvi uma alergia a reuniões. São indispensáveis, bem sei, até para, aqui e ali, ganhar o tempo da organização, mas preciso de um intervalo, de parar a torrente. Não vai nunca parar, pois não? Forma terei que arranjar de a conduzir para o lameiro onde alimentará em abundância o milho ou trigo ou outra semente do pão. Nas férias da infância grande aconteceram noites ainda maiores de espanto e utilidade, quando acompanhei o avô Joaquim ao topo da Gardunha buscar a água, que se conduzia depois por regos e caneiros até ao seu sítio, que era então de esperar. A noite inteira de sacho na mão, atento às instruções, acreditando que dominava a água, que lhe aprendia as forças. Dava jeito agora essa sabedoria, aplicada à força líquida que me atravessa e molha e enche de lama, às vezes cheirosa como terra molhada, outras nem por isso. Preciso muito de silêncio pelo que apetecia fugir deste acerto de detalhes acerca da nossa participação no Festival Silêncio, que ocupará o Cais do Sodré e os sentidos de muita gente, no final do mês. O Alex [Cortez] atira-me para as mãos o jornal que anuncia a programação e esmaga-me com a quantidade e a qualidade das propostas que celebram a palavra tendo por eixos a Voz e Maria Gabriela Llansol. A abysmo estará naqueles dias pelo Roterdão, com lançamentos e, sobretudo, concertos que cruzam a poesia dita com a música tocada, ou vice-versa. A isso voltarei, até porque me deixei implicar de viva voz em dois desafios que me assutam. Perdido em pleno jardim de confusão, irei arriscar ler o meu (e do Alex [Gozblau]) Má Raça, acompanhado pelas improvisações do Filipe [Raposo]. Não destoará, por tanto, o lado cabaré daquela voz, que me parece já tão longínqua, um eco. Será ainda pretexto, para apresentarmos os Tomara Tu Ter uma Tia Assim, banda em debandada com o Luís Carmelo e eu a lermos a antologia [de poesia erótica e satírica] da Natália [Correia], enquanto o João Maio Pinto pinta o ambiente à viola. Deixemos isso para depois, regressando ao bojudo jornal, que me frusta por me provocar com que o tempo me fará perder: as maratonas de leituras e performances e ciclos e debates e conferências. «O que é o texto em face do silêncio? O seu receptáculo.» Llansol oferece o mote para um mundo de transversal diversidade que reflecte a cidade no seu sítio: lugar-farol que usa a palavra literária para nos conduzir pelas tempestades. Em festa. O Alex [Cortez], e equipa, vêm erguendo um corpo que se arrisca tornar no mais desafiante dos festivais, literário muito para além da literatura. Fiz bem em ter ido a esta reunião. Mas vim com outro desafio: a edição do disco/livro dos Lisbon Poetry Orchestra. Terei tempo para responder? Horta Seca, Lisboa, 19 Setembro Chegam-me a conta-gotas os ecos da passagem da equipagem abysmo pelo furacão Macau. Mano após mano, vejo-os tocados pelo fascínio. O Valério [Romão] regressou apaixonado, aprendeu a combinatória dos ideogramas e receitas de Tom Yum. O António [Caeiro] sublinha a melancolia dos seus tons. O Paulo [José Miranda], dono de outra experiência, até escrita, trouxe terno distanciamento, projectos que se podem tornar comuns, e uma mão-cheia de livros, selecção da colheita do Carlos [Morais José] nos terrenos férteis do Oriente. Além de uma, tão bela quanto portátil, Clepsydra em versão missal para esta geração dos 150 anos de Pessanha, e de outros a que voltarei com água na boca, veio com o seu Karadeniz – Entrevista com um assassino em formato de livro. Outro exercício no qual o Paulo faz de um género esqueleto onde apôr as carnes da reflexão, aqui sobre a morte e o acto de matar, a soldo ou gratuitamente, em fúria ou na mais aplicada das preparações. Afinal, pretextos para aflorar o tema que explodirá no seu próximo e explosivo romance: a responsabilidade. Horta Seca, Lisboa, 21 Setembro O perfume de Macau está também na exposição do André [Carrilho]. Atrito, que continua e encerra, diz o autor mas não acredito, o percurso começado com Inércia, reflexão pintada sobre a viagem e a paisagem, sobre o tempo que precisamos para perceber as subtilezas, de cor e luz e sombra, do que nos rodeia, para encontrarmos o nosso lugar, o nosso olhar. Montar as imaculadas reproduções, fruto da mestria única do Francisco [Vaz da Silva], encheu-nos de prazer, a mim e ao mano Luís [Gouveia Monteiro]. Dar a ver segundo afinidades narrativas, de cor ou de lugar, proximidades, perspectivas, temas, para além da cronologia ou do autor, pôs-nos nas nuvens, tal a leveza e gosto que brota do pincel do André. Mas onde ele se transcende, e voa além da tradição da aguarela, é pelo gesto que recolhe o peso e o movimento das cidades. E Macau ou Hong Kong (como o caso que ilustra esta página) chegam-se à frente como protagonistas. O negro sujo, o vermelho de sangue, o amarelo do tempo dançam para nos oferecer a noite, que aqui se faz mais verdadeira por não depender da natureza. A cidade faz noite quando lhe dá na real gana. Esta exposição está integrada na «rentrée cultural da 7.ª colina de Lisboa», que pela oitava vez abre em simultâneo (e festa) quase 40 espaços dedicados à arte contemporânea, ideia e esforço do Cláudio [Garrudo] e da Ana [Matos]. Dá gosto, só vos digo. Horta Seca, Lisboa, 22 Setembro Para uma pequena plateia de luxo, foi apresentado, pelo José Teófilo [Duarte] com acento na relação do pensar com o fazer, o Escrytos, do Paulo Pires, subido do sul, tendo por companhia o instrumento. A sua costela de programador puxa para o cima da conversa esse terço temático do volume. Mas há mais, muito mais por onde ali andar. No final, de olhos fechados, encheu a rua com um sopro, que ele tão bem toca nas suas páginas: «Cerram-se os olhos por momentos e a esperança, o desencanto, a ironia, a melancolia, a (violentíssima) ternura, a alegria ganham no acordeão uma dimensão singular de expressividade e densidade psicológicas através dessa fascinante mecânica, plena de essência e complexidade (feita de ar, fole, palhetas, caixas harmónicas de madeira e “corredores” ora abertos ora oclusos – como os labirintos da subjectividade humana), que ora alinha, ora solavanca/questiona e “desarruma” o corpo e o espírito.» Fim de tarde do costume, aqui no jardim de sombras.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu [dropcap style≠’circle’](P[/dropcap]RIMEIRO EPISÓDIO) FEDRA (para si mesma) Por Zeus, mulher, não voltes a pensar nisso! (entra a sua criada) CRIADA Que diz a minha senhora? A que fantasmas se dirige? FEDRA Não são fantasmas, são tristezas. Ainda não se sabe de Teseu. CRIADA Já lá vão quantos meses? FEDRA Sete meses! CRIADA Não haverá mulher nessa história, minha senhora? FEDRA Que mulher, mulher? Que mulher? O rei já passou a idade. Afrodite gosta de jovens mortais e de deuses, não iria agora perder o seu tempo e a sua arte com Teseu. Já lá vai o tempo em que Teseu, através de Afrodite, ardia. CRIADA Desculpai-me! A minha senhora é rainha e sabe mais do que eu, mas, e que a deusa não nos oiça, ela é muito traiçoeira. Não podemos confiar que a idade seja um escudo capaz de proteger das flechas de Afrodite. E a rainha reparou como o príncipe se parece cada vez mais com o pai, quando Teseu era novo? FEDRA (disfarçando, como se estivesse distraída) Quem?… Ah, o príncipe! Não, não reparei. Mas se assim for, não é de estranhar, é a ordem natural das coisas. CRIADA Será que Hipólito tem muitas amantes, como seu pai tinha, antes de conhecer a senhora? FEDRA Pelo que oiço falar, é devoto da deusa Ártemis. Casto como uma jovem virgem de Esparta, e muito virtuoso. CRIADA Que a deusa Ártemis ou Hipólito não provoquem a ira de Afrodite, com tamanha desdenha em relação ao poder do corpo! FEDRA Porque dizes isso? CRIADA Minha senhora, o mundo está cheio de histórias que se contam, e nenhuma delas boas… FEDRA Mas que poderia correr mal, mulher? O príncipe é casto. E é seguramente um jovem equilibrado e dedicado, não iria cometer a imprudência de ofender deuses ou deusas. CRIADA Se a minha senhora o diz… Mas que ele é um bonito homem, é. E Afrodite não gosta de perder homens desses para a sua irmã, Ártemis. FEDRA A beleza dele só dá mais valor à sua devoção! Virtude e caça perfazem o todo da sua vida. Que mal poderia uma deusa desejar a um homem assim? Ele pode ser muito igual a Teseu, fisicamente, mas no resto todo ele é diferente. CRIADA Mas não deixa de ser triste, ver um homem tão belo e pormo-nos a imaginar que nunca fará alguém feliz no leito, que nunca dirá palavras sussurradas ao ouvido de uma mulher, como aquelas que a senhora me contou que Teseu lhe disse, um ano após o vosso primeiro encontro: “Em todas as mulheres belas te vejo, em todas as mulheres feias o medo de te perder.” FEDRA Não invoques fantasmas, mulher! CRIADA Teseu ainda não foi dado como morto, senhora, ainda não é fantasma. FEDRA O fantasma da minha juventude. O fantasma das palavras que os homens me diziam e dos beijos que empurravam embarcações. Há quanto tempo não vivo isso! tanto tempo passou, que já morreu. É um fantasma. CRIADA Mas atormentam a senhora, essas lembranças? FEDRA Não são lembranças, são fantasmas! E a vida dos fantasmas, outra não é, senão atormentar aqueles a quem aparecem. (pausa) Julgas que é possível alguém mudar completamente de vida por outra pessoa? CRIADA Completamente, como, senhora? FEDRA Completamente. Abandonar as suas crenças; deixar o seu lar, ignorar o seu sangue… CRIADA Neste mundo, minha senhora, o que não faltam são misérias e dores. Que ninguém nos oiça, mas se aquilo a que se refere é aquilo que eu penso ser, não falta aí nada para a desgraça. E desgraça, minha senhora, é o que é mais possível de acontecer. Fosse eu a minha senhora, e desejaria antes que o impossível, neste caso, se sobrepusesse ao possível. FEDRA E que possível é esse, mulher? CRIADA As coisas correrem bem. Ninguém mudar de vida. Pois esta, como está, é mais do que os deuses podem prover. FEDRA Vamos preparar-nos para o jantar. CRIADA Vamos, sim, minha senhora. Há muito que aprendi que aquilo que os deuses querem, os mortais não contrariam. (saem de cena; entra o coro de mulheres) (PRIMEIRO ESTÁSIMO) CORO DE MULHERES A vida não importa nada. Um deus destrói a cidade, Dois arrasam o mundo todo E a paixão é muitos deuses. Vejam como Fedra caminha Para a sua perdição total. A imagem é uma prisão. Escravos que somos para nós. A beleza de Hipólito Lembrou um tempo que não viveu Senão em seus belos sonhos. O tão desejado amado, E não passa de uma imagem, Que em nós temos desde sempre. E não adianta perguntar Porque é este e não outro, Pois outro é sempre o mesmo. A matriz inscrita na alma Como um brasão nos diz o corpo, E o resto que perseguimos, Quando um homem nos faz derreter. Hipólito é o mais belo, Se em ti isso está inscrito; Não o nome, a imagem. CORIFEU Mulheres, não falai crispado, Como o mar em dias de chuva! Fedra resistirá se quiser. Por mais forte que seja a deusa, A vontade é mais que tudo. E ninguém pode desculpar-se Dizendo que foi pelo vinho Ou por arte de Afrodite. CORO DE MULHERES Como os homens desconhecem A força da deusa Afrodite! Facilmente destroem vidas, Mas não escapam da sua sorte. Como sobreviver à vida, Se ela é em nós imagem Corpo ideal nunca visto, Uma figura para sempre, Pela qual se morre, se vive? Enlouquece-se por tão pouco E tão pouco é quase tudo. Há mulheres enlouquecidas Por um verso ou uma frase, Que são outras formas de corpo. Pois muito sofrem as mulheres, Até para nascerem homens.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasOs Corvos Os Corvos [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]obre o canto negro, precipitam-se, À tarde, os corvos com um forte grasnar. As suas sombras tocam, ao de leve, nas corças, E, às vezes, são vistos, de mau humor, a descansar. Oh! como eles perturbam o castanho sossego, No qual um campo se exalta, Como uma mulher que um grave pressentimento enfeitiça, E, às vezes, podem ouvir-se estrilar, Por causa do cheiro de uma carcaça que algures sentiram. E, de repente, dirigem o voo para norte E desaparecem, como um cortejo fúnebre, Na atmosfera que estremece de volúpia. Die Raben Über den schwarzen Winkel hasten Am Mittag die Raben mit hartem Schrei. Ihr Schatten streift an der Hirschkuh vorbei Und manchmal sieht man sie mürrisch rasten. O wie sie die braune Stille stören, In der ein Acker sich verzückt, Wie ein Weib, das schwere Ahnung berückt, Und manchmal kann man si keifen hören Um ein Aas, das sie irgendwo wittern, Und plötzlich richten nach Nord sie den Flug Und schwinden wie ein Leichenzug In Lüften, die von Wollust zittern. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag.
Rui Filipe Torres h | Artes, Letras e IdeiasO Corpo Nu esse lugar incivilizado onde cresce a febre [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]élia Correia escreveu “ADOECER”, uma tragédia contemporânea que fala da insanidade e da dor dos amantes irredutíveis, e da arte, esse lugar da exceção, da insanidade da radicalidade da vida arrancada para fora da convenção perante o mundo também ele doente, pesa embora o amparo da vida comum esperada, quase higiénica, civilizada, onde afinal a doença também cresce, sempre mas mais modesta, menos catártica, mais aceitável, comedida. “ADOECER” esteve em cena entre os dias 15 e 18 na Sala de Ensaio do CCB com encenação e dramaturgia assinada pelo Miguel Jesus, numa coprodução do teatro “ O BANDO com o Centro Cultural de Belém. O tom geral é do ausência de luz, os corpos a habitar o flagelo dos nervos sensíveis, nessa realidade telúrica da recusa da convenção que escava fundo o caminho do abismo no fio cortante das emoções com sangue dentro. A maquinaria expositiva coloca em cena a figura do narrador, que comenta e conduz a narrativa que nos fala da radicalidade da sua relação amorosa de Elizabeth Siddal, modelo, pintora e poetisa, com o pintor e poeta Dante Gabriel Rossetti, vivida na segunda metade do séc. XIX, alicerçada com a figura do coral. Encena a prestação exemplar da heroína trágica, a mulher que assume e escolhe a derrota como fim, coadjuvada pelo protagonista, o pintor, na demanda iniciática do mito de Pigmalião, não já na forma do simulacro da estátua que se torna viva com o favor dos deuses do escultor cipriota, mas no da relação entre modelo e representação, mestre e iniciada, em que a arte ocupa a totalidade da vida. Vive-se a ruína da conformidade mimética entre modelo e representação. O corpo táctil é o objecto artístico na sua eficácia do desejo, da dimensão erótica-sexual transgressiva dos modelos socialmente aceites como padrão da relação amorosa. O abismo da morte é pré-anunciado, e a maquinaria cénica e interpretativa consume esse anúncio e fim adivinhado. Aristóteles , no que nos chegou da sua “Poética”, diz-nos que a “ tragédia é a imitação de uma ação elevada, dotada de extensão, numa linguagem embelezada por formas diferentes em cada uma das suas partes, que serve da ação e não da narração e que, por meio da compaixão e do temor, provoca a purificação de tais paixões”. O texto e a dramaturgia, bem como trabalho corporal dos actores, segue com exemplaridade esta definição proposta e até hoje aceite. A encenação é criativa e eficiente, nos desempenhos tem particular destaque a protagonista Catarina Câmera, com um diapasão expressivo da mais interior contenção à explosão catártica, num encontro conseguido entre o movimento coreografado da dança contemporânea com expressão e carga emocional que remete para o teatro de texto. De igual modo o trabalho físico do actor Miguel Moreira, na fronteira do hiper acting, é um esforço assinalável assim como o desempenho a todos os títulos superlativo da narradora Sara Castro. O contexto da narrativa é o núcleo mítico do movimento pré-rafaelita inglês. O texto de Hélia Correia tem como eixo de partida a pintura “Ophelia” (1852) de John Everett Millais. Por aqui percorrem sombras de Shakespeare, da Beatriz de Dante Alighieri, na construção do texto que tem como figura central Elizabeth Eleanor Sidda/Lizzie, a modelo do quadro “Ophelia”. Importa uma nota final sobre os músicos actores em palco, e música gravada, uma partitura que vai do clássico ao rock gótico, sem esforço, servindo sempre com eficácia a proposta estética e dramatúrgica. Onde entra o cinema? É uma pergunta que pode ser feita dado ser esse o foco do que aqui escrevo. No trabalho de luz e sombra a matéria primeira do cinema, na contaminação com o cinema expressionista e ao cinema “noir”. Numa cena do coro, um actor mimetiza os movimentos de Boris karloff no monstro Frankenstein ( 1931) , ou ao cinema de Jean Cocteau, de “ The Blood of a Poet” (1930), “Beauty and The Beast” (1946). Que o cinema contamina todas as artes e a vida, não é revelação nova. No “ ADOECER” de Hélia Correia e nesta encenação e dramaturgia do Miguel Jesus, o corpo nu é o lugar do incivilizado, que ameaça e é ameaçado pelo corpo social estabelecido na sua radical afirmação. Inflama-se a si mesmo e coloca-se em estado febril da doença. Ousa deslocar o lugar do vício e da virtude, torna-se ameaça, uma quase impossibilidade nestes nossos quotidianos ordenados, limpos sempre que possível de bactérias e vírus que possam ameaçar o bom comportamento social. No entanto a vida hospitalar também não se aconselha, os hospitais são territórios contaminados, é imperioso fugir a todo o custo. A Doença é dupla, tem lugar na sociedade com cartografia emocional com legitimação assegurada em guichés de bons comportamentos e na radicalidade dos nervos contaminados por sangue desobediente. É neste paradoxo que se caminha, e a função da tragédia, como Aristóteles nos disse, “é provocar a purificação de tais paixões” . A mais recente criação do teatro “ O bando” , fala-nos disso, com excelente mestria artística. A partir do romance de Hélia Correia Miguel Jesus dramaturgia e encenação Rui Francisco cenografia Jorge Salgueiro música Clara Bento e Sara Rodrigues figurinos e adereços João Neca assistência de encenação João Cachulo/ Contrapeso desenho de luz Raquel Belchior produção Nisa Eliziário assistência de produção Com Catarina Câmara, Miguel Moreira, Sara De Castro e convidados especiais Antónia Terrinha/ Juliana Pinho, Bibi Gomes/ Raul Atalaia, Carolina Bettencourt /Rita Brito, Nélson Boggio/ Guilherme Noronha, Nuno Nunes, Paulo Campos dos Reis/ João Neca, Ricardo Soares/ Miguel Jesus e Rui M Silva músicos Carlos Lourenço, Eurico Cardoso e Nélson Ferreira (ao vivo) e Bizarra Locomotiva (gravado) Coprodução | Teatro O Bando | Centro Cultural de Belém
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialO lado B [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão sei se é, e sempre, a vida partida em duas, como um baralho de cartas em início de jogo. Ou se é simplesmente uma carta e as suas duas faces, em momentos diferentes que se alternam. A face que determina, inexorável, a face que esconde e tudo permite imaginar ou sonhar. Face de padrões que variam de baralho para baralho, mas padrões que são como tapetes confortáveis à alma, no imaginar de uma mão favorável, um desígnio inesperado, a realização do que se espera passivamente, como se à vida fosse dado chegar sem querer forçar. Coisa que não é. Faces de uma moeda que se lança ao ar. E cai o momento. E a possibilidade de visualizar, como através de um prisma, miríades de cores e formas adulteradas que não pelo efeito da razão. Mas sim pela densidade do cristal que se interpõe ou do cristalino físico do olhar que se dispõe – e porque não? – num momento diferente de outros a ser assim. Outras, que não mais que pelo elaborar mental imparável e cego. Como se o olhar fosse imagem prévia a abrir voluntariamente e não processamento inadvertido da postura dos olhos face ao real. Que real? Pergunto. O de fantasiar todo um tempo vindouro possível. O de arrumar contas da vida material dos dias que passam sem saber a que propósito dar contas. Esse real de fazer medo. Que medo esse que empata os dias como se monstro a alimentar-se de indefinições, ou a esperar, estoico, a resolução da ineficácia que os torna iguais, idênticos em tudo que não na página da agenda. Contemplava a cama desarranjada com um olhar diferente de outros dias. Nos outros, os dias em que estava, olhava a cama revolta com o olhar de olhar uma cama revolta a pedir ordem e alinho, lençóis frescos e as palmadinhas firmes nas almofadas. Puxar as orelhas ternurentamente à noite de antes e deixar um sinal de renovação e começar de novo à noite que vinha. Ao sono e ao ombro de um calor ali. Mas olhava, agora a cama, a mesma cama, com um olhar de contemplação porque a cama era outra e o dia a anteceder a noite um dia diferente para entrada numa noite diferente e sem o ombro adormecido onde poisar a face, a insónia, aquela extensão do dia a não querer terminar mergulhado no sono esquecido. Era o olhar de contemplação do lugar da ausência e do lugar desfeito da presença passada. O lugar da presença desfeita em sinais como os de outros dias só que agora com a tonalidade definitiva da ausência para um tempo. De um corpo. Que se desfez de formas sensíveis e palpáveis por proximidade. E as formas confusas e sem estrutura que não a dos acasos dos gestos, recusavam a dizer mais do que a longínqua – já – razão de serem assim. A ausência reduzida à mesma desordem do costume. Desesperante, sempre. Triste vestígio a querer reter, agora. Ou para sempre, nessa arqueologia do dia antes, deixar estar tudo a prolongar o impossível. A passagem. Por isso não era o simples olhar da vontade de arrumar. Essa desarrumação de corpos que revolvem como as águas de uma maré turbulenta ou como se rolados pela força da maré repetida e calma. Na navegação nocturna. Não era o olhar da subsequente arrumação cega, rotina de dias em mansa continuidade, mesmo que se terna e ritual. A de todos os dias a impor a ordem, numa perspectiva de eterna renovação e desarrumação logo a seguir. Por isso era uma contemplação parada, melancólica e firme na contenção do momento. Para que não fugisse como areia entre os dedos. E desse momento de nostalgia do corpo que já não vivia ali em futuro próximo, só o olhar concentrado e nítido, a perpetuar. Partiu de tarde e começou a partir muito antes. Porque tinha que ser. E foi. À vida que precisa continuar mesmo que ultrapassando portas e portas sucessivas e deixando para trás a mágoa de quanto não se compadece com a existência de várias vidas em simultâneo. Foi porque tinha que ir. Não querendo. Não querendo eu. E agora simples lençóis de algodão amarelo pálido e límpido a desfocar uma despedida que já fora. E a necessidade de apagar o rasto do corpo naquela cama. Adiada, no entanto. Amanhã. Amanhã desfazer as formas ainda com a temperatura, hoje dormir na rebelião da memória feita embalo e saudade de quem já não está visível, mas quase. Eu vou dali desse olhar que não quer desprender-se e na janela sigo-lhe o rasto já indefinível Vou, de um modo geral, talvez num barco nocturno a um lugar qualquer sem ele, porque de efeitos de luz se apresenta como tal. A noite de não dormir mais. Os contrastes mais difusos do que na torrina do sol. Que eu amo. Mas não descurar a nitidez das sombras nesse gostar da luz. Não fugir à aparência virtual de fogo-fátuo intermitente e difuso, que só na noite, do dia, se apresenta. Nunca sou noite do dia excepto à noite, mesmo. Não se pode imputar à ginástica do olhar a perversão da luz. Da luz que falta ser farol ou que encandeia de inabilidade diurna. Ir num barco de sombras e reflexos não é ir efectivamente. Não é ir, nem nada, senão a procura da bússola. Acendo um cigarro como outros mas nunca são iguais. Os cigarros as luzes e os outros de face escondida por detrás da luz. Acendo este cigarro. Este do momento específico de ser agora e acendo o cigarro secretamente desesperado assim tal e qual como os outros. Mas acendo. O cigarro. Diferente em todas as semelhanças. Este. E penso. E embarco na noite do que o dia não trouxe nítido. E levou, e não deverá trazer de volta. A linguagem é um território de não comunicação. De desfocagem a exigir persistência. A ouvir. A aprender a partir daí. A arrumar como as roupas desalinhadas que ficaram esquecidas por ali. Fui com ele, naquele dia, e como num tabuleiro de jogo, até à casa da partida. Partimos. B. partiu e nunca voltou ali mas a outros lugares. Deixando sempre o mesmo ruidoso recorte de ausência nas coisas. Um silêncio que dura até hoje.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasDr. Gomes da Silva – Primeiro Reitor do Liceu [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Bispo Diocesano de Macau, D. António Joaquim de Medeiros pediu ao governo da metrópole para ser criado nesta cidade o Liceu e no Parlamento, em Portugal, o deputado por Macau Horta e Costa advogou a sua fundação. Assim o Liceu Nacional de Macau, com projecto aprovado a 30 de Junho pelo Governo de Portugal, foi criado a 27 de Julho de 1893 para ministrar a instrução secundária geral e equiparado aos liceus nacionais do reino. O Governador de Macau Custódio Borja (1890-1894) calculou a quantia de sete contos e duzentos mil réis anuais para financiá-lo e a 4 de Maio de 1893, no Palácio do Governo reuniu com o Presidente do Senado, António Joaquim Basto e o Presidente da APIM, Pedro Nolasco da Silva. Foi então acordada a verba que cada uma das instituições poderia disponibilizar, pagando o Governo de Macau três contos e setecentos mil réis, o Senado três contos de réis e a APIM só quinhentos mil réis, pois já tinha encargos com a Escola Comercial. O Liceu em Macau iria ficar instalado no Quartel da Guarda Policial na Colina de Santo Agostinho, paredes-meias com a Igreja de Nossa Senhora da Graça, edifício construído em 1591 como convento pelos frades agostinhos. Devido à péssima construção, por várias vezes foi reparado e para albergar o Liceu, as obras efectuaram-se desde Março de 1893 e custaram $1400 mil réis. Já a mudança da Guarda Policial do Quartel de S. Agostinho para o Quartel de S. Francisco ocorreu a 4 de Outubro de 1893. O Senado, para arranjar as cinco mil patacas do subsídio ao Liceu e como era preciso dinheiro para essa e outras despesas, recorreu então à arrematação do monopólio dos Jinrickshas e do Petróleo. Os nomeados O Independente de 6 de Janeiro de 1894 referia, “Pelo que vimos em alguns jornais do Reino, devem já ter sido nomeados definitivamente professores do novo Liceu de Macau os seguintes cavalheiros: O Sr. Wenceslau José de Sousa Moraes, Capitão-tenente da Armada [o Echo Macaense de 21 de Fevereiro refere ter sido o Imediato do Capitão do Porto promovido a Capitão de Fragata], para reger a cadeira de Matemática; o Sr. João Albino Ribeiro Cabral, Tesoureiro geral da Província, para a cadeira de Latim; o Sr. Augusto César d’ Abreu Nunes, Director das Obras Públicas [Major de engenharia que chegara a Macau em 14 de Dezembro de 1893], para a cadeira de Desenho; o Sr. José Gomes da Silva, Chefe do Serviço de Saúde, para a cadeira de Introdução [lecciona a 6.ª cadeira, Física, Química e História Natural]; e o Reverendo Cónego Baltazar Estrocio Falleiro para a de Inglês”. Estes professores foram escolhidos entre os habitantes de Macau. José Gomes da Silva nascera em 1853 no Porto, onde se formou pela Escola Médico-cirúrgica e a 17 de Dezembro de 1877 assentava praça no corpo de Marinheiros da Armada. Nomeado por Decreto de 4-8-1881 facultativo de 2.ª classe do Quadro de Saúde de Macau e Timor, tomou posse do cargo em Macau a 5 de Janeiro de 1882, tendo chegado acompanhado pela sua esposa Casimira Esperança Douguel Branca, nascida em 1851 em Bordeaux, França, de quem terá onze filhos. O Governador Horta e Costa, enquanto Director das Obras Públicas de Macau entre 1885 e 1888, muito ficara a dever aos conselhos do médico José Gomes da Silva, então Director dos Serviços de Saúde, investindo no saneamento dos bairros infectos da cidade. A estreita colaboração com o Engenheiro terá levado à nomeação do médico Dr. José Gomes da Silva, por Portaria de 14-4-1894, como Reitor interino do Liceu. Lugar que ocupa dois dias depois no Palácio do Governo, quando o Governador Horta e Costa dá também posse aos professores e funcionários do Liceu. O último professor do Liceu a chegar a Macau e um dos quatro a vir de Portugal, João Pereira Vasco, segundo o Echo Macaense apenas desembarcará no sábado, 12 de Maio de 1894, tendo com ele viajado de regresso da metrópole João Nolasco da Silva, filho de Pedro Nolasco da Silva e Carlos Cabral, filho de João Albino Ribeiro Cabral. Como professor da 7.ª cadeira, Geografia e História, toma posse logo na segunda-feira seguinte. A Peste Negra em Macau A peste bubónica não atingira Macau em 1894 graças às medidas tomadas especialmente pelo chefe do Serviço de Saúde, Dr. José Gomes da Silva. Com dois meses no lugar de Reitor do Liceu, ao ser contado o tempo de serviço é-lhe concedido um ano de licença pelos oito anos de residência na Província. Substituído no cargo de Reitor do Liceu por João Albino Ribeiro Cabral, (professor da 4.ª cadeira, Língua Latina), parte Gomes da Silva a 10 de Setembro via América para Lisboa com a sua esposa D. Branca e filha D. Heloisa e no mesmo dia viaja também, com licença da Junta de Saúde, o Sr. António Marques de Oliveira, Juiz de Direito. Encontra-se de férias o Dr. Gomes da Silva, quando a 24 de Março de 1895 entra em Macau a temível peste, espalhando-se como epidemia na segunda semana de Abril e permanece até meados de Maio. A 15-5-1895, Gomes da Silva reassume as funções e a chefia do Serviço de Saúde, que ficara a cargo do Dr. Pinheiro de Almeida, e por sua sugestão antecipa-se o final do ano lectivo, que termina a 20 de Maio de 1895. Dias depois, João Pereira Vasco é exonerado como professor do Liceu. Após a morte da sua esposa Casimira Esperança Douguel Branca, que ocorre na Vila Branca a 9 de Dezembro de 1895, Gomes da Silva, a 19-7-1896 ainda é nomeado presidente de uma comissão <para coligir todos os documentos anteriores ao ano de 1834, que existam nos arquivos das repartições do governo, bem como os que houverem pertencido a tribunais, repartições e estabelecimentos do Estado actualmente extintos, e não forem necessários ao serviço e expediente daqueles em cuja posse estejam, a fim de ser tudo recolhido no real arquivo da torre do tombo>. Tudo terá de estar pronto para ser remetido pelo transporte África, que de Macau parte para Lisboa a 28-11-1896. Já em 1898, é nomeada para uma comissão cujo objectivo é reunir os recursos de Macau e os elementos de produção artística e industrial para expor na Exposição Universal de Paris de 1900. A 1 de Novembro de 1905, às 16:15, com 52 anos de idade também na Vila Branca morre o Coronel-médico Dr. José Gomes da Silva, tendo passado 22 anos em Macau, segundo o Padre Manuel Teixeira, que refere, “distinto médico português tanto em Macau como em Timor, publicou estudos únicos sobre as Floras dessa Província e em 1896 introduz no formulário do hospital o uso de plantas medicinais de ambos os locais”. Dá início ao Boletim Necrológico e cria o primeiro museu em Macau, dentro do Liceu o Museu de História Natural, <…uma utopia. Nem na prática se podia realizar: durante as aulas perturbariam os alunos; fora delas, o liceu ficava fechado>, murmura um jornal e assim ficou Macau sem Museu.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasA primeira chinesa de mochila às costas [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] primeiro guia chinês de viagens para a Europa e para os Estados Unidos foi escrito entre 1926 e 1927, pela primeira chinesa a correr o mundo de mochila às costas. Chamava-se Lü Bicheng. Foi também a primeira mulher chinesa a trabalhar como editora num jornal e a última escritora de poesia Ci. O seu guia de viagens dá conta de um desfile de Carnaval em Paris, de um motim em Viena, e conta-nos a história de um americano desconhecido que a tentou seduzir numa rua de Roma. Mais à frente leva-nos numa visita a Beverly Hills, onde quis olhar as fachadas das casas de todos os seus ídolos do cinema. A seguir goza consigo própria por causa do choque cultural de toda aquela situação. Toque pessoal aparte, o guia fornece uma enorme quantidade de informações úteis sobre reservas, alfândegas, bagagens, câmbios, hotéis, gorjetas etc., tudo a partir da sua experiência como mulher e como viajante. Onde é que se pode comer um hotpot japonês em Londres? Quanto custa um prato de tofu? Onde é que se pode encontrar um restaurante chinês em Berlim? Será possível partilhar a comida de um companheiro de viagem, num comboio em Itália? (Ela tinha medo de ser envenenada e roubada por uma família italiana). Qual é a multa por cuspir num eléctrico em Nova Iorque? De Veneza a Viena é mais rápido ir de avião ou de comboio? No guia constam também listas infindáveis de monumentos e outras atracções, bem como os seus historiais. Este manual é também um registo único do Ocidente, situado numa bolha do tempo, os anos 20 do século XX. E tudo isto sem o Lonely Planet, o Google map ou as câmaras digitais. O que lemos é o resultado das experiências em primeira mão de uma mulher viajante, que testemunhou o aparecimento dos filmes sonoros e assistiu em directo à conquista do direito de voto das mulheres com menos de 30 anos no Reino Unido. Esta foi a mulher que correu o mundo sozinha há 90 anos atrás. Nascida em 1883, Lü Bicheng rompeu o noivado por causa da morte do pai. Nessa altura decidiu fugir de uma vida convencional. Tornou-se professora e fundou uma escola para raparigas. Mais tarde viria a ser secretária de Yuan Shikai, um Senhor da Guerra, que se auto-proclamou Imperador traindo assim o sonho de uma China republicana. Nessa altura Lü Bicheng abandonou-o, desiludida. Acabou por tornar-se uma empresária de sucesso e fez fortuna. Depois disso, em 1920, deixou a China e rumou à Universidade de Columbia, onde estudou Arte e Inglês. Durante este período traduziu para chinês A História Concisa dos Estados Unidos da América. Voltou a casa por um breve período e voltou a viajar em permanência entre 1926 e 1933. Todas estas viagens deram origem ao seu guia. Mais tarde foi uma acérrima defensora dos direitos dos animais. Morreu em Hong Kong em 1943. As suas cinzas foram lançadas ao mar, de acordo com a sua vontade.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasTrês fachadas 18/09/17 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão se confessava há vinte e cinco anos. Estava em processo de divórcio, depois de um ano rocambolesco em que (achava ele) se portara indignamente com a mulher e a amante e os filhos, e com mais a terceira que arranjara no fito de se aliviar da pressão e do sarilho de saias em que se enfiou. Duma paixão assolapada com a amante, passara a ser uma relação a cinco na cama, ele, mais a mulher, mais a primeira amante, mais a segunda amante, mais a culpa, toda esta desordem assistida pelo fantasma que segundo Lacan existe “entre” e excita os dois travesseiros. Foi confessar-se, sentindo-se uma nódoa, indigno, e após um relambório de meia-hora, declara o padre, “Que quer que lhe diga, acho que o senhor não tem espessura humana para pertencer à comunidade católica, aconselho-lhe uma igreja apostólica, os seus pecados são daqueles que prescrevem rapidamente e pelo menos aí com o dízimo continuado sentirá mais a fatalidade da culpa de que nitidamente precisa”. Ele nunca soube interpretar esta reacção do padre, nem eu. Faltar-lhe-ia uma certa crueldade que dilatasse a extensão do mal, em primor do bem? Hesitávamos. Até eu ter visto a fachada das ruínas de S. Paulo em Macau e ter entendido diante desse simulacro que as religiões nunca descolaram do oráculo, e que em todas elas o homem está sozinho com aquilo que “ouve” e com o modo como interpreta a mensagem que ouviu. Aquela fachada barroca não passa da simulação de um tímpano, embora a longa escadaria seja subida com veneração (mais que não seja museológica, turística). Ir à igreja, um templo com miolo, púlpito e tecto, não passa de uma incubação. Como acontecia nalguns templos romanos em que se ia para a cura de uma doença e aquela era dada com o adepto a dormir tendo por almofada uma pedra de toque. Aquela que lhe permitia contactar em sonhos com quem lhe daria uma receita para o problema. Uma frase que se destacaria no seu sonho, a qual, dizia-o Heraclito, era mais um apelo à atenção dos sinais que uma prescrição. O Matrix colocou os pontos nos is: ao contrário do que julgamos, dormimos. Só que não existe, como se supõe no filme, um único sulco – no caso, satânico – para a navegação onírica. Há sonhos que nos habilitam ao bem, no meio do aleatório e do caos mais adstringente, embora estejamos na plena “guerra dos sonhos”, de que nos fala o antropólogo Marc Augé, num livro de que gosto muito. 19/09/17 Esta semana, no dia 22, às 18h30,terá lugar o lançamento do meu livro de poemas Anatomia Comparada dos Animais Selvagens, na Fnac, em Lisboa. Estando em Moçambique enviei um depoimento em vídeo. Onde, para arranque, me socorri de uma coisa assombrosa que descobri em Macau. E cito, esse excerto: “Pego no missal que é a Clépsidra, na belíssima edição que dela fez o Carlos Morais José, e vou para a banheira, gesto em que imito o Jean-Paul Belmondo que passa uma parte substantiva da acção nos filmes do Godard a ler na banheira – eis o único tique de cinéfilo que me ficou. Tamborilo com os dedos dos pés na água tépida, descontraído, julgando que poucas surpresas me estarão destinadas e ao abrir ao acaso num soneto sou golpeado pela evidência de estar frente a frente com uma estrutura fílmica. Para que não haja dúvidas, passo a decompor o soneto numa découpage fílmica. «Desce em folhedos tenros a colina/ – Em glaucos, frouxos, tons adormecidos»: temos um travelling de recuo em plano subjectivo e é fim de tarde; «Que saram frescos, meus olhos ardidos/ Nos quais a chama do furor declina»: passámos a contracampo, para apresentar o sujeito da acção, em GP (grande-plano), e interpõe-se uma sombra no olhar dele que confirma a gradação do poente; «Oh, vem do branco, do imo da folhagem!/ Os ramos, leves, a tua mão aparte»: voltámos ao plano subjectivo mas agora o plano supõe um movimento de câmara interno para fechar em detalhe, ou seja num GP da mão, antes de voltar a câmara a incidir em quem olha. E ouve-se: «Oh vem! Meus olhos querem desposar-te,/ Reflectir-te virgem a serena imagem.», havendo agora a necessidade de mantermos o GP sobre o observador porque é mais forte que o que se segue seja sugerido na expressão do olhar de quem está de fora: «Da silva doida uma haste esquiva/ Quão delicada osculou um dedo/ Com um aljôfar cor de rosa viva.» E aqui a câmara volta à mulher que desce a colina: «Ligeira a saia!/ Doce brisa impele-a!/ Oh vem! De branco! Do imo do arvoredo./Alma de silfo, carne de camélia.». E a carne da camélia aqui será reflectida na nódoa de sangue da saia sobre a qual o zoom fecha.” Nunca se sabe o que um leitor e a sua circunstância podem extrair de um poema. Principalmente se atrás da fachada de um soneto havia um cineasta. 21/09/17 VI-O, ao pé que torna bamba qualquer medida. Bebia uma beer, absorto num ensaio viscoso como crude, e ao ouvir na tv do bar aquela canção com uma letra mais estúpida do que um carrapato quis ver o rosto do grotesco. E ao meu lado, acomodado numa cadeira de chanfuta, interpunha-se O PÉ. Baloiçava. Seria em negro o pé da mulher de Hércules, esta bisarma com ar de destino ou de foz e cuja genitália presumo ser um chamariz de atritos, forrada a papel de parede? É normal que cada pé modele uma sintaxe, à semelhança da vespa que galga a pé-coxinho a parede húmida da minha imperial, mas eis-me gago ou, pior, siderado. Que conexões, que deliciosas incorrecções se poderão fazer à sua sombra! A fachada para uma futura Igreja de Santa Madalena? Pior, o sorriso é-lhe tão abrasivo como o pé é longitudinal. Traga-me duas Laurentinas!
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasFeridas de combate Santa Bárbara, Lisboa, 4 Setembro [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão queria acreditar, apesar de todos os sinais: a «nossa» distribuidora anunciou a insolvência, ao fim de meio ano com atrasos nos pagamentos, entre outros disfuncionamentos. Nada de novo, mas uma navalhada nas costas, embora pouco tendo de original na história universal da infâmia, mal a ponta e mola escreve ferida, dói como se fosse a primeira vez. O mundo volta a parar. Assim tem acontecido demasiadas vezes este ano, estes últimos meses. Talvez a vida se resuma a este pára-arranca. Quando putos, o tempo estende-se quando acontece a infância. Agora, explode com a desgraça. Em minutos, experimentei o arco-íris das sensações básicas e também algumas combinações mais coloridas. Nem sei se comecei pelo desânimo, mas temo que esse ande sempre no bolso. O negócio da edição deixou-se ficar parvo, também no sentido latino. Como em tempos argumentava para me dissuadir esse grande editor e saudoso amigo, José Alexandre [Magro], o editor está entalado entre a ditadura do mercado e a ansiedade extrema do autor. Não dará nunca combate capaz a um nem resposta cabal ao outro. Habitamos país onde o livro e a leitura valem pouco mais que beatas intenções, as boas livrarias não pagam e as grandes entendem que os livros devem todos ser best-sellers. Os editores, sentados no vetusto sofá do cada-um-por-si, foram entregando as armas cedendo à avassaladora lógica de um fazer negócio que esmaga quem produz para engordar margens insanas de lucro aos que vendem. E continuam tolhidos na forma de articular novas respostas e, sobretudo, maneiras de interrogar as necessidades, talvez mesmo de as criar. O Estado, apesar de esforços e tentativas por avaliar devidamente, não foi capaz de estimular a leitura, de maneira a enterrar de vez a herança do outro dito Novo. Pior, não assegura a regulação de um mercado esquizofrénico. Depois, ao contrário de qualquer país que estime a sua cultura, deixou de alimentar as belas bibliotecas que semeou com os autores nacionais, de ontem ou de hoje. O governo liberal do Reino Unido compra milhares de exemplares de títulos de autores contemporâneos para os distribuir pelas bibliotecas públicas. França tem um completíssimo programa de apoio à edição. Até os Estados Unidos da América, ao contrário do que se apregoa, investe na sua memória futura. O livro, ainda que objecto de consumo, mantém uma aura que lhe elimina o valor pecuniário. O livro não custa dinheiro e pode ser oferecido, reclamado mesmo, com inesgotável generosidade e sem ponta de vergonha. Em França, há uns anos, as pequenas editoras deixaram de oferecer os tradicionais exemplares para crítica e explicaram as razões: sobrevivência e pedagogia. Se nem os que precisam do livro como ferramenta os compram… O ofício dos jornais, sobretudo estes por causa dos seus pergaminhos, mas estendamos à galáxia mediática, relegou o debate e a crítica literária para um cantinho do lazer, cada vez mais ocupado com mega-festivais tornados lugares únicos para a experiência do ser e do pertencer. Acabei na raiva, que logo foi domada pelas necessidades práticas. Nem desmarquei o encontro que tinha para preparar o lançamento de mais um livro de contos do Ricardo [Ben-Oliel]. Nisto me devia concentrar, na leitura do novo romance do Paulo [José Miranda]; em empurrar para a gráfica os três títulos três da nova colecção de poesia, Mão Dita; em finalizar a maqueta do inacreditável Arno Schmidt; em gritar com o Valério [Romão], por causa do atraso no fecho da trilogia; em acertar os detalhes do próximo José Luiz Tavares, a nossa primeira co-edição internacional; em afinar a nossa voz no Festival Silêncio, que animará o Cais Sodré, no final deste mês; em confirmar os momentos abysmo no Folio, de final de Outubro. Não, vou ter que procurar nova distribuidora; garantir que os títulos, pelo menos os mais recentes, regressam rapidamente às livrarias; retirar o mais depressa possível a minha fortuna do armazém da distribuidora, por via das dúvidas e das manigâncias; ir em busca de apoios concretos; pedir paciência aos credores, começando pelas gráficas, das parceiras mais sacrificadas no estado das coisas; tranquilizar os autores e os colaboradores, explicando com aguda racionalidade que a fuga para a frente nos permitirá atravessar o mar revolto; aguentar as condescendentes pancadinhas nas costas, as piadas acre-doces, os bem-te-disse, as cruezas que desabrocham, perfumadas, como rosas pela manhã, os silêncios de chumbo. Com a revolta tranquilidade do mar, vão chegar, bem sei, os gestos solidários. Neles assenta a convicção de que este abanão, coincidente com o sexto aniversário, pode bem marcar uma nova fase. As ideias fervilham, apesar do cansaço de bolso. Na minha adolescência militante, a chama nascia sempre da palavra e era comum mergulharmos na etimologia em busca dos sentidos que nos impeliam. O mano António [de Castro Caeiro] está onde eu queria estar pelo que não posso, por ora, provar dos sucos inesperados que sempre consegue retirar da tradição. Arriscarei pensar que a crise surge dos meandros da medicina para dizer dos momentos decisivos, o exacto instante que a vida vencia a morte ou, pelo contrário, a decisão tomada era definitiva. Antes da economia nos encher a vida com ela, derivaram outros caminhos, que chegaram, por exemplo, ao crisol: o cadinho que se leva ao lume para purificar o ouro. Talvez se aplique. Falando de sinais. O logotipo da abysmo possui grande biodiversidade, mudando consoante a interpretação do ambiente por quem concebe ou ilustra a obra. Para melhor estabelecer relações entre o que se passa naquelas páginas e os olhares de quem lhes toca. E o espírito da editora. Procurei aquele que melhor reflecte o momento. O mano Luís [Afonso], há seis anos, desenhou um homem a atirar-se para o abysmo do ípsilon. O Luís Talklin, que desenhou a colecção de contos, põe uma figurinha a subir o braço do y, letra que, afinal, centro de todas as leituras. Podiam ambos ser, golpe e contragolpe. Só que o Sal Nunkachov levou o jogo mais longe e ilumina o caminho: uma bifurcação pode transfigurar-se em fisga e atirar-nos longe.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA China fica ao lado [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]acau é um esplendor. Um degredo longínquo em que suamos até aos ossos e nos banhamos da luz nocturna de todos os néones num vórtice de coisas tais que nenhum tufão por mais intenso esmorece a atracção da sua rota. Lembrei-me deste título retirado de um romance da querida e saudosa Ondina Braga que ali viveu alguns marcantes anos da sua vida e que tive o prazer imenso de conhecer e partilhar na sua tão bonita influência oriental. Era uma pessoa rigorosa, afável e leve. Hoje, como todos aqueles que as asas levaram para bem longe, parece quase esquecida. No seu tempo, ficava, sim, ao lado, hoje é de novo a China, não sendo porém um território a mais desse grande útero nacional. Quando a China ficava realmente ao lado, trazíamo-la para dentro do pequeno legado para que não sentisse a falta do corpo social a que pertencia e tudo o que lhe levámos foi uma transação de coisas felizes pois que nada se pode sobrepor à sua própria herança civilizadora. Estar em Macau é como aterrar na Lua, ou algures na Galáxia, onde a grande mobilidade nos acelera de modo estranho, talvez metabolicamente. O tempo é tão quente e húmido que pensamos que as máscaras antipoluição são bombas de oxigénio: a cara tapada das islâmicas pode agora concorrer com os rostos escondidos das asiáticas, o que prova que andar de rosto descoberto, só mesmo nas regiões amenas. As mulheres asiáticas são lindas! Talvez todas estas mulheres nos venham agora dizer que são assim graças à velada camada de tecido que sempre as cobre não deixando os intrusos apoderam-se das suas sombras. A Comunidade Portuguesa de Macau é activa, bem preparada, cosmopolita e muito integrada no conjunto dos factos culturais e sociais. Pessoas que se vão, fazem parte do melhor do país, pois que por aqui, no país real, ficaram vai para séculos os que não ofereciam capacidade de partida. É dessas gentes estranhamente impróprias que se compõe o país de hoje, pois o melhor da casta sempre se foi. Levamos sempre portugueses atrás, com as suas manias, pesporrências e enfatuamentos de género: no tempo das Naus deitá-lo-íamos ao mar, mas agora não os podemos deitar para lado nenhum, pois que o que sobrou, vai junto. A falta de graça é pior que a economia banditista de uma pequena nação cheia de dejectos. Pensamos que não aguentamos mais e, por milagre, conseguimos resistir. Macau, com toda esta intrepidez de cidade cibernética, é no entanto um oásis de segurança: pode-se andar de noite palmilhando o chão sem nenhuma ameaça ou outras formas de comportamento assustadiço. A educação dada por um regime que todos acusam a Ocidente teve fortes vantagens no comportamento social. E os orientais têm sem dúvida outra forma de interpretar a violência que não passa pelos nossos desassossegos. Num vasto promontório, que diríamos sagrado, fica o Consulado Português, onde a seus pés corre sereno o rio das Pérolas e onde nos foi preparado um magnífico jantar com os mesmos pratos do tempo de Camilo Pessanha, generosamente confeccionados por uma neta do melhor amigo do poeta. Um recanto de arquitectura colonial do mais belo exemplar e um paladar do tempo transportável para as noites daquele Verão onde fácil foi entrever a longa e magra figura de Pessanha em sintonia. Ganhámos nesta ilustre convivência com povos tão requintados e eles ganharam connosco a riqueza que também transportámos. Se foi degredo, exílio ou diáspora o que se passara com Camilo Pessanha, não o sabemos ao certo, embora exista uma galvanização viajante na consciência nacional que a faz falar nos porquês ininterruptos da diáspora e aí se plasmarem como se esse fosse toda a causa por onde um homem nesta vida perde os dias:- ora, eu acho que não é! – Porquê estar ali e não em outro lado? De ter sido assim e não de outra maneira? Numa desenfreada dialéctica sem freio que nos deixa atónitos tanto quanto o próprio ficaria. No fundo há sempre que contextualizar a circunstância e cada ser está onde pode; as causas só ele as deve entender, mas não me parece ser difícil de interpretar o que leva alguém para tão longe, podemos contornar toda a temática, mas há uma evidente: ele não desejou estar na sua terra com seus pares naquele tempo preciso o que é profundamente entendível, muito mais, tratando-se da sensibilidade genuína de um Pessanha. Conheci sobreviventes que apanharam barcos para um sítio e foram ter a outro e ali ficaram como se aquele ou outro fossem coisas irrelevantes, quando um homem precisa de sobreviver, foge à morte, ao mau estar, a essas coisas, põe de imediato fim ao delírio da expatriação. O que somos levamos connosco e todos os lugares são dignos de reinventarmos uma pátria. Mas Macau não era, não é, um local qualquer. Era o mais remoto de um território nacional oferecido e não conquistado, e tão longe que apelava ao mito: era como um limbo onde guardávamos a memória de uma outra vida. Pessanha uniu-nos num longo trajecto onde a sua inigualável fímbria poética foi o centro: a deidade desta marcha é uma rota sagrada. Era por ele que ali estávamos e não o mote para aparecermos, essa singularidade pela consideração devida a tal pessoa que ele foi, é a mais bela homenagem que pode ser feita a todos e a cada um. Pessanha pouco ou nada se dedicou ao arranjo formal da sua obra, onde muitas vezes o ser se sente tolhido face ao conflito permanente entre os seus pares, o carreirismo subjacente ao triunfalismo não era para os seus frágeis ossos, mas nós devemos também corrigir esta noção agora, devemos saber como defender a nossa causa sem as orgulhosas manifestações isolacionistas que muito longe das prerrogativas de um Pessanha são feitas por um memorial de falsas noções dos egos. Viver em Macau há cem anos devia contudo ter sido lindíssimo, uma outra organização social, menos gente, mais espaço portanto, concubinas belas, casas coloniais, amigos como um Wenceslau de Moraes, ópio em terrinas de porcelana em fogo brando e toda a saudade que hoje não há de uma coisa qualquer. Era o tempo dos Homens. O tempo dos lenços brancos que enxugavam lágrimas até ao dia de se deixar de chorar. Obrigada Macau. Levei-te no coração.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu (1) PERSONAGENS Afrodite Ártemis Chefe dos Guardas Corifeu Coro de mulheres Criada de Fedra Criado de Hipólito Fedra Hipólito Teseu (A acção passa-se nos limites da floresta, junto à cidade de Trezena, no Peloponeso) CRIADO A rainha Fedra, mulher de seu pai, o rei Teseu, aguarda-nos. Que dirá ela por regressarmos a Trezena sem ele, meu príncipe? HIPÓLITO Que posso dizer, senão a verdade? Tenho obrigação de dizer a verdade, assim me ajude a minha deusa de devoção, Ártemis. CRIADO Sei bem, senhor, das suas enormes virtudes, pois acompanho-o desde criança. Mas neste caso, o que é a verdade? HIPÓLITO A verdade, aqui neste caso como em qualquer outro, é ser conforme aos factos, se falamos do que é exterior, ou conforme à pureza do coração, sem mancha de egoísmo, de desejo, de interesse, de maldade, se falamos do que é interior. Por isso, e com a ajuda da mais virtuosa da deusas, direi à rainha que meu pai, o seu rei e marido, continua desaparecido. Que infelizmente, e após meses de procura, continuamos sem resposta ao que lhe terá sucedido. Não o podemos dar nem como vivo nem como morto. Pois aquele que está ausente, e sem dar notícias por si próprio ou que cheguem relatos por outrem, está refém da mais poderosa das deusas e a mais vil: a Dúvida. CRIADO E que pena tenho, meu príncipe, que em todos estes meses pela Hélade, não tenha encontrado amor! Nenhuma mulher virtuosa… HIPÓLITO Sabes bem que não há e nem pode haver mulher nenhuma em minha vida. Pois sirvo apenas à deusa Ártemis, que me instiga à castidade, às purezas das acções e do coração. Nenhuma mulher irá mudar esta minha genuína afeição, este meu modo de vida. E que poderia uma mulher fazer, senão levar-me a esbanjar o tempo em futilidades, em prazeres mundanos, por muito virtuosa que fosse? Procura o amor se queres perder-te; mantém-te casto se queres encontrar-te. (Hipólito e o criado saem de cena e entra o coro de mulheres) (PÁRODO) CORO DE MULHERES Ai como a juventude é senil! Diz saber o que é a vida E nem sequer do amor sabe. E muito pior que o amor É sem dúvida uma paixão. Tragam-nos um jovem sábio E nós fá-lo-emos imortal. Porque não aprendem os jovens A humildade e o recato Já que nada sabem da vida? Julga Hipólito que está salvo Pela devoção a Ártemis? Esta mesma teme sua irmã E agora também por ele. Hipólito nem se dá conta Que essa palavras provocam A pior de todas as deusas. Não se pode ofender o poder A quem varre existências. Afrodite toca os cabelos E faz cair um exército. (saem de cena; agora a cena passa-se na sala do trono; chega Hipólito e ajoelha-se perante Fedra) FEDRA Levanta-te e dá-me notícias de Teseu! HIPÓLITO Minha rainha, o rei, meu pai e seu marido, não deu sinal de vida. Nem de vida e nem de morte; a sua vida está refém da deusa Dúvida. FEDRA (levanta-se e dirige-se ao jovem príncipe, com olhos de quem é escrava de uma imagem, e toca-lhe num dos ombros) Hipólito, não esmoreças. Teu pai é forte e capaz. Não haver notícias é boa notícia. Os males sempre arranjam maneira de saírem do claustro do anonimato, de aparecerem onde menos se esperam, e na sua aparição intempestiva são sempre mais rápidos que os cavalos de Zeus; é o bem que se esconde ou dificilmente se deixa ver. (Hipólito anui, um pouco por resignação, um pouco por cansaço, e Fedra pede que ele se refresque, que descanse duas horas antes de ser servido o jantar. Fedra suspira ao ver o jovem afastar-se)
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA cultura do copy paste [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] escândalo desta semana no Facebook português prende-se com a acusação de plágio que o ministério público moveu contra Tony Carreira e o compositor Ricardo Landum. De repente, o ministério público deu conta de uma evidência que já tinha sido amplamente difundida nas redes sociais: algumas das músicas do Tony Carreira – e sabe Deus quantos mais intérpretes de sucesso comercial – são decalques perfeitos até à semifusa de autores estrangeiros. Poder-se-ia questionar o timing da notícia. Numa altura em que o governo se vê a braços com o rescaldo dos escândalos de Verão – desde os incêndios e o malfadado SIRESP, aparentemente tão fiável como um Windows 98 SE, até ao furto das armas de Tancos que, afinal, e pelo que vamos sabendo pelos jornais, a) não existiam, b) existiam mas foram furtadas muito antes de existirem, c) existiam, foram furtadas e são tão obsoletas que constituem um perigo para o pobre malfeitor que as operar, d) armas? Que armas? e) nenhuma das acima – e sem o respaldo mediático de um campeonato da europa ou de uma eurovisão, o conspirador insuficientemente medicado que há em mim vê nesta acusação a oportunidade perfeita para folgar as costas do governo enquanto o pau da opinião pública vai e vem. A despeito do que se possa pensar sobre a oportunidade da acusação, a verdade é que esta é importante e traz a lume uma cultura de chico-espertismo que seria importante desmantelar se queremos afirmar de uma vez por todas a nossa maioridade e debelar a tacanhez própria de um país pequeno que, em tempos, já teve tudo. Os senhores Carreira e Landum dizem-se vítimas da típica pequenez tuga e do seu correlato primordial, a inveja. Aparentemente, quem os acusa é movido por uma espécie de menoridade que não tolera o sucesso alheio. Terem êxito nas suas actividades deveria ilibá-los da necessidade de se justificarem. É a lógica do empreendedor: o facto de prover trabalho às pessoas eclipsa naturalmente o facto de lhes pagar salários de escravos contemporâneos. Deveríamos estar gratos aos senhores Carreira e Landum por entreterem tantos milhões de pessoas com os seus exercícios de romantismo de jogos florais. Ao invés, esta acusação vem demonstrar empiricamente o postulado do caranguejo: quando um está finalmente a escapar do balde, os outros tratam de puxá-lo de volta para dentro. A verdade é que o plágio não começa nem termina com os senhores Carreira e Landum. O plágio grassa, por exemplo, num meio que conheço significativamente melhor do que o da música popular: a academia. Há teses inteiras, de mestrado a doutoramento, que são autênticas cópias requentadas de teses alheias. Há trabalhos que não sobrevivem a uma simples pesquisa literal no Google. Insere-se no motor de busca uma frase aleatória e o algoritmo devolve em milissegundos a formulação original. Dir-se-á que aqueles que o fazem não estão a tirar valor aos detentores originais da ideia, porque não a comercializam. Certo. Mas estão a defraudar de forma demolidora o objectivo fundamental da academia, que não é o de papaguear o pensamento alheio mas o de produzir uma tese que contenha, pelo menos, uma nota de rodapé de originalidade. Quando há uma dezena de anos os mestrados e doutoramentos começaram a tornar-se mais frequentes, muitos políticos e detentores de cargos públicos viram os seus estatutos de doutores a serem postos em causa. Viram-se repentinamente privados da legitimidade hierárquica decorrente dos seus graus académicos perante os seus subordinados. Desataram a encomendar doutoramentos para, pelo menos, se dizerem tão letrados como aqueles que arrojaram anos a fio nas bibliotecas para os conseguir. Muitos deles nem sabem sobre que versa os seus trabalhos, pois a complacência dos júris assegurava uma aprovação suma cum laude a quem se propunha à certificação de competências. É por isso, também, que esta acusação é importante: para desmontar a cultura do chico-espertismo e da absolutização da aparência. Independentemente do desfecho do processo e da minha costela de teórico da conspiração.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialFico sempre um dia mais tarde [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stá frio, dizia já. A antecipar, no sopé, a subida em crescendo difícil e a descida da temperatura. A imaginá-la antes que se avizinhe real e a sofrê-la na memória da pele. Está frio lá em cima. Para além de todos os carreiros íngremes sempre a subir. Estará. E estará sempre que o lembrar – o frio – e sempre que apertar os braços a tentar reter os fragmentos em que o frio me deixa a alma. Aproxima-se-me da memória em cada estação em que não há. Como um temor desnecessário e de irremediável verificação. Em cada estação antes e, absurdo, em cada estação depois. A torná-la antes. Mas ali em cima, com um pouco de sorte, as nuvens abaixo. Distância a tudo, que o silêncio compensa. Às vezes, sinto-me a entrar num momento de um outro momento mais vasto, como quem entra num salão apinhado de desconhecidos, num lugar do mundo que nem sei onde é. E como que reagindo de olhar míope ao desconhecido imenso, olho em volta e procuro uma parede com uma tira vaga de vazio a que encostar o desconforto. Um lugar em que caiba essa estranheza imensa e momentânea, mas encolhida dentro de mim e por detrás talvez mesmo de um sorriso. Aconchego um xaile enorme de lã em torno do pescoço e do longo casaco de lã de iaque, que parece ainda reter o cheiro animal, um pouco nauseante. Um pouco camuflada nas cores das lãs, como dos pigmentos daquelas terras rochosas desfeitas em avalanchas quase como as da memória. Olho para cima a reunir forças. Para o frio e a visão dos cumes e picos para lá das nuvens. A pensar que outras vezes demoro a chegar ao meu vazio de quatro pernas. Dir-se-ia um banco de jardim ausente de gente antes de chegar. Ou recortado na paisagem. Ali na sua concreta negação de existência material. Mas é verdade que não o habito nem eu ao chegar, tal a forma como duvido existir. Talvez recorte também saído de uma caderneta de cromos. Chegar. Estar, depois. E noutro momento, partir. Arrastando uma ausência de dimensionalidade em busca de caderneta própria. Ou então, é mesmo o animal quadrúpede que me habita sem preencher. Mas o que sou eu? Isto perguntava a minha avó de olhos vivos e pequeninos. Nada. Não sou nada e por isso me dou mal com o monstro que me ocupa sem habitar em boa vizinhança. Há coisas na vida que se repetem e repetem de forma irreprimível – como reprimir as estações? – é quase insuportável. Que se desmultiplicam como ecos, e repetem, e repetem, como uma música de que se gostou, gosta, e que se sente uma necessidade de respirar, como se dela dependesse a possibilidade do momento seguinte. E depende. Como de uma música que espelha um ritmo qualquer da alma não definível por outro meio, e do qual fosse o silêncio possível em torno. O que produz música como oxigénio em que se desenvolve o respirar. Há coisas na vida que se repetem e repetem sazonais, rítmicas e recorrentes. Venenos. Toxinas a entrar na corrente, reconhecida e familiar como um terreno fértil. Como músicas. A ouvir até à angústia final de ter que interromper. Como se uma hibernação em fim de inverno. Ou a exaustão e a agonia do vómito, do álcool. O corpo a virar-se sobre o seu avesso. Coisas como a música. Não a música, mas uma em particular. A estender para além do razoável uma emoção sentida. Uma droga tóxica. Entra no corpo um dia e torna-se necessária. A revisitar. E as coisas que mudam. E as que nos mudam. Fim da infância. E um dia, sem aquele aviso prévio que afinal só talvez antecipe a desilusão, o meu pai troca o nosso Taunus 12M, carro familiar, doce e afável de modos, charmoso, verde como convinha e com uma risca branca, fantasia posterior. E surge orgulhoso da mudança com um carocha azul escuro. Volkswagen carocha, até aí reconhecido pela minha alma perturbada de estereótipos como um carro de pessoas idosas. Isto porque, a quem o conhecia e só, era ao maravilhoso e gentil casal da papelaria charmosa e fina, casal sem filhos e que, talvez por isso, deixava uma criança sentar-se por horas esquecidas num canto do chão a ler bandas desenhadas, até que a outra criança a iria, em desespero, chamar para o almoço. O sr. Ferraz e a dona Tininha. Casal idoso, sempre bem arranjados um e outro, quase perfumados ao olhar, ela com aqueles brincos enormes de fantasia de pérolas, ele de risca lateral descaída e impecável. Um amor os dois. E para mim como se idosos de sempre e para sempre. Talvez hoje os veja como possivelmente mal saídos dessa estranha meia idade e não mais. (Esse olhar de criança no absoluto presente. E este meu adulto no absoluto imparável nunca). E um carocha bege claro, rebrilhante e impecável. Carro de gente idosa, portanto. E o nosso, agora, lá em baixo num primeiro olhar da varanda, azul escuro, pesado e bisonho como bicho corcovado, a aguardar a aprovação de toda a família. Tive um desgosto pela perda do doce Taunus, e uma revolta ostensiva pelo ultraje deste monstro feio e informe que lhe sucedeu. Coisas. Olhei-o com olhar furibundo que fez o meu pai rir com vontade e indiferença. Quase chorei da incompreensão de tamanho desgosto o meu. Mais tarde chorei a sério de tristeza de o ver partir, doce, pesado e orgânico, quase. E mais tarde, ainda, foi um irmão longínquo dele, o meu primeiro carro. De estimação. E cor de pérola, quase, quase como o do sr. Ferraz. Aqui, no sopé do frio que se avizinha. Por momentos no final da infância. Olho para cima a preparar a subida. E depois para o lado a rever a paisagem de transição. E depois para um ponto qualquer. Longínquo. Às vezes encontro-te por dentro. Eu não sei, sequer, se estás lá. Mas chego ao teu lugar, ao que imagino ser o teu lugar de abandono, e sento-me à espera. Não sei se alguma vez estiveste neste teu lugar. De picos ou subterrâneos. Mas não é assim que as coisas se passam. Contudo, sei-o lugar de encontro. Descalços de sapatos levemente sujos de vida, penso, entramos. Não sei quem és. Nada, como eu, talvez. Mas não é assim que as coisas se passam. Para além de um ruído ensurdecedor. Talvez aí.
Julie Oyang h | Artes, Letras e Ideias“Made in Abyss” a não perder Foto: “Made in Abyss” banda desenhada online [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos perante a maior cratera inexplorada do mundo, chama-se Abyss. Tem um 1 km de diâmetro, mas ninguém conhece a sua profundidade. É habitada por várias espécies há muito extintas à superfície da Terra, e alberga relíquias e tesouros lendários. É um lugar perigoso e exótico que funciona com uma lógica muito própria. Para aqui são atraídos aventureiros e sonhadores, que acabam por morrer em busca da verdade e na senda dos tesouros. O perigo só aumenta a sua aura de mistério e deslumbramento. E é então, que uma cidade se ergue em torno da gigantesca cratera, construída e habitada pelos exploradores. Estes homens são movidos por diferentes motivos. Alguns perseguem desafios, outros perseguem a fortuna. Chamam-lhes Cave Raiders, e dividem-se em várias categorias consoante as experiências e as capacidades de cada um. Rico é uma órfã de 12 anos que sonha vir a tornar-se exploradora, à semelhança da sua falecida mãe. Um dia conhece um estranho rapaz-robot chamado Regu que pode vir a ajudá-la nesta aventura. A banda desenhada original Made in Abyss foi publicada pela editora digital Web Comic Gamma no website Manga Life Win. A série de animação é realizada por Masayuki Kojima (Monster). Hideyuki Kurata é responsável pela banda sonora (belíssima e surpreendente) e Kazuchika Kise (Ghost in the Shell: The New Movie) coordena o desenho das personagens. Não se deixem iludir pela naiveté das imagens. Made in Abyss é sem dúvida o melhor anime deste Verão. Na minha opinião vai ser com certeza a estrela do ano. É um épico e mostra que na maior parte das vezes, a verdade pode ser realmente, mas REALMENTE negra. Veja o trailer aqui: https://bit.ly/2eXY8cQ E se for rápido, ainda pode ver um episódio com legendas em inglês antes que o apaguem https://bit.ly/2eXWEPF
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasA sombra do inimigo 10/09/2017 [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]sfalfado pela viagem, desde Macau, reencontro um país congestionado pelos desastres que têm na arbitrariedade dos homens a sua origem natural. No mesmo dia, três notícias deprimentes. Moçambique está a ser investigado por supostamente ter comprado clandestinamente, violando o disposto nas sanções da ONU, mísseis à Coreia do Norte. Primeiro, é um país que se vilipendia aquele cujo governo persiste em fazer tudo às escondidas; depois, que inimigos pode ter uma nação que não consegue sequer produzir (tendo água a rodos e terra fértil) a alface e o tomate que mete na mesa, tendo de comprá-los à vizinha África do Sul? Mísseis? O maior inimigo do moçambicano é a sua própria sombra. A nova lei do cinema, aguardada pelo sector há décadas, é um tiro no pé do bom senso. Moçambique teve como uma das poucas singularidades da sua história ter apostado no cinema desde a independência, e daí que cá tivessem aterrado personalidades como Jean-Luc Godard, Jean Rouch, ou Ruy Guerra e se gerassem algumas gerações de cineastas que anualmente, mal ou bem, iam produzindo filmes. Para além disso era um dos poucos países africanos com técnicos de cinema para poder atrair produções internacionais. Só houve dois critérios para o delineamento desta lei carimbada contra todos os avisos da classe: o controlo dos conteúdos (isto é a censura) e o maior lucro possível e imediato à mínima visibilidade de qualquer câmara na rua. Vou caricaturar porque a realidade o mais das vezes imita a caricatura. Para um cineasta poder ir à rua gravar o acto de compra de tomates pela protagonista, para posteriormente os lançar à cara da segunda mulher do seu marido, teve de previamente ter depositado no Instituto de Cinema um guião que foi esmiuçado por um comité de leitura (o qual averiguou se aquela cena não “feria os costumes”) e de pagar uma taxa (absurda, de alta) por filmar em espaço público. Fora o reforço dado ao poder discricionário do tal comité de leitura, tudo pareceria normal. Só que entretanto houve greve de chapas e a vendedora dos tomates não conseguiu chegar a horas ao sítio habitual da sua venda, pelo que só há beringelas à venda – então terá de se mudar a cena e depositar o novo guião no Instituto de Cinema, pagar uma taxa (penalizadora), desta vez por se ter modificado o guião (que será reexaminado, auscultando-se se a nova cena “não fere os costumes”), acrescida pelo pagamento de uma nova taxa para se “renovar”a autorização de filmar vegetais naquela esquina. Tudo isto, supostamente, controlado por fiscais. Num país onde o transe da burocracia reina imagine-se a agonia, o sufoco e o delírio a que se chegará, em nome da lei. Terceiro sinal deprimente. O relatório independente da Kroll sobre o processo das Dívidas Ocultas confirma o que já se sabia mas nunca fora declarado por uma instância internacional: para liderar as empresas e os projectos de interesse e âmbito públicos são invariavelmente escolhidos os gestores mais incapazes. A única regra é: Percebe de futebol? Vai para reitor da Universidade de Direito. A única habilitação: ter o cartão do partido. O que resulta num desbarato de tempo (de gerações), de dinheiro e energias que só se explicará à luz da hipnótica euforia do “potlach”. Tudo o que um país em crise profunda não precisava. Não sei se me apetece sair à rua, uma desgraça nunca vem só, sobretudo quando o círculo é vicioso. 12/09/2017 Após uma hora de prospecção encontro a frase de Peter Sloterdijk que procurava: «Alma é aquilo que não se mediatiza» (in O Estranhamento do Mundo, Relógio d’Água, 2008, Lisboa). E busca dentro, folheando à esquerda e à direita, constato: o Sloterdijk é um verdadeiro designer da filosofia. Será um dos filósofos actuais mais estimulantes, porém, simultaneamente, enche as frases de achados. «Aí, onde termina a história das religiões começa a história do design.»: uau! É uma tremenda frase de efeito e que faz de imediato eco em nós: eureka! Que bela citação, resulta sempre. Foi só quando reli o livro, num dia de descontracção absoluta que me permitiu ir petiscando sem a pressão de procurar um apoio funcional para qualquer ideia, que, dando de novo com a frase, me acudiu perguntar: mas afinal as leis do design, o telos que motiva esta disciplina, não estavam já claramente presentes nas catedrais góticas? Não há até uma banda desenhada franco-belga onde as catedrais góticas se transformam em naves espaciais exactamente por causa da sua sugestão aerodinâmica? Dei comigo a suspeitar da fiabilidade da frase do Sloterdijk – talvez mereça um exame mais atento aos seus fundamentos. A condição básica para me libertar do fascínio da frase, que me obliterava o raciocínio, foi não andar à procura de nada, estar entregue a uma leitura deambulatória, arredia a qualquer utilidade imediata. Só nesta leitura sem tensão, dir-se-ia imotivada, é que enfrentei o livro de forma activa. Ou seja, as leituras excessivamente orientadas, dada a pressão e a ansiedade, correm o risco de volverem uma escuta com projecção. E aí alheiam-nos quer do distanciamento, quer do detalhe que faz toda a diferença no essencial. Tome-se outro exemplo: «É característico dos místicos inverterem a tendência básica do desenvolvimento do líquido em sólido (…) os ensinamentos místicos são passíveis de serem interpretados (…) como escolas de mergulho (…)». A adesão é imediata. Contudo, algo em mim – o ácido úrico? – resiste a esta solubilidade total. O design na filosofia – tal como o encontramos também em Nietzsche, autor de fórmulas brilhantes – é tão fascinante como decapitador. Assemelha-se a um farol nos olhos, encadeia. Por isso tomei sempre a atitude de ler os autores da moda depois do seu pico de unanimidade, só então lhe enxergamos os caboucos para além da momentânea alucinação colectiva. Poucos sobrevivem.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasAuf Wierdersehen, Macau [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]o contrário de muitos dos meus amigos, não achei o Lost in Translation, da Sofia Coppola, minimamente merecedor do hype que despertou na altura em que foi exibido em cinema. Pareceu-me uma colecção de clichés absolutamente banais adornando uma história ainda mais banal. Uma sopa instantânea temperada com uma mistura de especiarias exóticas de exportação. Sentia que o Japão – e toda a Ásia – eram muito mais do que o mosaico de caricaturas que a nossa ignorância compõe na tentativa de inscrever um sentido para um estado de coisas que não compreendemos. Os dias que passei em Macau não me ensinaram muito sobre o que é ser chinês. Ou macaense, ou estrangeiro em Macau. Mas dissiparam muitas das ideias pré-concebidas que tinha acerca da região. E aprender que não se sabe é tão valioso como acumular conhecimento. O desconhecimento das coisas muito raramente é nocivo. Não temos medo daquilo que não sabemos sequer existir. Não o odiamos. Não formamos qualquer opinião sobre isso. Já as construções que derivam de uma interpretação truncada de uma realidade distante podem ser tóxicas. Como li algures: o melhor antídoto para o racismo é viajar. Fui extremamente bem acolhido em Macau. Tanto pelos chineses como pelos portugueses que lá residem. Não que esperasse ser maltratado. Mas considerava deveras provável a possibilidade de me sentir muito mais indefeso no contraste com uma cultura que me era absolutamente desconhecida. Para tal contribuiu certamente o facto de Macau ser uma cidade muito segura. Um tipo pode andar por todo o lado sem receio de ser assaltado ou vigarizado. A quota-parte de atenção que poderia reservar, noutra cidade, para a percepção do perigo fica disponível para tudo o resto. E para um tipo que fica tão mais ansioso quanto menos compreende a língua falada em seu redor, como eu, não é um aspecto de somenos. São os caracteres e os néons, a temperatura e, sobretudo, a humidade. São as salas de jogo dos hotéis, apinhadas de gente apostando um ano ou mais de trabalho, são os cheiros e os sabores, as chuvas torrenciais ao final da tarde, as árvores assemelhando-se a um entrelaçado de cobras comunitárias, os colegiais de uniformes impecavelmente brancos, os letreiros em português, o barulho incessante do ar condicionado omnipresente, as oferendas aos mortos na forma de comida e bebida e pequenas piras pontuando a calçada portuguesa, são os gestos que não compreendemos à primeira, a língua que não logramos compreender nunca. A contaminação resultante do processo de globalização em curso acaba por hipernormalizar todas as culturas, por mais remotas que sejam. A quantidade de locais exóticos diminui à medida que o capitalismo se impõe como modo de vida dominante. Mas cada um dos lugares expressa de forma muito particular essa contaminação. E gradualmente vão aparecendo os detalhes, sem que com isso a compreensão do que se passa efectivamente sofra uma modificação radical. Não vai fazendo mais sentido, mas vai desfazendo equívocos e perspectivas caricaturais. E quando damos por nós a finalmente entreler uma pequena parte da realidade com que deparamos no dia-a-dia, é altura de voltar. Voltar de uma experiência tão intensa que em apenas oito dias a sensação é de se ter estado fora um mês. Até à vista, Macau.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialDeste interior não sai ninguém [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap], no entanto, entra-se. Pode-se entrar por ele adentro como de uma realidade que, podendo ser ilusória, nunca se perde de o ser. E cair. Por essa realidade abaixo. Por ela fora, por aí. Mesmo se inexistente. Mesmo se previamente inexistente senão em possibilidade, e mesmo se antecipadamente pressentida em toda a sua intangibilidade, para além de uma sombra um reflexo ou a pura invenção de uma camada do que não é, não foi, mas se presta a uma forma possível. De ser. De iludir. Ali me sento todos os dias na sua frente. Não talvez já a tentar entendê-lo, mas que se me revele ele lentamente no seu silêncio. Encontrar-lhe o olhar. A cor. Pinceladas que erram ou não. Pintar. Às vezes, como partir para um “blind date”. Sentar-me à mesa com o desconhecido. Uma coisa mútua, em que cada um tenta explicar-se ao outro. E ficava. Quieta nas horas, em frente a ele quando veio sentar-se. Central e necessário. E eu em busca de lhe entender o olhar. Como uma linha da vida, da mão, da página, do coração, em que, como numa única e ínfima célula, se encerrasse como num cofre, todo o código genético de um pensamento, de um sentir e de um viver. Numa única célula. De um corpo. De uma frase. De um olhar. Esse seu olhar divergente, como uma curiosa antecipação genética ao que teria que ser. E a ver a chegada de cada linha, numa arquitectura de interrogações. A mim, a ele, a esse interior de que não se sai. E antes ainda, à procura de um local mítico de encontro improvável, possível, na imensa maleabilidade do tempo que tudo admite à ilusão, à fantasia ou à memória, encontrei-me como se com esse meu mais que ilustre, distinto e invulgar colega do Liceu de Macau. O ponto etéreo de cruzamento de uma memória com uma fantasia. E eu ali, como sempre, pequena e timidamente o olho em tentativa de entender. Sabendo, sem redenção, que não se sabe o desconhecido. Sabe-se o desconhecimento. Baixo. Surgiu baixo e fui ver. Na verdade, então, não era uma figura imponente. No corpo. Não no corpo. E ficou ali, e um dia, depois, voltou e enrodilhou-se sobre si. A olhar de dentro, soturno e calado como o outro. E quando voltou, vindo de um real para além da dor, cambaleou a ansiar o conforto de não pesar ao corpo, nem a vida, nem o pesar a consumi-lo. E os monstros. Fugido de monstros e memórias, ou talvez a mesma coisa tudo. Cambaleou para o interior vindo da dissolução progressiva e futura. Reuniram-se na curvatura de uma parábola muda de cegos – pensei: como a outra, de Brueghel – e assim também aqui esse desígnio os fez cair. Ancorados no cego da frente, o primeiro a ouvir brisas ténues da poética realidade enfeitiçada de símbolos, que tudo modelou do início para o fim. Dali, da frente, para trás, o início de tudo. Aqui, ou ali. Como se no tempo da narrativa, no tempo de se deixar varrer de olhos em muda interrogação, se pudesse distinguir duas opostas leituras vectoriais. Dois sentidos de leitura, entre o oriente e o ocidente do oriente também do quadro. Numa curiosa imagem, do fio cronológico das coisas que se sucedem. Antecedem? Mas há uma face a que nunca terei e se tem acesso. Não vou dizer o que, assim, não é nomeável. Tacteável. Que de dentro espreitaria sempre sem se deixar ver por detrás de reflexos cristalinos de um olhar cuja cor não ficou registada. E dele sempre seria evidente, mais o reflexo do que o interior. E é um jogo imparável, este, do desconhecimento. E assim se anda sempre á procura de um entendimento do outro, confundindo-o em muito com o que reflecte de quem o olha. De um além fechado sobre a impossibilidade de saber mais. Mais para além do muito que floresce em palavras e pequenas e múltiplas peças de um puzzle labiríntico, em que se o tenta edificar. A pessoa que já não está. Por detrás das palavras e dos gestos que elaborou. E que noutro tempo, sabe-se lá onde estaria para além ou para aquém delas e desses. Observei até quebrar a estranheza, os olhos e como quando os olhos teimam em ser baixos se lhe eleva o queixo. Em desafio. Todos os dias de riquexó e cão para o liceu. Onde fomos colegas. Que importa se num tempo que não cruzou ali caminho nem pena nem espada. Honra-me assim pensar o tempo sem direcções preferenciais, sem disjunções estanques, e porque às vezes não as tem mesmo e de todo. O tempo da memória faz-se talvez de matérias como o da imaginação e da ilusão. Sim. Ia de riquexó e de cão para lá. O homem que deu este nome a um cão. Arminho. Como as etéreas rendas de que cobria a madrugada dos poemas. Cortinas e esfumados lirismos como das gaivotas exaustas e sem ânimo. Nunca mortas, afinal. Sentava-se mais tarde quieto na camisa- de- forças do seu duplo e pensava na gaivota por morrer. Arminho. Sabe-se lá porquê. O arminho que é coisa leve e de fru-fru de festas. O arminho que é coisa inquieta a um simples suspiro, leve como leves os tules das cortinas simbólicas de que reveste os seus monstros. Dantes, Nilo ou Tejo eram nomes de cão e o do seu, leve e esvoaçante. Talvez a paixão pela música das palavras não deixasse chamar-lhe das pérolas. Deste rio. E, no entanto, pérolas são os pontos de dor da ostra. Tornados luz. Mas o que de um poeta diz, a vida de um poeta, e o que diz um poeta no que diz, o que diz no que não diz, talvez. O que se esconde no que esconde e naquele que o procura, a ele ou esconder. De que véus e velaturas se recobre o que se esconde, como de desvendável existência, é pergunta que me fugiu desamparada para o longínquo horizonte da resignação. Como se sólida matéria a intuir por detrás. Mas o escondido é nebulosa não matéria. Invenção de que pergunta, sem saber mais do que adivinhar o muito que preenche o território de que se revelam as sombras projectadas do poeta. As brumas amigas. As camadas de encobrimento. Aguadas como poalha em dias de chuva. Coloquei-as para não ter a pretensão de as retirar. Janelas sobre o espaço. Entreabertas e obstruídas levemente de leves cortinas. Portas que não levam ao conhecido. Cuidadosas a mais por detrás de biombos. Como filtros. Como roupas entre o corpo e a casa. Pessanha, o quadro sobre um tempo invisível que não atinjo mas tapo. Os quadros vivos atrás do quadro. E indecisa digo também o contrário, como da vida me chegam sempre ecos. Porque há de a vida abalroar-me sempre nesta estranha convivência de contrários. Recomeçando. Como distinguir-lhe um silêncio de secreta abertura, de um silêncio de discreto encerramento. E depois, trocar os adjectivos. Porque me fugiu sempre a invejável harmonia das certezas, para este olhar polifónico que me traz num carrocel. Mas ele ali, parado, que pensaria? Quando naqueles dias de alma difusa e sem ideias que transpareçam por detrás desta cortina, deixo que sejam os pequenos bichos devoradores a agitar-se na folha. Cada um na certeza de existir e produzir sombra. Sem cardume possível se bem que partilhando águas. Sigo-lhe as sombras. Os objectos a representar a vida e a cobrir esta de obstáculos ao vazio. Intrigante colecionismo, o de objectos inúteis e crivados de imagens. Duas camadas de máscaras sobre o interior. De um pote, um vaso, um jarrão sem flores. Vivas. Vazio. Como na poesia, que dele revela uma leve e musical arquitectura da dor. De que parte, que recobre, e onde regressa como ao grito necessário. Medido e emendado. No entanto. E recoberto de símbolos ou diluído neles. O grito da dor. Da que é início e decidida sentido e fim. Sento-me na sua frente todos os dias. Desmultiplicou-se em tempos, fragmentou-se, diluiu-se no fundo, como era para ser. Denso de cor e etéreo de transparência. Sento-me ali a olhar como, por um túnel paradoxal de linguagem a tentar igualar a vida, se juntam e justapõem os tempos, os lugares e as fases de ser, entre uma poética guiando a vida e, em sentido contrário, o recuo a uma retaguarda que foi teoria e definiu. E não salvou. Restos. Como células que descartamos todos os dias. Invisivelmente. Em cada passo, em cada gesto. Impressas do código genético. E partículas de água que se evolam e nos abandonam a uma secura de plantas. A ir. Naquele fio do tempo. Ou da navalha. Como restos são os mortais. Ou os restos imortais espalhados por uma eternidade de memória, nos quais, como um convite desfiado em cordas, se tenta ascender. Adivinhar caminho. Ou tão simplesmente, na música do poeta. Sem mais do que ouvir. E queria o olhar inquieto a viajar, de leste a oeste do quadro. De oriente a ocidente. Repletos de origem, confusos de final. Tantos dias e tão poucos ali me sentei na sua frente. Ele calado e eu. A tentar adivinhar a arquitectura daquele interior. Daquele exterior invasivo. A tentar não o expor nem o fechar. Com a emoção de um encontro. E um dia, encerro a última aresta daquele interior cruzado de monstros e enigmas que ficam. Deixo uma portada entreaberta e vou. Mas olho para trás todas as vezes que posso enquanto o meu olhar alcançar o quadro. O poeta. Despeço-me com saudade. Do encontro plano com a terceira dimensão escondida e escura atrás do quadro. Está frio. O tempo congelou. O homem morreu. A poesia não.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasFábula de um marciano em Macau 04/09/17 [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem chegasse de Marte, de talhe e olhos verdes, assim como eu, e passeasse distraído pelas ruas de Macau não deixaria de notar a verdadeira obsessão que os humanos têm pelos relógios. Há mais lojas de relógios do que Madrid tem toureiros. Será terra de filósofos, interrogar-se-ia o marciano da melena verde (como a minha). Em Portugal, rezam os canhenhos também era assim no século XVIII. Casa que não tivesse na sala cinco relógios de pêndulo e dois de cuco não valia um caracol. Disso soube o corsário francês Du Bocage, irmã de uma poetisa francesa que o Voltaire elogiara, e que se apoderou dum navio holandês que levava no porão seis toneladas de relógios e rumou imediatamente a Lisboa, no farejo de vender a mercadoria. Rapaz pragmático, enamorou-se de uma rapariga de Alfama, e depois de outra, e de outra, enquanto ia enchendo a cidade de tique-taques. Deste modo se amodorrou por Lisboa o antigo pirata francês e nela fez uma filha – a mãe do poeta Bocage. É inútil procurar rasto de Bocage por Macau, embora, após ter desertado da marinha, tivesse o “carão moreno” aqui desembarcado, antes de mão amiga o salvar de novas dissipações, “deportando-o” para Lisboa, para alegria dos salões que nesse tempo andavam à míngua de rimas. Mas coloco uma hipótese que me animará o resto da semana. Bocage chega a Bocage na penúria (como eu) mas com uma carga de que nunca se separava por afecto: o relógio que fora do seu avô e que a mãe, no leito de morte, lhe entregara à sua mão pequenina. Por duas vezes ainda dormiu na Gruta de Camões, embalado pelo mavioso tique-taque, enquanto reflectia, Que tipo de devaneio cabe aos relógios, ou, Onde se localizará o clitóris do tempo, etc.,etc. Mais nada lhe ocorreu, pois nada mais lhe sobrava e nessa altura não havia ainda os casinos para experimentar a sorte. Na manhã do terceiro dia, faminto e alquebrado, entrou numa venda na cidade e penhorou o relógio do avô, que tinha marchetado em marfim um camaleão cuja língua tocava o baixo ventre de uma Virgem com as faces encarniçadas… pelo assombro. Só me restam quatro dias para vasculhar, de coração contrito, rasto do relógio de Bocage. Baterei um a um todos os relojoeiros de Macau, mesmo sabendo que ruborizarei ao descrever a volúpia nos olhos da Virgem. Dado que em Macau é tudo perto, como no Alentejo, estafarei as solas e ficarei verde (como o marciano) a quem finalmente chegou “o cheiro da carne que nos embebeda”. 05/08/17 Gosto, quando aterro numa cidade e passado pouco tempo na minha cabeça fervilha a ervilha dos projectos. É o que me está a acontecer em Macau, onde se me deflagrou o desejo de escrever uma peça sobre as relações entre Pessanha e o seu arqui-inimigo Silva Mendes, um tradutor de Lao Tze que invejava o poeta. O modelo da peça será o conflito entre Mozart e Salieri. Já tenho o actor para o Salieri: o Manuel Mendes – como se diz em Moçambique, um xará do primeiro. Uma comédia que fale da difícil acomodação dos poetas na cidade e brinque com o manto de irreais com que os portugueses se entregaram em todas as colónias à devotada replicação das suas aldeias. Ainda não gizei o enredo, mas creio que o relógio de Bocage será um motivo de disputa, que a cabeleira verde (em jade) do marciano igualmente, e que haverá um travesti que se julga a Lady Macbeth. 06/08/17 Faz-se em Macau o que em Moçambique não se ousa. Manter viva a voz do poeta que sinalizou o acume simbólico da presença portuguesa. Aqui Pessanha revivifica, em Moçambique o ausente, a grande figura genial é ainda um filho bastardo do vento (que como se sabe é fêmea) e do esquecimento. E tem nome, ou antes tem vários: António Quadros, pintor/ João Pedro Grabato Dias, ou Mutimaté Barnabé João, o poeta guerrilheiro que ele inventou. E foi o bruto poeta, arquitecto, pintor, pedagogo, apicultor, autor de manuais sobre óptica – este único poeta que o Zeca Afonso musicou. Começou por ganhar um reputado prémio literário que nunca levantou, escreveu uma continuação paródica dos Lusíadas, em as Quibíricas, atribuídas a um frei Joannus Garabatus, suposto confessor do El-rei D. Sebastião (livro que mereceu um prefácio paródico de Jorge de Sena); fez reportagens poéticas sobre as incidências em Moçambique após a independência, ao jeito de uma que Lusa tivesse Ovidio e Virgílio como redactores; escreveu longas odes sobre temas existenciais e sobretudo A Arca (de Noé), uma suposta tradução do sânscrito ptolomaico com versão contida, na qual Grabato só larga o espaldar depois de trezentas estrofes regulares, de uma densidade conceptual que deixam o leitor exaurido. E alvitre-se já: A Arca é um dos esteios da poesia portuguesa do século XX, um dos raros poemas de fôlego portugueses onde a poesia se aproxima de uma gnose, de uma literatura concebida como anamnese. Aqui deixamos um excerto de um outro poema: «Meu Amor, como pensares-me morto e ser triste?/ Estive sempre em viagem. Só agora regresso. / Usa o teu sorriso. Tira o coração da arca / De entre os linhos, alfazemas, naftalinas /E usa-os no domingo de todos os dias do ano (…)/ Estou catando os cachorros, apanhando limões/ Abrindo a colmeia no fumo cheiroso da bosta seca./ Sorrio, pela primeira vez, sem comandar os lábios/ Com o esticar dos fios da complacência doméstica./ Destrinço o sexo na ninhada da velha coelha/ Virando de barriga para cima os veludos das crias./ Espero daninho o teu regresso, acocorado no verão/ E, porque cheguei ao verso, estou vivo» 06/08/17 Acordo e sento-me no útero da minha mulher. Serão já saudades de Macau?
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO realizador chinês mais corajoso de sempre – Parte III Três Irmãs, um documentário de Wang Bing [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]esta terceira parte vamos passar uma lista de filmes recentes de Wang Bing que vos recomendo. Crude foi realizado um ano depois de He Fengming, em 2008. O documentário, com duração de 840 minutos, é um épico ainda mais longo que West of the tracks e ainda mais incrível. Com um total de 14 horas condensadas em apenas 20 planos, a câmara lança um olhar de grande pureza e naturalidade sobre a realidade duríssima dos trabalhadores que extraem petróleo no deserto de Gobi. Dinheiro do Carvão estreou em 2009. O documentário acompanha o rasto do dinheiro gerado pelo negócio do carvão, manchado pelo sangue dos que trabalham nas minas. O realizador brinda-nos com a agudeza do seu sentido crítico: O coração dos homens é tão negro como o carvão. 2009 foi um ano muito produtivo para Wang Bing, para além de “Dinheiro do Carvão”, apresentou ainda mais dois documentários “hi pond” e “sem nome”. O homem sem nome (2010) acompanha a vida de um vagabundo anónimo que, no entanto, tem um lugar para viver. Não se lhe pode chamar “casa”, porque não passa de uma caverna sem electricidade, sem água e sem sanitários. Um anónimo “homem das cavernas”, sem qualquer relação com o resto da sociedade, vive lá dentro. O director de câmara seguiu-o durante um ano e registou todas as suas palavras. É provavelmente o melhor trabalho de Wang Bing. Em 2010, Wang realizou o primeiro filme de ficção, A Vala. Este filme é uma versão ficcional da história de He Fengming (Ver Parte II). A dureza da luta de classes e a fome tornaram a vida num purgatório. Depois de terminar A Vala, Wang foi visitar a mãe. No regresso, cruzou-se acidentalmente com três crianças, e este encontro marcou o início do documentário Três Irmãs, focado na pobreza das zonas rurais de Yunnan. Mas será que o realizador nos deixa vislumbrar uma luz ao fundo do túnel? Em Yunnan, Wang Bing filmou também Até que a Loucura nos Separe, um documentário de quatro horas sobre doentes psiquiátricos internados num hospital de reabilitação. Alguns são doentes mentais, mas outros são pessoas abandonadas, “doentes de solidão”. Nenhum deles consegue fugir ao estigma da loucura. Mas estes doentes não mostram medo nem quaisquer tabus quando enfrentam a câmara. É um filme deprimente, porque a objectiva revela um mundo implacavelmente “real”. Não se aproveita da miséria nem nunca cai no melodrama. É como uma escrita sem adornos, feita de frases cruas, onde cada palavra é fiel e, fielmente protege personagens despidas de qualquer encanto visual e que vivem existências sem nada para mostrar. Às vezes, possivelmente com mais frequência do que gostaríamos, a vida é mesmo só isso.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e Ideias«É o xuá das ondas a se repetir» Spotify, 28 Agosto [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]alto para «As Caravanas» com Chico a viajar pelos reflexos dos hojes. Melhor, vou para Chico, sítio que continua único. Não gasto mais do que umas linhas com a tolice das vigilâncias que vão grassando como ervas daninhas, censores de algibeira que não alcançam que o lugar da arte só pode a dimensão e a forma dos oceanos, respirando tempestades e calmarias com profundidades sem luz enquanto espelham o céu. Prefiro caminhar nas dificuldades da canção que dá título, por exemplo. Traz um Brasil que expulsa negros e pobres da praia, um Brasil de bossas velhas que embaçam olhos e razão. «Sol, a culpa deve ser do sol/ Que bate na moleira, o sol/ Que estoura as veias, o suor/ Que embaça os olhos e a razão/ E essa zoeira dentro da prisão/ Crioulos empilhados no porão/ De caravelas no alto mar». O Sol há-de ser culpado de tudo, até das trevas. Mas vislumbro momentos de sentar na infância, comoção em estado puro, que os dias estão para isso. Nesta, toca com o neto. «É o xuá/ Das ondas a se repetir/ Como é que eu vou saber dormir/ Longe do mar/ Ó mãe, pergunte ao pai/ Quando ele vai soltar a minha mão/ Onde é que o chão acaba/ E principia toda a arrebentação/ Devia o tempo de criança ir se/ Arrastando até escoar, pó a pó/ Num relógio de areia o areal de Massarandupió.» Onde acaba o nosso chão? Uma após outra, mais ou menos solares todas, estas canções são do espanto feroz. Santa Bárbara, 29 Agosto Devia. Os dias nascem logo forrados a deveres, e é a custo que procuro não ocupar as noites alinhando os por fazer que vão esticar ao impossível a pele das horas. Faço-me ortónimo e libertário, não saio de casa, que «grande é a poesia, a bondade e as danças…», mas leio um livro. Oliveira que podia bem ser, finco raízes e aprendo «práticas de viagem» sem sair do sítio. Vou para «Itália», na melhor das companhias, de braço dado com o António [Mega Ferreira] (ed. Sextante). Dispenso até a deslocação, pois os lugares são aqui reconstruídos da boa maneira, cruzando saber e sabor. São os sentidos, se neles incluirmos a inteligência, que se fazem cicerones no labirinto de torres e palácios, pinturas e escritores, Svevo e Joyce, as sublimes composições e os cafés de ficar horas, o Rosati de Pasolini, os azeites aromáticos e os vinagres balsâmicos, sabonetes e Paolo Conte, Carpaccio pintor e prato que o homenageia, a modesta planície de Morandi e os portos e os passos de Dante. No percurso, deparamos continuamente com primeiras vezes, na cultura ocidental e, portanto, em nós. Nem guia nem roteiro, antes Grand Tour a uma paixão, que é país, mas sobretudo berço de uma cultura que celebra a vida. Quem viaja ainda deste modo? Horta Seca, 30 Agosto Devia estar a caminho de Macau, na boa companhia de tantos abysmados que partem celebrar Pessanha. As circunstâncias conspiraram e travaram os ímpetos e as vontades. Fico-me, encostado a uma lápide, gatos por perto, horizonte de torres (como o poeta, na interpretação de Rui Rasquinho nesta página). A ler luzes em países perdidos, com a intacta intenção de no chão sumir-me, como fazem os vermes. Pessanha e Macau tornaram-se estranhos sinónimos. Releio «O Mal», do Paulo [José Miranda], para encontrar a tese de que ambos são sinal, húmido e desfocado, da errância em busca de uma identidade, em vida de empréstimo. De Portugal e do que dele encontramos em nós. Cidade e poeta são sinais e versos de um mau estar, de um Mal tornado ser. O desprezo pela vida, que ambos cultivam, encontro-o na bd melancólica de Fonseca & Morais, Caze – Um caso de ópio. Narrativa na velha tradição do policial negro, mergulha a aventura nas lendas chinesas que tudo sintetizam em pintura, que tanto pode vaticinar a morte do seu pintor como dar vida a uma águia. «Ela descia, vagarosa e sonolenta, senhora antiquíssima dos ventos e das elipses, até pousar nas copas mais altas dos jardins proibidos.» O traço solto, meio desajeitado, sublinha os passos ziguezagueantes de Caze, o detective que parte em demanda, por encomenda, de um antepassado português, portanto de uma identidade, afinal não mais que ladrão de arte e de passados. O testemunho chega-nos por escrito e na primeira pessoa. Será mesmo apenas um caso de ópio, ainda que este sirva para amaciar as arestas da vida? Não, nem mesmo do ódio, aquele que a personagem do Paulo persegue em ensaio para explicar Pessanha. Sendo nós, cada um de nós, pouco mais que sombra em trânsito, saber apagar-se releva da sabedoria. E apagar outros não custa assim tanto, pelo que a mandatária de Caze desaparece no fim, sem custo, em viagem ao fim do mundo. Macau ergueu-se ilha do fim do mundo, ainda que por ali nasçam princípios a cada esquina, também o tempo. Por que fez Orson Welles de Macau o cenário da peça magnificamente filmada, a sua primeira a cores, «The Immortal Story»? Pourquoi pas?, diz Jeanne Moreau, anunciando o lema da casa do pai, que se suicidou por ter experimentado a miséria às mãos do todo poderoso Orson Welles. Macau pouco mais acontece aqui do que evocação de um lugar que comunica com os infernos. Para mim, Macau está nas escadas que sobem e descem na semi-obscuridade. Não são as paisagens que contam, mas rostos, filmados como só Welles sabia, olhando de frente a câmara, pois ela é o destino. «As pessoas só recordam coisas que já aconteceram», diz o gigante solitário e moribundo que Welles incarna, afinal um encenador, demiurgo do mal. E se o dinheiro for capaz de produzir uma realidade que preencha o vazio de uma história de marinheiros? Isso mesmo se congemina, o velho relato de um marinheiro a quem o marido paga para engravidar a mulher vai acontecer. Acontece por ser Macau o farol do poder do jogo, claro, mas sobretudo do ouro, que «é sólido e à prova de dissolução», diz o mais dissoluto senhor do dinheiro nesta imortal história. Abunda o vermelho nas cores saturadas e fortes, translucidas apenas na cama, palco maior do acto entre Virginie e o virgem, marinheiro que não perdeu as graças da palavra. A madrugada faz tombar o pano da dor. Para o senhor da venalidade, os olhos fecharam-se-lhe de vez. Mas não haverá, apesar da dor, neste cruzamento de encontros novos princípios? Valha-nos Pessanha, chão onde sumir. «Na inundação da luz/ Banhando os céus a flux,/ No êxtase da luz,/ Vejo passar, desfila/ (Seus pobres corpos nus/ Que a distância reduz/ Amesquinha e reduz/ No fundo da pupila)// Na areia imensa e plana/ Ao longe a caravana/ Sem fim, a caravana/ Na linha do horizonte/ Da enorme dor humana,/ Da insigne dor humana…/ A inútil dor humana!/ Marcha, curvada a fronte.// Até o chão, curvados,/ Exaustos e curvados,/ Vão um a um, curvados,/Os seus magros perfis;/ Escravos condenados,/ No poente recortados,/ Em negro recortados,/ Magros, mesquinhos, vis.// (…) A dor, deserto imenso,/ Branco deserto imenso, /Resplandecente e imenso, /Foi um deslumbramento. /Todo o meu ser suspenso,/ Não sinto já, não penso, /Pairo na luz, suspenso /Num doce esvaimento.»
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO Primo Basílio | Quarta parte [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma estreita relação entre desejo e vício, que é preciso apurar agora. O desejo, havíamo-lo visto anteriormente, traz em si mesmo a sua própria destruição e, se torna a voltar, é através de um renascer (ou com a ajuda da memória ou da necessidade). O vício, contrariamente ao desejo, esforça-se por permanecer. Melhor seria dizer que o vício esforça-se por fazer permanecer, permanecendo. De que modo permanece o vício em nós e que faz ele permanecer? Tínhamos visto que a multiplicação do desejo ao incrementar o nada, recebia a contrapartida da diversão. O vício não precisa de nada. O vício basta-se. O vício não se autodestrói como o desejo, pelo contrário, a cada instante que passa, o vício se torna mais forte, mais senhor de si e de quem ele tomou. O vício, a cada instante que passa, torna-se mais senhor do seu escravo, do humano que a ele se submete. O vício esforça-se por fazer permanecer o humano do qual é senhor; esse é o seu esforço. Manter o escravo vivo é manter-se vivo e mais forte a cada instante. O viciado em heroína, a cada instante que passa, é mais escravo do seu vício, a cada instante que passa está mais enredado nas teias do seu senhor. O vício faz-se sentir como se de um desejo se tratasse, mas não tem fim, como este. O vício é um desejo sem fundo, um desejo quase infinito. Este desejo sem fundo, que é o vício, é um desejo sem prazer, sem promessa de prazer. O vício é na realidade a antítese do prazer, a incapacidade de produzir qualquer bem estar, a incapacidade de sentir-se saciado. No desejo e no vício não há liberdade, no primeiro as escolhas estão reduzidíssimas, isto é, o desejo quer quase tudo, impõe-se assim, e no vício não há mesmo liberdade nenhuma, não há escolha. Inclusivamente, quando alguém é apanhado a fazer algo que não devia estar a fazer, embora não seja nada de grave, por exemplo a jogar no computador, usa uma expressão que traduz bem isto que queremos dizer: “é o vício!” De facto, o vício não nos deixa escolha. Nem nos deixa escolha, nem nos dá prazer. Bom, algum prazer dá, mas que vai sendo cada vez menos, até que o vício se sinta como uma obrigação, um “temos que fazer”, um “tem de ser”. Se alguém aqui conhece ou conheceu um viciado em heroína ou viciado no jogo, sabe bem do que estou a falar. Para além do momento em que se acalma o vício (a palavra é essa, acalmar, acalmar momentaneamente esse animal em nós), quase todo o tempo da vida daquele que está deposto no vício é ocupado a pensar nele ou em como irá alimentá-lo. O vício é uma animal enorme, dentro de nós, que exige continuamente em ser alimentado; o viciado não tem mais tempo para si, mas para esse animal, o tempo dele é o tempo que dedica a cuidar do seu animal interior. Do desejo, enquanto estrutura constitutiva do humano, vimo-lo anteriormente, ninguém está a salvo dele, e do vício, será possível escapar do vício? Esta parece-me ser a tese forte de Eça de Queirós, neste seu livro, mostrar que a generalidade do vício é parte integrante da condição humana. Não há humano sem vício. Eça mostra que o vício não é uma degenerescência do humano, mas uma constituição do mesmo. Enquanto estrutura ontológica, constitutiva do humano, o vício é dar sentido às coisas. O vício enquanto degenerescência pode assumir múltiplas formas: o jogo, a heroína, o álcool, o sexo, etc., mas enquanto constitutivo do humano ele é um: dar sentido às coisas. O vício não é um hábito que se adquire é uma natureza que se tem. O vício, ao fazer de nós a sua sombra, faz com que queiramos dar sentido a tudo e a todas as coisas. O vício é a substância que nos mantém vivos, que nos faz continuar, que nos impele a continuar esta vida que nos foi concedida. Querer estar vivo é um vício. Se o vício dá sentido às coisas, põe razão em tudo o que toca, é somente porque necessita de nós para continuar. E, obviamente, por essa alucinação de entendimento – todo o vício é uma alucinação – exerce a sua vontade sobre nós. Porque a fome de entendimento é universal. O mais miserável dos humanos julga entender o que se passa dentro dele e ao seu redor. Pergunto: porque é que, mesmo nas condições mais indignas de vida, o humano não se mata e teima em manter-se vivo? Porque o vício exerce sobre ele o seu poderoso poder. Dar sentido às coisas não é a verdadeira essência do vício. Dar sentido às coisas é um entretenimento, uma derivação do vício, a verdadeira essência dele é fazer com que o humano não queira abdicar do que nunca teve. O desejo impede-nos de abdicarmos do que já tivemos e agora já não temos, mas o vício impede-nos de abdicar do que nunca tivemos. Que é isto, não abdicar do que nunca tivemos? Passo a explicar. Vejamos o caso de Leopoldina, do que ela não consegue abdicar não é dos homens ou do sexo, do que ela não consegue abdicar é de um Absoluto que não consegue, que não tem. Não conseguir abdicar do Absoluto que não tem, que quer isso dizer? Esse Absoluto pode assumir diversas formas, por exemplo a forma da Felicidade. Usualmente as pessoas vivem sem felicidade, mas não abdicam dela, isto é, não abdicam de estar numa tensão continua com ela, em perseguição dela, e a felicidade passa então a ter o mesmo efeito sobre a pessoa que tem a heroína: vive-se pr’àquilo. O vício de estar vivo permanece mesmo contra a solidão, mesmo contra a evidência da solidão. Mais do que fazer o que quer que seja, o vício é ser, resistir no tempo que passa, quando se sabe que passa para nada. Mas vai-se ficando como se esperássemos que ele passasse para alguma coisa. Ficar para quê? Para mais um poema, para mais um email, para mais um lucro, para mais um noite de prazer, para mais um filho ou para mais um golo do Fc Porto? Nada cala o labirinto que somos. Ainda que se possa fazer de tudo uma ilusão para calá-lo. Se Deus não nos receber, toda e qualquer vida é nada, se nos receber é tudo.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasUm vermelho tardio [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ara Oriente nos fascina a cor vermelha – a sua cor vermelha – tão diferente daquelas que conhecemos, um escarlate sempre rubro no nosso imaginário, talvez no negro a Ocidente se dê este complemento e seja tão intensa esta atração. Macau! Esta distante terra é como as oferendas que transportamos por méritos, tendo ficado assim como aqueles dons que se presenteiam e nessa transação não entrasse a guerra da conquista pelas coisas, apenas o usufruir de um merecimento. Nela têm desembarcado ilustres seres de uma Nação desavinda com a sua fixação, por ela andaram mergulhados de longos pensamentos que escutámos sempre nela, e, quase seria de esperar que as suas longas formas de praça forte tivessem ao longo de séculos protegido aqueles que o solo natal não acarinhou. Escutávamos coisas vindas do Oriente como as suas sebes vermelhas, o Mar das Pérolas, o mandarim, e as húmidas e quentes Estações, as influências no duro osso nacional amansavam e dele saiam mais refinadas do que em nenhum outro local. É por um deles, que agora para lá nos dirigimos, Camilo Pessanha, que se imolou numa nuvem de ópio e paz muito febril e cheio de uma nostalgia assim permaneceu como os mais belos gases que se evolam: todo ele era uma natureza quase gasosa desfazendo-se talvez numa água, que os dias não precisam do pesado das carnes em locais onde elas pesam mais e os vermelhos não são sanguíneos. É por ele, esquálido e de génio iridescente que nos aglutinamos no extremo do mundo e tomamos como nossas as tempestades nascentes: assim, como um acto de amor inalterado que nos ficou para não esquecermos na voragem dos tempos os nossos melhores. Pressagiamos a festa, e a volúpia vermelha do Galo de Fogo que tem fustigado a Ocidente as florestas e os dias de Estio feito mais duros, O Galo garboso e belicoso, esse ser da aurora que nos orienta agora na marcha dos sítios onde nasce a Luz, entendemos este Bestiário, e vamos sabendo que ele é muito mais, e cada vez menos, regional. Buda é o reflexo que nos diz que os homens de paz amam os animais, até os Ratos, tendo-lhe dado o primeiro lugar neste podium. Só eles acham encantos a este rastejante sobrevivente do asfalto que se franqueia em todas as marchas por onde Dragões hão-de passar. Não é um dia como os outros aquele em que a vamos visitar. É assim como uma antevisão de uma vermelha tonalidade que só eles compõem, pois que a arte oriental, chinesa neste caso, deplora a tragédia e, nas suas mais inofensivas fórmulas, trabalha para um decorativo permanente, genuíno e delicado. A caligrafia disso é registo pois que desenhar alfabetos não será exactamente o mesmo que compor siglas. Esta maravilhosa arte do efeito gera em nós hipnose. Nós somos definitivamente e como modelo outros seres que foram felizes na Estética do Feio e se não fôramos mais felizes foi por que não nos deixamos ser por modelo filosófico. Se Camilo Pessanha não era na índole um ser de natureza feliz foi porque também o resultado de um país triste de fim de século «dos vencidos da vida», dos seus contemporâneos dos «Só» das negras sombras de Junqueiro, das lágrimas quentes do suicida Antero, da vaga nortada destes trajectos se fez uma grande experiência de fogo interior. Os saudosistas de coisas outras da filosofia nacional, o momento político talvez vexatório, as amarras da família, a mãe, a namorada, a amiga, os homens. Mas a alma dos poetas são faróis eternos, olham-nos nas vidraças do outro lado do Espelho, e ele sabe que vamos por ele, louvá-lo a ele, por ele percorrer as distâncias. A sua, nossa, dele Pátria, anda ocupada com tudo que é nada na visão concreta de um descortinar mais poético, que talvez em muitos casos nem saiba já quem ele seja. Ficam assim os redutos e os nichos da memória como canteiros vivos de vermelhas flores. Dentro de algumas horas estaremos na sua aura calorosa, no seu mundo que para os que agora a cidade se dirigem nunca fora distante, e nesta enseada nos vamos estreitando, aqueles que estão certos no fabrico dos laços. Os laços de amor tinham-nos sempre os Vice-Reis das Índias, eram formas de representar os tratados e as alianças. Os dedos já não as suportam nem os tempos as sabem usar. Quando estivermos no Verão asiático o mundo será outro e nem os furacões e as desditas torrenciais nos afastarão esta alegria escarlate que nos corre no peito como um sangue lavado sem mais nada. É o coração que nos guia e assim não haverá tormenta e se cumprirão os pactos. São os nossos Fados.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasDobras [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] passar do tempo em que me confundo com as paredes do quarto onde me encontro, as que estão à minha frente, não as que estão atrás das minhas costas, mais especificamente esta extensão de parede que serve de plano de fundo à janela, através da qual vejo apenas farrapos de azul e ramos de uma árvore, e não do tronco até à raiz. O passar do tempo funde-me com o que tenho perante mim, infinitamente mais contraído do que o que não vejo, o tecto ou o chão. E é agora que me distraio da página neste dia de Dezembro de há 20 anos. Entrei por essa dobra temporal do tempo em que não havia pequeno almoço nem início do dia, nem almoço, nem ninguém, só eu e a casa, ou o mundo todo fechado nesse agora em que entro e me faz perder totalmente a atenção ao presente. Esse agora passado enquanto era vivido, tinha já em si contraídos os vinte anos que se seguiram? Há instantes que são entornados para o vasilhame de água em que vivemos. Embora não nos apercebamos de que estamos mergulhados em não se sabe bem o quê, verdadeira corrente e fluxo do tempo que muda, envelhece e mata. As águas do tempo são diferentes das reais, porque são habitualmente imperceptíveis e o seu calendário é multidimensional. A vida nessa dimensão do tempo não é unidimensional nem partilhável com todos como os dias são. Podemos surfar do presente para o passado e para passados cada vez mais antigos ou dar saltos para o futuro ou ir e ver do futuro para o presente e do presente para o passado e do passado para o futuro e do futuro para o passado. Também podemos viver na fantasia onírica do que poderia ter sido, do que poderá ser, ou com a imaginação que cria mundos paralelos de onde podemos regressar só para tomar refeições. As dobras do tempo podem estar fechadas como se podem abrir, do tempo da realidade para o tempo da fantasia onde mundos inteiros, complexos e variegados são sonhados, de mundos imaginados para mundos fantásticos, oníricos e reais. Há tantas casas e vidas quantas as dimensões que criam mundos e vidas só nas nossas cabeças, mesmo sem qualquer consciência. O quarto fica sombrio e depois vem o sol com a mesma tonalidade de há pouco. Debruço-me sobre o que estava a fazer. Desse instante até agora passaram-se mais dez anos. Mais ainda. Olhava para o candeeiro e para a secretária, quando comecei a ler. Teria seis anos? Cinco anos? Já a vida a ler era numa outra dimensão. Coexistia bem com as outras, mas ler e viver são coisas diferentes. E ler faz parte da vida. E se viver fosse ler? Arrasta-me viscosa a vida pelos próximos seis meses, difícil de passar, só a custo, mas sempre em frente. A vida é inexoravelmente sempre para a frente, com os olhos postos no futuro, mas às vezes o próprio presente está embargado como qualquer mercadoria na alfândega, no espaço geográfico de um país, mas confiscada, sem que possamos levantá-la ou fazer uso dela. Assim vivemos, às vezes, um qualquer presente que dura seis meses mas pode durar também décadas ou a vida inteira. A vida pega em mim, encarna em mim, ela é eu e eu não sou nada e faz-me resvalar com a casa inteira a rua que não é onde moro, na noite da insónia, pela vida, com a consciência absoluta da impermeabilidade inacessível que me isola claustrofobicamente de mim como dos outros. O meu corpo é expandido e explode pelas paredes, a rua, o bairro, o Tejo, oriente e ocidente, tudo é estendido pelo agora nesse momento estranho em que sou rio e tudo é rio e o oceano temporal a fluir, onde estou mergulhado como que dentro de água, só que a água é o tempo, a corrente do rio é a corrente do tempo. Num campo de forças com limites mais ténues do que a brisa ou a abóbada celeste vista através de uma atmosfera que aparentemente não influencia nem destorce o que vemos. Olho para uma nuvem que passa e imagino que está parada e a nave da vida em que me encontro e tudo o resto metido lá comigo é que se desloca. Não sou eu parado e a nuvem que passa, mas sou eu quem passa e a nuvem está parada! Sou coextensível com a abóbada celeste e o as profundezas da terra. Penetro na escuridão de bolsos e de gavetas e do lado de lá da superfície de ladrilhos e calçadas e alcatrão. Existo como existem em mim pessoas, todas as pessoas. O mundo é um balão complexo de tempo com um ecrã total que não é ecrã, mas muito mais perfeito porque camufla as coisas como se fossem em si e elas estão todas a escoar ao mesmo tempo para nenhures, para o nada. E eu com elas escorrego no rápido a pique no precipício, sempre, sem chegar, sem pé, sempre mais fundo ou então a subir para uma águas cada vez menos profundas, mas sem perceber se subo à superfície ou se me afundo mais e mais e mais. As paredes atravessaram a tarde na qualidade da sua duração e são as mesmas. Só vejam que não são porque conheço casas desabitadas, onde famílias moraram e viveram e agora resistem mas deterioradas, já sem ninguém. Uma parede só de uma divisão sem tecto nem chão nem as outras três paredes que albergaram noites de febre e amor e consolo ou desolação. A casa é a mesma num breve instante de percepção e durante todo o tempo da vida em que alguém lá viveu. Os objectos inertes e a sua natureza morta só são percebidos quando percebidos por um ponto de vista que abre o olhar de nenhures. São essas paredes que aí estão pintadas de fresco mas que eu vejo já no bolor do tempo. A velocidade estonteante do comboio a galgar terra, o avião que se precipita na velocidade máxima, o carro veloz, as piruetas dançantes, a transformação do mundo no movimento e na ilusão do movimento quando tudo está parado, o amarelecimento das folhas, a queda dos frutos, ficar alagado e enxugar, dormir e acordar, ler e escutar música, o tempo que passa é o plano de fundo a todos os tempos durante os quais duram as mais pequenas acções do quotidiano, as mais pequenas percepções em que se vê de repente que vai chover ou que o dia vai abrir. Num instante sou entornado todo eu para a paragem de mim estagnação de uma vida que de há trinta anos para cá desde aquele instante me converti no buraco negro para onde entrei por ele adentro até agora. Tenho menos trinta anos e mais trinta anos. O que se passou entretanto é já nessa dimensão complexa em que sou distendido desde a imagem fotográfica de então até à imagem fotográfica de agora com todas as imagens que se desdobram e fazem o filme da minha vida até agora, mas desaparecidas ou comprimidas num único instante integrante.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasTrabalho de casa II 26/08/17 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onfesso que os princípios estéticos taoistas me trazem um tópico que me fascina: o isomorfismo. Potenciar ressonâncias em sistemas distintos pressupõe a existência de isomorfismos – uma similitude de estruturas, como nos fractais, entre os diversos seres, níveis de realidade ou sistemas – e ilustra o velho postulado chinês da harmonia universal. É o que acontece naquela célebre história em que Tzang Tsu e Hui ’Tzu atravessam uma pequena ponte e desatam a discutir sobre como pode Tzang Tsu avaliar se os peixes que nadam e cabriolam na torrente se sentem felizes. Ao que sage responde prontamente: Eu conheço o gozo dos peixes no rio pelo gozo que eu sinto ao caminhar junto do mesmo rio. Entretanto, para que se perceba como o potencial estético do isomorfismo não está refém do mimetismo, piquei em Chesterton um exemplo que me delicia: Um homem que se apega à literalidade das harmonias, que não associa as estrelas senão com os anjos, ou os rebanhos com as flores primaveris, arrisca-se a ser bem frívolo, porque se limita a adoptar um só modo a cada momento; e passado esse momento ele pode esquecer o modo em questão. Mas um homem que se esforça em conciliar os anjos com os cachalotes deve, por seu lado, ter uma visão bastante séria do universo. Esta formulação afere a seriedade dos processos em muita poesia moderna, tantas vezes tão incompreendida: os anjos e os cachalotes não devem andar de costas voltadas – ainda que tenhamos que fazer as ligações porque elas não nos são dadas. Em suma, a poesia obriga-nos a sondar novas associações intelectivas que desencadeiam uma multiplicidade de relações nunca entrevistas, numa dinâmica que não se fecha mas se estua. Ou como diria o Chillida, sobre a arte, mas extrapolando-o para a poesia: trata-se de fazer luz onde estava escuro, o que nos empurra continuamente para fora da lógica do discurso em que nos movíamos, para vermos iluminados âmbitos novos. Se quiserem, a metáfora que traduz a transversalidade isomórfica é o passe vertical no futebol, que produz uma economia de tempo ao conectar automaticamente vários níveis do campo. Eis um bom ponto de partida para compreender o que a poesia nos ofereceu desde Baudelaire e para nos aquietar quando constatamos que a posição da arte é quase sempre um desmentido à posição do discurso (- ó Lyotard, estás bom, rapaz?). É no que creio e só por aqui começo a compreender como anjos e cachalotes rimam. 27/08/29 Provavelmente tudo o que vou dizer na palestra sobre Camilo Pessanha, dia 5, em Macau, seria desmentido pelo que se vazou nesse mítico caderno desaparecido do poeta de que alguns falam com, pasme-se, sete mil páginas. Confesso que suspeito desta cifra, não lhe encontro grande nexo. Sete mil páginas correspondem a catorze resmas de papel, seria uma árvore maior do que a floresta, e que não se deixaria ver. Provavelmente, na sua aludida letra pequenina, eis a hipótese que me parece plausível, João de Castro Osório viu sete mil linhas e cometeu um erro de simpatia. O que a trinta linhas por páginas daria algo como duzentas e tal páginas, um número mais viável. Mas preferia ser desmentido (tenho este carácter mole, que não se importa nada de ser desmentido) e que à chegada a Macau me contassem que o tufão da semana transacta removeu umas lajes e se encontrou embrulhado em couro o caderno perdido do Pessanha. Eu acredito em Shangrilá… 29/08/17 Prófugo, solerte, adrede, enteléquia: palavras com as quais não teço qualquer empatia, modo de emprego, sinal de apaziguamento. Já cem vezes as soube, já cem vezes as perdi, não pertencemos à mesma comunidade. Puro mármore, não me entram no sangue. E mais duas centenas delas, vieram-me agora estas, como se fossem o primeiro sintoma de um Alzheimer a vir. Há palavras de que não nos apropriamos, é caso para dizer, nem mortos. Cada um imagino ter as suas. Bom, para minimizar, sirvo-me de um dito de Bachelard, «Se dois homens se querem entender verdadeiramente, têm primeiro que se contradizer», que afinal até é o princípio das comédias românticas. Porém, elas não se dão ao trabalho de me contradizer – repelem-me. Se é assim com as palavras, pressinto que seja totalmente artificial qualquer ideia de comunidade. Um sentir comum, eis uma afecção a que sou ligeiramente avesso. Pontualmente sim. Mas de forma mais prolongada incomoda-me estar entre pessoas que não desapegam e nunca querem estar sós, no anonimato, ou entre dissonâncias, e que se pelam por montar discursos muito articulados sobre a necessidade de estar em grupo. Pessoas sempre a subir os estores e que para tudo acham argumento e nunca gaguejam e prosseguem juntas até ao fim, sem nunca se despedirem. Nunca tive um só grupo de amigos ou um só tipo de amigos. Nunca me adaptei a grupos, do mesmo modo que um cardume grande de palavras da minha língua nunca me adoptou. Ardem-me nos olhos as coisas que não sei nomear, mas uma palavra que mil vezes se relaxa no balde das coisas recalcadas, à qual só volto a encontrar irritantemente por acaso no velcro de uma página, que pretende senão capacitar-me de que nunca deixei de estar só? Creio que somos um quarto sem ninguém reflectido nos espelhos. Quando alguém aparece na superfície prateada há festa. Mas é como uma batida rítmica, tem intervalos. Querer mobilar o quarto com uma multidão não neutraliza a mudez do espelho. Mesmo que seja um espelho de Veneza. Pode ser lancinante o sentido comum e raramente uma partilha que é de todos e para todos é justa. E receio que a sociedade da comunicação se esteja a transformar numa sociedade holística, numa daquelas comunidades que se concebem a si mesmo como um todo. Mete medo! Um dia destes só temos por nós as palavras que não nos gramam. Que elas nunca transijam! Eu por mim abomino-as!