Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO realizador chinês mais corajoso de sempre Parte II [dropcap style≠’circle’]W[/dropcap]ang Bing filmou o seu segundo documentário, He Fengming, em 2005. Só com uma câmara, centrada numa mulher que sobreviveu aos horrores da era de Mao, Wang Bing conta uma história intimista, minimalista, quase privada. Antiga professora e jornalista, He Fengming relata de forma vivida, dolorosa e detalhada o pesadelo que viveu durante 30 anos, após a revolução. A narrativa começa com Fengming a descer a rua coberta de neve que vai dar ao seu apartamento. Agora, sentada na sala, a mulher idosa, mais excepcionalmente bem conservada, fala para a câmara de Wang durante cerca de três horas, quase sempre em tempo real. A estratégia, totalmente não comercial, coloca o espectador numa humilde posição de receptor, quase como convidado de He. Estamos perante um estilo que preserva a pureza dos contadores de histórias. A narrativa nunca é interrompida por perguntas ou comentários. Durante quase três horas, esta mulher descreve os tormentos por que passou na prisão, num enquadramento decididamente não cinematográfico, mas sempre hipnótico. O olhar do realizador marca a forma como a história é contada, todo o seu drama e toda a sua tragédia. A abordagem totalmente estoica de Wang parece ser a forma certa e respeitadora de trazer ao espectador todo um mundo de emoções, embora este universo lhe seja desconhecido e nunca tenha imaginado sequer experiências tão degradantes. He Fengming foi premiado no Festival Internacional de Cinema Documental de Yamagata em 2007. Veja aqui uma entrevista com o realizador – a verdadeira natureza das histórias: https://bit.ly/2xGebQ0
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasRecuos, mais que avanços Santa Bárbara, 22 Agosto [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]om esforço (nada é sem ele agora), procuro experimentar o tempo de modo distinto para o travestir de férias, essa invenção pequeno-burguesa. Parar não devia obedecer a nenhum calendário. A preguiça devia ser estado natural de qualquer indivíduo, e aqui me confesso seguidor de Lafargue. «Ó miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! Ó lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem na ociosidade, dão trabalho aos pobres; mais valia semear a peste ou envenenar as fontes do que erguer uma fábrica no meio de uma povoação rústica. Introduzam o trabalho de fábrica, e adeus alegria, saúde, liberdade; adeus a tudo o que fez a vida bela e digna de ser vivida.» Teimo em erguer uma fábrica no meio da minha povoação rústica e isso paga-se. Na vez de me dedicar ao essencial gasto-me, em pleno Agosto, a fazer cobranças difíceis, dificílimas. Poupo-nos à desgraça de um diário mais próximo da suja realidade. Ora o essencial está nisto, por exemplo: o Paulo [José Miranda] foi entregando, nos últimos dias e com horas de intervalo, dezenas de versões do seu novo e desafiante romance. A mais recente acontecia ser todavia ainda mais final que a anterior. E mesmo depois da finalíssima veio uma derradeira. Fechado esse capítulo abriu-se a discussão em torno do título, que logo aqui e agora que ficar resolvido. Isso além do lançamento e do lançador. O coração do editor vive deste sangue e o tempo devia suspender-se por via de primeira leitura ansiosa, de uma segunda de lápis na mão, antes de terceira para deleite e ajuste. Vai demorar um pouco mais, mas só um pouco, por causa das dezenas de chamadas em espera, das combinações por acertar, das agendas para ferir de urgências a vermelho. Uma delas, um título que nos acalme as ânsias. (Mão amiga entrega-me romance de Reginaldo Pujol Filho: «só faltou o título», assim se chama). Horta Seca, 23 Agosto Recuo. Na flecha disparada ao futuro, os desvios chamam-se recuos. Uma seta não se consegue puxar para trás. Uma arma de fogo, essa, depois do disparo dá coices. Nunca disparei uma pistola. Bisnagas, sim. As engenhosas e doidas das infâncias, sim. Passos às arrecuas, dei sem querer. Passos às arrecuas, fui obrigado a dar. Quem se estende para diante em voluntarismo deve com isso contar. Vejo agora que as setas, como nos desenhos animados, podem, sem perder força, rodar no ar e voltar na nossa direcção. O progresso, essa invenção pequeno-burguesa, faz-se de alcatrão mole, apenas estrada, pouco horizonte. Preciso muito de me afastar no tempo para pôr contornos do difuso neste presente feito de recuos. Horta Seca, Lisboa, 24 Agosto Mário Gomes entrega trabalho hercúleo que as circunstâncias não me deixam apreciar devidamente. Ainda vou na leitura ansiosa da primeira tradução para português de Arno Schmidt (na foto), no caso, duas novelas, «Leviatã e Espelhos Negros». Confirmei o que apenas antecipava, por causa de detalhes e do discurso apaixonado, contudo esclarecido, sobre a obra e o autor, a qualidade do texto final em português radicalmente novo. Schmidt, que conhecia mal, mudou o alemão e terá, portanto, que mexer com qualquer língua. Mário transpô-lo com elegância e cuidado extremo. Parece-me que a abysmo nasceu para editar Arno Schmidt. Quando o sinto com um autor, acredito que sou editor. (Dura pouco a sensação). Ao calhas: «E os incontáveis paralelos de granito zumbiam debaixo de mim, à esquerda, à direita; passados sete minutos estava de novo a arfar pela faixa de asfalto entre Ebbingen e Cordingen: placas cor de óleo de linhaça, conscienciosas que nem funcionários públicos, indicavam em todas as direcções da pista de corrida: oh, gente de juízo! Amplo e verdejante, o berço do final da tarde, arborizado, pedaços de bosque por todos os lados, o vento estava fresco e, com um assobio de pífaro, mandou-me rumo a casa, pelo prado fora; deslizei, balançando-me sobre coxas duras e esmagadoras, pela faixa ondulada de asfalto: viva a solidão!» O cuidado pode ser medido neste episódio. No Espelhos Negros, de onde retirei as linhas anteriores, surgem incursões pela matemática, pelo que pareceu avisado ao Mário dar a ler a quem soubesse. Recorri à Carlota [Simões], que anima o belíssimo Museu de Ciência da Universidade de Coimbra, e soma aos inúmeros saberes uma curiosidade dispersa e o uso de língua próxima do alemão. Logo se percebeu que não se tratava apenas de bem enquadrar o Teorema de Fermat e demais vizinhanças, mas de detalhes de balística, o que levou a posterior investigação e mais contactos. Tudo porque o autor, não contente com a hipótese de pôr pombos a voar como balas, resolveu transformar a ideia em equação. Ninguém daria pelas pequenas incongruências, uma ou duas do próprio autor. Trabalhamos para os dois ou três que notariam. Estou em crer que a edição de Arno Schmidt poderá ter que ser lida com recurso à balística, tal os movimentos que causará nos leitores que se atreverem. Alvalade, 27 Agosto Ver no estádio um jogo de futebol continua, apesar disto e daquilo, fascinante. Um dos mais divertidos paradoxos dá-se na dança entre ruído e silêncio. Habituados à narrativa torrencial da televisão ou da rádio, ali a coreografia desenrola-se em silêncio pontuado nos picos do drama pelas neves de vogais abertas ou fechadas pela aflição e pela alegria. No entorno, claro que se conversa, tantas vezes absoluta e distante banalidade, como se cultiva a mui nobre e elevada arte do palavrão, nem sempre com criatividade; claro que se comenta e analisa, do detalhe de uma jogada ao panorama geral do sistema, de uma memória revivida à projecção de campeonato inteiro. Mas o olhar cria uma campânula de cristalino silêncio no rectângulo verde, se concentrado nas deambulações daquele talento individual ao serviço do colectivo que se dobra e desdobra, em avanços e recuos, tornando-se ele, nos bons momentos, entidade única, viva, orgânica e esmagadora. O vidro estilhaça com o golo feito seta de grito uníssono. O Sporting ganhou, sofrendo, muito por sua culpa, ao Estoril Sol por 2-1, com golo anulado a cada equipa pela figura fantasmática do vídeo-árbitro. Mathieu entrou na short-list com grande jogo: aprecio quem, vindo da defesa, rasga campo para desequilibrar com a velocidade do inesperado ou vice-versa.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasAnálise acerca de O Primo Basílio – Terceira parte [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] palavra “vício” é usada apenas onze vezes ao longo de todo o livro. Tentemos entender a importância desta palavra na economia geral do texto. A primeira vez que a palavra aparece no texto é usada para acusar Leopoldina de um desvio comportamental à boa regra: “Sabia-se que tinha amantes, dizia-se que tinha vícios.” A segunda vez é acerca de D. Felicidade, que se queixava de estar doente: “Viam-na corada e nutrida, e não suspeitavam que aquele sentimento concentrado, irritado semanalmente, queimando em silêncio, a ia devastando como uma doença e desmoralizando como um vício.” A terceira vez, ainda acerca de D. Felicidade: “Acácio tornara-se a sua mania: admirava a sua figura e a sua gravidade, arregalava grandes olhos para a sua eloquência, achava-o numa “linda posição”. O Conselheiro era a sua ambição e o seu vício!” A quarta vez que vemos a palavra ser usada é em referência a Juliana: “Eram o seu vício, as botinas!” Quinta vez, ainda em referencia a Juliana: “e satisfazia o seu vício – trazer o catita. O pé era o seu orgulho, a sua mania, a sua despesa. Tinha-o bonito e pequenino.” Na sexta vez, através dos pensamentos de Sebastião, amigo dedicado de Jorge, a palavra aparece pela primeira vez referindo-se a Basílio: “Mas isto bastava para que Sebastião o achasse um debochado, um perdido; ouvira que ele tinha ido para o Brasil para fugir aos credores; que enriquecera por acaso, numa especulação, no Paraguai; que mesmo na Bahia, com a corda na garganta, nunca fora um trabalhador; e supunha que a posse da fortuna para ele, seria apenas um desenvolvimento dos vícios.” A sétima vez recai sobre Luísa: “Não abrira os braços a Basílio voluntariamente!… Tinha sido uma fatalidade; fora o calor da hora, o crepúsculo, uma pontinha de vinho talvez… Estava doida, decerto. E repetia consigo as atenuações tradicionais: não era a primeira que enganara seu marido; e muitas era apenas por vício; ela fora por paixão… Quantas mulheres viviam num amor ilegítimo e eram ilustres, admiradas! Rainhas mesmo tinham amantes. E ele amava-a tanto!…” A oitava vez é pelos pensamentos de Basílio, em relação a si e à sua prima, após rejeitar fugir com ela: “Basílio saiu do Paraíso muito agitado. As pretensões de Luísa, os seus terrores burgueses, a trivialidade reles do caso, irritavam-no tanto, que tinha quase vontade de não voltar ao Paraíso, calar-se, e deixar correr o marfim! Mas tinha pena dela, coitada! E depois, sem a amar, apetecia-a; era tão bem feita, tão amorosa; as revelações do vício davam-lhe um delírio tão adorável! Um conchegozinho tão picante enquanto estivesse em Lisboa… Maldita complicação!” Nona vez, no meio de uma conversa entre Leopoldina e Luísa: “Aquela conversação enervava Luísa; numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.” Na décima vez, a palavra é usada por D. Felicidade para Luísa, na ópera, acerca de uma cantora famosa: “Mas quando o pano subiu, ficou sentado por trás de Luísa começando logo a explicar – que aquela (Siebel, colhendo flores no jardim de Margarida), posto que segunda dama, ganhava quinhentos mil réis por mês… – Mas apesar destes ordenadões morrem quase sempre na miséria – disse com reprovação. – Vícios, ceias, orgias, cavalgadas…” Por fim, a palavra é usada pelo médico Julião, dizendo a Sebastião: “Mas quem tem aí princípios? Quem tem aí quatro princípios? Ninguém; têm dívidas, vícios secretos, dentes postiços; mas princípios, nem meio!” Na primeira vez que a palavra surge, ficamos a saber que é algo de que as pessoas falam, e não em forma de elogio, dizia-se que tinha vícios. Vício aparece como uma doença, como que uma maldição de um dos deuses das convenções sociais, é algo que desmoraliza – desmoralizando como um vício, diz na segunda vez. Por outro lado, a palavra aparece também com uma conotação menos moralmente acusativa em relação ao humano: uma pequena vaidade – em Juliana, nas duas vezes em que a ela a palavra é empregue – ou em relação à paixão não correspondida da D. Felicidade pelo Conselheiro Acácio. Eça usa ainda a palavra com alguma cirurgia, como no dia em que Luísa pensa acerca de do seu envolvimento com Basílio, contrapondo as outras, que têm amantes por vício, a ela, que está com Basílio por paixão. Vício aparece claramente em oposição a paixão. Ainda cirurgicamente, através da voz de D. Felicidade em conversa com Luísa, na ópera, ficamos a saber que o vício é responsável por conduzir a vida humana à miséria, a uma miséria maior do que a ontológica: uma miséria que traz a ontológica e a carrega com uma miséria acrescida: social e económica. Em Basílio, segundo Sebastião, o socialmente aceite Sebastião, o dinheiro em uma pessoa moralmente baixa servirá apenas para um crescimento dos vícios. Há ainda dois modos que são de uma acutilância e de uma pertinência extraordinárias: 1) vício enquanto generalidade, como algo comum na cidade, na sociedade, fazendo com que o vício de cada um pareça não ter importância; a generalidade do vício acaba mesmo por justificar a particularidade do vício; 2) vício enquanto um dos contrapontos aos princípios morais,. A palavra vício não pode ter sido usada aleatoriamente pelo escritor Eça. Um escritor com o génio de Eça, num romance de trezentas e muitas páginas, não vai usar um termo como vício, apenas onze vezes, se não for de modo perfeitamente adequado e de forma a fazer-nos ver para além do uso indistinto de termo. O vício está em todo o lado na sociedade, generalizado. Luísa, já sendo vítima da chantagem da Juliana devido ao seu caso com Basílio, dá-se conta disso mesmo. Luísa, no extremo da sua preocupação, dá-se conta de que a sua situação é tão geral que os seus contornos se tornam indistintos. Quero dizer: o caso dela, que afecta toda a sua vida, que a torna completamente infeliz, miserável, não é diferente de tantos outros casos, a sociedade está cheia de “Luísas” e de cidadãs e cidadãos bem mais viciosos do que ela. Se alguém fizer um assalto à mão armada em Helsínquia, na Finlândia, será seguramente um caso especial, um caso digno de atenção, pois será um caso raro. Se alguém fizer o mesmo ataque em São Paulo, pelo contrário, nenhuma atenção especial será dada a esse caso, tal é a generalidade desse tipo de crime. Em São Paulo, o criminoso armado não tem direito à sua identidade, o criminoso torna-se indistinto. Na generalidade do crime armado, o criminoso encontra até a sua própria justificação, isto é, a generalidade do crime armado acabava de funcionar como justificativa para o indivíduo. A mesma generalidade que lhe retira o direito à sua diferença, à sua distinção em relação a outros. Quando Eça faz Luísa ter consciência disso – “numa tal generalidade do vício parecia-lhe que o seu caso, como um edifício num nevoeiro, perdia o seu relevo cruel, se esbatia; e sentindo-o tão pouco visível quase o julgava já justificado.” – faz com que a sua tragédia assuma um ponto fundamental: a sua impiedade social deixa de ter necessidade de expiação ou arrependimento. De outro modo, não há um deus para ofender, através dessa sua atitude, porque a sociedade se comporta quase toda desse modo; se quase todos ofendem um deus, a noção de impiedade deixa de fazer sentido. Se todo o mundo rouba, roubar deixa de ser uma ofensa, para se assumir como prática corrente. Luísa age em concordância com a sua sociedade, não com a sua convicção. Esta é a tese forte de Eça de Queirós: numa sociedade corrupta, o cidadão acaba por agir pela vontade desse deus, ao invés de agir com a sua própria consciência. De algum modo, ouvem-se ecos de Marquês de Sade. A sociedade, os deuses não querem que os humanos ajam bem, mas que pareça que agem bem. Os princípios, como Julião dizia a Sebastião, são a aparência que esconde a verdade do que se passa, a moral é a parte visível do iceberg. A sociedade é uma aparência. Os deuses são uma aparência. Viver em sociedade apresenta-se, segundo Eça de Queirós, não só neste livro, mas em quase todos, como uma hermenêutica de cálculo da acção. Há que interpretar a cidade onde estamos, ver o que se esconde sob o manto da aparência e medir, calcular as acções que devemos praticar, de modo a não sermos castigados, nem por nós mesmos, nem pelas convenções sociais da aparência. Ou seja, Luísa está imersa numa situação bem mais complexa do que Antígona. Ao aumentar a complexidade da sociedade, a complexidade das decisões aumentam, a tragédia complica-se. Mas Eça parece querer dizer mais do que isto, parece querer mostrar que a natureza humana está desde sempre imersa no vício, que o vício é constitutivo do humano. Temos falado em vício, tal como ele se apresenta em O Primo Basílio, mas ainda não fizemos a pergunta acerca do que é o vício. O que é o vício? O vício apresenta-se numa dualidade: responsável pelo incremento desmesurado de uma acção; e pela degenerescência do humano. À compulsão em relação a um objecto ou a uma actividade chamamos vício, mesmo que essa actividade ou esse objecto nada tenham de viciante. Alguém que não seja desportista e corra 20 km por dia é viciado em correr; dizemos que ele tem pancada. Mas a corrida, só por si, não é um vício. Uma pessoa que compre compulsivamente livros é um viciado em livros. Podemos dizer que todo o coleccionador é um viciado. Alguém que fume ocasionalmente maconha não é um viciado em maconha, mas se vive a fumar maconha é viciado em maconha. O vício apresenta-se por um exagero em relação a algo, uma compulsão. Por outro lado, nem todos os vícios, ou aquilo que possa ser considerado de vícios, causam degenerescência no humano. Por exemplo, o viciado em correr estará seguramente a salvo, o seu vício não será causador de uma degenerescência para além da natural. Poderemos dizer o mesmo em relação ao viciado em comprar livros, a única degenerescência que pode acontecer é a económica. Já em relação ao viciado em drogas ou em bebidas alcoólicas os resultados são bem diferentes. Vício não é apenas uma compulsão, mas uma compulsão capaz de desviar o humano do seu curso normal, capaz de fazer com que ele deixe de ser quem era, quem costumava ser; vício é uma compulsão que tem o poder de fazer do humano uma coisa. Um humano viciado em jogo, pode chegar a um estado em que não passa de uma coisa que joga. Um coisa compulsiva que joga. Mas há vícios que, embora se façam sempre sentir, têm uma zona de tempo específica, como por exemplo os vícios sexuais (ainda que também possam vir a tomar todo ou quase todo o tempo do humano. O que a hermenêutica de cálculo da acção parece então querer indicar é o seguinte: nesta sociedade, é necessário saber controlar os seus próprios vícios, isto é, mantê-los privados, manter os vícios longe do olhar dos outros, longe da aparência que rege a convenção social. O vício, que faz de nós um outro, deverá manter-se privado. Aprender a manter os vícios no foro privado é a grande aprendizagem que esta hermenêutica nos mostra.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasO naufrágio em Camilo Pessanha (continuação) Ângela Carvalho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] esta ideia já fez também referência Barbara Spaggiari em O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanha, quando aludiu à forma como o autor olhava o mundo: [analisava] os aspectos fenoménicos da realidade e [sondava] as relações íntimas implícitas nas coisas, tendo sempre a consciência da intervenção racional e emotiva do eu na percepção do mundo. (…) [Para Pessanha] a tarefa da poesia é evocar a realidade, não só reproduzindo-lhe a beleza exterior mas também captando a trama densa de relações que liga cada parte do universo ao todo. (1982: 44) Não podemos contudo dissociar o olhar de Camilo Pessanha sobre a realidade do que isso trouxe de relevante à sua escrita, notando, como Barbara Spaggiari o fez, que “As categorias perceptivas fundem-se e subvertem-se na sinestesia” (ibidem: 49), oferecendo a realidade “os seus fragmentos cortantes para construir correlações e analogias, símbolos e metáforas, em que as coordenadas espaciais se anulam, as referências historico-biográficas se tornam fugazes, contornos, tons e cores adquirem uma fluidez que se transmite ao ritmo do verso” (ibidem: 48-9). Retomando ainda os vestígios humanos, note-se que estes aparecem como fruto de “naufrágios”, “perdições”, “destroços”, como ruínas de ruínas, do mesmo modo que no poema “Chorai arcadas” surgem os “– : Lemes e mastros…/ E os alabastros/ Dos balaústres!” (vv. 18-20) ou as “Urnas quebradas!/ Blocos de gelo…” (vv. 21-2), não respeitando estas turbações sequer o repouso além-vida. No “So- neto de Gelo” encontra-se ainda um “resto de batel” à deriva no mar. Penso que será útil indagar o que são realmente estas ruínas, uma vez que, ao contrário do que se podia pensar, não representam o fim de nada, não são o momento de anulação da matéria, mas antes a “mineralidade a que a vida, por decomposição (…) regressa” (Lopes, 1970: 131) e a reorganização pela referida ars inveniendi. Sobre este assunto refere Paula Morão que: se pensarmos na Lei de Lavoisier, segundo a qual na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma, perceberemos que se perde um corpo olímpico para que a água ganhe maior densidade ao integrar a matéria em decomposição (2004: 248). Contrastando com a violência patente em verbos como “partir”, “desengastar”, “despedaçar”, “quebrar”, “derruir”, “afundir” e “arrebatar” Ð que dão conta de processos conducentes à ruína –, temos a calmaria tão temida na carta anteriormente citada e de novo invocada no poema “Singra o navio. Sob a água clara”: “Na fria transparência luminosa/ Repousam, fundos, sob a água plana.” (vv. 7-8). A ideia de morte está sempre presente, tanto pela acção violenta como pela ausência de acção, o que conduz à constatação enunciada já por Eróstrato: As inclinações do ânimo fazem e destroem tudo. Se a razão dominasse o mundo nada aconteceria nele. Costuma-se dizer que os nautas têm um receio extremo da calmaria e que só desejam vento, embora se exponham ao perigo de uma tempestade. Os movimentos do ânimo são, no caso dos homens, os ventos que são necessários para pôr tudo em movimento, apesar deles por vezes provocarem tempestades e outras intempéries. (cit. in Blumenberg, 1979: 49) Chegamos assim à ideia de inevitabilidade a que já me referi anteriormente. Uma inevitabilidade que do mesmo modo que o sujeito poético é espectador de naufrágios – pode vir a servir de espectáculo a outro “eu” ou a si mesmo (cf. “Soneto de Gelo”), utilizando a mesma configuração de Schopenhauer, referida por Hans Blumenberg, “[da] identidade do sujeito humano [que se decifra] perfeitamente nas duas posições, na do náufrago e na do que contempla.” (Blumenberg, 1979: 81). Do meu ponto de vista, o sujeito poético da Clepsydra enquadra–se bem “no sentimento do sublime” (ibidem: 82) em que “O espectador [se] ultrapassa na reflexão e passa a espectador transcendental” (ibid.), sentindo-se ao mesmo tempo indivíduo “abandonado ao acaso [e] sujeito eterno e tranquilo do conhecimento” (ibid.). Neste ponto impõe-se invocar Goethe, que, ultrapassando a metáfora do naufrágio, chega à “metáfora da ausência de vestígios das rotas traçadas no mar” (ibid.: 77), preconizando que: do mesmo modo como a água, que é afastada à passagem de um barco, conflui novamente atrás dele, também o erro, que foi banido por espíritos superiores para se afirmarem, se impõe muito rápida e naturalmente depois da sua passagem. (…) A fórmula mais curta para esta experiência é que na realidade, o absurdo preenche o mundo (ibid.: 78). Trata-se daquilo a que Pessanha chama “um destino invencível e absurdo.” (cit. in Lencastre, 1984: 110). O absurdo que desencadeia muito do desespero do poeta é a mortalidade da condição humana, como já foi notado por Óscar Lopes no artigo “Pessanha, o Quebrar dos Espelhos”. Na confusão entre as noções de espaço e de tempo podemos sentir uma tentativa de evasão da contingência de finitude da vida humana, juntamente com uma referência implícita à mineralidade, podendo servir de exemplo a distância-tempo e a distância-lonjura da “figura peregrina” do poema “Singra o navio. Sob água clara”. A tentativa de Pessanha de se evadir à contingência da finitude da vida humana passa também pelo ensaio de anulação do tempo “presente”, aspecto já notado por Ester de Lemos em A “Clépsidra” de Camilo Pessanha, onde chamou a atenção para o facto de o sujeito poético da obra não entender o tempo da mesma forma que Bergson o entendeu, como “une succession d’états dont chacun annonce ce qui suit et contient ce qui précède” (cit. in Lemos, 1956: 46). Também Maria José de Lencastre o apontou em nota à missiva de 30 de Abril de 1894, que o poeta dirigiu a Alberto Osório de Castro, referindo que uma das suas mais evidentes preocupações era a corrente temporal, revelando um grande desejo de abandono ao instante a que Ester de Lemos chamaria de “deslizar contínuo” e a que Pessanha já se tinha referido nestes termos em carta anteriormente citada: “Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca… Ir assim, a bordo de um navio, sem destino.”. José Bento observou algo de semelhante no artigo “Outra vez o tema da água na poesia de Camilo Pessanha”: “A ânsia de aniquilamento, que é um dos temas mais insistentes da poesia de Pessanha, poderá ser satisfeita pelo mar” (1984: 16). Em conclusão, este naufrágio a que fui fazendo menção, o abismar-se, é uma das diversas vias de atingir a morte. Morte esta que em certo momento surge como uma tentativa de evasão de Camilo Pessanha do absurdo da finitude da condição humana através do naufrágio e da ruína como pontos de partida para uma outra existência (cf. “Singra o navio. Sob água clara”). Contudo, no poema “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”, como já referi anteriormente, temos uma postura do sujeito poético que não deixa qualquer margem à esperança, desejando unicamente o aniquilamento. O desejo de morte nesse mesmo sentido pode ser complementado pelo contributo de João Camilo, que se referiu à existência e à morte na obra poética de Camilo Pessanha da seguinte forma: a existência, dado que tudo está destinado a desaparecer, acaba por impor-se definitivamente como uma viagem ou caminho sem sentido porque sem meta definida (…). A partir destas constata– ções, o poeta é levado a desejar a morte, que põe fim às ilusões e às desilusões, que elimina todas as tensões, que restabelece um estado de equilíbrio absoluto semelhante àquele que precede a existência (1985: 68). Não nos podemos contudo esquecer do contexto histórico-tem- poral e literário em que Camilo Pessanha se insere, dado que a sua obra a eles não é alheia, mesmo se o seu “conceito de poesia [está] desvinculado dos ditames da moda do tempo. A poesia é para ele o reflexo de um modo de ser e de viver, antes de ser a aplicação voluntária de teorias literárias ou filosóficas” (Spaggiari, 1982: 40). Todavia, e apesar de as reacções perante o momento de crise sentido no fim do século XIX terem sido diversas, houve uma resposta comum dos intelectuais da época: a fuga. É pois nesse contexto que nos surge a Clepsydra, por um lado como um testemunho da sua época, por outro como um monumento estético autónomo e de grande beleza. Bibliografia 1 – Activa 1887, “Soneto de Gelo”, in Gazeta; ed. ut.: Clepsydra, ed. de António Ba- rahona; Lisboa, Assírio & Alvim, 2003, pp. 94-5. 1893, “Ao meu coração um peso de ferro”; ed. ut.: ibidem, pp. 50-1. 1899, “Singra o navio. Sob água clara”; ed. ut.: ibidem, pp. 32-3. 1900, “Chorai arcadas”; ed. ut.: ibidem, pp. 60-1. 1916, “Eu vi a luz em um país perdido”; ed. ut.: ibidem, p. 9. 1916, “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas”; ed. ut.: ibidem, pp. 72-3. 1921, [Carta a Ana de Castro Osório]; ed. ut.: Cartas a Alberto Osório de Castro, João Baptista de Castro e Ana de Castro Osório, ed. de Maria José de Lencastre; [Lisboa], Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1984, p. 83. s/d, [Carta a Alberto Osório de Castro]; ed. ut.: ibidem, pp. 48-50. 1- Passiva BENTO, José 1984, “Outra vez o tema da água na poesia de Camilo Pessanha”, in Persona, n.º 10, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, pp. 12-16. 231 CAMILO, João 1985, “Sobre a “abulia” de Camilo Pessanha”, in Persona, n.os 11-12, Porto, Centro de Estudos Pessoanos, pp. 67-70. LEMOS, Ester de 1956, A “Clépsidra” de Camilo Pessanha, Porto, Livraria Tavares Martins. 232 LENCASTRE, Maria José de 1984, “Notas”, in Camilo Pessanha, Cartas a Alberto Osório de Castro, João Baptista de Castro e Ana de Castro Osório, [Lisboa], Imprensa Nacional – Casa da Moeda, pp. 91-117. LOPES, Óscar 1970, “Pessanha, o Quebrar dos Espelhos”, in Ler e Depois; ed. ut.: AA. VV., Homenagem a Camilo Pessanha, org. Daniel Pires; Macau, Instituto Português do Oriente / Instituto Cultural de Macau, 1990, pp. 128-136. MORÃO, Paula 2004, “Camilo Pessanha – lendo Clepsydra”, in Retratos com Sombra. António Nobre e os seus contemporâneos, Porto, Caixotim, pp. 239-251. SPAGGIARI, Barbara 1982, O Simbolismo na Obra de Camilo Pessanha, Lisboa, Instituto de Cultura e Língua Portuguesa – Ministério da Educação e das Universidades. 1. Geral BENJAMIN, Walter 1928, Ursprung des deutschen Trauerspiels; ed. ut.: Origem do Drama Trágico Alemão, Lisboa, Assírio & Alvim, 2004. BLUMENBERG, Hans 1979, Schiffruch Mit Zuschauer. Paradigma einer Daseinesmetapher; ed. ut.: Naufrágio com Espectador. Paradigma de uma metáfora da existência, Lisboa, Vega, 1990.
Hoje Macau h | Artes, Letras e IdeiasO naufrágio em Camilo Pessanha, Parte I Revista da Faculdade de Letras — Línguas e Literaturas, II Série, vol. XXIII, Porto, 2006 [2008], pp. 221-232 Ângela Carvalho angela.cf.carvalho@gmail.com [dropcap style≠’circle’]“[P[/dropcap]ara Schopenhauer] É certo que aquilo que o es- pectador vê é o próprio passado, na medida em que pôde tornar-se espectador e aprender a gostar da «sabedoria» da situação que se alheou da vida. Porém, o que ele vê encontra-se também no futuro à sua frente enquanto inevitabilidade que emerge da vida que é um mar cheio de recifes e remoinhos. Ele evita-os com cuidado e pru– dência, embora saiba que é justamente o sucesso de todo o esforço e arte de abrir caminho que o leva ao ponto em que o seu naufrágio é inevitável. Ele sabe que assim, com cada passo, ele aproxima-se do maior, total, inevi- tável e irremediável naufrágio, que navega exactamente em direcção a ele, em direcção à morte. Esta não é só o objectivo final da fadiga, ela é pior que todos os recifes que conseguimos evitar.” Hans Blumenberg, Naufrágio com Espectador (1979: 84-5) * Trabalho realizado no âmbito da disciplina “Temas de Literatura Portuguesa”, do Curso de Especialização em Ensino do Português Língua Estrangeira (ano lectivo de 2006/2007), sob a orientação do Prof. Doutor Pedro Eiras. 222 Considerando a produção poética de Camilo Pessanha e reflectin– do, em particular, sobre a mecânica do naufrágio enquanto evasão, este artigo apresenta um conjunto de hipóteses e, em alguns casos, conclusões sobre o tema. Utilizei como corpus de análise a Clepsydra na edição de António Barahona. Optei por esta edição, uma vez que respeita a de 1920, sobre a qual Camilo Pessanha se expressou do seguinte modo à sua editora Ana de Castro Osório: “não quero deixar de agradecer-lhe, penhoradissimo, a publicação da esquecida Clep– sydra e os cuidados da disposição (que é como eu proprio o faria) e da ortographia.” (1921: 83). Porque só poderá existir naufrágio onde haja viagem marítima, começo por considerar que a vida é apresentada enquanto viagem no “Soneto de Gelo” (1887: 94-5), desde que aceitemos que, na primeira estrofe, “berço” possa ser entendido como “barco”. Para essa interpre- tação abona o facto de encontrarmos ao longo do poema vocábulos que se relacionam com o tópico do marítimo (“farol”, “batel”, “lenho” e “afundir”). Esta metáfora já tinha sido dada a lume anteriormente, sendo que “na visão de Pascal [, a] metáfora do embarque contém a sugestão de que a vida significa que se está já no mar alto, onde, para além de salvação ou declínio, não há qualquer solução, não há qualquer reserva” (Blumenberg, 1979: 33). À semelhança de Pascal, também para Pessanha não há “salvação”, sendo o naufrágio a única realidade. Para o poeta, o naufrágio tanto pode ser desejado como indesejado, sendo ainda visto como simples inevitabilidade, como tentarei explicitar de seguida. No poema “Ao meu coração um peso de ferro” (1893: 50-1), a morte por afogamento surge como desejável nos três últimos versos Ð (“E um lenço bordado… Esse hei-de o levar,/ Que é para o molhar na água salgada/ No dia em que enfim deixar de chorar…”) –, podendo até ser entendida como um projecto suicida. Essa ideia está presente já na primeira estrofe e nos vv. 7-8 da mesma composição poética: Ao meu coração um peso de ferro Eu hei-de prender na volta do mar. Ao meu coração um peso de ferro… Lançá-lo ao mar. (…) Marujos, erguei o cofre pesado, Lançai-o ao mar. O desejo de morte equivale a um desejo de anulação, nomeada- mente das “penas do amor” que acompanham o sujeito poético no seu exílio. Embora em nenhum momento do poema seja dito que o enunciador está a vivenciar uma experiência de exílio, podemos adi– vinhá-lo com base na circunstância de o sujeito poético realizar uma viagem marítima e levar consigo as “penas do amor”. De acordo com o enunciador, o que distingue o exilado dos outros seres humanos é o facto de para aqueles as “penas do amor” serem nefastas, notando-se em alguns versos de Pessanha um mau presságio quanto às conse- quências que essas penas podem trazer: “Quem vai embarcar, que vai degredado…/ As penas do amor não queira levar…” (vv. 5-6). Nisto apoio a convicção de que o enunciador se encontra discursivamente em contexto de exílio, pois no caso do sujeito de “Ao meu coração um peso de ferro” percebemos que são precisamente essas penas que o conduzem ao desejo de morte – uma morte como evasão, como fuga à dor e à existência. Esta ideia é corroborada por duas passagens de cartas de Camilo Pessanha. A primeira é endereçada a Alberto Osório de Castro: “Sabe que eu tambem ando por esses mares fóra sempre a escolher o melhor logar da minha sepultura?// No fundo do mar?” (s/d: 48). A outra foi dirigida a Carlos Amaro e escrita a bordo do navio que levou o poeta de regresso a Macau em 1909: 223 Sabe o que eu agora desejaria? Não chegar ao meu sítio nunca… Ir assim, a bordo de um navio, sem destino. Veja como o destino varia. Nos últimos dias de Lisboa, o terror que verdadeiramente me oprimia era este mar morto da viagem, entre dois abismos tão distantes um do outro, e no fundo de cada um dos quais a minha alma perpetuamente agoniza (cit. in Lencastre, 1984: 114). 224 É o que Barbara Spaggiari já tinha observado, referindo que “Deste modo, nas suas poesias, ora deseja vaguear para sempre no mar sem uma meta, ora anseia, pelo contrário, por um naufrágio” (1982: 35). Nos anteriores períodos epistolares, vemos também reafirmada a ideia de que o sujeito de enunciação se encontra em exílio permanente. A morte figurada como indesejada está patente no “Soneto de Gelo”, onde o sujeito poético declara abertamente querer um “resto de batel”, um “lenho” que lhe permita não se “afundir”. Estas tábuas de salvação aparecem-nos como metáfora da fé, ausente porque de- sejada, inatingida porque procurada: Ingénuo sonhador – as crenças d’oiro Não as vás derruir, deixa o destino Levar-te no teu berço de bambino, Porque podes perder esse tesoiro. Tens na crença um farol. Nem o procuras, Mas bem o vês luzir sobre o infinito!… E o homem que pensou, – foi um precito, Buscando a luz em vão – sempre às escuras. (Pessanha, 1887: 94-5, vv. 1-8) Este poema apresenta uma dicotomia entre a busca activa da fé e a quietude dos que já a possuem. No que diz respeito à primeira, conduzirá à perda de valiosas crenças, no caso de estas já existirem, ou à condenação ao não alcance das mesmas, no caso de estas ainda não existirem. A acção amaldiçoa também o homem que ousou pensar, “buscando a luz em vão – sempre às escuras”. Este sujeito, que deseja a fé que não tem, está condenado a naufragar, embora faça tudo para o evitar. A quietude dos que já possuem a fé é apresentada como única solução para não “perder esse tesoiro”. O “ingénuo sonhador” deverá unicamente deixar-se levar pelo destino, vida fora, se não quiser perder o farol que luz sobre o infinito. O “ingénuo sonhador” não procura essa luz e é por isso mesmo que a vê luzir. No poema “Singra o navio. Sob a água clara” (1899: 32-3), o nau- frágio surge como a constatação de um facto, analisado consciente e metodicamente, revelando-se como uma inevitabilidade. O sujeito poético distancia-se desde o início da imagem que observa: “– Impe– cável figura peregrina,/ A distância sem fim que nos separa!” (vv. 3-4). Essa “impecável figura peregrina” está “[funda], sob água plana” (v. 8), a uma “distância sem fim que [os] separa”, o que está de acordo com a observação de Ester Lemos, segundo a qual “O olhar de Pessanha não parece abranger a realidade em superfície, considerá-la de cima. O mar, de que tanto se fala na «Clepsidra», raramente é olhado na extensão: mais fácil é perscrutar-se-lhe o fundo.” (1956: 25). Esta ideia de olhar em profundidade surge–nos também no poema “Chorai arcadas” (1900: 60-1), na terceira estrofe: “Se se debruçam,/ Que sorvedouro!…” (vv. 14-5). Chegamos assim a uma outra ideia, a de sorvedouro, de abismo, causa de todo o naufrágio e consequente ruína. Em “Singra o navio. Sob a água clara” esta profundidade de abismo é sondada, reconstruída, comparada. Devemos todavia recordar a advertência final do sujeito poético – “Ó cores virtuais que jazeis subterrâneas” (1916: 72-3) –, como se nesse último poema quisesse extinguir algum vestígio de esperança que pudesse ter deixado em textos anteriores: “Abortos que pendeis as frontes cor de cidra, (…)// Cessai de cogitar, o abysmo não sondeis.// (…) Adormecei. Não sus- pireis. Não respireis.” (vv. 6; 10; 15). É a afirmação taxativa da ânsia de aniquilamento, já enunciada na composição poética com que abre 225 226 Clepsydra e em que se manifesta claramente o desejo de evasão, si- lenciosa, por anulação: “Oh! Quem pudesse deslizar sem ruído!/ No chão sumir-se, como faz um verme…” (1916: 9; vv. 3-4). Também no poema “Ao meu coração um peso de ferro” essa ideia tinha já sido anunciada, ainda que de forma mais atenuada. No fundo, trata-se da- quilo a que Barbara Spaggiari se referiu nestes termos: “O passado está «povoado de saudades», o futuro escorre lentamente «para o oceano do Aniquilamento». Tal condição existencial do homem não pode ser senão imutável” (1982: 45). A imagem observada, encerrada na profundidade da sepultura marítima, é uma imagem de ruínas da vivência humana (“Seixinhos da mais alva porcelana”) (v. 5), ruínas do mundo natural (“Conchinhas tenuemente cor de rosa”) (v. 6), que – à força da análise consciente do sujeito poético (“E a vista sonda, reconstrui, compara”) (v. 9) – se reve– lam uma imagem ilusória: “– Ó fúlgida visão, linda mentira!” (v.11). O sujeito poético desfaz o seu engano e com ele faz a macabra descoberta de que afinal estava perante vestígios humanos. A sua percepção traiu–o inicialmente, levando–o a confundir o cor–de-rosa das “unhinhas” com o das “conchinhas” e a brancura dos “dentinhos” com a dos “seixinhos”. Mas tê–lo–ia realmente traído a sua percepção ou estamos perante uma “ars inveniendi [arte da invenção]” (Benjamin, 1928: 194) por parte do sujeito poético? Vai também nesse sentido aquilo que Óscar Lopes refere em “Pessanha, o Quebrar dos Espelhos”: Pessanha sabe, de um saber técnico, operativo, oficinal, de poeta, que a poesia não se limita a exprimir uma realidade pre- viamente definida; pelo contrário, opõe-se às estruturas do senso comum, convidando–nos a um salto em direcção a novas estruturas de compreensão e valor. (1970: 130) (continua)
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasTrabalho de Casa 20/08/2017 [dropcap style≠’circle’]I[/dropcap]a-se a banhos. Quando se vive nos trópicos isso deixa de fazer sentido. E então, por alternativa, vai-se a Macau. Será o meu caso. Eis-me (quase) de véspera. Inquieto por ir a Macau. A Marlene Dietrich já não deambula pelas imediações e dizem que quem viaja leva consigo as suas paisagens como dantes os viajantes costumavam levar consigo os seus penicos de porcelana. Falta-me o penico. Bom, há as sombras chinesas. Gosto de sombras, sobretudo ao vento. Ocorre-me um episódio que contou o John Cage. Na sua infância, houve um amigo do pai que, findo o jantar em família, à despedida lhe desarrumou o cabelo, enquanto lhe anunciava, Rapaz, falei com os teus pais e, como no próximo sábado vou à Grécia e não me apetece ir sozinho, levo-te. Mas os gregos detestam quem lá vai e está desinformado, tens uma semana, vê o que podes fazer. Cage correu para a biblioteca do bairro. Devorou o Homero, O Banquete e o Timeu do Platão, leu o Hesiodo e uma História da Grécia. No sábado acordou às cinco da manhã e fez a sua mala. Remoeu uma ode de Píndaro, que havia decorado, para o caso de lhe ser perguntado. Ainda hoje poderia esperar sentado. O amigo do pai não apareceu. Em casa ninguém pronunciou uma sílaba para abordar a banhada, o homem ou a viagem. Sentiu-se ludibriado. Ou pior, devastado. Porque entretanto tinha lido o Homero e nunca mais foi o mesmo. Isto é que é pedagogia! Pus-me eu também a ler sobre a estética Taoista. Estou tramado. Quando o Camilo Pessanha por lá se imiscuía – entre esteiras de ópio e a fala em papel de arroz de uma rapariga com nome de águia – Macau, como todas as províncias, devia ser madrasta, no sentido em que arruinava as liberdades. Há duas formas de arruinar a liberdade. Por coacção da lei e dos costumes, sob o ritmo dos não-ditos, ou quando se constata que executar o nosso livre arbítrio não muda nada, ou muito pouco. Aí, um tipo, como dizia o Pessoa, “liberta-se para dentro.” Foi, cheira-me, o caso de Pessanha. Libertou-se em primeiro lugar do corvo do tempo. O tempo é um corvo que bebe o nosso sangue e se alimenta das escórias que nos navegam as vísceras. E bica e bica até romper os tecidos. Porém, na China, Pessanha aprenderá que afinal a vida é consumação e retorno. Mudam-se as aparências mas não o miolo de que são feitas. Pelo que podemos candidatar-nos a beber igualmente nas veias do tempo, sugando-lhe o seu extremo vagar. Aí o tempo liberta-nos, vai incomodar outros. Não sei se é isso que irei fazer a Macau. Mas não falo cantonês e o meu inglês é a gaguez do hamster que encontrou o urso polar. E gostaria de lá ter ido com menos cabelos brancos e menos apegado à Circe. Macau, la petite, espera-me. 21/08/2017 Fazendo o trabalhinho de casa para aterrar em Macau com um olhar menos esbugalhado do que é costume vi-me embutido na paisagem que descrevo no soneto: A gorda ou o combate de estéticas: “Cada pernoca vale o velame de um iate / inflado em carne por ser nela o vento interior /aos tecidos. O tom de pele é mate. /É o namorado quem recheia // com chocolate o montanhoso pico /do sorvete, e, a avaliar p’lo entusiasmo /com que lhe enche de ideogramas/ a baunilha, aprecia. ‘Tico-Tico sardanico… ‘, //mimoseia o aventureiro. Não caberia/esta imperiosa coxa num haiku japonês /escrito por sindico e que, delicado, só sugira… //Ou traria à liça embondeiros, tsunamis, /e a onda de Hokusai, que, pasma, mira/o prenhe refego do Índico? “ 22/08/2017 A propósito de chegar aos lugares tarde, recordo outra história. A de Marcel Conche, o grande especialista francês dos pré-socráticos. Julgava-se o erudito aos setentas e muitos aposentado. E então começa a receber cartas de uma jovem de trinta, da Sardenha, a Emily. As cartas eram atordoadoras, de prolixas e belas. Propunha-se a jovem a examinar com ele os subterrâneos vasos comunicantes entre os pré-socráticos, os sufis e os taoistas. E como não queria perder tempo aterrou em Paris. Foi uma ventania que fez soar todos os carrilhões adormecidos na líbido embalsamada de Marcel. Em dois meses viu-se o filósofo várias vezes nu (salvo seja) e arrastado pela lotaria do pensamento. A sageza foi à viola, tudo o que ele pensava comandar. Num ápice, intempestivamente como havia chegado ela partiu. Deixando o filósofo a nu (salvo seja) com as suas insuficiências. Oh pá, se o objecto do desejo se escapuliu entre os buracos da chuva há que fazer das tripas coração! Foi o que fez o pobre Marcel. A dobrar os oitenta foi aprender chinês e aos oitenta e cinco lançou uma tradução mais comentários ao Tao te King, de Lao Tse. Parece que o livro é notável. Acho esta história um exemplo. Era esta a coragem que desejava para mim. Mas temo que o meu coração não passe de um fruto, não seja uma tripa. 23/08/2017 Transcrevo: “o confucionismo parte do pressuposto de que o homem é bom. Pelo contrário, no Ocidente, hoje, toda a organização social se baseia no pressuposto de que o homem é mau: homo homini lupus. Uma profecia que se autoconfirma. Quando as relações humanas se estabelecem pensando que o homem é mau, o homem acaba por sê-lo… “. Sou interrompido pela minha filha que há dois dias trauteia em voz alta, sem piedade (ensaia para algum Got Talent) , uma canção dos Abba. Infatigável. Calma, o homem é bom, não há tensões entre o homem e a sua incógnita.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasLâminas em busca de coração Horta Seca, Lisboa, 31 Julho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]contece com estranha frequência que uns dias se fazem buraco negro e sorvem o à volta. Julho baralhou-me os dias, os calendários, as agendas. De que servirá um diário, se os passos da escrita andarem à volta dos mesmos dias? Jeanne Moreau morreu, mas continuará a flâner, a deambular entre carros, no avesso das montras, à chuva, na pista de dança, de novo em cidade outra, nas teias de aranha do desejo, no cabaret fantasmagórico. Jeanne será mais da luz, doravante. Arrume-se isso no óbvio, aceitemos a graça de viver em tempos de fluxos ininterruptos e acessíveis. Revisitaremos as imagens sempre que houver necessidade de dar de beber à melancolia. Avancemos oceano dentro, o da voz. Jeanne dizia poesia, de Vinicius e de Genet. Jeanne cantava Duras e Norge, poeta du pays plat, que fará link inesperado a entrada mais adiante. E que bem cantava e dizia a morte, le vrai scandale. Os buracos negros absorvem de nós maturidades e deixam-nos na seca adolescência, indecisos apenas com vontade de ir, escusado será dizer que sem para onde ou por quê. Vai daí gravei cortante cassette com a playlist para riscos de ponta e mola no mapa. Acerte-se princípios, desde que difusos, com Le Blues Indolent, de Cyrus Bassiak, aqui sem o grão da voz, mas oferecendo sensualidades de allumeuse. «Je suis indolente, mes yeux sont vagues, vagues, vagues/ Et je balance mes hanches vaguement/ Mes lèvres remuent, fardées de mots si vagues, vagues/ Les passants hésitent en me croissant/ Le temps maudit toujours les presses/ Le vent si lent pour celle qui attend/ Le temps me berce de paresse/ Alors je chante sans fin ce vague chant». Os passeantes cruzam-na, apesar da hesitação. O tempo amaldiçoa os apressados. Para onde seguir se nos perdemos já, se somos sem paisagem ou amor. Sigamos imóveis com India Song, de Marguerite Duras, hino dos sem rumo. «Chanson,/ Toi qui ne veux rien dire/ Toi qui me parles d’elle/ Et toi qui me dis tout/ Ô, toi,/ Que nous dansions ensemble/ Toi qui me parlais d’elle/ D’elle qui te chantait/ Toi qui me parlais/ d’elle/ De son nom oublié/ De son corps, de mon corps/ De cet amour là/ De cet amour mort.» A canção que nada quer dizer diz afinal tudo e na voz habitam já as profundezas. Anda por aqui desejo e morte. Hesito. Devia talvez ter saltado antes para a Chanson a tuer, de Norge, onde noto alegria infantil no jogo das facas que desemboca em frieza de estátua, aspirando a homicídios perfeitos. «Plante ce couteau, minette/ Mais droit au coeur s’il te plaît/ La besogne à moitié faite/ Et les meurtres incomplets/ Font horreur à l’âme honnête/ Qui n’aspire qu’au parfait/ Qui n’aspire qu’au parfait/ Parfait, parfait, parfait». A lâmina procura um coração ao ritmo de chansonnette o mesmo com a noite esquecerá o crime. É chegada a hora de Genet, em tom esgaçado e pesado, sem perder a clareza da folha da navalha: «Rocher de granit noir sur le tapis de laine/ Une main sur sa hanche, écoute-le marcher/ Marche vers le soleil de son corps sans péché/ Et t’allonge tranquille/ Au bord de sa Fontaine». Granito sobre lã, amor que fere. Espelho desse outro, que Jeanne sussurra em francês sincopado, e aqui espraio no original de Vinicius: «Oh, minha amada/ Que os olhos teus// São cais noturnos/ Cheios de adeus/ São docas mansas/ Trilhando luzes/ Que brilham longe/ Longe nos breus// Oh, minha amada/ Que olhos os teus// Quanto mistério/ Nos olhos teus/ Quantos saveiros/ Quantos navios/ Quantos naufrágios/ Nos olhos teus». Vai longa a caminhada, por décadas e sítios de nunca ficar. Não precisamos de final, sendo a vida cabaré, outro número se fará súbito. Chamemos Oscar Wilde, mestre de conclusões, para anunciar o essencial em colorido arrastado e espesso, uma prece, um apelo. Uma pergunta ecoa (a imagem é de Querelle, o filme de Rainer Werner Fassbinder): onde vais? «Yet each man kills the thing he loves,/ By each let this be heard,/ Some do it with a bitter look,/ Some with a flattering word,/ The coward does it with a kiss,/ The brave man with a sword!/ Some kill their love when they are young,/ And some when they are old;/ Some strangle with the hands of Lust,/ Some with the hands of Gold:/ The kindest use a knife, because/ The dead so soon grow cold./ Some love too little, some too long,/ Some sell, and others buy;/ Some do the deed with many tears,/ And some without a sigh:/ For each man kills the thing he loves,/ Yet each man does not die.» Horta Seca, Lisboa, 12 Agosto Vão surgindo reacções, pouco menos que entusiásticas, ao início da publicação das Obras Completas de Fernanda Botelho, que iniciámos com «Esta Noite Sonhei com Brueghel». Ansiávamos por este momento, que circunstâncias várias nos fizeram adiar muito para além do razoável. Isto apesar do apoio incondicional da família, sobretudo da Joana [Botelho], a neta que assumiu a tarefa de avivar memórias, organizar espólio, recuperar a casa da Vermelha, convocar novos leitores, enfim, um infindável número de tarefas que tornam exemplar o tratamento que vai dando à obra. Sabemos bem que as famílias se comportam muitas vezes como se estivessem em contos do Valério [Romão], algures entre a indiferença alarve e a cupidez olímpica. Também a Paula Morão, e o seu Centro de Estudos Comparatistas, se juntou a nós entusiasticamente no afã de trazer à tona uma voz oriunda das profundezas, mas que não precisa de nelas ser enterrada. Muitas razões justificaram o começo por aqui, pois nada nos obrigava à cronologia habitual. O forte carácter autobiográfico, as correspondências com a imagem, no caso a pintura de Brueghel, a reflexão sobre a escrita, a lúdica complexidade da estrutura, o recorte a navalha dos protagonistas, as cidades (belgas) como personagens, o olhar teatral sobre o estranho mundo dos afectos, a gloriosa potência do desejo, o desenho do feminino, a luxúria da linguagem e um uso raro dos diálogos, enfim, o conjunto serve bem de introdução a uma obra cheia de recantos, tantas vezes obscuros e desafiantes. Retiro mais gozo desta leitura, confesso, por culpa do veneno. A Isabel Lucas, no Público, afinou pelo diapasão da ironia, que não deixa de ser um dos cimentos, mas creio que a Fernanda Botelho afia um pouco mais o olhar e a palavra. Vai um exemplo? «A gente de Brueghel ostenta com desfaçatez a sua vocação primária para o vício incorrupto, tanto quanto para um casto e regozijado amor à terra pródiga — mas que significa isto, afinal? Talvez signifique desperdício, muito simplesmente. Muito simplesmente desperdício! Mas onde viveu esta gente, em que galáxia, em que mundo? Confesso que aquele homem gordo de chapéu à banda, com pernas em forma de presuntos esticados e mangas enfoladas para arejar o suor, confesso que me perturba, a mim, que fossilizei as minhas aventuras mentais em tipos escorridos, apertados em blue-jeans e com barba mal despontada. Detesto aquele homem gordo, mas ele perturba-me. Não sei o que pense dele, certamente nada de lisonjeiro, porém profundamente marcante. Detesto-o (ou assim o julgo), mas ele excita-me, ou talvez seja apenas fascínio o que sinto, declaradamente ao nível mais baixo da minha vileza humana.»
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO realizador chinês mais corajoso de sempre: Parte I [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hama-se Wang Bing e poucos o conhecem. Muitos dos realizadores de documentários começaram como fotógrafos, Wang não é excepção. Diplomado pelo Departamento de Fotografia da Academia de Belas Artes Lu Xun, trabalhou para produções televisivas até 1999, altura em que filmou o seu primeiro documentário Tiexi Qu, West of the Tracks. Tiexi é um imenso complexo industrial situado no Nordeste da China, na província de Shenyang. Construído durante a ocupação japonesa, foi restaurado com o apoio dos soviéticos após a 2ª`Guerra. Era o maior centro de manufactura do país. O período entre o pós-guerra e os anos 80 foi florescente, as fábricas no seu conjunto empregavam mais de um milhão de trabalhadores, mas, à semelhança de outras indústrias geridas pelo Estado, começou a colapsar a partir do início dos anos 90. O documentário de Wang Bing mostra-nos a inevitável morte lenta do obsoleto sistema de manufactura. Bing filmou detalhadamente, entre 1999 e 2001, as vidas dos últimos operários, uma classe a quem foi prometida a glória durante a revolução chinesa. Esmagados pelas mudanças económicas, estes operários surgem como heróis comoventes neste épico moderno, que tem a duração total de 551 minutos, mais de 9 horas! Reconhecido como “um dos melhores documentários chineses de sempre”, o filme é um retrato hipnotizante de uma sociedade chinesa em transição. Levou três anos para ser filmado. Devido à sua longa duração, está dividido em três partes. Parte 1 Ferrugem (244 minutos) A câmara capta os derradeiros trabalhadores da fundição que laboram no único forno que resta, durante as suas actividades diárias. A falência parece ser inevitável e, desde o interior da fábrica até aos espaços de convívio, Wang Bing traça um retrato fascinante destas vidas moribundas. Parte 2 Os Remanescentes (178 minutos) Rainbow Row é uma favela construída em 1930, para albergar os trabalhadores do distrito de Tie Xi. Esta área era conhecida como a Cova das Criadas. Actualmente os seus residentes enfrentam o desemprego e salários em atraso. A câmara acompanha o dia a dia de algumas pessoas; um jovem que após uma extração da Lotaria, procura bilhetes eventualmente premiados que possam ter caído ao chão; lixo e neve empilhados nas ruas geladas; jovens no mercado Cisne Feliz a pensar em esquemas para arranjar dinheiro e namoradas; crianças a recolher latas enquanto uma idosa assa tofu; jogadores de mah-jong que no Verão se reúnem no exterior das suas casas … Entretanto ficamos a saber que o bairro vai ser demolido para dar lugar a um condomínio privado. Toda a gente vai ter de sair dentro de um mês. Gradualmente o bairro esvazia-se, à medida que a neve o vai cobrindo. Parte 3 Os Carris (132 minutos) Um sistema de carris proporciona a circulação de vagões que transportam matérias primas e bens de consumo de, e para, Shenyang. A neve que não pára de cair e o fumo eterno criam uma atmosfera opressiva. Os sinais de vida são escassos à medida que o comboio avança através deste labirinto de fábricas praticamente abandonadas. Os trabalhadores cumprem as suas funções de forma mecânica, matando o tempo com mexericos, cartas e cigarros. Uma das suas maiores preocupações é armazenar carvão para poderem aquecer as salas geladas. Toda a gente teme o futuro, embora a Primavera tenha trazido algum alívio depois do penoso Inverno. O Outono sucede ao Verão. Em breve estamos na noite de Fim do Ano. Um pequeno fogo preso é ateado junto à casa e, lá dentro, os amigos bebem e conversam sobre amor e casamento. E toda a gente ajuda a fazer uma tachada de dumplings. West of the Tracks deu início a uma nova era, a de um cinema lento e intimista. Quatro anos mais tarde, em 2005, Wang Bing filmou o documentário He Fengming. Mas esse fica para a próxima, ou seja, a Parte II desta crónica.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO Primo Basílio de Eça de Queirós [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]uísa e Juliana (segunda parte) O que nos traz aqui é a Luísa e a Juliana, a senhora e a sua criada. Em sentido hegeliano, no início do romance ambas são escravas, pois ambas não têm consciência de si. Mas com o avançar do romance, com o avançar da trama, com a queda de Luísa isso não vai ser assim. Mas comecemos pelo princípio: “Luísa espreguiçou-se. Que seca ter de se ir vestir! Desejaria estar numa banheira de mármore cor-de-rosa, em água tépida, perfumada, e adormecer! O numa rede de seda, com as janelas cerradas, embalar-se, ouvindo música! Sacudiu a chinelinha; esteve a olhar muito amorosamente o seu pé pequeno, branco como leite, com veias azuis, pensando numa infinidade de coisinhas: – em meias de seda que queria comprar, no farnel que faria a Jorge para a jornada, em três guardanapos que a lavadeira perdera… Tornou a espreguiçar-se. E saltando na ponta do pé descalço, foi buscar ao aparador por detrás de uma compota um livro um pouco enxovalhado, veio estender-se na voltaire, quase deitada, e, com o gesto acariciador e amoroso dos dedos sobre a orelha, começou a ler, toda interessada. Era a Dama das camélias. Lia muitos romances; tinha uma assinatura, na Baixa, ao mês. Em solteira, aos dezoito anos entusiasmara-se por Walter Scott e pela Escócia; desejara então viver num daqueles castelos escoceses, que têm sobre as ogivas os brasões do clã, mobilados com arcas góticas e troféus de armas, forrados de largas tapeçarias, onde estão bordadas legendas heróicas, que o vento do lago agita e faz viver; e amara Ervandalo, Morton e lvanhoé, ternos e graves, tendo sobre o gorro a pena de águia, presa ao lado pelo cardo de Escócia de esmeraldas e diamantes.” Estas são as primeiras acções e os primeiros pensamentos de Luísa no romance, acções e pensamentos de uma mulher sem pingo de consciência de si, da sua vida, do que é a sua condição humana. “Que seca ter de se ir vestir!” diz ela para si mesma, arranjando imediatamente um périplo de diversões de modo a ir adiando o projecto de se vestir, arrastando-se pelo sofá languidamente. Lembra episódios antigos e até se entretém a imaginar o que a sua vida teria sido se tivesse casado com o seu primo, imagina o que a sua vida seria se não fosse a sua vida. Ou seja, tudo a leva para longe de si, longe da sua consciência de si. O que ela não quer é estar consigo. Prefere pensar no que nunca poderá ser do que pensar em si, do que consciencializar a sua vida, o que ela mesma é. Mas não seria necessário termos avançado tanto nas páginas do livro, embora sejam tão poucas, para entendermos isto que estamos a dizer. Lembremos a primeira frase que Luísa pronuncia no livro, em resposta à pergunta de Jorge, quando são já onze horas e depois de terem acabado de almoçar, se ela não se ia vestir: “Logo.”, isto é, mais tarde, depois, agora não. A primeira frase de Luísa é uma palavra de adiamento, de trespasse do que tem de fazer, trespasse do agora para mais tarde. E este é o modo como vive todas as variantes de sua vida. A sua vida é um eterno adiamento, a sua vida fica para depois, logo. Custa-lhe até tomar banho. Há, contudo, um momento claríssimo no romance onde podemos ver que Luísa mudou, que Luísa começou a ter consciência de si. Mas antes de mostrarmos esse momento, mostremos uma das reuniões sociais e culturais em casa de Luísa, antes da ruptura operada na sua consciência. O episódio começa com o começo do capítulo dois e fecha-o. Veja-se apenas o início, que lhe dá bem o tom: “Aos domingos à noite havia em casa de Jorge uma pequena reunião, uma cavaqueira, na sala, em redor do velho candeeiro de porcelana cor-de-rosa. Vinham apenas os íntimos. O “Engenheiro”, como se dizia na rua, vivia muito ao seu canto, sem visitas. Tomava-se chá, palrava-se. Era um pouco à estudante. Luísa fazia croché, Jorge cachimbava.” Não custa imaginar o desinteresse completo, a falta de vida neste quadro. Pelo contrário, veja-se uma dessas mesmas reuniões, após a consciência de si de Luísa, depois de se ter tornado criada da usa criada. “Que alívio para Luísa quando eles saíram! O que ela sofrera, lá por dentro, toda aquela noite! Que maçadores, que idiotas! – E a outra sem vir! Oh, que vida a sua!” Já não é a mulher do croché, que vamos aqui encontrar, mas aquela que luta pela sua própria vida, isto é, que tem muito bem consciência de que a sua vida vai mal. Esta consciência dá-lhe consciência da sua condição humana, condição que sempre desprezara, que sempre tudo fizera para não vê-la. A “outra” é a Juliana a criada sua senhora, que tinha ido ao teatro. A verdade é que ainda não se entende de modo é que a consciência de si e a dialéctica do senhor e do escravo têm a ver com Juliana. Sim, é certo que através desta, da acção desta ao transformar sua senhora em sua criada, Luísa acaba finalmente por ter consciência de si, de se tornar sua própria senhora. É uma bela ironia esta que Eça nos arranjou: ao tornar-se escrava de Juliana, Luísa torna-se senhora de si, ao tornar-se escrava, liberta-se. Mas nem esta pérola, nem a consciência de si por parte de Luísa mostram qualquer grandeza ao personagem Juliana, de modo a fazer dela um deuterogonista trágico, como começamos por afirmar no início. Falta qualquer coisa para mostrarmos a verdadeira dimensão do personagem Juliana e justificar a nossa extensa citação anterior acerca dele. O que está em causa na consciência de si, como vimos anteriormente, é a superação da condição natural, da condição animal do humano, que seria então a consciência de si para si. Assim, deixar a animalidade é caminhar no sentido de uma consciência senhora de si. Mas não é possível uma consciência ser senhora de si ocupando-se a toda a hora das necessidades biológicas, vivendo no mundo sensual e animal o tempo todo. A guerra de Juliana com Luísa é a guerra do reconhecimento de si própria, a guerra da supressão de si mesma, enquanto consciência, através do emprego do seu tempo, de si, em actividades outras que não as biológicas e de conservação da vida. O que está aqui em causa, nesta guerra doméstica, e que é também a guerra de Eça neste livro, é a necessidade do humano em viver para além da vida, isto é, a necessidade do humano em libertar-se da vida do plano natural, a necessidade do humano em libertar-se da vida. Ou seja, o que Eça nos mostra é que se não nos libertarmos da vida não vale a pena viver. Luísa e Juliana, no início do romance, são ambas prisioneiras da vida, prisioneiras do plano sensual, animal. Juliana desde sempre sentiu em si uma necessidade de ser mais do que era, como pudemos ver pela descrição alargada de Eça, e sempre teve dificuldade em aceitar a sua condição de criada. Juliana queria ser mais do que era e para ser mais tinha de ter tempo, tempo para si, para actividades outras que não as da criada presa à vida. Juliana ao querer ser mais do que é, traz já em si um ser mais do que é, traz já em si um horizonte de ser, ela mesma, mais do que ela mesma é. Não se trata aqui de querer ser mais no sentido da vida, de querer ser mais para ter mais bens, naquele sentido em que tantas vezes ouvimos dizer “eu ainda vou ser alguém na vida”. Sem dúvida, quem diz isso poderá vir a ser alguém na vida, mas não será certamente um senhor, uma consciência de si e para si. Pois o que importa a essa consciência que quer ser alguém na vida é a vida, é fugir da morte. A chantagem de Juliana a Luísa é a oportunidade que ela entrevê de modo a ter uma segurança financeira que lhe permitisse fugir da vida, não ter medo da morte; que lhe permitisse, por exemplo, ir ao teatro. Juliana não quer ser alguém na vida, quer ir ao teatro, que é muito diferente. Juliana quer ser uma senhora, uma consciência de si e para si (não que ir ao teatro, de per si, resulte nisso, trata-se apenas de um exemplo de contraposição aos que querem ser alguém na vida e serem reconhecidos pelos objectos enquanto coisas). Há aqui, no personagem Juliana, uma violenta posição social e política por parte de Eça de Queirós. No fundo, ele mostra-nos duas coisas: por um lado, ninguém é culpado de não ser ninguém no mundo (não na vida), de não ser uma consciência de si e para si, pois há os deuses, que estão acima de nós, que nos fazem nascer nesta família ao invés da outra, com estas características, ao invés de outras, e também os deuses sociais que nos obrigam a um comportamento determinado por parte de cada um, consoante o papel dele (e ao tempo do romance, ser mulher era muito diferente de ser homem); mas por outro lado, aqueles a quem os deuses mais favoreceram acabam, muitas vezes, por não querer ser ninguém no mundo. Este não querer ser ninguém no mundo, tendo tudo para poder ser, é o que cabe a Luísa. Luísa, que tinha tempo para não temer a morte, para libertar-se da vida, para ser alguém no mundo, vivia presa num marasmo de sensualidade. Mas com a inversão dos papéis entre ela e sua criada, embora não completamente, elas passam a querer ultrapassar-se a si mesmas, tendo um ganho de consciência de si que antes não tinham. A luta delas é a luta para serem alguém, no mundo. Que ambas (e é discutível) tenham morrido escravas, segundo o ponto de vista hegeliano, não retira em nada o que está em causa neste livro de Eça, através da guerra entre Luísa e Juliana: a necessidade de se tomar consciência de si e para si, a necessidade de se ultrapassar. Luísa passa a ver-se a si mesma como um objecto de consciência, passa a pensar na sua vida, não na vida, mas na sua vida, isto é, ela passa a concentrar-se naquilo que é; e aquilo que é, obviamente, nãos e resume á vida, ao sensorial, ao sensual, onde ela habita usualmente. A necessidade de Juliana de se ultrapassar a si mesma, conduz Luísa a fazer o mesmo por si. Estamos então, aqui, num dos centros gravíticos desta obra magna de Eça de Queirós: a guerra de duas mulheres por serem alguém no mundo.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasComo fazer um escritor [dropcap style≠’circle’]“C[/dropcap]omo é que escreve” é uma das clássicas perguntas que fazem a um escritor. Com isso querem saber, por exemplo, se o sujeito escreve de roupão, como Balzac, ou se a inspiração acontece ao modo de uma possessão espírita pela qual um tipo revira os olhos e desata numa fúria criadora até que, acabando por sacudir a presença alheia, descobre ter escrito um conto. Ninguém ou quase ninguém pergunta “porque é que escreve?”, temendo porventura que o carácter aparentemente óbvio da pergunta desmotive o entrevistado. Na realidade, e ater-me-ei à minha experiência, a escrita começa pela leitura. E a leitura acontece porque uma criança sente uma perplexidade inexplicável perante o mundo e os elementos que o compõem. Os adultos, na maior parte das vezes incapazes de fazerem as perguntas que as crianças fazem, quanto mais as responderem, fingem não ouvir e, em surdina, confortam-se uns aos outros com a ideia de aquela curiosidade desconcertante ser apenas uma fase tardia da idade dos porquês. As outras crianças não estão nem aí para as crises existenciais alheias e o pequeno, em défice de competências sociais desde sempre, ora é ignorado ora é alvo de chacota por parte dos seus colegas. É insultado nos corredores, fazem-no tropeçar quando se dirige para uma mesa solitária onde possa comer o almoço em paz e é, invariavelmente, o último a ser escolhido para qualquer tipo de actividade de grupo que envolva a criação de equipas. Na escola primária, é mais fácil ser gordo que geek. De certo modo, ser ignorado é reconfortante. Escusa-se travar diariamente a luta pela aceitação. Os livros são compreensivos, pacientes, inteligíveis, ao contrário dos humanos, e têm a vantagem incomparável de os podermos interromper quando quisermos. Não se zangam, não pedem explicações. Estão ali, disponíveis e generosos, repletos de mundos muito maiores do que o mundo. São seguros. E salvam. Os livros salvam as crianças solitárias e estranhas. Quando as crianças crescem e desaguam aos berros na puberdade, os códigos sociais, por via da sexualidade e da sua gramática específica, complicam-se ainda mais. O geek, com muita sorte, passa na maior parte das vezes despercebido. Se for bafejado por uma qualquer lotaria cósmica, é capaz de conhecer algumas miúdas e alguns miúdos introvertidos e socialmente incompetentes e com eles constituir um grupinho silencioso através do qual se evita, pelo menos, almoçar sempre sozinho. A literatura, como a maior parte das obsessões, germina não raramente de uma falha, de uma tangente com a sociedade. De um refúgio numa zona de conforto onde não existem as distrações da convivência. Mais do que uma escolha ditada por qualquer tipo de talento inato – sem com isso colocar em causa a existência do talento, embora seja assunto para outra vindima – a literatura aparece na vida para redimir a própria vida. Para lhe dar um sentido, algo que as pessoas e as suas convenções são incapazes de prover. Depois torna-se um vício e, quando um sujeito dá por si, já muito mais tarde, já se esqueceu de como e porque começou a escrever, já está mais ou menos instalado na vida, constituiu e desfez família, tem dois filhos que vê fim-de-semana sim, fim-de-semana não e dá entrevistas nas quais sublinha a sua precoce predisposição para as letras. O sujeito esqueceu-se de que só entrou naquelas águas porque fugia de um fogo e, mesmo assim e involuntariamente, continua a escrever livros que podem vir a salvar crianças solitárias e estranhas.
Anabela Canas Iluminação ArtificialDe lugar em chamas [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stava ali interdita e afogueada. Quase as pontas do cabelo e aquele cheiro sem equivalência. Do medo. Da chama corrosiva e corredora de fundo em velocidade e em desígnio. Tudo numa só vez. Talvez invisível mas tanto não diferia do que o não era. Havia talvez uma força a subir sabe-se lá de que órgão e a tornar inevitável correr. Também. A partir dali e independente da quebra, a obrigar. As coisas obrigam e sem estrelas. E o corpo corre. Sobre as pedras duras as teclas ou a simples e forçosa respiração. Correr de uma maneira qualquer contra o que vem. Do que se anuncia no vir do desconhecido que vem. Nada se sabe do correr nem do porque correr. Só e apenas correr contra – sei á – o tempo. As duas e um quarto mortais em luta contra as três e vinte caladas ou as quatro e trinta e cinco inevitáveis. Sim, luta de morte contra esse tempo que ameaça antes de o ser, fazer-se pagar caro em respirações difíceis. Ou é talvez o fumo. País, lugar em chamas. Sina de estação do corpo país lugar. Ou do corpo nem país nem lugar nem sina nem sinal. Retiro metade das batidas do coração para momento de necessidade. Nunca se sabe se vêm a ser salvadoras. Mais um pouco por excesso de precaução. E fico de uma lentidão fria, olhos esgazeados, revejo todo o corpo e das palavras digo sei estarem lá para o que der e lhes der na real gana. O corpus de possíveis e impossíveis mesmo as já entornadas do caldo ígneo da hora anterior. Bichos em fuga, terras a quente e de negro árido tornadas desconhecimento de cinco e meia. Seis e dez, oito e vinte e dois e três ou quatro anos depois. O negro a entranhar-se nas camadas abaixo da pele e da terra e do futuro próximo. Tudo ardido, fodido, mesmo. Para alguns mais nada. Depois de tudo. Salvam-se os bichos, aqui, uma casa, ali, e do todo, fica muito menos. Para alguns, nada. Peguei fogo? Foi fogo posto. Avanço no corredor entre as sombras e as árvores que sobram em sombras. Avanço a meia respiração, a meia vida, a meia consciência, das meias tonalidades, nas meias sombras que sobram. Em árvores. Avanço em silêncio comigo própria a dizer baixinho talvez durma. A dizer surdamente espero que durma ainda. Já. Abrando os passos na porta e observo retendo o pouco que sobre de respiração não vá acordar o monstro que dorme ali. Em parte do que os passos me levam ali. A mim. Dorme. Afinal dorme ainda ou dorme já e dorme na respiração regular e calma de quem não faz mal. Dorme. Observo. Ou respiro. Respiro forte e lenta no momento, ali estagnado, congelado e parado, da porta quase fechada a abrir sem ruído e a escancarar para abrir os pulmões. Todo o tórax em liberdade de movimento surdo, muito silencioso e suave para a vida ficar. Assim. Um pouco para lá de adormecida entretanto. A ver. Fico ali a ver a respirar pela pele. Pelo ouvido atento e a mim. Pelo tempo. No limiar, recupero o todo do coração o todo do cérebro e do corpo sobra um todo. E do todo saio finalmente do tempo. Mas fico um momento mais de eternidade. Daquelas. A espiar o sono e no sono os registos ténues de sonhos a agitar. A estremecer o corpo. Telúricos arremedos de vida secreta e densa a querer sair pelos poros. Como se fosse pelos poros. E a respiração em sobressaltos e pequenos rugidos de dor, talvez. Depois serena por um instante de tempo não medido nem definido. O aleatório percurso pelas ondas. E respiro-o. Fico mais um pouco indefinidamente indecisa. Ali, encostada a uma ombreira que não é ombro ainda. Como chamamento disfarçado na calma no silêncio e na melancolia. Enquanto o tempo não volta ventoso e a correr. Mas vem alheado e sonolento, indiferente e esquivo. Como se não viesse. Por isso vou. Entro talvez no espaço do corpo sem autoria, sem autorização, sem assinatura, sem requerimento. Sem querer. Sem resistir. E depois vou. Um pouco mais dentro do lugar. Descalço uns sapatos cansados do fogo. Fui eu? Dispo uns trapos de sinais informes. Que teria dito nos fósforos? Nas caixas. Deito-me encostada. No abraço. Para o que vier, me encontrar assim. O que é, chama. Se para queimar que seja rápido. Indolor não pode ser.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO regresso de O Rinoceronte 08/08/2017 [dropcap style≠’circle’]B[/dropcap]ilene. Pisámos pela primeira vez a língua de areia que separa a lagoa do mar. Elas foram em expedição, à cata de tartarugas. Eu fiquei em decúbito dorsal sobre uma duna a reler O Inumano de Lyotard. Nas minhas costas o remanso da lagoa, às vistas o fragor do mar. E anoto: “o desenvolvimento impõe que se ganhe tempo. Andar depressa é esquecer depressa (…) Mas a escrita e a leitura são vagarosas, avançam para trás, na direcção da coisa desconhecida no ‘interior’. Perde-se o tempo em busca do tempo perdido. A anamnese é o antípoda, o outro, da aceleração e da abreviação. “ Chegados da falésia que ladeia esta fimbria, alguns gorjeios aveludam o ríspido grasnido das gaivotas. Eu interrogo-me se a interioridade não será apenas a actualização duma anterioridade desmembrada. A maré enche, rebenta com ímpeto as suas ondas na rocha. Uma criança foge da água aos berros, tem um calcanhar castigado pela queimadura de um tentáculo de garrafa-azul. Leio, “Estar apto para receber o que o pensamento não está preparado para pensar, é ao que devemos chamar pensar”. Estou certo de que tenham sentido estas minhas garatujas? Não. O sol estrela-se nas minhas costas. Persigo a disjunção, o pensar sem corpo enquanto elas perseguirão as tartarugas. Achá-lo-ei, achá-las-ão elas? A indeterminação é a pauta – embora lhes caiba (a elas) a maior propensão. Nesta latitude é mais plausível tropeçar – se em tartarugas ou avistar-se baleias do que eu achar vaga na gávea que permite enxergar o pensamento sem corpo. A um palmo de mim uma pequeníssima, quase invisível, aranha, suspende-se de um fio preso onde? Lamento não ter trazido a máquina para fotografar o inefável. Ao meu lado o Vítor, deitado de papo para o ar, lê o 4321 do Paul Auster, um senhor tijolo, e comenta, Este livro além de excelente exercita os músculos. Pensamento com corpo. 10/08/2017 É impossível não sorrir quando leio no Magazine desta semana: A selecção nacional de xadrez qualificou-se para o mundial da modalidade, a ter lugar na Índia, no próximo mês de Dezembro, fruto da conquista do “africano” da modalidade, recentemente realizado em Moçambique, que contou com a participação de dois países do continente africano (…) A organização contava com mais participantes mas por motivos financeiros e burocráticos, à última hora, os restantes desistiram da prova. O certame foi designado Africano Zona 4.3/ Sub-16, por equipas. Este mega evento é a primeira vez que é organizado em Moçambique e contou com juízes internacionais provenientes da Zâmbia e os restantes são de Moçambique. Com a ausência de um número considerável de países, o certame resumiu-se a dois países nomeadamente, Moçambique e Suazilândia. Foram divididos em quatro equipas, equipa A,B,C e D. A equipa “B” foi a grande vencedora da prova. Tendo a Suazilândia ficado em último lugar… Parabéns Moçambique. Isto faz-me lembrar o exemplo que costumo dar na primeira aula quando quero frisar o fosso que é preciso ultrapassar para dar o salto para o desenvolvimento. E então aí informo que o jornal que mais vende em Moçambique é o matutino Notícias, o único que chega a todo o país e que, para uma população de 23 milhões, vende 20 000, recordando em contraste que em 1890 os principais diários de Paris, Londres e Nova Iorque vendiam entre 90 000 a 100 000 exemplares. Há muitos mundos no mundo, repetia a minha mãe. 11/08/2017 Pascal morreu aos trinta e nove anos… e já era, no seu tempo, uma idade avançada. Alexandre Magno e Catulo morreram aos trinta e três anos, Mozart aos trinta e seis, Chopin aos trinta e nove, Spinoza aos quarenta e cinco, Santo Tomás aos quarenta e nove, Shakespeare e Fichte aos cinquenta e dois, Descartes aos cinquenta e quatro, e Hegel com a avançadíssima idade de sessenta e um. Também o Bolano se finou aos quarenta e nove. Face a estes dados só nos resta reconhecer que somos de uma preguiça incomensurável e que há ossos que não se liquefazem no efémero. 11/08/2017 Folheando cadernos adentro pesco um episódio caricato que se passou com o Ionesco. O velho gnomo recebeu o telefonema de um encenador de Nova Iorque que além das palmadinhas nas costas lhe comprou os direitos para encenar O Rinoceronte, uma peça onde todas as pessoas de uma aldeia se metamorfoseiam em grandes mamíferos. A peça na altura foi lida como uma metáfora sobre a alienação ou sobre a indiferença. As interpretações variavam. E o Ionesco lá pagou um tintinho ao Cioran e a outros compinchas. Passado dois meses recebe um novo telefonema do americano, que estava encabulado. Desembuche homem, incentivou o romeno. O nova-iorquino lá esclareceu que tivera de contratar um “negro” para reescrever a transição do segundo para o terceiro actos. Mau Maria, de que é que você fala? E o encenador confessou que fora obrigado a introduzir um telefonema em que Berenger (o protagonista) tenta em vão telefonar ao seu maior amigo, antes de concluir, Bom, eu tentei avisá-lo várias vezes que ia a casa dele, mas como não me atendeu o telefone… Resumindo, o que deixou o Ionesco siderado, para o americano era normal que um corno de rinoceronte irrompesse da testa das personagens e que toda a aldeia se bestializasse, isso fazia parte da lógica poética, o que era impossível de acontecer era que um amigo fosse a casa de outro sem o avisar previamente. Convenção social, afinal, que derrotava o absurdo da peça. Seja a alienação seja a indiferença, qualquer uma das duas chaves tornam O Rinoceronte actualíssimo.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO Primo Basílio de Eça de Queirós – Luísa e Juliana (primeira parte) [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omeçamos hoje, e durante quatro semanas, a análise de dois conceitos chave em O Primo Basílio de Eça de Queirós: superação de si, na esteira da fenomenologia de Hegel, e de modo a mostrar a complexa relação entre Luísa e Juliana; e vício, de modo a mostrar o nervo central deste romance. Assim, o conceito que aqui nos importa aprender inicialmente, com Hegel, é o de consciência de si. Foi Hegel que mostrou ao mundo o que é apreender uma coisa ou, se preferirmos usar a linguagem de Hegel, percebê-la. Não se pretende aqui um curso sobre a Fenomenologia do Espírito, de Hegel, e muito menos sobre Hegel; não tratamos aqui de Hegel com autoridade filosófica, apenas lhe pedimos ajuda para melhor entender o que se passa em O Primo Basílio de Eça de Queirós. Para tal, para que Hegel nos possa ajudar, é preciso ouvi-lo e para ouvi-lo há que entende-lo minimamente. É este minimamente que se pretende mostrar aqui. Não vamos reduzir Hegel, mas circunscrever o que dele precisamos para a nossa tarefa hermenêutica. Apreender ou perceber o que quer que seja é negá-lo. Que quer dizer então “negar”? Negar é ter o que se quer em nós. Esse ou isso que se quer, ao ser em nós passa a ser a negação do que era: passa de sujeito a objecto. A passagem de sujeito a objecto é a negação. Negar é transformar um sujeito em objecto. Avancemos com um exemplo. Deus, sujeito de tudo e de todas coisas, passa a objecto a partir do momento em que o penso, a partir do momento em que me aproprio dele. Apropriar-se de Deus não é ser Deus, mas negá-lo, transformá-lo em objecto. Negar Deus não é dizer que não acredito em Deus, mas fazer dele um objecto: um objecto de consciência. Quando Deus entra em mim, se consciencializa em mim, passa a ser objecto. Objecto da minha consciência, objecto da minha subjectividade, objecto do meu sujeito (do meu Eu, diria Hegel). Por maioria de razão, o que é válido para Deus é válido para todos e todas as coisas. Ao caminharem na rua, se acaso se lembrarem destas minhas palavras, deste artigo, transformam-me em um objecto vosso. Objecto da vossa subjectividade, da vossa consciência e, no entanto, eu agora aqui a escrever sou um sujeito. Mais: serei ainda um sujeito mesmo que não me há transformem em objecto. Podem perguntar-me: então para quê negá-lo? Ter consciência do que quer que seja é negar isso mesmo que se consciencializa ou de que se toma consciência. Ou seja, sem negar não se pode ter em nós um objecto de consciência, não se pode ter nada em nós mesmos, é isso que está aqui em causa. Para se ter consciência de uma coisa é preciso começar a negá-la. Para ser mais exacto, nem devo dizer “é preciso”, pois isso pressupõe que depende de mim, da minha vontade. Não, tomar consciência é independente da minha vontade. Permanecer naquilo que consciencializo é que já depende da minha vontade. Assim, o que se torna consciente em mim é, em mim, a negação daquilo que é fora de mim. Usando a linguagem de Hegel, na sua assombrosa Fenomenologia do Espírito, o outro passa a estar em mim. O outro em mim é a negação do outro. Uma negação do outro é, em mim, a consciência do outro. Mas a negação é dupla. A negação não é somente negação do objecto, negação do outro. A negação também nega o sujeito da negação, isto é, ao negar estou também a negar-me. Ao negar Deus, ao se tornar consciente em mim, nego-me também a mim, pois transformo-me no objecto que nego. Deixo-me, deixo de estar em mim para estar em Deus. A consciência de Deus, em mim, nega-me, torna-me objecto de mim mesmo, torna-me um outro de mim mesmo. Imaginai que pensais em Hegel – apesar de tudo, ainda é mais fácil pensar em Hegel do que em Deus, pouco mais fácil, mas ainda assim, mais fácil –, ao pensardes em Hegel estais concentrados, focalizados nele, Hegel, isto é, vós estais fora de vós mesmos, estais lá, fora de vós, em Hegel. Mas este fora de vós não acontece senão em vós mesmos. Ou seja, vós tornai-vos um outro para vós, tornai-vos a vossa própria negação. Aqui, não se trata da negação do objecto, mas da negação do sujeito. Por conseguinte, parece mais do que evidente que sem negação não há consciência do que quer que seja, não há conhecimento. Pois somente apreendo, somente conheço o que quer que seja se me con-centrar, se me con-centro naquilo que quero apreender. A língua portuguesa aqui, com a ajuda do latim, é feliz e ela mesmo diz o que eu estou a dizer. Concentrar é centrar com. Isto é, eu centrado em alguma coisa. Eu centrado em alguma coisa é a negação do eu, a negação do sujeito. Eu concentrado sou eu negado. Podeis perguntar: “e se você estivesse concentrado em si mesmo, concentrado em você, pensando em você, já não se negava, pois não?” Errado. Eu concentrado em mim mesmo sou eu negado enquanto objecto, isto é, eu negado na primeira forma de negação que apresentei aqui. Pois eu pensando em mim, este mim não sou eu mas um objecto de eu. Eu concentrado em mim é o mesmo que eu concentrado numa cadeira, em Deus ou em Hegel. Eu concentrado em mim, como a própria palavra diz, vimo-lo atrás, terei de ser eu com alguém. Eu concentrado em mim sou eu com o objecto de eu. Para usar a linguagem de Hegel: O espírito se torna objecto por esse movimento de fazer-se um outro para si mesmo – um objecto para seu próprio si. Por mais voltas que se dê, não há forma de conhecer, ter consciência de sem negar. Não há forma de conhecer sem sair de si mesmo, isto é, não há conhecimento sem objecto. E, pronto, já disse. É isso mesmo, tão simples, tão básico que não há quem não saiba: não há conhecimento sem objecto; não há conhecimento sem aquilo que se conhece. Sem dúvida, a negação é parte integrante do processo de conhecimento, mas este último acontece imediatamente através do fenómeno da negação? Não. É preciso um outro fenómeno ulterior. Com a negação, o que acontece, como vimos, é que passa a haver consciência em nós daquilo que consciencializamos, isto é, passa a haver, em nós, aquilo que aparece. Passamos a ter em atenção, a ter diante de nós aquilo que aparece. Mas uma coisa apresentar-se-nos é insuficiente para produzir conhecimento. Se alguém me estende a mão e se apresenta, pronunciando o seu nome (eventualmente a sua profissão), isso não me dá um conhecimento dele, mas uma apresentação dele, uma consciência da existência dele, uma consciência de que há ele, ele há. Ou seja, produz-se em mim, a dupla negação de que falei anteriormente. Que é então necessário para que haja efectivamente conhecimento? A repetição, a permanência, ou, em linguagem mais hegeliana, sofrer uma acção contínua do desejo, isto é, o desejo deixa o mundo natural, da Natureza, para assumir o mundo da consciência, o desejo deixa de ser desejo para ser entendimento e, mais tarde, espírito. Ou seja, passamos de uma apresentação de algo ou para um conhecimento desse mesmo algo através da repetição trazida à consciência do objecto que queremos conhecer. Repetir a apresentação do objecto não é cumprimentá-lo todos os dias, mas trazê-lo continuamente à consciência de formas diversas. A esta relação que se estabelece entre um sujeito e um objecto, Hegel chama-lhe desejo. Por conseguinte, o desejo provoca que o objecto apareça, provoca que a consciência se dê conta dele, do objecto, e queira cada vez mais desse objecto (como é próprio do desejo). Mas o desejo, em Hegel é do mundo animal, apenas nos pode trazer à consciência a sensualidade do mundo; no desejo o mundo é o mundo sensível. Somente na acção o desejo, na direcção do mundo, se pode transformar em conhecimento. Realizar, agir é atirar para as coisas, para o mundo e trazer delas, de lá, a diferença que nos separa delas, isto é, entender em nós que o objecto é em nós. Este entendimento faz toda a diferença: é a consciência da consciência. Assim, não basta negar o objecto para que se produza conhecimento, a negação é a apresentação do objecto à consciência, o conhecimento é a continuação dessa apresentação através de um querer cada vez mais, cada vez mais de modo diferente até que nada mais haja para conhecer. A este cada vez mais chamamos acção ou realização. Por conseguinte, o que nos vai distanciar do plano natural, e trazer-nos até à consciência de nós mesmos, é a consciência da acção. Não é apenas a acção, nem a consciência, mas a consciência da acção, isto é, trata-se da negação da negação do positivo. A acção nega a consciência passiva do plano natural, animal, sensual e, depois, a consciência dessa acção é que produz conhecimento. Trata-se do regresso a si próprio depois de agir sobre o mundo. Obviamente, o objecto tem tanto mais para apresentar quanto maior for o desejo do sujeito. Podemos aqui citar, com toda a propriedade, o estafado verso de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não for pequena.” Ou seja, se o nosso desejo for grande, sempre há o que ver, sempre há o que conhecer. Ou, como se diz em relação aos papéis no teatro, não há objectos pequenos, há sujeitos pequenos. Depois de ficarmos a saber de que modo se conhece, os mecanismos pelos quais uma consciência agarra algo, e de termos destacado o papel fundamental da negação em todo esse processo, e da negação da negação, passemos então ao que aqui nos traz com mais urgência: a relação entre o uma consciência de si e o outra consciência de si, isto é, a relação entre duas consciências de si. Apresentemos então a célebre distinção hegeliana na dialéctica do senhor e do escravo. Sempre que duas consciências de si se encontram, o que se passa é uma luta feroz para que uma delas se assuma perante a outra como sua senhora e, concomitantemente, a faça de sua escrava. Uma consciência torna-se escrava da outra pelo medo da morte, escreve Hegel. Mas que quer dizer aqui morte? O que é a morte da consciência? A morte da consciência é ver-se a si mesma como objecto e não conseguir voltar a si, não encontrar o regresso a si mesma. Uma consciência de si escrava não vive para si mesma, mas para outra. De outro modo: uma consciência de si escrava é uma consciência de si presa à vida. Presa à vida indica, desde logo, medo à morte e, consequentemente, a inevitável queda na sua escravidão ou, melhor seria dizer, a óbvia não ascensão à sua libertação, à sua liberdade, ao não medo da morte. Uma consciência de si escrava não está em si, mas fora de si. Estar em si, para uma consciência é supressumir o plano natural. Supressumir é a casa da consciência. E é onde ela, enquanto senhora, gosta de estar, isto é, a consciência de si enquanto senhor é uma consciência em contínua supressão de si e do mundo. A consciência escrava anda na rua, isto é, vivendo num plano natural. Dorme e alimenta-se na rua, fora de casa, fora de si. A consciência escrava alimenta-se do que o mundo lhe dá, do que a consciência sua senhora lhe dá, mais nada. A consciência escrava é ir do trabalho para casa e de casa para o trabalho, beber nos intervalos que tenha e aproveitar ainda para ter mulheres (ou homens). Viver numa consciência escrava é viver sem perguntar por si, pela própria vida, não fazer do mundo todo um objecto para si. Para melhor se compreender estes dois modos distintos de apreender o mundo, por parte de uma consciência, imaginem que estão apaixonados por uma pessoa de má índole, e que sabem perfeitamente que essa pessoas não vos convém, mas apesar dessa consciência de si do outro, entregam-se a ela pelo prazer que ela vos dá, isto é, deixam de ser senhores de si para se tornarem escravos; o conhecimento deixa de ser importante, deixa de fazer efeito e passam a viver como se ele não existisse. Passam a ter medo da morte, medo da morte que foi revelado através do prazer enorme que essa pessoa vos dá, independentemente do conhecimento que tinham dela e do qual abrem mão. Aceitam ser escravos por medo da morte, por um desenfreado amor à vida, ao plano natural, sensual, animal da vida. O medo da morte é querer viver, é pensar que deixar o plano do sensual é caminhar para a morte. Quem tem medo da morte, afoga-se de vida, de sensual, de animal, e morre escravo. Ter consciência do que nos está acontecer e fazer disso um objecto, fazer de nós e da nossa vida um objecto é a vida de uma senhora consciência. No fundo, esta senhora consciência é, em última instância, a própria filosofia. Mas adiante, que não é isto que nos traz aqui. O que nos traz aqui é a Luísa e a Juliana, a senhora e a sua criada. Em sentido hegeliano, no início do romance ambas são escravas, pois ambas não têm consciência de si. Mas com o avançar do romance, com o avançar da trama, com a queda de Luísa isso não vai ser assim. (Continua)
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias MancheteFérias grandes do mundo [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]asso os dias a olhar para o Atlântico e o azul do céu. Não sei bem se há uma relação directa ou causal. Vim para um Hotel para recuperar. Nem sei bem do quê. Não leio, durmo e acordo para ir para a praia, para onde vou. Preciso agora de uma banda sonora. Já nem me lembrava do que tinha para ouvir. Gosto de tudo. O ponto não é a música. É que nunca tive banda sonora, muito menos na praia. Agora, tenho. Estou numa praia diferente onde nunca tinha estado. E estou sozinho. Não que isso me importe. Mas sem trabalho, tudo muda. Mas o ponto não é esse. É outro. São as famílias que vão de férias. Levam crianças. As crianças vão construir a sua história: numa família e numa paisagem. Haverá sempre o azul e a água fria. Se forem repetitivos regressam ao sítio onde estiveram. Nem sei como se constrói memórias. Sei que aconteceram. Hoje, estive pela segunda vez na praia sozinho. Sempre de pé, porque não consigo deitar-me e a ouvir música porque não consigo ler. Escolho sempre um sítio distante das outras criaturas que lá se encontram. São famílias, uma mãe com um filho, uma família a ler. E depois o sol que persiste. Nunca olhei uma praia a norte. Foi sempre a sul. Ou tão a sul que pensava em África, no Brasil, mas nunca em Lisboa, Porto ou no Norte. Mas há o azul que é o plano de fundo da areia. É uma praia diferente de todas as outras. As pessoas serão as mesmas. Não ia à praia há tantos anos. Caminho. E fico num sítio onde estendo a toalha. Não me deito nunca. Fico de pé. Troco os óculos. Não vejo bem ao pé e o sol cega-me. Antigamente, vinha de casa cheio de carcaças com manteiga e as vésperas. Sabia para onde ia à noite. E dormia. Coisa que raramente acontece ou só com álcool ou comprimidos. As férias antigamente eram gregárias. Agora, vim “descansar”, fazer não sei bem o quê. É bom sair. O azul ajuda. Se tivesse ficado em Lisboa o azul não seria evidente e não tenho conseguido ter um quotidiano. São sempre os mesmos dias há muitas décadas. As férias grandes do mundo acabaram. Lembro-me de jogos de bola na praia e de grupos de gente. Cocktails de hormonas juntos à beira mar. Lembro-me dos jornais lidos a seguir à revolução de Abril como se fossem bíblias. Lembro-me de rostos que envelheceram casados e outros que continuam por casar. O azul vem do céu e vem do mar. Olho para o azul com tantas tonalidades que não consigo expressar, porque não sou músico nem poeta. Só analítico. A praia era o dia seguinte e era o dia. Era de onde partíamos para a noite. Era onde regressávamos de manhã. Pequenos almoços tomados a cerveja depois da noite e antes de dormir o pouco sono que a juventude permite. O azul da praia é diferente de manhã, à hora do almoço e ao entardecer. As pessoas que vão a horas diferentes têm praias diferentes. E nós tínhamos todos os momentos. À hora do almoço e até à hora do lanche a praia é como um pesadelo: sol ao pino e água gelada. De manhã, espera pelo almoço com o sol a desenhar o seu dourado triunfante. Mas à tardinha, adivinha a calma da vila, sem som ou apenas com o do jantar. O Azul transforma-se em negro. E a melancolia aparece não já só à noite, mas na tarde e na manhã que não existe. Esperava os dias grandes do Verão e agora espero que eles tragam o Outono ou o Inverno. Mas no Outono ou no Inverno espero pelo Verão. Mas o Verão pelo qual eu espero é aquele outro das férias grandes do mundo. Não virão mais. Ou então eu sou incompetente para trazer essas férias. Vejo o azul transformado em negro na noite e espero que seja azul negro, fundo. Hoje, na praia, estiveram as famílias da infância. Estiveram todas. Estiveram as que se estão a fazer, com crianças e jovens pais e futuros mortos, já moribundos. Como eu gostava de fazer parte não sei bem do quê que já não existe. “Ainda vais ter saudades destes tempos”. Dizia o Beta.
Valério Romão h | Artes, Letras e Ideias MancheteDon’t be evil [dropcap style≠’circle’]”D[/dropcap]Don’t be evil” foi o moto oficial do Google desde o ano 2000 até ser substituído, em 2015, por “Do the right thing”. A ideia, originalmente, era a de separar a Google das outras empresas tecnológicas que incorriam em práticas, por vezes pouco transparentes, através das quais acabavam por retirar do contrato com o consumidor muito mais do que aquilo que tinha sido acordado. Era possível, segundo o Google de então, fazer dinheiro sem se ser desonesto. Mais: era possível fazer dinheiro sendo ético. A maioridade trouxe ao Google, para além de lucros incontáveis e de um monopólio no domínio dos motores de busca, alguns percalços e dores de crescimento. Tendo em conta que os proveitos da empresa advêm quase inteiramente da publicidade online, não parece difícil perceber a tentação a que ao Google sucumbiu: a de guardar todos os dados possíveis relativos aos utilizadores para lhes poder devolver o anúncio mais personalizado. O “don’t be evil” tornou-se muito depressa um fardo para a empresa e um motivo de chacota para os internautas, cada vez mais preocupados com a privacidade. Há cerca de uma semana, um empregado do Google escreveu um memo através da qual tenta explicar a razão pela qual há poucas mulheres nas áreas tecnológicas. Diz ele, grosso modo, que tal se deve à diferença de competências inerentes a cada um dos géneros. Os homens, mais assertivos, menos sociais e mais resistentes à ansiedade que subjaz aos confrontos, têm características inatas que jogam a favor deles. As mulheres, evidentemente, o contrário. Ao que parece, no Google existe um espaço assaz vasto para a discussão política: como em qualquer empresa de vanguarda, é fomentada a troca aberta de ideias entre trabalhadores, seja por mail, bulletin board ou chat. Se no século passado, o da linha de montagem, a ideia de empresa era a de um mecanismo perfeitamente oleado para o qual cada empregado concorria sob a forma de engrenagem, no séc. XXI, sobretudo na área da tecnologia e dos serviços, os trabalhadores tendem a ser vistos como células neuronais cuja criatividade converge na formulação de uma ideia inovadora. Daí dar-lhes liberdade de pensamento e voz para se exprimirem. E, no entanto, este empregado, foi despedido. Não sei das suas intenções na escrita do memorando supracitado. Não sei sequer se estava fundado sobre argumentos sólidos e coerentes. Sei que era uma pessoa com uma ideia muito pouco original, radical ou mesmo nociva sobre um assunto que está longe de ser consensual ou de estar decidido: as diferenças entre homens e mulheres. Não negou o holocausto, não defendeu a criminalização da apostasia, não contraiu matrimónio com uma iguana indefesa. Limitou-se a tentar explicar a razão pela qual as mulheres não têm a representatividade que os homens têm nas indústrias tecnológicas. Podia não ter razão ou estar apenas mal informado. Tal não evitou ter sido liminarmente afastado da empresa. E o despedimento deveu-se, em grande parte, à pressão que muitos dos trabalhadores do Google, que pensam de forma distinta, exerceram sobre a empresa por via da comunicação social. Ora se há alguma lição a tirar das últimas décadas de desenvolvimento das ciências sociais, esta prende-se precisamente com a natureza volátil das suas conclusões. Não há posições “científicas”, i.e., objectivamente mensuráveis, sobre as questões da identidade sexual ou de género. Há aproximações, tentativas e erros, orientações políticas, sociais e, em última análise, morais. Ora transformar uma posição política numa evidência científica, para além de conduzir inevitavelmente ao silenciamento de quem poderia acrescentar algum valor à discussão, é, sobretudo, impor uma forma muito selectiva e estreita de pluralidade de opinião: a nossa.
António Cabrita Diários de PrósperoAdonis, um santo 06/08/2017 [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o Iémen, à beira de uma casa de campo, o realizador com quem viajava teve a ingenuidade de tirar fotografias a uma menina de três anos que sentada num degrau dava à perninha e sorria. Só que a coitada tinha uma sainha pelo joelho. Ao terceiro clic assomou de dentro uma avó endemoinhada que nos repele aos gritos, secundada por um pai de kalachnikov nas costas e que imediatamente incitou a mãe a espancar a criança à nossa frente. A dita havia mostrado as pernas aos estrangeiros. Foi um “espectáculo” que conduiu e acabámos por pagar caro a nossa retirada – mitigação traduzida em dólares porque a moral (helás!) negoceia-se sempre. Toda a minha atracção pelos páramos dos sufis, pelo Ibn Arabi, pelo Rumi, etc., vacilou naquele instante e fui vasculhar no fascinante Islam, l’autre visage, de Eva de Vitray-Meyerovitch, a raíz daquela violência. Não fui esclarecido. Ē-me explicada agora a causa das coisas no abrasivo Violence et Islam (Seuil, Dec. de 2015), um livro de entrevistas de Adonis (1930), o poeta sírio, no qual este, com a cumplicidade do psicanalista franco-marroquino Houria Abdelouahed, desmantela o carácter ferino do islão, demonstrando não apenas a sua violência genética como a sua falência. Citando os textos dos Hadiths, do Corão, dos Sutras, e “saturando-nos” com a sua autoridade de um homem de dentro… Adonis zurze quase envergonhadamente por ver a “sua” civilização de quinze séculos definhar na pulsão degenerativa do Daesh – um caso, diz, de arterioesclerose religiosa. Neste livro não encontramos um ajuste de contas mas um homem que ama as “fontes vivas” da cultura de onde emergiu – e que lhe alimentou dezenas de livros – mas que ama igualmente a verdade e que desgostoso, começando por fazer uma análise da malograda Primavera Árabe, diagnostica um final triste para a cultura que sempre almejou dignificar: «O homem que se pensa mais vigoroso do que a morte – porque se imagina a piquenicar agradavelmente no paraíso – pratica a barbárie sem medo ou sentimento de culpabilidade. Ele simplesmente está separado da natureza e da cultura. Vejo no Daesh o fim do Islão. Ē um seu prolongamento, certo; sendo igualmente o seu fim. Actualmente, sobre o plano intelectual o Islão não tem nada a dizer. Nem élan, nem visão para mudar o mundo, nem pensamento, nem arte, nem ciência. Esta repetição é o próprio signo do fim. (…) O Daesh não oferece uma nova leitura do Islão ou a construção de uma nova cultura ou de uma nova civilização. Antes é o encerramento, a ignorância, o ódio do saber, o ódio do humano e da liberdade. E é um fim humilhante!» Percebe-se porque sendo Adonis um dos iniludíveis poetas mundiais da actualidade e um consecutivo (desde há década e meia) candidato ao Nobel (invariavelmente, dos mais falados), a distinção lhe tem escapado. Fosse eu uma voz decisiva na deliberação e votaria contra pela razão mais simples: quero-o vivo e não exposto a uma fatwa – o que automaticamente se seguiria à publicidade sobre a sua obra. Este livro – tocado pela inusitada coragem dos santos que pairam com a sua liberdade acima do medo – deixa sem vértebras o corpo institucional da religião e dos poderes islâmicos (evidentemente que, como um homem de bem, e não como um tolo iconoclasta, Adonis não confunde a fé dos seus membros com o anquilosamento estrutural da religião). Citemos a mais inocente das passagens: «O Islão matou a poesia. Este assassinato, com efeito, é igualmente o da subjectividade, representa o detrimento do indivíduo e da sua experiência de vida em proveito da crença comum, a da Oumma (a comunidade). O Islão rejeitou que a poesia fosse um conhecimento e uma demanda da verdade. Ele baniu-a e condenou-a. Ora, a poesia perde todo o sentido se não for exactamente uma busca da verdade. Posso mesmo dizer que a poesia é uma desmontagem e um desmantelamento da religião, tanto na sua crença como no seu conhecimento. Ademais, é a poesia que diz a verdade. (…) Do ponto de vista poético, a religião é um duplo niilismo: dado que é uma destruição da beleza da existência sobre a terra, querendo-a substituir por um enchimento infinito de lendas em torno do paraíso. A poesia tem a vantagem de afrontar directamente a divindade sem se transformar numa outra religião. Ela rechaça a ideologia. Como a mitologia, antes questiona e abre e desdobra horizontes infinitos para a busca.» Olé! Repita-se: este não é o livro de um ressabiado mas apenas o de um homem que à obediência preferiu a inquirição e que não receia ferir-se no acto de abordar a verdade. Ē como um sudário limpo que sonhasse que o seu corpo corrupto se metamorfoseasse numa cesta de fruta. E o melhor de tudo é que neste livro quem sai mais dignificado é o feminino e cada uma das mulheres, sequer alguma vez reduzidas à abstracção de um género. Como pai de cinco filhas, agradeço-lhe. Sim, mestre Ibn Arabi: «todo o lugar que não aceita o feminino é estéril». 08/08/2017 Subimos da Macaneta (praia) à cidade mais próxima (a dez quilómetros), Marracuene, a trinta km de Maputo, para depositarmos na filial local do nosso Banco a renda da casa. Estivémos quarenta minutos na fila. E chegados ao balcão sentencia a intrépida funcionária, Não temos fotocopiadora, cada cliente tem de trazer de fora as fotocópias da sua identificação… (o que deu mais meia hora em apalpação de um território peculiar, que vive ao retardador). Ainda que seja o próprio que se apresenta, com todos os seus documentos, numa filial do Banco onde tem a sua conta. Ē indubitável o delírio kafkiano nos países à deriva. Bom, para as minhas gatas também sou um fabuloso primeiro-ministro!
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDa infantilização do consumidor [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]rimeiro vieram os avisos, entre o obnóxio e o óbvio: “fumar mata”, “fumar causa doenças pulmonares”, tudo coisas claramente desconhecidas até surgirem estas imprescindíveis recomendações. Depois, passaram para as imagens, a maior parte delas tão ridículas que pareciam ter saído de um poema do Manuel Alegre sobre jogadores de futebol ou de uma crónica televisiva do Marques Mendes. Passado algum tempo, começaram a decorar os maços com línguas cancerosas, bocas com apenas dois dentes podres e distantes de si como Lisboa de Alverca e fetos espalmados em pose de camarão. Tudo para nosso bem, pois ser-nos-ia impossível perceber os malefícios do tabaco a não ser que no-los explicassem como se tivéssemos seis anos. Aristóteles dizia, acertadamente, que a visão é o sentido que nos dá mais mundo. Os publicitários, mesmo não lendo os clássicos gregos da filosofia, perceberam isso com apreciável nitidez. A televisão vive da imagem em movimento e da capacidade que esta tem de nos chocar, de nos enternecer ou de nos indignar. Diz-se, comummente, que uma imagem vale mais do que mil palavras e as guerras do passado, com os meios de comunicação actuais, não seriam sustentáveis junto da opinião pública. Numa reportagem recente no Huffington Post, um médico especialista em traumas resultantes de feridas de armas, comuns em muitas cidades americanas, defendia que se o público tivesse acesso às imagens daquilo que acontece quando uma bala perfura um corpo, talvez o debate em redor da questão da venda e da posse de armas tomasse um rumo diferente daquele que tem sido o tom actual: uma clivagem tão profunda entre os que defendem a liberdade total da posse de armas, à luz da constituição, e aqueles que advogam medidas de controlo. A imagem está no epicentro da nossa compreensão do mundo: é tão rápida como eficaz. No caso dos maços de tabaco, porém, a coisa não parece funcionar. Os fumadores mais susceptíveis acabam por comprar capas onde enfiam os maços, escondendo as imagens. Outros, recebendo um pulmão alcatroado, pedem ao vendedor uma versão mais neutra da mesma marca. O vício inventa formas de sobrevivência à agressão visual a que um fumador, para descargo de consciência política dos seus governantes, está sujeito. E este é o ponto desta consideração em jeito de desabafo: os fumadores sabem que o tabaco faz mal, sabem que o tabaco tira anos de vida e de qualidade de vida, sabem que o tabaco mata. Não precisam que o estado os doutrine como se fossem idiotas. O mesmo estado, diga-se, que faz um belo pé-de-meia com os impostos sobre o tabaco. Porque o estado, em boa verdade, não está disposto a trocar os custos públicos da saúde dos fumadores pelo encaixe financeiro resultante da tributação da venda de tabaco. Um é imediato e acontece agora, do outro resultam benefícios somente a longo prazo. E, como sabemos, o longo prazo não é propriamente a paixão dos políticos, a não ser que se trate dos mamarrachos que se entretêm a semear um pouco por todo o lado para terem fitas para cortar e placas com os seus nomes. As imagens nos maços são apenas uma forma de comunicação – o santo graal da política contemporânea – e uma forma hipócrita de lidar com o assunto. “Vejam, fizemos tudo o que estava ao nosso alcance mas os fumadores não deixam de fumar”. Kierkegaard tinha um nome para isto: má-fé.
Anabela Canas Iluminação ArtificialAlquimia da dúvida [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma relação qualquer entre a coragem e a insegurança, que sempre me detém longamente. A pensá-las. A possui-las. Cada uma. Ambas, na sua resolução de equação maior. Não se excluem. Não se acrescentam. Têm uma alquimia própria. Uma vida no fio da navalha em sangue. Um casamento difícil. Porque me acontece entrever aí uma chave em bronze de tanta coisa. Aí, no cruzamento das duas, numa esquina repetidamente virada na vida. Uma relação que não é directa nem inversamente proporcional. Na vida, no humano que é uma parte da vida que nos ocupa biologicamente e nos ocupa o espaço de sentir, sentir vida, e nos ocupa o espaço de pensar, pensar-nos enquanto passageiros. Talvez. Numa linha do tempo que as estradas imitam. E porque nesta relação, parecida a uma vizinhança aleatória entre uma habitante feroz que luta pelo espaço do patamar com a vizinha, igualmente decidida, se refazem todos os dias as resoluções no épico de uma vida a medir forças com a vontade de desistir. Mas essa, é uma outra vizinha que está residente no andar de cima ou de baixo. Mais no fundo, Talvez. Num andar de fácil acesso, com perfumes de desalento e de preguiça e de teorias várias de natureza poética a justificar a astenia. Há um andar na profundidade de um edifício existencial, situado talvez nos alicerces de uns, ou nos terraços perto do céu, em outros. Tudo a depender de outros enquadramentos para a metáfora escolhida. Onde estamos mais fundo? No profundo e escuro da cave de um edifício ou na ampla abstracção búdica de um acesso ao ar e à diluição no éter para além dos degraus concretos a subir. A descer. Com os pés sentidos. Passos sentidos e acções com sentido. Ou tudo centrado no grande zoom sobre uma escrita interior. Uma electroencefalografia do sentir. Momentos – ela toca-lhe o ventre com o peso nítido da face. Ele toca-lhe a face com a delicadeza da mão. Ela toca-lhe a mão. Com a dúvida imprecisa. Da ponta ínfima, e já quase esquecida das sensações, dos dedos. Indecisos. Esquecidos, como se uma mudança de plano cinematográfico deslocasse a câmara dali. Ele toca-lhe a alma num adejar imperceptível a olho nú, mas ela não sabe se sabe de certeza. Grande plano, agora ali. Ela está ali mas ele não sabe onde. E assim se pode diluir um momento de alguma coisa contido. Insegurança. Coragem. Indecisão. Dúvida. Um lapso de tempo, um intervalo na impressão. E o tempo acaba. Palavra fim e todos se levantam a velocidades diferentes das cadeiras da escuridão da fantasia do filme. Fica-se assim entre vida e vida. Animé. Animação produzida em estúdio. Qualquer animação de desenhos. Figuras que por magia da teknè – estranho como do grego, que harmonizava conceitos de arte e técnica numa única palavra, derivamos para o preconceito associado a uma delas como se maculando a outra – ou por artes mágicas, ganham vida própria. Da sua essência, o movimento, toda a fantasia possível na capacidade de ilusão que esse fantástico ingrediente, e quase por si só, nos catapulta para uma realidade própria. A da ficção. O movimento. No espaço. Só. A desvincular o objecto da sua natureza própria envolvendo, uma outra da raíz do inconsciente espectador: anima ou animus. Em que cada um se deixa levar ao seu modo irreprimível. Uma outra forma de dizer animação. Algo em que nos deixamos fluidamente levar, abstraídos, no tempo. Nesse tempo de consistência variável. À la carte. Quem somos nesse distender da vida, nesse desenrolar ininterrupto, e indefinidamente, estranhamente variável. Algas ao sabor da maré, ou almas a criar nós e circunvoluções que estratificam o tempo ao sabor de emoções apaixonadas ou brandas. Esse tempo que devora a consumível paixão mas ateia. Da profundidade incendeia sem olhar a escuridões maiores, da mesma que desdenha a mão que emenda. O que para o tempo não há. (Porque me acalmam as paixões efusivas, paisagens paradas. Paradas e letárgicas como se nada houvesse de força motriz nenhuma. Onde nada se passa ou virá depois. Acalma no possível confronto com a terra que é onde a alma não deveria opor voos e de onde não deveria muitas vezes elevar-se insatisfeita e tormentosa). Talvez o tempo. Essa obsessão que tenho de algo que não tenho porque não posso ter. O tempo. Talvez o tempo. Em que uns, como nas palavras, inscrevem a simplicidade sintética de uma afirmação sim, com todo o peso e lastro existencial, contido no momento da memória da ausência da memória do mergulho profundo e perene em águas que o tempo leva mas não necessariamente lava. Toda uma síntese segura de o ser e com prazo longo e dedicatória sentida. Outros na desesperança de uma interrogação de ainda de mesmo de talvez ou de já não. A eterna interrogação sentida e dorida da insegurança. Do querer, do dizer, do nem querer sem dizer ou. Sei lá a deriva. Nunca a esses seres lhes chega a enormidade deste ser inteiro para a vida. Ser para a morte. E dizer afirmativo. Sem prazo. Uma questão de economia de pontuação. Ou talvez a chave seja de matérias mais finas. O vento. Essa passagem do tempo que se abre e se fecha em si. O que não se perde no nunca se ter. Como o tempo. Do tempo perdido. Em busca. Essa busca melancólica que só a cafeina retinha nos limites do suportável. Mas isso se era em Proust, perdido este na elaboração melancólica e exaustiva de uma memória de sonho, de um corpo, realidade do sonho realidade de uma memória de um sonho, um corpo sentido e sensual junto ao seu, encostado com todas as forças da memória e do sonho, e de que afinal sobrava nada. O nada do acordar com a percepção da sua própria perna tornada sensação e desejo e outrem, nos caminhos inexpugnáveis do sonho. Da desilusão e do acordar. Não existe tempo perdido. Não existe. O tempo é um bafejo impreciso como onda indómita de uma maré enchente, ou de uma onda em quebra de alento, recessiva na sua maré vazante. À hora a que chego à praia, ao dia, nunca sei que onda me espera no momento de ali estar. A tumultuosa e impetuosa onda que avança inexorável ou a que avançando recua sempre um pouco mais como uma metáfora de vida a escoar-se. E, no entanto, uma coisa é certa. Nada resta da maré anterior. Mas o mar é sempre o mar. E o tempo. Que não se perde porque nunca se possuiu. Talvez ele a nós, sim. E nos perca. Um dia. E assim os castelos de areia. Nada tão belo como o que se constrói independente da certeza de perder. Que nunca nos desaponta. E, no entanto, dizia o poeta: tudo vale a pena. Não se retoma o tempo, não se volta ao tempo, não se retém, não se possui. Nem para depois nem o antes impalpável a que quanto, ou enquanto ou muito, como se exista, chamamos memória. Uma paragem no álbum de recordações como numa estação de montanha alheada do mundo. Remota. Não se possui o que não existe ainda nem existe já. Jamais a mais do que o momento em si. Em que, contudo, nem evoluímos como numa metáfora de espaço que erroneamente confundimos com as possibilidades imagéticas de que a mente tanto precisa, envoltos nele como numa onda de aragem quente, que nos embala como planadores, sim, em que embalados voamos numa linha leve e acima de todas as coisas matéricas que nos ancoram ao espaço, esse, real. Nunca deixar de os fazer. Só porque vão sempre com a próxima maré. Talvez seja quando o tempo começa a envelhecer um pouco. Um pouco só. Subtilmente. Que se descobre o tempo novo e fresco de cada dia. Talvez aprender a esquecer aquilo que não se pode mas tem uma maneira particular de ser esquecido sem ser. Ficar simplesmente ali para trás. E talvez sejam os sentidos os anseios a comandar. Os sentimentos talvez. Seguramente mais do que talvez. Não é o caminho mais fácil o de enfrentar a dor em duelo de morte. Em que morre a dor para sempre e tudo o que a ela lembra. Ou há um acordo amigável a ultrapassar padrinhos e conselhos de sanidade e protecção. Só quem está de frente para o adversário pode decidir apertar a mão e seguir caminho com tudo vivo. O sentir e a dor. Cada um para seu lado em respeito mútuo. E tudo se abrir em possibilidades porque o duelo foi anulado e passou. Para sempre passou como tudo até ver. O dia novo. Mas o tempo é como o mar. Não posso mergulhar esquecendo a linguagem dos músculos aprimorada antes. Não posso esquecer nada nem deixar para trás o desejo de nadar. O perigo. Sempre. E depois, ainda, o tempo vem. Esse. Que não existe. Essa linha de nós. Onde se desliza. Adeja suavemente ao sabor da aragem. Sou um cálamo. Nada mais do que um cálamo abalado. Pelo vento, talvez. Nas infra-estruturas. Ou então embalado aí. Como se a vida. Mas todos os dias. Cada dia. Madrugou impuro e impenetrável como só. Talvez só. Ele. Eu. Não penses, eu, ele, que algum dia será de seres mais real do que a realidade do sonho. Eu. Ele. Tu. Mas não tu, eu. Ele. Talvez ao tempo se deva um tratamento de amor. Generosidade que não tenha connosco – mesmo. E às vezes dou comigo assim. Só a realidade é sonho. Tudo o mais, ilusório. Sem excepção. Tudo é real. O sonho. Como o tempo. Ou então, nada. No outro dia a fotografia de uns degraus que levam a parte nenhuma. Um lugar que é um olhar de memória. O espaço ainda. Mas aquele tempo não. E a vida disparou a partir dali. Inacreditável disparo sem limites. Ainda estou sob esse signo fatídico e inacreditável na altura. Talvez por isso esta disposição um pouco escheriana. O efeito de um olhar retrospectivo sobre a enormidade intangível do porvir. A partir dali, naquele momento. Mas não há colorido repetível para o de uma alma enamorada mesmo no seio tormentosos de intempéries. Em cada dia se deita consigo todo o tumulto de anos imprevistos, caóticos e ficados para trás. E, contudo, não me deito vazia do dia que foi imediato e antes. E do dia que talvez se avizinhe. Quando assim é, esqueço para não dormir em vão. Não se pode. Tem que se adormecer no ombro de amanhã ou depois. Não há outra possibilidade. É talvez o sonho redentor. O anjo que não esquece na sua distância. O ombro etéreo de uma ambição discreta e secreta. Não quero ser estação de passagem desatenta de uma peça qualquer da vida. Somos estação de passagem. A diferença está na qualidade. Eu espero meu amigo – digo-lhe – que entres com as intempéries e deponhas as asas molhadas no cabide à direita da entrada. Que retires daí as asas domésticas que não te magoam o flanco ou a cintura cansada e te sentes ao meu lado a escutar as batidas do coração está tudo aí. Vai estar tudo aí. Os enormes e gigantescos seres do amor que vivem em nós como no fluir imperceptível do tempo, e nos quais vivemos. Que amamos em nós mais do que partes de nós e em que vivemos como casas e refúgios. Num jogo perfeito, perfeito jogo de espelhos. Fecho-me em casa na tentativa de refugio da violência monstruosa do que me acomete. Me abalroa. E me gira no rodopio veloz da vertigem do sentido de dentro. E, como uma onda veemente, quebra na areia e mais ainda num quebra-mar. A vontade. irrompe com o poder destruidor ou construtivo, feita de toda a cor, e quebra. Quebra como se nunca tivesse vindo inteira e prestes a arrepanhar o tempo antes de perdido. Mas ainda não se respirou fundo e foi. Até à próxima maré. De cada vez que me sento com o desconhecido. Sei que é uma vez a partir daquele exacto e imperdível momento. Sonhado talvez para trás. Sonhado para a frente. mas, de cada vez que me sento com o desconhecido, é o momento que vale a pena sonhar. Aquele exacto e preciso momento. Um eterno início. Nunca um eterno retorno. O início do sonho a sério. Do encontro. Com a ilusão a formar. Com a fantasia-porta. Com a real validade de tudo isso. Com a realidade. Com todas as sombras e reflexos que assombram tornadas matéria e visão. (Às vezes gostava de pôr vírgulas entre parêntesis, por isso não as coloco. E penso como o que está e o que não está, se pode demonstrar equivaler-se). Suponho que quase tudo o que alguma vez amei, algum dia se sentou à minha frente neste encontro com o desconhecido. Mas ainda há muito a fazer. Tudo é real. Ou sonhado. Ou a mesma coisa.
José Simões Morais h | Artes, Letras e Ideias MancheteOs primeiros passos [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo Pessanha veio para Macau “na sequência do seu desencontro amoroso com Ana de Castro Osório”, como refere num dos iniciais estudos Daniel Pires. Contudo, já na Fotobiografia do poeta, usando como fonte Francisco de Carvalho e Rego, afirma ser Madalena Canavarro a única paixão que se lhe conhece e como o seu amor não foi correspondido. Com a alma combalida, “uma grave doença nervosa impede-o de se matricular na Faculdade de Direito, neste ano lectivo” de 1888-89. Por uma carta ao primo José Benedito percebe-se como pode esse episódio ter marcado o salto do seu génio de escritor: “nas férias grandes passadas me luziu a ideia de duas séries, uma de prosa outra de verso, que deixavam a perder de vista todos os meus feitos de até então.” Ao mesmo primo escreve, já em 1893, dizendo encontrar-se extremamente deprimido “com esta tristeza que me vem das pequeninas misérias, das restrições deprimentes da vida, e da minha própria fraqueza, que me condena a um isolamento, em que por mim próprio me vou afundando sem remédio”. Assim, se o estado de alma de Camilo Pessanha, já de si uma figura amargurada, ao chegar de Portugal com uma mágoa de amores não correspondidos, o espírito daquele início de Verão, sem chuva e de um calor sufocante, ainda mais o atormenta, ampliando-lhe a depressão. Como se não bastasse, apenas com doze dias de Macau, recebe uma carta do pai a dizer que a mãe está a falecer. Camilo entra em desespero e desabafa as suas amarguras em carta ao amigo Alberto Osório de Castro, que deposita na Repartição do Correio, a funcionar desde 12 de Janeiro de 1885 na Praia Grande, no edifício contíguo ao Hotel Hing Kee. Aí conhece o director Ricardo de Sousa que, desde 1869, acolhera na sua casa, situada na Rua do Campo, nº. 1, o serviço dos Correios. Contudo, após a mudança em 1885, passou a contar também com uma estação postal na Ilha da Taipa. No tempo de Camilo Pessanha, há outras duas caixas postais distribuídas pela cidade: uma no edifício da Junta de Fazenda e a outra na Capitania dos Portos, cem como caixas postais móveis, colocadas a bordo dos vários vapores da carreira Macau-Hong Kong, fazendo-se já o serviço de permuta das malas postais com Hong Kong e directamente com Cantão. As depressões de Pessanha poderão ter inspirado Ricardo de Sousa, que exercera pequena clínica em Hong Kong, a ser um dos sócios fundadores da Pharmacia Popular, inaugurada a 8 de Dezembro de 1895, na Rua da Praia Grande. Nessa altura, está Camilo Pessanha a deixar o Hotel Hing Kee. Em Macau não existe luz eléctrica e a noite é iluminada pelas lanternas alimentadas a azeite (azeite de luzes, de várias qualidades e por vezes também usado na comida), ou a petróleo, que começa a ser mais utilizado devido ao preço barato. Está o assunto sobre o monopólio do petróleo na ordem do dia, apesar de este ter sido entregue no dia 1 de Abril de 1894. Ainda não passara quinze dias e já os compradores se queixam dos abusos do arrematante e pedem às autoridades para o obrigar a entrar no caminho da legalidade, pois serve-se de estratagemas muito ousados para aumentar os seus lucros, sem olhar a meios. Um dos expedientes conhecidos é o de trazerem para Macau latas de petróleo sangradas em Hong Kong, que continham menos quantidade de produto do que as anteriormente vendidas ao público. Tomada de posse Quatro dias depois da chegada a Macau de Camilo Pessanha, por Portaria do Governo provincial de 14 de Abril de 1894, é nomeado Reitor do Liceu o sr. dr. José Gomes da Silva, Chefe do Serviço de Saúde desta província e professor da 6.ª cadeira (Física, Química e História Natural) do mesmo liceu que, além de médico, é um homem cultíssimo. Fica também determinado que lhe seja entregue o edifício do extinto Convento de Santo Agostinho para aí ser instalado esse estabelecimento de ensino secundário e é marcada para 16 de Abril a tomada de posse dos professores e funcionários do Liceu. No dia seguinte, Domingo, realiza-se no Seminário Diocesano um sarau literário e musical em homenagem ao Reverendo D. António Joaquim de Madeiros (desde 1884 Bispo Diocesano de Macau, que engloba Timor, fora Reitor do Seminário de S. José e virá a falecer em Timor em 7-1-1897) tendo estado presente nessa festa o Governador Horta e Costa, com sua esposa, o subalterno Governador de Timor, José Celestino da Silva, com esposa e filhas, os vereadores da Câmara, os Juízes de Direito, o Procurador dos Negócios Sínicos e Delegado da Comarca, Coronel António J. Garcia, bem como os professores do Liceu Nacional, os do Seminário e da Escola Central, Administrador Pacheco, Major Costa Campos e outras pessoas. Seis dias após chegar a Macau, a 16 de Abril, vê-se Camilo Pessanha a sair do hotel: figura franzina e esguia, aprumada e trajando a rigor para a cerimónia de tomada de posse, (com tamanho calor levaria colete e casaca?), rosto resguardado pelo chapéu e na mão (traria já a bengala?). Caminha pela Rua da Praia Grande até ao Palácio do Governo, projecto do arquitecto macaense José Agostinho Tomás de Aquino, construído em 1849 pelo Barão do Cercal e, desde o Governador Tomás de Sousa Rosa (1883-1886), sede do Governo de Macau. Conhecido por Palácio da Praia Grande, com o Governador Januário Correia de Almeida (1872-74) foi acrescentado um corpo central saliente à residência oficial dos governadores, que mais tarde veio a ser o Palácio das Repartições – Economia, Fazenda, Tribunal e Administração Civil e hoje representado pelo edifício do antigo Tribunal, em frente à estátua de Jorge Álvares – que aí apareceram, já toda esta história há muito acabara. Nesse dia o Governador Horta e Costa dá posse aos professores e funcionários do Liceu, excepto a João Pereira Vasco, um dos quatro professores do Liceu que vieram de Portugal e o único que não chegara ainda a Macau. O Dr. Gomes da Silva substitui, no Conselho Inspector de Instrução Pública, o Director da Escola Central, o Sr. Patrício José da Luz, cargo que passa a pertencer ao Reitor do Liceu. Ali se encontram, talvez pela primeira vez, o poeta Camilo Pessanha e o prosador Wenceslau de Moraes. Dois dias depois, o Echo Macaense, junto das notícias oficiais do acto, refere: “Mandou-se entregar ao Leal Senado da Câmara de Macau os edifícios, mobílias e mais pertences das escolas da instrução primária do sexo feminino e dos chineses”. O período lectivo vai já muito adiantado e, por isso, as aulas só irão começar em Setembro: “todavia os professores não estão em ociosidade, porque foram incumbidos de elaborar o regulamento, indispensável para se determinarem os diversos detalhes quanto ao ensino e as atribuições dos empregados”, como refere O Independente de 21 de Abril de 1894. Camilo Pessanha ficou de elaborar o regulamento do Liceu, que virá a ser aprovado a 14 de Agosto. Em carta de 28 de Maio, confidencia ao pai que nos primeiros três anos não deverá ter nenhuns alunos. A sua adaptação consolida-se: “Quase já estou animado a escrever sobre coisas do Oriente. A vida, por aqui, é cheia de impressões novas cada dia, ou eu me finjo que é, em um delírio artificial de grandezas, que me serviu de coragem para partir, e ainda me vai servindo para não esmorecer de todo”, segundo a transcrição de Daniel Pires que observa: “Especial ênfase deve ser dado à sua empatia pela civilização chinesa, em sincronia com outros escritores europeus do século XIX, que mistificaram o Oriente” e, ainda não decorrera um mês de estadia, já Camilo Pessanha tem um professor chinês para lhe ensinar a falar e escrever a língua usada pela maioria da população de Macau, que andará pelas 76 mil pessoas, sendo 3500 portugueses. Durante as trovoadas de Maio, os advogados da cidade mostram não ver com bons olhos Camilo Pessanha exercer aqui advocacia. A Colina de Sto. Agostinho No início, quando hospedado no Hotel Hing Kee, o percurso para o Liceu é curto, mas íngreme, até ao cimo da Colina de S. Agostinho, o pólo cultural de Macau. Camilo sai do hotel e, pela Rua da Praia Grande, segue até à Calçada de Sto. Agostinho que, numa árdua subida em linha recta, o leva após cruzar a Rua Central a chegar à Rampa de Sto. Agostinho. De um lado vislumbra o Teatro D. Pedro V, em frente encontra-se o Liceu. Outro possível trajecto seria caminhar até à esquina do edifício do Hing Kee, entrar logo na Calçada do Governador (actual P. Luís Fróis, S.J.) e subindo o morro, chegar a um cruzamento de quatro ruas. Em frente, descer pela Rua do Gonçalo leva ao Largo do Senado. Para Norte, pelo morro alonga-se a Rua da Sé, ao nível da natural muralha qual osso do dragão, a dar para o Largo da Sé, onde a Catedral e o Paço Episcopal têm por trás o jardim a prolongar-se, descaindo para a Rua Formosa e Pátio das Flores. A Rua da Sé acaba onde começa a Rua Central, no cruzamento com a Calçada do Governador e Rua do Gonçalo (hoje Beco, pois a rua ficará mutilada com a abertura de Almeida Ribeiro) e daí, início da subida, a Rua Central termina na Igreja de S. Lourenço, construída entre 1558 e 1560 e conhecida pelos chineses por Fong Son Ton. Então a principal artéria de comércio da cidade, a Rua Central, que os chineses designam por Lông Sông Cheng Cái (Rua Central do Cume do Dragão), serve de divisória: para Leste a zona rica europeia, a Baía da Praia Grande onde também já alguns chineses moram e, virada para Oeste, uma vasta área no Porto Interior aterrada, onde se concentra o Bazar chinês. As Zonas Baixas, como no livro A Diocese de Macau, compilação de D. Domingos Lam refere, “a Baía da Praia do Manduco (Há Van), ou Baía Baixa onde se encontravam as pontes-cais para os pescadores, a Praça de Ponte e Horta (Si Ta Hau, i.e., a Entrada da Alfândega) e a parte central da Rua do Visconde Paço de Arcos, onde ficavam as pontes-cais para os vapores que ligavam Macau a Hong-Kong, Guangzhou (Cantão) e outros portos no Rio das Pérolas”. Nesse percurso, ainda sem horário para chegar ao Liceu, a atenção de Pessanha distraí-se no exotismo e diversidade, encontrada igualmente por Adolfo Loureiro em 1883 quando escrevia: “Entrei em muitas boticas, como ali se chamam as lojas e casas de comércio, para fazer aquisição de diversos objectos, papel, fatos brancos de linho ou de seda…”. O interesse de Pessanha pela arte chinesa poderá ter surgido nessas lojas de parses, muçulmanos, cristãos e chineses, com um comércio de produtos a captar-lhe a atenção, pois até então, muitos deles nunca os vira. Assim, com ligeiras mudanças às impressões de Adolfo Loureiro sobre o burgo macaense, onze anos depois, Camilo Pessanha encontra ainda os chineses a trabalhar ao domingo e “nus da cintura para cima, se entregavam com ardor aos trabalhos da sua profissão, tomando de vez em quando a sua taça de chá. Pelas ruas encontrava-se muita gente, mas quase tudo chineses, que se parecem todos e vestem quase da mesma forma. Os europeus eram em pequeno número e trajando quase todos uniformes militares. O nosso militarismo manifestava-se ali pela farda, pelas fortalezas, pelas sentinelas, e pelos toques de corneta. Parecia uma verdadeira praça de guerra!”, como refere Adolfo Loureiro. Em frente à Calçada de Santo Agostinho, numa volta de 180º começa a Rampa de Santo Agostinho com degraus, que virá a ser a Calçada do Teatro e logo de frente, o antigo convento dos frades agostinianos a preparar-se, numa solução provisória, para albergar o Liceu. Chega Pessanha ao topo da colina, onde se encontra o Largo de Santo Agostinho, dividido entre as paróquias de S. Lourenço e da Sé. Ao lado do edifício do antigo Convento, a Igreja de Nossa Senhora da Graça, ambos ali edificados em 1591, tendo sido a igreja reconstruída em 1875, de onde vem a estrutura actual. No largo, Pessanha pode apreciar o Teatro D. Pedro V, cujo risco do projecto e a direcção da obra iniciada a 1859 é de Pedro Germano Marques, sendo a fachada, projectada pelo Barão do Cercal e edificada entre os anos 1873 e 1879. O Conde de Arnoso, nas Jornadas pelo Mundo, referiu-se ao Teatro D. Pedro V, indicando que em 1887 era uma pequena mas elegante sala de espectáculos, onde os europeus tinham instalado o Clube União. Havia ainda um prédio, pertença desde 1872 de Francisco Manuel da Cunha e cujo registo o dava no Campo de Santo Agostinho, conhecido por Horta Superior, situado a Leste do Teatro, que Luís Gonzaga Gomes questionará se não seria a actual entrada do Clube. O Clube União, fundado para organizar festas no teatro, teve os estatutos elaborados pelo seu presidente, Pedro Nolasco da Silva, aprovados por portaria de 13 de Abril de 1887. Mais tarde, sem dinheiro para festas, a direcção do Clube União pretendeu hipotecar o edifício do Teatro, mas os sócios fundadores tal não permitiram, o que os levou a criar uma nova Associação, a dos Proprietários do Teatro D. Pedro V, enquanto os outros membros formaram a Associação do Clube União. Pessanha terá comentado ainda no salão do Hing Kee a subdivisão do Club União em duas Associações distintas, pois esta só é aprovada em 1896. Já em 1902, durante uma festa dançante, um tenente porta-se indignamente e, ao ofender a Sra. Canavarro, levanta um tal problema que se fecha o União e surge o Clube Macau. Na vertente do Mato Mofino, encontra-se o Seminário de S. José, fundado em 1728 pelos Jesuítas, com a função de preparar missionários para a China e então a albergar também o secundário da Escola Comercial; a casa de Sir Robert Ho Tung a ser (em 1894) construída (actual Biblioteca) e a antiga casa da missão espanhola, nessa altura Procuradoria da Missão Dominicana Espanhola e hoje a Casa Ricci, onde se encontra a Caritas. Após as aulas, Camilo Pessanha tem três vias para se aventurar pela cidade. Voltar à Rampa de Santo Agostinho e pela Rua Central seguindo para Sul passar à Colina do Bom Jesus e ir até à Penha ou, descendo pela Calçada de Sto. Agostinho, desmbocar na Praia Grande, junto ao Palácio do Governo. Se, à saída do Liceu virar para a direita, encontra a Rua dos Cules, por onde entra no Bazar chinês. Já pela Rua do Tronco Velho, (nome ligado à prisão existente até 1754 numa casa ao lado do Convento de St. Agostinho), logo à entrada apresenta-se um edifício que, mais tarde reconstruído, albergará a Escola Comercial, actual sede do Banco Delta Ásia. Descendo-a, entronca com a Rua da Alfândega, entra na Rua da Cadeia, (que em 1937 receberá o nome de Rua Dr. Soares), para chegar ao centro municipal da cidade, o Largo do Senado.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasIntertextualidade e poema [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uem se move na esfera do poema sabe o quanto inacabado um verso é. Por isso a vigilância exerce esse poder de síntese tão do gosto do poeta amante da língua, onde só ele mais do que ninguém sabe como transformar: mas quais as metamorfoses e transformação do texto poema? É nele que a intertextualidade mais faz sentir o texto base desta variante, como um sincretismo que acrescenta particularidades tão ricas na recolha de todos os elementos de uma caracterização. Não esgotamos em nós a fórmula, a língua não é como o sangue, um circuito fechado: é de correntes abertas. Foi no fazer e refazer dos textos sagrados que encontrámos a primeira polifonia linguística, é nela que acrescentamos corpo ao conceito metafísico de Deus. Fizemo-lo pelo Verbo, tanto como ele a nós nos gerou no princípio. Sendo assim, dir-se-ia que desocultámos o humano que somos pelo texto permanente criado e não gerado, pela recriação contínua do que significa no fim de contas – Todos os Textos- um só texto, contínuo, ininterrupto. Hoje as complexas relações de intertextualidade estendem-se a vários campos criativos, entre os quais os audiovisuais. Há quem, a propósito do tema, fale em «intertexto», pois que todo o texto constitui um intertexto numa sucessão de textos já escritos ou por escrever. A presença efectiva de um texto em outro pode ir da citação, à alusão, à menção indirecta, até ao plágio (embora este último não apresente carácter inventivo que acrescente o original). Há em grau a polifonia que ocorre com o texto inserido em outro texto que no poema temos mais presente como uma monofonia, só quando se trata do poema épico se exerce então e brilhantemente o outro anunciado. Por uma constante leitura de obras paralelas, não raro nos damos conta do que acima foi exposto: que continuamos numa leitura do mesmo texto – hipertexto – com ressonâncias de tempos e espaços que se vão ampliando de forma apaixonante. E passo a citar apenas muito poucos mas significativos exemplos: o poema bíblico do «Livro de Jó» e o poema de Camões «O dia em que nasci», «Sonnets pour Hélène» de Pierre de Ronsard e «When you are old» de Yeats, «Spleen et Idéal» de Baudelaire e «Sacha e o poeta» de Manuel Bandeira, «Soneto amoroso definiendo el amor» de Francisco Quevedo e «Amor é fogo que arde» de Camões. Estes bastam para legendar o título do artigo recorrendo a extractos de todos os poemas. Manuel Bandeira/ Baudelaire Quando o poeta aparece Sacha levanta os olhos claros. o poeta a seguir diz coisas incríveis… Quando, por uma lei das potências supremas neste mundo aparece o poeta a mãe ergue os punhos para Deus que dela se apieda: Pierre de Ronsard/ Yeats Quand vous serez bien vieille, au soir, à la chandelle assise auprés du feu, dévidant et filant… Direz chantant mes vers, en vous émerveillant… When yoy are old and grey and full of sleep and nodding by the fire, take down this book And slowly read, and dream of the soft look.(…). Quevedo / Camões … es hielo abrasador/ es fuego helado/ es ferida que duele y no se siente/ es un sonado bien/ un mal presente/es um breve descanso muy cansado . …amor é fogo que arde sem se ver / é ferida que dói e não se sente/ é um contentamento descontente/é dor que desatina sem doer. «O Livro de Jó» / Camões …então Jó abriu a boca e amaldiçoou o seu nascimento : Pereça o dia em que nasci/ que esse dia se mude em trevas/ que trevas e obscuridade se apoderem dele/ que eclipses o apavorem/ por que não pereci no seio materno O dia em que nasci morra e pereça/ não o queira jamais o tempo dar/ não torne mais ao mundo, e, se tornar, eclipse nesse passo o Sol padeça. …/ a mãe ao próprio filho não conheça. Todas as leituras serão, neste caso, releituras na vertente de construir um hiper-poema que vá definindo, com estruturas de tempos, épocas e autores, a verdadeira marcha do texto que se está fazendo, sempre em aberto, sempre outro e sempre o mesmo. Que os vínculos que professam as correntes também ditam as proximidades e todos os nossos pares são aqueles que connosco constroem um percurso que é o mesmo. Talvez isto explique a cisão da Poesia como arte regeneradora neste momento, dado que as releituras nunca se fazem como um processo contido nos hábitos de ler. Apanhamos a marcha interrompida e avançamos em outro lado como se de uma catedral em pedra se tratasse o grande acórdão de um Poema Final. “Só uma época avara de originalidade produz tanta coisa em circuito fechado, numa demonstração lasciva das suas próprias vivências”. Só uma arrogância idílica provoca tanto desastre na linguagem escrita. A experiência de cada um não serve uma causa comum, a menos que dela se retire elementos que pertencem a toda a Humanidade e, mesmo assim, terá de o saber dizer com labor formal para produzir uma obra de arte. Nunca se viu mesmo tanta gente aparentemente unida sem espírito associativo, faculdade reservada aos de boa memória, que a construção do poema não permite que nos esqueçamos do essencial. Precisamos que a palavra volte a ser o elo mais sagrado em certos domínios e dela só se utilize esse essencial que importa. É uma blasfémia não sermos acordados por uma organização perfeita de um discurso belo como é desesperante tanto ruído para nos fazermos entender.
António Cabrita Diários de Próspero MancheteO planeta dos macacos 26/07/2017 [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s meus amigos de esquerda são – como eu antes de ter mudado para o sul e como diriam as minhas filhas – “muito fofinhos”, mas têm as bússolas avariadas. O combate contra os Trump deste mundo e os nefastos desiquilíbrios que o rasto do neo-liberalismo nutriu só ganharão em serem subsidiários de uma causa mais estrutural e de uma legitimidade acrescida. Não basta ter boas-intenções, urge um esforço para distribuirmos um pouco mais, globalmente, em vez de nos confinarmos na defesa dos nossos privilégios. Para que se entenda ao que aludo lembro o modo como um dirigente do período mais aceso do samorismo definia a “disciplina” nos sermões que dava aos seus subordinados. Contava o dirigente, deliciado: quando os japoneses invadiram a China, o Exército Vermelho e o de Chang Kai-chek, fizeram um pacto tendo em vista combaterem o inimigo comum. O Exército Vermelho enviava contingentes para se juntarem ao exército nacionalista e Chang Kai- chek nunca desdenhava a oportunidade para os chacinar. Embora sabendo disso o exército revolucionário nunca deixou de enviar novos soldados para a matança porque considerava a luta contra os japoneses um imperativo nacional. E os seus soldados, sabendo igualmente a sorte que os destinava, entregavam-se à traição dos seus compatriotas, por disciplina. Era este o espírito elogiado pelo dirigente moçambicano, disposto a trocar a bagatela de muitas vidas pela grande causa. Claro que se esquecia de acrescentar que como grande dirigente ele estaria sempre fora da lista dos disciplinados. Pormenores. Merda para a disciplina. Muito disciplinadamente a esquerda repete slogans, princípios e reivindicações como se a natureza dos desafios fosse imemorial e unicamente diagnosticada como abalos ou avanços económicos. É a que nos convém à nossa esfera de consumidores e por isso a nossa disciplina vê – se condicionada pela leitura dos “nossos” problemas. E então esquecemos feridas inaparentes e invisibilidades essenciais, porque ocultas pela distância e a nossa tolerância face ao sofrimento alheio. O essencial, por exemplo, prende-se antes com o que se denomina neotenia humana. Um conceito que não se desconhece mas de que ninguém tira as devidas consequências. Explica-o Gilbert Durand: “(…) o cérebro humano vem ao mundo imaturo e incompleto. Enquanto um jovem chimpanzé termina o seu crescimento cerebral nos doze meses que se seguem ao nascimento, são precisos seis anos no mínimo, e depois ainda dez a doze anos, para que o cérebro humano se desenvolva. Dito de outro modo, não há desenvolvimento do cérebro sem ‘educação ‘ cultural. “ Por educação cultural entenda-se aqui sensibilidade para o problema e condições de possibilidade para a sua elucidação, do mesmo modo que os problemas de género só são resolúveis a partir de uma educação de base que discirna costumes e natureza, até que a anomalia se torne percepcionada. Considero um escândalo que ninguém brame contra as desigualdades que a desatenção à neotenia gera. Que se omita haver dezenas de nações – de todas as latitudes, raças e regimes políticos – que não oferecem as menores condições para que o grosso das suas crianças possa desenvolver plenamente o seu crescimento cerebral. Que no miolo de países ricos, como os States, haja bolsas de pobreza com efeitos afins. Em Moçambique chama-se à criança subnutrida e de olhar mais vago que a varejeira em linha recta: marasmada. Está marasmada. A criança marasmada não aprende mais do que um cogumelo no frigorífico, tem o seu futuro hipotecado. Acrescente-se à subnutrição os traumas de guerra. Aí o marasmamento constela pelo negativo, vira cratera lunar. Devia acrescentar-se à carta dos direitos humanos o direito das crianças ao pleno desenvolvimento cerebral. País que não oferecesse condições para tal perderia momentaneamente o seu direito à soberania e a ONU – sob uma legislação precisa que coarctasse na base qualquer tentação dirigista – nomearia um governo de técnicos nacionais que, num período de transição, devolvesse a essa comunidade o desenvolvimento técnico, social e humano que lhes garantisse a autonomia futura. País rico que tivesse ainda crianças nessas condições ficava interdito de produzir armas. Era evidentemente uma investida que colocaria de fora ideologias e fronteiras étnicas e culturais. O único aferidor válido para determinar se um povo tem direito à perpetuação da sua soberania seria o de verificar se nele se poderia cumprir a neotenia. Creio mesmo que se tal fosse consignado na Carta dos Direitos Humanos as nações em falta reagiriam para colmatar essa pecha e por uma vez se afastariam da exaurivel cobiça com que intestinamente se esquecem do bem comum para se digladiarem pelos pequenos poderes – sob a ameaça de se verem arredados dos seus privilégios. Eis uma daquelas causas ao lado da qual noventa por cento das demais são modas e bordados. Urge redefinir totalmente a cartografia política. Anulem-se os conceitos de raça e as falácias da identidade, substituindo-os por esta nova pedra angular: todas as crianças de todos os lugares do planeta têm de ter as mesmas oportunidades para o seu desenvolvimento psico-genético… e nem culturas, ideologias ou religiões seriam chamadas ao caso. Evidencia-se aqui uma forma simples e irrenunciável de “organizar o pessimismo “(Pierre Naville ) a que se tem remetido o pensamento crítico. Até aí nunca sairemos do Planeta dos Macacos, creio que nenhuma outra fábula é tão justa. O verdadeiro e mais insidioso colonialismo é este, interno às nações que irresponsavelmente andam à deriva, e é transversal. Claro que dos meus amigos da direita não espero nada.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar ManchetePelin Esmer | A cineasta de Istambul Pelin Esmer (1972, Istambul) estudou Antropologia e é uma conceituada realizadora turca, galardoada com vários prémios. [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]azes filmes documentários e filmes ficcionais, e és cineasta premiada em ambos. O que diferencia uns dos outros? Para mim, os teus filmes documentários não se diferenciam dos filmes ficcionais. Há vários tipos de filmes documentários, de facto. Hoje o filme documentário já não se restringe a sua função informativa, embora ainda seja assim que a maioria das pessoas entendem o documentário. O que faz com que os meus filmes documentários não sejam filmes ficcionais, mas filmes documentários, é que os personagens são reais. Se eu não filmasse aquelas pessoas, ainda assim elas continuavam vivas e a terem a mesma vida que eu retrato. Este é, para mim, o argumento maior para dizer que os meus filmes documentários são filmes documentários e não filmes ficcionais. Evidentemente, os meus filmes documentários não são filmes informativos, não tem essa missão, como por exemplo os filmes documentários que se pode assistir em vários canais da TV cabo. Mas o que hoje em dia determina a diferença entre o ficcional e o documentário é precisamente a não criação de uma realidade. Eu não crio uma realidade nos meus filmes. A realidade já existe, mesmo que eu a não filme; mesmo que eu não existisse. Nos teus filmes ficcionais não crias uma realidade, mas crias um modo de ver. Se preferires, mostras o que estava escondido. Isso, sim. Pelo menos, é o que pretendo fazer com os meus filmes documentários. Pretendo mostrar sentimentos e condições das estruturas do humano que muitas vezes nos estão vedadas no nosso quotidiano. Por outro lado, mais do que dar respostas, os meus filmes são modos de fazer perguntas. E essa é precisamente a razão pela qual eu julgo os teus filmes, a que chamas de documentários, como não documentários. Entendo, mas não posso esquecer que a existência dos meus personagens não dependem da minha criação ou da criação de um escritor, eles existem. Há ainda uma outra diferença, que faz com que esses meus filmes sejam determinantemente filmes documentários: nos filmes de ficção, primeiro escreve-se o roteiro (script) e só depois se filma; no modo como trabalho o documentário há apenas um roteiro imaginado por mim, que é mais uma espécie de índice do que um roteiro, e quando vou filmar não forço a realidade que vou filmar para que actue de acordo com o meu roteiro imaginário. Só escrevo o roteiro no final, depois de ter tudo filmado, na montagem e usando o material filmado, isto é, usando o real e não o imaginário. Depois de Oyun (A Peça de Teatro), que saiu em 2005, nunca mais filmaste documentários. E Koleksiyoncu (O Coleccionador), o teu primeiro filme, saira em 2002. Quer isso dizer que abandonaste os filmes documentários e que eles foram apenas um modo de chegar ao filmes de ficção, 11’e 10 kala (Das 10 às 11), em 2009, Gözetleme Kulesi (A Torre de Vigia), em 2012 e mais recentemente Ise yarar bir sey (Uma Coisa Útil), em 2017? Não, de maneira nenhuma. Não deixarei de filmar documentários, aliás estou neste preciso momento a filmar um novo documentário, fora de Istambul, e nem vejo este tipo de filmes como algo para chegar aos filmes de ficção. Não penso que o filme documentário seja inferior ou superior ao filme de ficção. Fiz filmes de ficção, porque há já um tempo que tinha a ideia de os fazer. Agora, que encontrei novamente um bom assunto para fazer um documentário, regresso a esse tipo de filme. O que me interessa não é o filme documentário ou o filme de ficção, o que me interessa é o filme. Se existir algum personagem ou alguma história reais que me interessem bastante, filmo como documentário; se encontrar histórias ou personagens, quer seja eu que invente ou quer sejam outros que inventem, e que me interessem, filmo como ficção. Para além das questões técnicas, que não podem ser esquecidas, não faço distinções entre filmes documentários e filmes de ficção. Interessa-me fazer filmes. E o que é isso “fazer filmes”? Para mim, fazer filmes é fazer perguntas. Só faz sentido fazer um filme se tiver uma pergunta para fazer. Mas essa pergunta não vem apenas em palavras, já que se trata de usar uma câmara que capta imagens e sons. Posso até fazer essa pergunta ou perguntas sem qualquer palavra, ou com muito poucas palavras, mas sem imagens não será nunca um filme. Depois de tantos prémios internacionais e nacionais, e em especial o de Tribeca, em Nova Iorque, que foi entregue pelo próprio director do festival, Robert de Niro, que mudou na tua vida profissional? Deu mais visibilidade ao meu trabalho, mais oportunidades de encontrar outros directores e actores. Por outro lado, tornou-se um pouco mais fácil arranjar dinheiro para os outros filmes. E, também por causa disso, desse primeiro prémio em Tribeca, Oyun foi o primeiro filme documentário turco a ser exibido nos cinemas comerciais na Turquia. Podes adiantar algo acerca deste novo filme documentário que estás a filmar? Há 14 anos filmei “A Peça de Teatro”, que era um filme acerca de um grupo de mulheres numa aldeia no leste da Turquia, que resolveram fazer uma peça de teatro e com isso falar dos seus maridos, como elas os viam. A sociedade nestes lugares é demasiado fechada e esta peça constituí uma verdadeira revolução na aldeia e, por causa do filme, na sociedade turca. Agora regressei à aldeia e estou a filmar uma digressão que eles foram convidadas a fazer, por toda a região de Mersin. Por exemplo, amanhã elas irão actuar nas montanhas, para os nómadas. Estás familiarizada com o cinema português ou brasileiro? Do cinema português, do que conheço, o que mais me interessa são os filmes de João Rodrigues e o Tabu, de Miguel Gomes. Mas não conheço assim tanto dos novos realizadores. Quanto ao Brasil, embora não possa dizer que estou familiarizada, conheço alguns filmes. Gostei muito de Cidade de Deus, os filmes documentários de Eduardo Coutinho, o documentário Ônibus 174, o Estamira, de Marcos Prado, o Che Guevara e a Central do Brasil, de Walter Salles. Haverá mais que me estarei a esquecer… De resto, é muito difícil os bons filmes, que não tenham uma grande produtora, chegarem às salas de cinema, seja onde for. Esse é o problema do cinema, hoje, em qualquer parte do mundo. Excerto de Gözetleme Kulesi (A Torre de Vigia) https://www.youtube.com/watch?v=8HEzaXn5FiA
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO hóspede do Hing Kee [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]ercorridas pelo centro da cidade as estreitas ruas cimentadas, desde a Visconde de Paço d’ Arcos, no Porto Interior, até à Praia Grande, podia na escassa luz de um primeiro dia de estadia Camilo Pessanha visualizar a extensa baía com árvores plantadas, sombreando o mar, a murmurar no granito da muralha. O aterro, que estendera a Praia Grande até ao Bom Parto, fora realizado em 1869 e a rua arborizada. Árvores que seriam derrubadas por ventos tufónicos em 1883. Na altura era Governador de Macau, Tomás de Sousa Rosa (1883-1886) que, ao Director das Obras Públicas, Capitão de engenharia José Horta e Costa, deu ordem para ser refeito o paredão da marginal e, no passeio, plantar de novo as árvores. Em 1894, ainda estas não haviam adquirido grande porte, sendo a Baía da Praia Grande o lugar europeu de Macau, com três fortes, uma série de esplêndidas mansões e onde se situavam as sedes de muitas das companhias comerciais, bem como o Palácio do Governo e outras repartições, entre elas os Correios. A Rua da Praia Grande estava dividida por duas freguesias: a de S. Lourenço e a da Sé. Começa na Rua do Chunambeiro e até à Calçada de Santo Agostinho pertence a S. Lourenço. Seguindo daí, já na paróquia da Sé, chega à Estrada de S. Francisco. Apesar de toda a rua ter 55 casas, perdera em vinte anos algumas na freguesia de S. Lourenço, mas ganhara outras na Sé. Tal deveu-se ao seu prolongamento desde a Rua do Campo, onde em 1874 começava a Rua do Passeio, nome que desapareceu a favor da Rua da Praia Grande, quando esta a ocupou até à Estrada de S. Francisco. À Rua da Praia Grande vinha dar, junto a São Francisco, o cano real, que começava no antigo Hospital de S. Rafael. O eng. Sousa Horta e Costa escreve num Boletim da Província de Macau e Timor de 1886: “(…) fiz no novo bairro da Horta da Mitra, onde os canos cruzando-se como uma rede, e aumentando sucessivamente de secção, vão desaguar no cano geral da rua Thomaz Roza, que recebe também directamente as águas da parte da montanha do hospital, e vai levá-las ao grande cano, que passa na rua do Campo, que urge modificar, e que é um dos mais importantes de Macau.” Da Colina de Santo Agostinho para Sul, chega-se à Rua da Praia Grande por transversais calçadas e travessas provenientes da Rua Central, o núcleo comercial da cidade. A meio da baía e próximo do Fortim de S. Pedro repousava o Hotel Hing Kee. Era um prédio urbano, com a fachada principal virada a Leste para a Rua da Praia Grande e o número de porta 65, dando as traseiras para a Rua da Sé, com a porta de serventia no número 8. Não sabemos se ainda era assim ou se o edifício já contava com dois andares, de varanda corrida e vinte e quatro arcos e dez janelas gradeadas de ferro nos gudões (armazém, adega) com duas portas juntas uma à outra e uma porta lateral, tudo na Praia Grande, e uma porta traseira que dava para a Travessa Nova, que parte do Largo das Flores e situa-se na Rua da Sé. Hospedado no Hing Kee até ao final do ano de 1895, pagava então Camilo Pessanha “quarenta patacas por mês – cama, roupa e mesa, mas sem direito a vinho, que, conforme conta a seu pai, custava um quarto de pataca por garrafa”, como refere Luís Andrade de Sá, que segue, “um preço suficientemente tentador para ter convencido também colegas de Pessanha, chegados com ele a Macau, como os professores de Geografia e de Francês”. João Pereira Vasco, o professor de Geografia, chegará mais tarde. Este hotel, nos finais do século XIX inícios do seguinte, está para o Hotel Metrópole dos anos 80 e 90 do século XX, pois aí ficaram a residir muitos dos requisitados à Metrópole, até alugarem casa. “E o que mais encantava aos ‘exilados’ era justamente o sortilégio de certas noites, em que as águas se polvilhavam da farinha branca do luar e a brisa do sul trazia indefinidos odores tropicais”, segundo palavras de Emílio de San Bruno [pseudónimo literário de Filipe E. Paiva (1871-1954), Oficial da Armada], no seu romance O Caso da Rua Volong, cuja acção decorre em Macau nos primeiros anos do século XX. E com ele continuando, “Não era um Hotel de luxo, mas havia em todos os seus serviços, o conforto sólido, sadio, disciplinado e limpo do Hotel inglês”. Registo de um hotel Sobre o hotel, Henrique de Senna Fernandes no seu livro Mong-Há escreve um capítulo com o nome Hotel Riviera. Puxando da memória, pois só nos lembramos das coisas quando estas desaparecem, refere: “Um dos edifícios sacrificados ao camartelo dos construtores civis foi o decrépito Hotel Riviera e não foi sem tristeza que o vimos cobrir-se de andaimes e da ola da demolição, os dobres finais duma morte inglória. É que, para o velho residente da terra e para os seus naturais, aquele edifício hoteleiro estava irmanado a muito evento social e histórico e todas as figuras importantes dos últimos cem anos pisaram os seus salões, ponto obrigatório onde antigamente convergiam todos os estrangeiros e todos aqueles que vinham da Metrópole ou doutras partes do Ultramar prestar serviço a estas paragens. “Quando se inaugurou o hotel? (…) posso afirmar que o casarão, ali pelas alturas de 1880, mais ano menos ano, começou por ser Hing Kee’s Hotel, sob a direcção de Pedro Hing Kee…” Pelo registo de propriedade de 23 de Junho de 1883, ficamos a saber que o chinês Fong Rong Xi, negociante residente nesta cidade, apresentou a escritura de 21 do corrente mês lavrada nas notas do tabelião e ser este edifício de um andar, com um pátio à entrada na Rua da Sé e com um jardim para o lado da Praia Grande, contendo nove janelas no andar superior e um terraço no centro e quatro quartos com a frente para a Praia Grande. Ainda nesse ano, a 17 de Setembro sobre o hotel escreve o Eng. Adolfo Loureiro: “Fiquei hoje definitivamente instalado nos meus aposentos que são completamente independentes e mobilados conforme as minhas indicações. Na varanda coberta lá estão as frescas e cómodas cadeiras de rota; no salão, uma grande mesa para estender plantas e desenhos, estantes, secretárias, pequena mesa para quando quiser almoçar ou jantar no meu quarto, etc., no quarto de cama, um leito enorme de armação, mesas, toilettes, guarda-roupas, cabides; finalmente, uma pequena galeria envidraçada, dando para um pátio interior, e nela uma fresca sala de banho, com uma daquelas banheiras chinesas de barro, com esmaltes, que fazem lembrar as antigas tinas de banho gregas ou romanas. Estou optimamente instalado, e encontro no dono do hotel, que é um china cristão, o maior desejo de me ser agradável. “(Pedro Hing Kee,) o bom chinês, com o seu ar muito prazenteiro, cara redonda e cheia, olhos pequenos e vivos, linguagem estranha e curiosíssima, mostrou o melhor desejo de ser-me agradável e de condescender com todas as minhas exigências. Foi ele também que se incumbiu de mandar fazer a minha equipagem. “Ninguém em Macau anda a pé. Há as cadeirinhas da praça, com tarifas aprovadas pela câmara que, em Macau, se apelida Leal Senado. Uma pessoa que se preza tem, porém, a sua cadeirinha, com os seus dois culis uniformizados. A minha devia ser esplêndida com vidraça e stores, e os meus culis teriam cabaias e calções brancos, orlados de azul, com os seus grandes chapéus de palha de bambu também pintados de azul e branco. Já se vê que o meu hospedeiro era todo patriota, com decidido fraco pelas cores nacionais. (…) “Este serviço custar-me-ia: a boa cadeirinha 10 patacas, o fardamento dos dois culis outras 10; e o salário destes dois homens não passaria também de 10 patacas por mês, e a seco! (…) O jantar foi servido com profusão, com boa ordem e com uma cozinha, meio inglesa, meio portuguesa, que me não desagradou”. Vivia-se muito bem no Hotel de Pedro Hing Kee em 1883. Mas onze anos depois, quando Camilo Pessanha, outro funcionário metropolitano, ali se hospeda, durante um ano e meio, pouco sabemos do que mudara. Pedro Hing Kee continua à frente do negócio, o edifício terá já mais um andar, quando o poeta ocupa um dos seus trinta quartos, mas… sem principescas mordomias auferidas pelo engenheiro Adolfo Loureiro, que se encontrava em Macau a fazer estudos sobre a viabilidade da construção de um dique, para obrigar as águas a deslocarem-se para um curso mais restrito, empurrando a corrente para norte da Ilha Verde e daí, rio abaixo, para a foz. Com a construção do Istmo da Ilha Verde, em 1890, parecia ficar resolvido o problema do assoreamento no Porto Interior que, em vinte anos tinha perdido metade da sua profundidade, atingindo em 1883 apenas 1,7 metros. Agora, em poucos anos, volta a assorear.. Pessanha no Hing Kee Luís Andrade de Sá escreve: “O negócio do chinês Pedro Hing Kee assentava ainda numa política de baixos preços que inviabilizava outros projectos de co-habitação, tentados por funcionários deslocados em Macau, como o sistema de república – onde não se vive mais barato, pois a única que existe, onde estão os sobrinhos do Carvalhais, o Praça e um empregado da Fazenda, vai dissolver-se vindo todos viver para o Hotel por em casa gastarem muito mais, comenta Camilo Pessanha em carta dirigida a seu pai. O Hing Kee com as suas atracções, como um cravo, que Pessanha pensa excedentário de algum convento, e tigres-bebés, comprados pelo patrão, permite ainda ao descendente do almirante genovês uma efémera trégua nas agruras que, desde o início, se lhe deparam em Macau. As moiras esbeltas, acompanhadas dos maridos com turbante, um pintor austríaco que todos os dias partia, de cavalete às costas, para a Gruta de Camões, as valsas dançadas ao som do velho cravo, tornaram-se as referências que com maior simpatia descreve dos seus primeiros tempos de Macau. (…) “Camilo Pessanha chegou a queixar-se dos grupos de ingleses que, embriagados, se punham ‘às patadas’ no chão dos quartos não o deixando dormir. A barulheira acontecia aos sábados quando os ingleses vinham de Hong Kong e Cantão para o fantã mas ao poeta também era permitido desfrutar dos favores de uma ou outra pi pa chai [pêi-pá-t’chai ou cantadeira: mulher geralmente jovem e bonita que tocava um instrumento de cordas (pi-pa ou pei-pa) e cantava nas casas de chá e bares de Macau] no conchego do seu quarto. (…) “Para os não frequentadores do Clube União, mais tarde (em 1902) Clube de Macau, ou do Grémio Militar, era ali, no hotel, o centro do cavaco e dos boatos, das intrigas palacianas e ‘chuchumequices’ dos bairros, na pasmaceira colonial do cabo do mundo. Havia comensais, um ou outro estrangeiro que arribava à aventura, os old China hands, título dado aos ingleses com pelo menos doze anos de experiência e actividade comercial na China, oficiais de marinha ou do exército solteiros quando não viviam em ‘repúblicas’, algum funcionário público metropolitano, ainda desgarrado e sem vida instalada. Os macaenses, em geral, preferiam as comodidades do serão e da cozinha em suas casas, e os boémios, os mistérios e os eflúvios do Bazar”. Quando mais tarde, em 12 de Maio de 1894, João Pereira Vasco chega a Macau, também aí se instala. E continuando com Luís Andrade de Sá: “como chega a vir a público na imprensa de Macau – ‘o próprio padre Narciso, jogando uma noite no Hotel do Hing Kee (no Hotel do Hing Kee, notem!) não a manilha ou o solo mas a batota (até às três da madrugada, notem mais!) ganhou ao Sr. João Pereira Vasco umas setenta patacas!’. Com batota ou sem ela, era uma casa familiar a hospedaria do Hing Kee, embora nem sempre bem vista devido à sua frequência”. No final do ano de 1895, Camilo Pessanha deixa o Hotel pois este vai entrar em obras de ampliação. Estas ocorrerão em 1896 e, devido à morosidade dos trabalhos, muitos dos hóspedes resolvem mudar-se. As descrições, feitas por Adolfo Loureiro em 1883 e Emílio de San Bruno nos primeiros anos do século XX, estão separadas por vinte anos e, nesse espaço temporal, o Hing Kee sofreu transformações, tanto internas como externas. Por isso, só ajustando todas essas imagens, incluindo as fotográficas, se consegue imaginar como era no período em que Camilo Pessanha ali esteve hospedado. No Registo de propriedade número 1291, no Averbamentos n.º 1 de 24 de Julho de 1899 é referido: “É de dois andares x(mais)x varanda corrida com vinte e quatro arcos de dois andares e dez janelas gradeadas de ferro nos gudões com duas portas juntas uma à outra, uma porta lateral um número, tudo na Praia Grande e uma porta traseira que dá para a Travessa Nova e confronta de norte com a villa xxx da casa número sessenta e sete xxx com a Tesouraria do edifício dos Correios xxx do mesmo 15 da Praia Grande, de Leste com a rua da Praia Grande e do oeste com a Travessa Nova. 24 de Julho de 1899. Mendes xxx.” Por volta de 1900, encontra-se no Tourist Book de Hong Kong o seguinte anúncio: “Macao Hing Kee’s Hotel – A perfectly new Building – 30 bedrooms – A confortable family Hotel – Five Minutes from the Wharves steamer – Every thing of the Best – Charges very moderate.” Como é normal em Macau, Abril dá início à estação das chuvas, apresentando um céu permanentemente encoberto. No entanto, em 1894, quando Camilo Pessanha chega, encontra dias abrasadores e a cidade a sofrer de seca, consequência da falta de chuva, não havendo água nas fontes e na maior parte dos poços. Segundo relata o jornal Echo Macaense, a água chega a vender-se a cinco avos por pinga (dois baldes ordinários). A monção, que no tempo da vela permitia navegar num mês de Malaca para a China, entre Abril e Agosto, nesse ano de 1894 tarda e a espera está difícil de aguentar. Só em meados de Maio aparece a chuva, acompanhada de trovoadas, o que leva “as fontes e poços a começarem a prover-se de água”.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e Ideias MancheteMondrian e outros vícios 22/07/2017 [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] mais do que certinho, por um sorriso já se travaram batalhas. O sorriso de Helena de Troia, por exemplo, devia ser de estalo. E eu tive de bater-me ao sorriso da minha mulher contra um espanhol de má raça. Coube-me agora a sorte de em três semanas em Lisboa ter encontrado três mulheres com um sorriso coruscante, por quem se iluminariam batalhas. Azar meu que seja falso que tenhamos todos as nossas idades ao mesmo tempo. E que me sinta um coral vivo, colorido por dentro, enrugado por fora. E chega de lamúrias. 23/07/2017 Domingo, uma hora na fila, cativo da máquina de bilhetes para Cascais, para depois viajar de pé, no meio de uma chinfrineira pouco atraente, como se tivesse despertado em Babel. Os custos de uma Lisboa aturadamente cosmopolita. Adivinho que daqui a duas gerações brotará uma meia-dúzia de poetas bilingues, trilingues, sendo o português um resíduo esquinado pelos ventos da história. E prevejo que o número de videirinhos subirá em flecha. Sempre gostei de histórias de videirinhos e admiro-lhes a manha – suponho, por ser prato que nunca confeccionei, “pateta em aberto” de bolso roto e sem agenda secreta. Mas vão proliferar os videirinhos, verdadeiros canivetes-suiços da patranha. Na literatura idem e etc. Ainda ontem, num bar, logo de entrada, me jurava um tipo: “O que acontece comigo e me diferencia é que não tenho vícios!” E eu vejo como o corpo o desmente, como cresceu sem parar, por puro vício; como lhe caiu o cabelo sem parar, por embriaguez genética; como a sua linguagem gestual está num perpétuo ponto-cruz, pelo vício de esgrimir argumentos sem parar até só ouvir o eco da sua voz. Vejo um homem à míngua de tímpanos, incapaz de aceitar o seu silêncio, emaranhado no grude da inteligência – a prazo só lhe resta mentir-se até convictamente acreditar no que a mentira bolça. Com talento, mas ao modo de um cardume num aquário, refém de si mesmo, sem exterior. E eu que não me lembrei de Luis Buñuel nem me enfrasquei em dois gins! Chego a casa e abro um António Ramos Rosa que nunca lera, de prosas e diálogos. E o poeta, para falar da sua extrema fragilidade, começa assim: “Sempre falaram alto. Muito alto. Demasiado alto. Todos exemplares e eufónicos, erectos no seu convencimento, na segurança de si, no excesso de personalidade e de expressão,” Parece um retrato do outro, o homenzinho impoluto. É deste jaez – incontinente, insuperável. Prefiro os sujos, os contraditórios, os que sabem que a si mesmo mentem e por isso perseguem envergonhadamente e falhos a bainha da verdade; os noctívagos que amam a luz; os que têm sede do mal para a diluírem no seu fígado, no afã de não se afastarem do lema de Camus que é o veio de uma ética: «sofrer, não te dá direitos!»; prefiro um gago à rasca a um sofista eloquente; preferirei sempre quem foda a quem se gaba de foder. Talvez porque como Pessoa e tantos outros a quem amo mergulho na submersa nascente do sujo. Pior: há tanta gente digna que se encharcou em vícios que é inadmissível alguém se arrogar ao desplante de produzir sentenças sobre o menor dos vícios. 24/07/2017 Mantive sempre com Mondrian um trato difícil. Em sonhos espancava-o e chamava-lhe bandalho, e voltava a dar-lhe no focinho, agora com cubos e rectângulos e quadriláteros e losangos. Eu, que nem sou viciado na violência – há porém visões ascéticas que me cansam, sobretudo as que se esquecem de que a vida é um funil ao contrário, em centrifugação; que a vida, expansiva, não admite mandamentos. Então descobri-lhe as flores, nos antípodas da sua pintura abstracta. A sensualidade, os matizes de uma cor que procura o seu tecido ou a sua carne, a fulgente precaridade da sua dimensão corpórea, com caules sempre à beira de soçobrarem, pétalas na agonia de caírem, pedúnculos num fio, e uma pincelada láctea, às vezes hesitante, mas prenhe de um lirismo tangencial ao humano e que dá, afinal, outra densidade aos futuros ganhos expressivos da sua abstracção. Desde então, deixei de o espancar nos meus sonhos, temos tido até excelentes conversas sobre os relojoeiros de Samarcanda. Um dia destes conto-vos os meus sonhos com a Ava Gardner. Sou o seu melhor amante de sempre – o Sinatra. onde ficou! Porque, geometrias, só as que se despenteiam ao vento. 25/07/2017 Não digam a ninguém, mas estou a construir uma Arca. Como a de Noé. Para financiar a operação apoiámo-nos nos emolumentos da cultura que me represou e que agora guarnecem as provisões da Arca. Leiloámos as ligas e mais lingerie da última amante de Lacan a pala do olho de John Ford, e, recursivamente, o braço recuperado de Cendrars, as tesouras de unhas de Deleuze, o fígado restaurado de Malcolm Lowry, o pezinho em diamante de Moravia, o mistral de Joris Ivens, a Anne Karenine do Pierrot le Fou, a neve sobre a alameda de coqueiros, na Quinta de Santa Catarina, em Sines, onde o Al Berto espatifava os triciclos, o Casanova de Sollers, cinco rentéis de vinho de palma, as máscaras do mapiko, um pote com os pulsos das palavras de Guimarães Rosa e o lugar de onde a minha infância olhava a camisa-de-onze-varas que nos despia os fetiches: o Cabo Espichel. E para quem acredite em Deus, leiloaremos por fim, a radiografia do pirilampo. Falta-nos discutir o regime musical, pouco transigente Impolutos não arrependidos é que nunca levaremos para a Arca.