Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA narrativa do crescimento “Pinóquio: um livro paralelo”, Giorgio Manganelli, Cavalo de Ferro, 2004. Todas as citações da obra “As aventuras de Pinóquio, história de um boneco”, de Carlo Collodi, foram extraídas da edição portuguesa. [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] preocupação de crescer é subjacente a tudo, já que somos se crescermos, já que se conquista expandido, toda a vida se impulsiona nesse domínio de tal modo acelerado que umas coisas expandem matando hospedeiros de finitudes variáveis que levam no aluvião os vitoriosos com eles. Se está ordenado para viver, a desordem da expansão é cega e sempre expandido exerce a força contrária. E a morte alarga ainda o mecanismo mas só o da modificação, dado que o tempo se torna não urgente na vaga das transformações. De resto, estamos em aceleração constante na casual forma que nos é dada viver com velocidades tais que nem damos conta do quanto existe em nós de fabulosa urgência. É de tal ordem que até a dor se torna sinónimo de crescimento: não queremos perder nada da sua essência e, por isso, se para tanto passarmos por vicissitudes, elas são fixadas como lutas “crescimentistas”. Crescer! Eis o slôgane. Multiplicar em abundância, eis a vontade que orienta o organismo vivo, mas, dado que a função não pode pôr em causa a duração, temos mecanismos de defesa como a contenção, a economia do esforço e até a hibernação, que é uma morte terna e faz da permanência um sonho e está unido a uma ordem vital. Não podemos estilhaçar-nos em milhões de átomos inundantes e fecundadores do mundo sem colidir com os milhões de outras vontades, todas voltadas para o mesmo lado: seria insustentável. Por isso e dado o gigantismo de cada ser, existe nele a vontade de resistir a um domínio cósmico que traz certamente de uma qualquer estrela. Dir-se-ia que mesurar estes aspectos faz o Homem. Sem eles não teríamos chegado até aqui, tantos, e com tantas ideias e tão elaborados. Teríamos sido engolidos pela volúpia da expansão. Esta constante ordem que inscrevemos na defesa do nosso vazio circundante é uma manobra que aprendemos a cultivar, deitar fora o excesso, não nos deixarmos invadir, tomar conta do que restou de uma funda memória que só a quietude pode levar ainda pela mão. Esvaziarmos os cálices, ficar em sóbrio imobilismo, ter a liberdade de não querer saber, e estarmos a centralizar a esfera que nos foi prometida desde o princípio dos tempos. Mas independentemente disto e a ver pela carga que existe em expandir, há neles, expansionistas, formas terríveis de serem vítimas de encantamentos, pois que eles se esgueiram para todos os lados de onde lhes parece vir a força e, como súbditos de um sol menor, entram em órbitas desgovernadas, que só pode ser o lastro de uma magia aplicada às suas febris e famintas condições. O mito de Pinóquio é verdadeiramente actual, muito embora o seu autor não o tivesse adocicado como a «Disney» até porque era um homem que não gostava de crianças. Carlo Collodi, nascido em 1826, pessimista, mas um grande pedagogo, não teve tanta energia a fazer crescer, a denunciar a protuberância do apêndice nasal, a procurar o ventre da baleia por antítese à fada azul. Ele foi descrevendo a relação da criatura com o criador e pondo nas personagens femininas arquétipos de forças várias que assomavam ao herói como as aparições. Senhora, menina, irmã… Pinóquio é aqui uma figura desgovernada criada por uma mente saturnina em busca do seu humano que tarda, uma vez que não se revê em nenhum dos trabalhos da espécie. Há mesmo uma passagem deveras inquietante: Nesta metrópole da euforia não há alegria (queria ele dizer do crescimento); na verdade tinha escrito matrópole; e não sei se esta cidade é mais notável pela recusa de acesso a todas as mães, ou pela contínua presença negativa; esta cidade esta cheinha de fantasmas de mães. A solidão masculina desvenda a manipulação que se exerce nesta cidade ruidosa, projectada pelo falsificador do mundo. O herói passa por metamorfoses, sim, mas o mito do crescimento quase se esconde. O aprendizado da dor como manobra de crescimento não tem aqui significado. A sê-lo, será mais por aquilo que vai fazer dele um ente sociabilizado, que é o crescimento das orelhas e do nariz e que embora sem espelho – uma cautela vigilante da providência da Cidade – ele vai buscar uma bacia com água e fica horrorizado e conhece então três sentimentos: dor, foi alvo de violência que o deformou de si; vergonha, pela metamorfose a que dá um significado; e desespero, porque sente o terror de ter ido demasiado longe ao rejeitar o humano. Todos estes apêndices eram à partida elementos harmoniosos. Ele também se censura por ter abandonado a Fada que era para ele uma mãe. Vemos aqui o quanto andamos à volta do mito do crescimento sem estrutura para nos engradecermos, sair do plano da manobra; observamos como a dureza do pai é um martelo de bigorna na ascensão do filho, oscilamos entre temores de uma Cidade cinzenta em que criamos a imagem e não damos forma à plástica tenacidade da alma. Então ela cresce de descontroladamente, de modo a não ser reconhecida no invólucro. É um longo desenrolar de conceitos quase filosóficos e sem dúvida absolutamente poéticos, nevrálgicos como as auroras que estão sempre do mesmo tamanho em qualquer latitude do mundo. Se a grandeza de um nariz associada à mentira desse frutos, nós seríamos os grandes herdeiros da falsa questão a ver por onde correram as verdades todas a partir de um ponto tão reduzido, mas que alguns têm tão grande. E que não se pega um ser pelo nariz como não se toca na barba de ninguém. Há subtis intenções que são disfarces pois que subtilmente nos fazem ir até anatomias bem desenvoltas nesta matéria. Podem ter produzido grandes mitos e talvez pais temíveis mas não se lhes nota uma grande ausência de verdade. Creio por isto tudo e muito mais que a aceleração “crescimentista” possa ser uma super- masculinização do tecido social que se vê impulsionado para a conquista sem freio de quase tudo o que mexe e trespassa de morte organismos e vidas inteiras na mesma escala de valores que faz disparar a sua proliferação em massa. O crescimento conquistado pela perda de vidas é um naufrágio que só a quimera do movimento dá ensejo e encoraja. De resto creio que tudo está bem. Aquele que acabou de levar a termo uma criação é acusado de ser um torturador, um matador. A acusação é socialmente contraditória, mas filosoficamente não é senão a repetição de uma denúncia de que todos são alvo: aceitou ser pai. Finalmente, por um instante faz-se luz sobre o parentesco entre «crianças» e «bonecos». Um grande tratado ontológico, portanto. E talvez o momento de nos firmarmos na nova substância em crescimento de uma ideia humana que é um propósito intermédio na longa e ainda crescente marcha da sua transformação.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar“Há material para saciar todo o tipo de sede”, Luís Gouveia Monteiro [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]rabalhaste em muitos lugares da chamada comunicação social, desde os jornais até à televisão, e nesta em diversas posições. Vens ainda de um período em que fazer directos implicava uma boa soma de dinheiro e de recursos, contrariamente aos dias de hoje. Queres falar-nos destes diversos momentos da tua vida profissional e apontar-nos as diferenças que encontras entre o início e hoje (sendo tu ainda um jovem de 40 anos)? Se compararmos com a década de 90, há duas diferenças fundamentais. A primeira é tecnológica. Mudaram radicalmente – e para melhor – as condições de produção, distribuição e consumo de comunicação e informação. Estão-se a cumprir muitas das promessa que então se faziam, como a possibilidade de cada um de nós produzir ou consumir exactamente e apenas os conteúdos que desejam. Lembro-me de pensar, quando estive pela primeira vez na SIC, em 1997, que se quisesse trabalhar em televisão por conta própria, comprar uma câmara e montar uma sala de edição, precisaria de vender a casa. Hoje tenho no escritório condições técnicas superiores às com que trabalhávamos nessa altura. Basta-me uma pequena câmara e o computador que tenho em casa. A comunicação já não precisa de um grupo económico. Ora nós ainda somos do tempo em que se comia o que nos punham no prato. As vantagens cognitivas de uma dieta de conteúdos que já depende quase só dos nossos gostos e interesses e não dos do poder político ou económicos são imensas. E já são muito evidentes nos alunos que passam pelas universidades e que trazem no bolso, dentro do telemóvel, várias bibliotecas de Alexandria. Por enquanto a grande curiosidade das massas tem estado especialmente centrada em vídeos de gatos irrequietos e de hipopótamos a comer melancias. Mas há cada vez mais oferta e, no mercado global e hiper-segmentado da internet há material para saciar todo o tipo de sede. Vive-se muito melhor assim e é preciso muita má vontade para uma pessoa se aborrecer. A segunda diferença grande diferença é de clima económico. Nos anos 90, em Portugal, vivia-se uma fase eufórica com a explosão da televisão privada, com redacções de jornal vibrantes e prósperas (Público, Independente, Expresso) e com muito dinheiro a circular. Hoje, em todo o mundo, o jornalismo ainda está a aprender as novas regras da vida em rede. Ainda está a aprender como é que se ganha a vida online. Nesta espécie de infância de um novo modelo negócio os media têm corrido mais atrás dos vídeos de gatinhos do que das bibliotecas de Alexandria. Mas uma vez mais há muitos sinais de que estão a caminho coisas novas e excitantes. O jornalismo de dados é um bom exemplo da procura pelas respostas que se escondem na floresta de números que a realidade produz em constante aceleração. Outro bom exemplo é o cada vez mais enérgico jornalismo lento que está a surgir como resposta ao jornalismo light (aquele que pratica o copy/paste, anda obcecado com os gatinhos e publica artigos de investigação sobre as 50 maneiras de aumentar a auto-estima). São jornalismos que procuram a criação de públicos a longo prazo por oposição à actual lógica de tráfico de atenção, que corre atrás da remuneração rápida de curtos picos de entusiasmo, e depois o olvido. Neste momento estás a ensinar, na Universidade de Coimbra, e em Lisboa, na Nova, na Faculdade de Ciências Sócias e Humanas. É um trabalho mais recompensador? Sim, muito recompensador, mais do que nas redacções. Nos últimos anos em que fiz jornalismo comecei a sentir com uma frequência preocupante que teria sido mais ecológico ficar em casa. A grande fatia do trabalho passou a ser sobre o efémero insignificante, sobre aquilo que passa e não sobre aquilo que fica. Em cima disso comecei a sentir-me a perder tempo e a perder faculdades. Voltando à metáfora da dieta: quando se trabalha todos os dias usando o efémero como principal alimento do espírito, corre-se o risco de estar apenas a engordar uma espécie de vazio, cujo exemplo podem ser aqui os despachos das agências noticiosas, cujos prazos de validade são muito curtos, por vezes desactualizam-se em quinze minutos. Sentia-me a transformar-me numa daquelas pessoas que falam com facilidade e energia sobre todo e qualquer assunto, nada sabendo de coisa nenhuma, um especialista em banalidades, dono de uma competência apenas performativa, mas sem capacidade de transformar informação em conhecimento. É claro que há grandes jornalistas, tanto especialistas como generalistas, que fazem de facto a diferença, melhoram a vida da gente. Mas eu comecei a sentir que era quase sempre melhor para o ambiente ficar em casa. E a grande verdade é que desde os primeiros passos na redacção do Público em 1993 – com dezoito anos, ainda de calções e muito vagamente alfabetizado – o que eu queria era escrever, era dar um ar da minha graça. Informar era um ganho colateral. Isso foi-se tornando claro ao longo dos anos e julgo que esteve numa lenta deriva que começou há mais de uma década e que me está a levar da realidade para a ficção. Podes explicar melhor, essa deriva da realidade para a ficção? Acho que tudo se resume a esse pecado original de, desde o início, ter estado sempre mais comprometido com o artesanato de contar histórias (com texto, com imagens) do que com o direito e o dever de informar. Ora o jornalismo é demasiado importante para ser entregue a diletantes. E eu sinto-me melhor neste lado civil da ficção e acho que sou mais útil aqui, na companhia dos filósofos e dos poetas. E como está hoje a universidade em geral e em particular as de comunicação? A universidade está muito bem e recomenda-se, sobretudo por causa dos alunos. Têm as tais bibliotecas no bolso e são hoje pessoas mais avançadas do que éramos, exactamente naqueles cursos, há vinte anos. Quanto ao resto da instituição, como em todos os universos, há dias bons e dias maus, mas em todos eu sei porque não fico em casa. Mesmo quando as condições de trabalho são duras e há um dramático subfinanciamento o que se sente de forma muito dura nos cursos que precisam de aparato tecnológico, como é o caso. O João César Monteiro dizia que a maturidade lhe tinha ensinado que o cinema não precisa de equipamento, precisa apenas de um pouco de luz dentro de uma cabeça. Digamos que nos últimos anos temos levado este conceito às últimas consequências, mas sempre vão existindo umas câmaras e uns estúdios, tanto em Coimbra como na FCSH. E há cada vez mais luzes dentro de cabeças e, César tinha razão, isso é o fundamental.
José Simões Morais h | Artes, Letras e Ideias ManchetePrimeiro olhar de Pessanha sobre Macau [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o riquexó, puxado por um cule que agarrava os varais para levantar a cadeira pelo eixo das rodas, Camilo Pessanha prepara-se agora para partir da Rua do Visconde de Paço d’ Arcos, assim chamada desde 15 de Novembro de 1882, quando até então era designada apenas por Rua Marginal do Porto Interior. A vontade era de continuar para Sul, pois os aterros, desde as Portas do Cerco até ao Largo do Pagode da Barra, foram feitos entre 1867 e 1869, quando a uma parte dessa marginal rua foi dado o nome de Avenida António Sérgio. Um dos lados da via tinha uma berma num dos ramos do Rio Oeste e na outra edifícios de dois andares, cujo rés-do-chão se encontrava recuado. Eram, normalmente lojas ou armazéns, quase todos relacionados com os negócios marítimos, ficando o andar superior destinado a residência. Em túnel, esse passeio permite aos transeuntes resguardarem-se da chuva e aos comerciantes exporem fora das lojas os produtos. Tal arquitectura, dos finais do século XIX, é conhecida por Kei Lau, sendo especial da área de Lingnan, que compreende as províncias de Fujian, Guangdong, Guangxi e Hainão, no Sudeste da China. A Pessanha não faltaria a vontade de seguir pela tão apelativa estrada marginal, onde desembarcara vindo de Hong Kong, encontrando-se próximo o cais do barco de Cantão, seguido por um outro, onde se descarregavam as mercadorias provenientes da província de Guangdong. Terá imaginado essa idílica viagem, quando está ainda na Rua do Visconde de Paço d’ Arcos, que em 1882 tinha 26 prédios, começava na Rua do Guimarães e acabava na Rua do Miguel Ayres. Já o Cadastro de 1906 refere esta rua, conhecida em chinês por Pa-su-ta-ni-ku-kae, na freguesia de Santo António, com 34 prédios, a começar e acabar na Rua do Guimarães, onde ficavam os cais dos vapores Mao-cheong, do Ying-king, do Fat-on, do Ung-cheong, do Tai-on e do Hong-sam. Mental viagem a circundar pela marginal até à Praia Grande, só em 1910 poderá realizar. Plano para mais tarde O percurso que Pessanha estava prestes a começar a fazer, já a 1 de Novembro de 1890 estava descrito no jornal O Macaense: “Quem desembarca do vapor de Hong Kong, no porto interior, e quer vir à Praia Grande, tem de atravessar um dédalo de ruas estreitas e imundas, orladas por casas de paredes escuras e tristes. Há principalmente uma travessa muito estreita, junto à Rua de Felicidade por onde têm de passar todos os que quiserem transitar em jenrickshas. É tão estreita que um homem de braços abertos não pode passar por ela. É ela a Travessa do Tintureiro (Tai Pang Hong), ou Travessa do Falcão, com menos de cem metros que, começando no Largo do Senado, termina na Rua dos Mercadores. Houve em tempos um projecto bastante grande de fazer uma larga avenida, que partindo do Largo de Caldeira no porto interior, viesse acabar na Praia Grande, passando pela frente do edifício do Leal Senado. Para esse fim seria preciso expropriar um bom número de casas chinesas, e uma parte da casa que é actualmente o Hotel Hing-kee, e calculava-se que seriam necessários $30 000. Não pedimos agora tão grandiosa obra. Por enquanto talvez bastaria modificar a Rua de Felicidade, alterando-a gradualmente desde o seu começo na Rua Marginal (Rua do Visconde de Paço d’ Arcos), para torná-la transitável para jinrickshas, que agora não podem subir a ladeira que a vem ligar com a Rua dos Cules. Os prédios da Rua de Felicidade pertencem a uma sociedade de negociantes abastados, que são bastante condescendentes. Não será difícil persuadi-los a converter, as que hoje servem de lupanares, em lojas mais asseadas e com frontarias mais alegres, com o que eles virão finalmente a lucrar. Essa transformação não poderá deixar de ser lentamente feita, mas se o governo melhorar aquela rua de modo que a torne mais frequentada, os proprietários por seu próprio interesse irão transformando os prédios, enxotando dai os lupanares.” O capitalista chinês Vong Loc formara uma Companhia, a 绍昌堂 (Shao Chang Tang), que adquiriu a Fábrica de Processamento de Chá Pereira, com a frente para a Rua da Alfândega e traseiras situadas junto à água, e comprou as antigas casas em redor do Beco de Matapau e por aterro, no início dos anos 60 do século XIX foi construída a Rua Nova da Felicidade Abundante, em chinês Fok Long San Kai. Nessa nova zona do Porto Interior, que compreendia a Rua da Felicidade, Beco, Travessa e Pátio da Felicidade, Pátio do Aterro, Rua da Caldeira, Travesso do Bazar Novo, Rua do Bocage, Travessa das Virtudes, Travessa do Auto Novo, foram construídas mais ou menos 160 lojas. Em 1864, a Companhia desfez-se devido aos sócios estarem desanimados, pois as lojas continuavam vazias e Vong Loc comprou-as todas, mudando o nome à Companhia para 集成堂 (Ji Cheng Tang), tornando-se então o maior proprietário de Macau. Trinta anos depois, à estreita Rua da Felicidade, de casas com portas de espaldar e tijolos cinzentos, virá Camilo Pessanha com ela iluminada pelos candeeiros vermelhos a indicar os coulaus (restaurantes) para apreciar a música das pei pa tchai, mulheres assim chamadas por tocarem pei pa (pipa), um instrumento musical de quatro cordas e cantarem pela noite dentro. Vestindo um qipao (túnica), eram preparadas para agradar aos comensais. Segundo o que o Engenheiro Director das Obras Públicas Augusto Abreu Nunes descreve a 11 de Fevereiro de 1903: “As ruas mais importantes que cortam o Bazar e estabelecem a ligação entre ele, a rua Marginal e o centro da cidade, na direcção Leste/Oeste são: a Rua da Felicidade e a Rua das Estalagens, duas ruas estreitas, tortuosas, tendo em alguns pontos a máxima largura de 6,5 metros! Estas ruas são ligadas transversalmente por outras, em piores condições ainda: a Rua dos Mercadores, a do Mastro, a do Aterro Novo, etc., chegando nestas travessas a haver largura de 3 metros e não sendo a maior nunca superior a 7 metros. Resulta deste estado do Bazar, uma aglomeração enorme de casas de negócio, e portanto de gente e carros pelas ruas, que se atropelam constantemente, dificultando o trânsito e o comércio. A estes inconvenientes acresce, como consequência, que as condições higiénicas daquele recanto são deploráveis, isto é: uma falta de ar e luz em todas as habitações, becos e ruas, e um fétido insuportável por toda a parte”. Para chegar ao Largo do Senado A Rua do Visconde Passos d’ Arcos tinha à sua frente a oblíqua Rua do Corte Real (Co-ti-li-ha-kai), que termina junto à Rua Nova do Comércio no cruzamento com a Rua do Guimarães. Fosse essa a opção, logo na Rua do Guimarães começa a Rua do Matapau, que permite atingir a Rua dos Mercadores e daí seguir depois pela Travessa dos Tintureiros até à Praça do Senado, cruzamento com a Rua da Cadeia. Se escolhesse prosseguir um pouco para Sul, pela Rua do Visconde Passos d’ Arcos, até onde acaba a Rua do Guimarães, poderia entrando pela Rua da Caldeira, pequeno porto (caldeira) aterrado em 1875, prosseguir pela Rua da Felicidade e cortando para a esquerda, a Rua do Aterro Novo, onde virando para a direita, encontra a Rua do Matapau (a dos marceneiros), para chegar à Rua dos Mercadores. Fora de hipótese era escolher ir para Norte, pois o percurso era bem mais longo e ficava fora de mão. Mas se tal ocorresse, encontrava a Rua da Madeira, que depois de cruzar com a Rua do Guimarães e com a Rua Nova de El-Rei (actual 5 de Outubro), um pouco mais adiante apareceria as travessas da Cordoaria e do Pagode, seguindo até à Rua do Mastro. Também para aí chegar havia, antes do Largo de Matapau, a Rua do Pagode, que seguia paralela à Rua da Madeira. Já da Rua do Mastro para chegar à Rua dos Mercadores havia para quem circulava pela Rua do Pagode, desviando um pouco para a direita, a Travessa das Portas, sendo no entanto muito estreita e por isso, só a pé tinha passagem. Duas outras estreitíssimas travessas faziam a ligação da Rua do Mastro para a Rua dos Mercadores, a dos Becos e a Travessa dos Mercadores. Outro percurso era continuar ainda mais para Norte pela Rua do Guimarães, seguir até ao Largo do Matapau (Largo do Pagode do Bazar onde se encontra o Templo de Hóng Kông e começa a Rua Nova de El-Rei, actual Cinco de Outubro) e daí, pela relativamente larga para a época Rua das Estalagens, seguir até à dos Mercadores. A ligar a Rua dos Mercadores com o Largo do Senado, existia a Rua da Palha, que dá ao Largo de S. Domingos, onde se situa o Quartel com o mesmo nome, instalado no antigo Convento. Contíguo a esse largo está o Largo do Senado. De referir, como o Padre Manuel Teixeira nota, que o Bairro de S. Domingos iria em breve ser totalmente remodelado pelo Director das Obras Públicas eng. Abreu Nunes. Na altura, ainda se estava à espera do projecto para o Mercado de S. Domingos, devorado por um incêndio a 15 de Novembro de 1893 e para o qual só em 19 de Julho de 1904 foi aberto concurso para a obra de construção. A venda dos produtos era desde então feita na Travessa do Soriano, que estava transformada num lugar imundo, um depósito de detritos orgânicos, um verdadeiro foco de infecção. Do Senado para a Praia Grande A viagem, feita em corrida num passo miúdo e cadenciado, avança por entre outros carros, sendo usada a voz como buzina. Camilo Pessanha, ao cruzar pelo triangulado e aprazível Largo do Senado, já não verá o “grandioso, soberbo e extraordinário urinol dos cupidos, que com tanta arte e perfeição aí existira. Era uma obra pitoresca, admiravelmente arquitectada”, que daí tinha sido acabada de retirar, como refere um jornal de 31 de Março de 1894. Já toda a zona ocupada pelos edifícios da Santa Casa da Misericórdia (Igreja Visitação de Nossa Senhora, Cartório e Casa dos Expostos, que em 1883 estavam em risco de ruína) no Largo do Senado, em 1888 tinha sido remodelada. Foram abertas ruas, construído um novo Cartório e renovadas as casas de habitação com rés-do-chão e primeiro andar aí existentes, onde em 1893 e durante cerca de um ano no n.º 14 do Largo do Senado teve Sun Yat-sen o seu consultório. Do Largo do Senado havia duas vias para chegar ao Hotel Hing Kee, na Praia Grande. Entrepunha-se no caminho um pequeno outeiro a partir da Travessa dos Anjos e subindo passava pelo Largo da Sé até ao início da Rua Central, de onde mais íngreme nascia um cortinado de colinas trepando para Sul, atingindo o ponto mais alto na Colina da Penha. Pertencia essa cadeia montanhosa ao corpo do Dragão da cidade. Para atingir o Largo da Sé, vindo da Rua de S. Domingos, as travessas do Bispo e de S. Domingos e desde o Largo do Senado, através da Rua do Roquete até à Rua da Sé. Do Largo da Sé onde o Paço Episcopal e a Catedral se encontram, descendo pela Calçada de S. João entra-se na Rua da Praia Grande, onde virando para a direita, um pouco adiante estava o hotel. A Calçada de S. João era usada para enviar o peixe aos vendedores que esperavam e ansiavam por um novo Mercado de S. Domingos. A meio da Calçada S. João, à direita de quem desce e na continuação da Rua Formosa, existe o Pátio das Flores, talvez então com ligação à Travessa Nova (situada na Rua da Sé), que servia as traseiras das casas da Praia Grande. Mas mais rápido para chegar ao hotel era pela Rua do Gonçalo subindo o outeiro até ao começo da Rua Central e nesse cruzamento, onde também vinha acabar a Rua da Sé, descer pela Calçada do Governador para a Rua da Praia Grande. A opção foi pela Rua do Gonçalo e o riquexó, puxado pelo cule descalço, trepou aquele lanço em declive até ao começo da Rua Central, junção com a Calçada do Governador. Nesse cruzamento, uma patrulha da polícia controla os cules que puxam os jinrickshas pois, não lhes sendo permitido conduzir esses carros com passageiros na subida e descida da Rua Central, os transgressores eram multados. Assim se evitavam os repetidos e contínuos desastres que até 1893 iam ocorrendo em calçadas mais ou menos íngremes. O jornal Echo Macaense, de 29 Agosto de 1893 escrevia: “Como se sabe, a ordem, que insensatamente havia sido dada para se vedar o trânsito pela Rua Central a indivíduos que fossem de carro puxado por um só chinês, foi afinal, em consequência sem dúvida dos repetidos clamores da imprensa local, modificada no sentido de não se permitir que subam ou desçam aquela rua, senão aos carros que conduzam mais de um adulto, sendo tirado por um cule. Sem embargo, porém, dessa modificação, bastante razoável, continuam a fazer-se ouvir queixas contra a patrulha da Rua Central, sendo raras as reuniões onde se não comente este ou aquele incidente, ocorrido na mencionada rua”. Na descida da Calçada do Governador, Pessanha encontra de frente o Fortim de D. Pedro. O riquexó, travado pelo cule ao chegar à Praia Grande, desvia para a esquerda e quando atinge o hotel já a luz do dia esmorece. Partira de Hong Kong no vapor Heungshan às duas da tarde e anoitecia quando desce do riquexó completamente extenuado. Tem, no entanto, antes de antes de avançar para a porta do hotel, a tentação de admirar a belíssima baía com a sua graciosa curva de 1300 metros de extensão. Espreitando, não se via passagem para lá do Baluarte do Bom Parto.
Anabela Canas Iluminação ArtificialE a natureza produz monstros [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo delírios líricos. Como poemas soturnos e assustadores. Emoções sem limite. Razão. Intenção. Só a inevitabilidade contida no seu natural ser assim. Grandiosa e terrível. Nem seria necessário que a natureza produzisse monstros. Na sua arrasadora e sublime potencialidade de beleza – de violência. Não seria necessário, mas é talvez de aí que surgem modelos que enformam outras dinâmicas para aquém da pura percepção. Por vezes penso que são os dados desta percepção, residente nos dados dos sentidos, que formam a base estrutural de todo o sentir em desabafos metafóricos, que se transmuta em realidade temida nas ígneas e intangíveis teias de realidade, em que movemos os nossos medos como peões num jogo de tabuleiro. E não o contrário. Da poética natureza, a uma realidade induzida. Mas não seria preciso a natureza produzir monstros de rugido e violência histriónica, que nos arrasam, com a facilidade com que um deus esmaga, com uma pontinha só de uma unha divina, a insignificância que somos. Que conseguimos ser. Numa contradição de escalas que por vezes subverte a natural expectativa, e devolve a possibilidade de domínio perverso, afinal – um botão certo no local certo e o dedo errado a premir – de tudo o que transcende. Da implosão. Ao ponto de gerar entropia na ordem natural da natureza, suficiente e em excesso mesmo, para erradicar esta fantasia delirante que somos no reino natural. Fruto de um sonho mediúnico do cosmos na sua evolução e inércia em cadeias de reacções químicas, disparates da energia a brincar com átomos e etc. A grandiosidade do delicioso, único e temível disparate cósmico, o enlevo emotivo que nos coloca face ao grandioso e sublime no que é o cenário natural, algum conhecimento científico, alguma propensão para a contemplação e para a intermitência entre o enorme em nós e o ínfimo que se insinua irremediavelmente. A grandeza em que nos afogamos e a ilusão de tudo abarcar em nós. Talvez tudo isto seja a base do romantismo histórico. Eterno reflexo expressivo da secreta dualidade que a psique nos permite e obriga a transportar. Mas não seria essencial esse confronto com a monstruosidade natural para que as próprias paredes da casa reproduzam autonomamente monstros hirsutos. E por um tris – não, não é por uma fracção de segundo no acaso e de raspão, e a inevitabilidade consistente que nos molda – estamos a falar do abismo. Assim. Por exemplo. A vocação abismal da noção de si, dos outros para fora e para dentro de nós, do amor. Por exemplo. E a eterna pergunta da localização face ao ser desse abismo e dessa abismal existência em si. Exterior ou interior. É, qualquer abismo, exterior ou interior à ideia que dele fazemos. Debruçados na amurada que dá para um grand canyon da mente em que nadamos preguiçosa ou inadvertidamente. Ou talvez dizer, afinal, irremediavelmente. Perscrutamos a noite do universo estranho na sua complexidade. Com a mesma naturalidade com que escolhemos frutos no mercado, ou joias numa joalharia. Tudo imperscrutável na sua aparente naturalidade sem origem. Que abismo, na topografia das grandes massas rochosas, é parte da ideia que dele fazemos, que abismo se forma do saber da grande erupção que nos antecedeu lá muito atrás quando esse gigante rochoso se levantou do fundo dos mares, que abismo se insinuava no desconhecimento de antigos, e que ameaça real a natureza nos grita ou segreda calmamente quando em repouso. E que parte é parte do temor que lhe temos como se sempre a queda fosse inevitável. A saber. Mais tarde, ou nunca. Não fosse alguma vocação vertiginosa que nos colhe de dentro. Que metáfora mais monumental, global e romântica nessa enorme potencia natural de universo a engolir as larvas, ínfimas formigas que somos, do que um glaciar monstruoso e atemporal, que tristemente rendido ás maquiavélicas, pontuais e repetidas investidas ínfimas, de seres ínfimos, em que cada um faz da sua pequenez força, e que, somados os dividendos de culpa, derrota a vontade natural de uma inércia com as regras próprias do universo, e se derrama como um caudal imenso e destrutivo de lágrimas, sem olhar a estragos em cadeia que seguirão pelos séculos dos séculos. Não digo amém. Até um desgosto de icebergue destrói em redor. Não somos um pouco assim? E de seguida, já de seguida no tempo, continuamos a escrever enormes e irremediáveis páginas de memória. Inscritas na destruição subtil, imparável e sabe-se talvez, definitiva. E só apetece trancar a gaveta das coisas difíceis. Ilusão. Fantasia. O que não é perscrutável manusear no mundo real. Remetido para a eternidade leve e irresponsável do sonho. Mergulhar fundo debaixo das ondas fofas de um edredão de penas outras. Mas nada vale e de nada vale. Dentro um calor dos infernos, e fora, o frio glacial de uma realidade quase inacreditável de tão real. Inacreditável. Como só a realidade o é.
Manuel Afonso Costa Fichas de LeituraMolina e a escrita [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Beatus Ille, um estudante é seduzido a escrever uma tese de doutoramento sobre Jacinto Solana, pretensa figura mítica de poeta da resistência republicana e afinal apócrifa, mas supostamente condenado à morte no final da guerra, depois indultado e finalmente morto durante uma escaramuça com a Guarda Civil. O romance decorre a expensas da investigação e vai-se revelando através de uma lógica de mis em abîme. A dada altura a biografia de Jacinto Solana passa para segundo plano e ganha forma a morte de Mariana que foi mulher de Manuel e amante de Solana. Afinal o crime que a a propósito da investigação sobre Solana, Minaya descobre, está relacionado com uma mulher perturbadora e o investigador cai nas malhas do seu poder de sedução, uma vez que sem o saber, Minaya ao apaixonar-se por Inês, repete a história de há trinta anos de Jacinto Solana e Mariana, a mulher mandada matar pela mãe de Manuel. A grande personagem do livro é esta mulher, mãe de Manuel, reaccionária, preconceituosa, racista, odiosa mesmo, mas de uma fibra conservadora notável. Não temos como não a respeitar e até admirar, na sua fidelidade inquebrantável aos valores que a formaram e lhe deram a consistência moral e de carácter para segurar a Casa, já que desde o sogro, Dom Apolonio, passando pelo marido até ao filho se viu rodeada de um bando de falhados e pusilânimes, aristocratas decadentes, dissipadores por natureza, fracos em tudo, tanto nas convicções como nos princípios, incapazes, cobardes e incompetentes, mas com um aristocrático fair play, como qualquer aristocrata que se preze. Vale a pena, pois é o lugar oportuno, oferecer aqui uma página das melhores do romance, das mais divertidas e ao mesmo tempo das mais sérias e uma pérola da arte narrativa de Molina. Minaya é chamado ao quarto de D. Elvira, a megera: “Entre, ouviu primeiro a dura voz do outro lado da porta, e a seguir, quando entrava, o leve cheiro de Inês perdeu-se num perfume desconhecido e denso que ocupava tudo, como se também fizesse parte da presença não visível, da encerrada solidão das roupas e dos móveis de outro tempo que envolviam D. Elvira. «Não é o cheiro de uma mulher», pensou, mas sim de um século: assim cheiravam as coisas e o ar há cinquenta anos. Sem levantar os olhos, Inês fez uma vaga reverência e pousou a bandeja numa mesa próxima da janela. «Vai-te embora», disse D. Elvira, e não olhou para ela, porque tinha estado a observar Minaya desde que entrara e mesmo quando ele a ajudou a sentar-se perto da mesa do chá continuou a oihar para ele no espelho do guarda-fatos, desajeitado, solícito, inclinado sobre ela, consciente do silêncio que não sabia como quebrar e dos olhos frios e sábios que já o tinham julgado. — Pareces-te com a tua mãe — disse, contemplando-o devagar por trás do fumo e da chávena de chá. — Os mesmos olhos e a mesma boca, mas a maneira de sorrir é do teu pai. Era assim que sorria o meu marido e todos os homens da sua família, e até a tua avó Cristina, que era tão bonita como tu. Não viste o retrato dela que o meu filho tern no quarto? Sorriem para que vos desculpem as vossas mentiras, nem sequer para as ocultar, porque sempre vos faltou o sentido moral necessário para distinguir o que é justo do que não o é, ou para que isso vos importe. Era por isso que o meu pobre marido se desculpava antes de cometer um erro ou de dizer uma mentira, nunca depois. Para ele não havia nada que não pudesse ser perdoado. Nunca o seu sorriso foi mais cândido nem mais encantador do que quando me informou que tinha vendido uma quinta de mil oliveiras para comprar urn desses automóveis italianos, Bugattis, creio que lhe chamavam. Foi com ele e com uma galdéria a Monte Carlo e voltou daí a urn mês sem automóvel nem galdéria, e sem um cêntimo, é claro, mas veio com urn smoking correctíssimo e um ramo de gladíolos e sorriu como se tivesse viajado até à Côte d’Azur exclusivamente para me comprar as flores. O meu filho, em compensação, nunca soube sequer sorrir como o pai, ou como o teu, que também era urn aldrabão da pior espécie. Equivocou-se tanto como qualquer deles, mas corn toda a seriedade do mundo, como se comungasse. Foi como voluntário para esse exército de esfomeados que nos tinham tirado metade da nossa terra para a repartirem, e por pouco perde a vida lutando contra os que eram de facto os seus, e como se ainda fosse pouco casou com aquela mulher que já era prato de segunda ou terceira mesa tu entendes-me, e até queria ir para França corn ela. Mas tenho a certeza que tu não és inteiramente como eles, como o meu marido e o meu filho e o louco do teu pai, ou como o teu bisavô; D. Apolonio, que os contagiou a todos corn a sua vigarice e a sua loucura, mas não corn a sua capacidade de ganhar dinheiro. Todos uns aldrabões, bárbaros ou inúteis, ou as duas coisas ao mesmo tempo, como o meu marido, oxalá Deus o tenha na sua glória, mas que se tarda mais alguns anos a morrer nos deixa na miséria, corn aquela mania que the deu de coleccionar primeiro cavalos de puro sangue e depois mulheres e automóveis. Por isso fez tanta amizade com Afonso XIII quando era deputado. Tinham os mesmos hobbies, e nenhum dos dois se preocupava em ocultá-los. Se calhar o teu pai contou-te que quando o rei veio a Mágina em 24 esteve uma tarde a tomar chá connosco, nesta casa. Pálidos de inveja, ficaram os fidalgos, ao verem a familiaridade corn que o rei tratava o meu marido, (…) Na última noite da sua visita a Mágina, Afonso XIII desapareceu, coisa que ao que parece tinha por costume, e ninguém, nem a rainha nem D. Miguel Primo de Rivera, que tinha vindo com ele, nem os militares da escolta sabiam onde encontrá-lo. Às duas da manhã acordou-me o telefone. Era Primo, tão nervoso que nem parecia bêbedo. «Elvira, encontra-se Sua Majestade em sua casa?» «Mas D. Miguel», disse-lhe eu, «vossência acha que se o rei estivesse aqui eu me tinha deitado?.» E sabes onde estava? Na Ilha de Cuba, que já então era a única fazenda que nos restava, recebendo corn champanhe duas galdérias de luxo que the tinha arranjado o meu marido, que creio que gozava mais fazendo de terceiro para os amigos do que de galo de briga. Voltou ao amanhecer, despiu-se corn a mesma naturalidade que se viesse da ópera e disse-me, antes de adormecer: «Verdadeiramente, querida, Sua Majestade é um Sportsman». Depois disto, eu não devia escrever mais nada, mas enfim… Beatus Ille é um óptimo exemplo de uma narrativa metadiegética, na medida em que procede de tal modo, trabalha tão bem a verosimilhança e o domínio simbólico que consegue iludir em nós os tempos narrativos e seduzir o leitor para um plano em que é tentado a não ser capaz de distinguir o diegético do metadiegético. Minaya tão depressa nos aparece como um elemento extradiegético como pela via da sua relação familiar com o irmão de Manuel, completamente envolvido pela dimensão diegética, uma vez que é seu filho e portanto sobrinho de Manuel, que o acolhe em sua casa nessa dupla condição de familiar e de simples investigador académico, reparando uma injustiça,. Ele, de resto veste as duas personagens alternadamente, e torna ambígua a sua actividade que oscila entre esse investigador académico, desapaixonado e o investigador policial curioso e comprometido. A sobreposição destas duas narrativas principais sendo que uma parece programada enquanto a outra parasitariamente é estimulada por esta tendo os contornos de uma intriga que se atravessa e se impõe ao narrador através da curiosidade excêntrica de Minaya. A segunda narrativa acaba por fazer passar a primeira para segundo plano, a dada altura já não nos interessa tanto o plano inicial da investigação de Minaya, mas mais as sucessivas armadilhas que a casa lhe arma a toda a hora. A metadiegese absorve a diegese. Eu diria que é essa parasitose, absorção por simbiose inicial, até à completa deglutição e digestão que marca o ritmo do romance. É através de Minaya que se passa de um plano para outro, contudo Minaya não passa de um títere manipulado por um narrador perverso. Este narrador pretende que seja a metadiegese narrativa que a curiosidade ingénua de Minaya exercita sempre sob a forma de um engodo a contar e deslindar a trama da diegese inicial, que sob a capa de uma investigação positiva não passa de uma ficção que apenas serve (serviu) para lançar Minaya para o coração da intriga. Os personagens diegéticos, Minaya e Inês sobretudo são émulos dos enigmáticos Jacinto Solana, Mariana e Manuel. Estes são ao mesmo tempo reais e fictícios, mas quando se compreender as suas histórias passaremos a compreender melhor Inês e Minaya, ou afinal, vice versa. Em síntese: Há uma casa em Màgina, um palácio para ser mais rigoroso, onde numa certa época viviam Manuel, Mariana sua mulher, Jacinto Solana que Manuel albergou depois da estadia na prisão deste para o esconder e proteger da Guarda Civil, pois ele era o seu maior amigo o que não obstante isso não impediu que se viesse a tornar amante de Mariana; Dona Elvira, a mãe de Manuel, que a dada altura mandará matar Mariana para vingar a desonra do filho; o agente do crime é um artista de segunda categoria, Utrera, um escultor que vive também e por enquanto, na casa de Manuel desde 1939, numa parte excêntrica da casa. E há ainda Inês, que não sabemos quem é. Esta casa que o avô de Manuel, D. Apolonio, deixou como herdo ao pai de Manuel por inteiro, deserdando a sua outra filha, Cristina, tia de Manuel e avó de Minaya, porque ela se prendeu de amores com um reles amanuense que fazia versos. Os pais de Minaya olhavam muitas vezes para aquela casa como também podendo ter sido sua e quando abandonaram Màgina, era Minaya uma criança ainda, foram à casa despedir-se do primo, Manuel. Minaya recorda muitas vezes a visita a essa casa e quando já adulto volta a ela para investigar a obra literária de Jacinto Solana e a sua vida, supostamente ligada à geração de 27, não deixará de sobrepor as duas impressões da casa. Relativamente a Solana, percorri por sua causa e por via de uma suspeita intuitiva e imediata, toda a geração de 27 exaustivamente e não encontrei lá nenhum Solana, como eu aliás supunha. Mas não posso deixar de, pelo que representam, referir alguns dos autores mais emblemáticos dessa geração, alguns deles várias vezes referidos no corpo do romance como é o caso de Alberti, por exemplo, como sendo alguém próximo de Solana, os outros de que faço questão foram: Pedro Salinas (1891–1951), Jorge Guillén (1893–1984), Dámaso Alonso (1898–1990), Federico García Lorca (1898–1936), Vicente Aleixandre (1898–1984), Luis Cernuda (1902–1963) e Miguel Hernández (1910–1942). Eram muitos mais, mas estes talvez sejam ou foram os mais importantes. Grande geração, sem dúvida. Jacinto Solana não passa portanto de um autor apócrifo, tal como a sua pretensa obra. Muñoz Molina embora através de um tal José Manuel Luque, com ares de trapaceiro e paranóico, chega a referir-se à publicação de um poema de Jacinto Solana na revista Hora de España, órgão dos intelectuais republicanos, dirigida entre outros por Rafael Alberti e Maria Zambrano: isto em Julho de 1937, intitulado Invitatión, que obviamente não existe. Quando Muñoz Molina narra este regresso de Minaya à casa de Mágina, constrói a narrativa usando os dois tempos da presença de Minaya na casa, enquanto criança quando ainda havia Mariana e Solana e agora que existe Inês, por quem se irá apaixonar enquanto conduz a contragosto a investigação para o seu doutoramento sobre Solana. O pseudo Solana tinha sido condenado à morte depois do fim da Guerra Civil, (mas foi amnistiado à última da hora, provavelmente sob a influência de seu amigo Manuel) e terá afinal morrido, anos mais tarde, às mãos da Guarda Civil numa rixa em que por pura bravata revolucionária e romântica se envolveura. Ou não terá sido assim e continuou a viver escondido e na clandestinidade. Viverá ele no imenso palácio de Mágina? Será ele o narrador que de dentro da cama de onde se levanta Inês começa a narrar não só o seu abandono, mas em longa prolepse todos os mistérios da casa e daquele tempo? O abandono foi antes uma ordem, a ida de Inês em direcção a Minaya na estação de comboio é o resultado de uma exigência desta figura estranha que no início do romance veste simplesmente a pele de amante de Inês. De amante ou de pai? Claro que já sabíamos que as últimas páginas do romance seriam a narrativa deste episódio. O autor regressa ao quarto de onde sai agora Inês pelo corredor percorrido por Minaya algum tempo antes. Só ele fica no quarto depois de tomar uma quantidade excessiva de remédios. Daí que Minaya e sobretudo Inês lhe obedeçam. Respeita-se o último pedido de um condenado. Aquele que segundo as suas próprias palavras teima em não morrer. Só pode ser, só podia ser, Jacinto Solana. Nunca lhe ocorreu, prezado leitor, que é um sacrilégio resumir e tentar explicar uma obra prima, uma obra genial e complexa da arte narrativa. É o que eu sinto agora, mas teimosamente continuo a fazê-lo. Diria para recomeçar que o texto abre portanto com o anúncio de uma imensa prolepse, o presente em que um narrador abscôndito, anuncia um facto que só irá ocorrer na última parte do romance. Uma mulher abandona um quarto, uma cama, um provável leito conjugal, já que um homem, digo eu, porque por enquanto pode ser até uma mulher, mas não é, iremos saber mais à frente, embora apenas no entardecer do romance, quem é esta personagem, que logo no início do romance está a ser abandonada e trocada (?) por outro, concretamente Minaya que espera Inês na estação de comboios de Mágina, lugar onde fica a casa em que todo o drama irá decorrer. O narrador, o amante trocado ou afinal o pai, pensa até ao último momento que Inês se irá deter como tantas vezes aconteceu e regresse ao quarto, desfaça a mala e se volte a meter nesse leito partilhado. Mas desejando-o não é o que deseja. Ele é o narrador omnisciente que deveria ser aparentemente externo ao romance mas que trai o seu estatuto ao referir o local onde está, que é de onde muito intimamente toma consciência da decisão de Inês. O romance começa cedo a mostrar o seu carácter tenso e sofrido apesar de ser a espaços muito divertido. Mói-nos a nós já o enorme desejo de saber quem é esta pessoa que acaba de se suicidar, de ter dado pelo menos os primeiros passos e assiste ao abandono, a uma perda dolorosa e talvez irreparável e o faz não como quem sofre na pele, esse abandono, mas quase como um mero observador. Minaya, esse que por enquanto também não é nada, um puro nome, sabemos apenas que espera Inês na estação de comboio, a estação ao lado da estrada onde circulam os expressos que “avançam sob a lua pelo vale lívido do Guadalquivir e sobem as encostas de Mágina”. Minaya está esperando mas o narrador acrescenta logo “sem sequer se atrever a desejar que Inês, magra e sozinha, com a sua breve saia cor-de-rosa e o seu cabelo apanhado num rabo de cavalo, vá surgir a uma esquina do cais. Está sozinho, sentado num banco, talvez fumando enquanto olha para as luzes vermelhas, para as linhas e para as carruagens paradas no limite da estação e da noite”. O narrador, esse, adensa o suspense e o enigma e vale a pena transcrever por inteiro o que ele, narrando, anuncia misteriosamente: “Agora, depois de fechada a porta, posso, se quiser, imaginar tudo só para mim, quer dizer, para ninguém, posso meter a cabeça debaixo da dobra que Inês alisou com tão secreta ternura antes de se ir embora e assim, emboscado na sombra e no calor do meu corpo debaixo dos lençóis, posso imaginar ou contar o que aconteceu e até dirigir os seus passos, os de Inês e os dele, a caminho do encontro e do reconhecimento no cais vazio, como se neste instante os inventasse e desenhasse a sua presença, o seu desejo e a sua culpa. Fechou a porta e não se voltou para olhar para mim, porque eu lho tinha proibido, apenas vi pela última vez o seu delicado pescoço branco e o início do cabelo e a seguir ouvi os seus passos que se amorteciam ao afastarem-se em direcção ao fundo do corredor, onde pararam. Talvez tenha pousado a mala no chão e se tenha voltado para a porta que acabava de fechar, e nessa altura temi e provavelmente desejei que não continuasse a avançar, mas logo a seguir soaram outra vez os passos, mais longe, muito fundos já, nas escadas, e sei que quando chegou ao pátio parou de novo e ergueu os olhos para a janela, mas não quis ir ver, porque já não era necessário. Bastam a minha consciência e a solidão e as palavras que pronuncio em voz baixa para a guiar a caminho da rua e da estação onde ele não consegue deixar de a esperar. Já não a preciso escrever para adivinhar ou inventar as coisas. Ele, Minaya, ignora-o, e suponho que acabará por se render, inevitavelmente, à superstição da escrita, porque não conhece a coragem do silêncio e das páginas em branco. Agora, enquanto espera o comboio que, quando esta noite chegar ao fim, quando chegar a Madrid, o terá afastado para sempre de Mágina, olha para as linhas desertas e para as sombras das oliveiras mais além dos muros, mas entre os seus olhos e o mundo persiste Inês e a casa onde a conheceu, o retrato nupcial de Mariana, o espelho em que se olhava Jacinto Solana enquanto escrevia um poema laconicamente intitulado Invitación. Como no primeiro dia, quando apareceu na casa com aquela aziaga melancolia de hóspede recém-chegado dos piores comboios da noite, Minaya, (…)” E chega! O que havia a perceber já está percebido. Seja lá quem for que na trama do romance é deixado só na casa de Mágina e mesmo se esse não é outro senão o autor, o que já percebemos é que todos não passam de títeres controlados no interior do processo da escrita por aquele que nos começa a segredar que construiu esta história do nada, apenas do vórtice da sua imaginação. É neste tipo de romance que nos rendemos aos méritos de prestidigitação do demiurgo, neste tipo de romance com claras semelhanças com a gloriosa tradição da ficção ibero americana e, neste caso concreto, com Juan Rulfo, Ernesto Sabato, o de Heróis e Túmulos e claro Garcia Marquez. Alguém resumiu a natureza deste texto, a sua complexidade narrativa, ora aparentemente degética, ora inequivocamente metadiegética, e eu diria metadiegética a vários níveis num entrelaçado de narrativas mis en abîme, anunciado logo no extracto que cito, alguém, dizia, referindo-se a este texto de um modo certeiro que tudo sintetiza: “narrar para contar-lo”. No sentido em que é a narrativa metadiegética que fará que se manifeste a diegese ficcional e que de resto fará com que ela se forme, se constitua em texto mas também em história. Nós queremos saber o que aconteceu a Solana pela investigação de Minaya, de Mariana por Inês, mesmo se nenhum deles existiu e são apenas o pretexto para narrar outra história, ou talvez reescrevê-la porque ela foi até aqui mal contada. Nesse sentido são todos títeres, até o próprio narrador. Só há duas realidades tangíveis: Molina e a Escrita.
António Cabrita Diários de PrósperoTer galo e ser galo 18/07/2016 [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez escrevi um sketch de teatro que contava o drama de um assaltante de bancos que amargou sete anos na cadeia sem ter dito onde havia escondido o bolo do assalto e que quando sai finalmente para a sua suprema recompensa dá conta de que houve na semana anterior uma alteração das células e que com a conversão perderá milhões. Este tipo de situação – “ter galo”, chama-se na gíria – é-me comum. Vou dar um exemplo. A semana passada fui a um congresso. Designava-se assim: “Cartógrafo de memórias: a Poética de João Paulo Borges Coelho”. Em Moçambique há um deserto no que toca a textos para teatro e à dramaturgia. Decidi então levar ao congresso não um trabalho de académico, mas de um prático, e intentar explicar como se poderia operacionalizar a tradução de um romance de Borges Coelho em peça de teatro. Enfim, só esquematicamente, porque não apresentei a peça mas uma sequencia sinóptica que inclusive só pode servir como ponto de partida pois o teatro é sempre um work in progresso. Cheguei a Lisboa e estive três dias fechado a imaginar a coisa e a escrever a comunicação. No dia, fui até o primeiro a chegar ao Anfiteatro III, na Universidade de Letras, e enquanto esperávamos tive uma deliciosa conversa com a Ana Paula Tavares sobre o meu emérito bisavô, o explorador de África novecentista Henrique Dias de Carvalho, que lhe serviu como sujeito de tese. E depois demos início aos trabalhos. Eu era o primeiro a falar, coloco o texto à frente dos meus olhos e espero que o moderador da mesa faça de lebre. Tiro da partida. E à primeira sílaba engancha-me, por causa do ar condicionado, uma irritação na garganta que me faz tossir, tossir sem remissão. Um verdadeiro nó de crude. Nos primeiros dez minutos (tinha direito a 20 m) tossi e fiquei áfono e só consegui ler a primeira página da comunicação. Cavalgo depois o texto, desenfreadamente, enquanto a moderadora da mesa me ia mostrando pequenos alertas, primeiro o cartão amarelo (FALTAM CINCO MINUTOS), depois o vermelho, vários (TERMINE A SUA COMUNICAÇÃO; POR FAVOR), que atrapalharam a menor hipótese de fluência e distraíram a recepção de algo que já estava a ser transmitido com ruído. Foi um verdadeiro acto não-comunicacional. Enfim, a moderadora fez o seu papel, eu tentei agonicamente fazer o meu, mas no ar condicionado havia um um diabo sentado. Eis o que é ter galo! Veja o meu texto aqui: https://revistacaliban.net/teatralizar-as-m%C3%A1scaras-eab0401ef35b. Mas desta vez o galo não é só meu. É uma vergonha haver um escritor do calibre de Borges Coelho (muito resolutamente um dos melhores no espaço da língua portuguesa) que é contemplado com um congresso internacional – com gente vinha de Moçambique, Brasil e Estados Unidos –, e não haver espaço nos jornais para uma notícia, não se ter deslocado um único jornalista para cobrir e divulgar o acontecimento. Pelo contrário, temos páginas duplas dedicadas ao regresso de A Guerra dos Tronos e outras tantas que bordam sobre o falecimento de George Romero, o crânio que institucionalizou em sub-género os filmes sobre zombies. Faz-me lembrar que uma vez no décimo segundo ano, na disciplina de Português duma filha minha, a professora pediu que eles escrevessem sobre um livro e autor à escolha e a minha filha escolheu um romance do Carlos de Oliveira, o que levou à perplexidade a professora porque não sabia quem era. As prioridades mediáticas estão todas trocadas e assim de lixo em lixo vamos entristecendo. Em Macau talvez não, que o escritor moçambicano vai deslocar-se até aí para a semana para, em companhia de Helder Macedo e de Carlos Morais José, oferecerem com certeza uma sessão magnífica a quem se atrever acompanhar tais ventanias mentais. 19/07/2017 Lisboa está mesmo transfigurada por causa do turismo. “Já houvera dizer”, como dizia o outro mas não há memória descritiva que assimile uma tal enxurrada. Filas intermináveis nas bilheteiras e um afã desfigurador nas tascas e restaurantes são sinais que exasperam. Aconteceu-me duas vezes, esta semana, sentar-me com um amigo em restaurantes que frequento há vinte anos e ter de sair porque não reservara previamente uma mesa. Tudo muda, mas por que não poderá ser para melhor? E há claramente um excesso de oferta cultural na cidade. É uma borbulhagem, um ziguezague que não pode obter qualquer inscrição, qualquer anelo para a memória – pois esta funciona como a arquitectura de jardins, só é despertada se a um nicho de árvores se suceder uma clareira. Se só houver uma mancha opaca de árvores estas tornam-se anónimas, anulam-se entre si. Como não entender isto? Contra esta massa, densa como todos os equívocos, entrei na INCM e tive a inspiração de pedir o II volume da Obra Poética do Vitorino Nemésio (que me tinha sido surripiada por empréstimo). Há 15 anos que não lia o Limite de Idade e Sapateia Açoriana. Não têm uma ruga, o Nemésio continua a ser um dos grandes poetas do Século XX português, só precisa de leitores menos distraídos. Veja-se o início do poema O AFILHADO: « O meu afilhado epiléptico veio ver-me./ Veio verme. / Verme não é. E, se fosse, isso que tinha?/ Os anelídeos têm os seus anéis elásticos, / Num começo de élan superior, bem soldado,/ A blocos de controlo e direcção,/ Enquanto que ele a perde em centros altamente sinápticos/ E fica pobre e triste entre os apáticos.// O meu afilhado epiléptico/ Veio ver-me/ Veio verme, / Veio eclético (…)», e continua, numa liberdade que não acaba e que faria inveja ao Cesariny. Sempre que adormeço a ler Nemésio, volto pela manhã a ouvir os galos. Os que são, não aquele que se tem.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasDesenhar com lâmina Horta Seca, Lisboa, 11 Julho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]bre anunciando-se sem nome ou corpo, mas não encontro na poesia contemporânea outra boca que diga assim corpo, uma forma de o ser inteiro pela palavra com que desenha e rasga. «Sou esta fenda extasiada que pensa/ e estou longe como uma ruína alta/ guiando palavras à minha vontade.» «1025 mg» (ed. Douda Correria), o livro mais recente de Cláudia R. Sampaio, é um torrencial monólogo em XVII poemas que vieram para pôr cores berrantes na raiva e novos sabores na lucidez. O discorrer dos versos faz no branco que sobra as sombras da carne. Subo-os como degraus de casa devoluta e digo-os em voz alta. Sobrevoam agora os telhados até encontrarem a carne onde se tatuar. Imagens encadeadas e incandescentes que vão e vêm, para marcarem com nódoas negras a nossa leitura, mariposas contra a lâmpada. A medicina que o título anuncia não atenua a dor, não se faz unguento, não acalma nem a ferida da vontade, não cura a doença de sermos para aqui assim. «Quem sabe se não é agora que/ possuo toda a loucura/ e me faço mulher// Eu que da cintura para cima sou triste/e daí para baixo uma praia/ a quem explodiram o mar/ para depois o transformarem em/ homem e em assombro também/ Eu que desfolhada em abismo/regressei à ânsia e aos mortos/ por lá se encontrarem os vivos». Depois, a casa da voz da boca de um corpo sem nome ou substância está tão bem mobilada pela delicadeza da Mimi Tavares! Os nossos móveis possuem secretas e ingénuas convivências. (Descobri no «Carlos Bica + Matéria Prima» (ed. Clean Feed) banda sonora inesperadamente apropriada). Mymosa, Lisboa, 12 Julho Pode um desencontro frutificar? Vou apostar (um almoço) que sim. Há uns meses, cansada do silêncio que irradio, a Joana Bernardo entregou-me maqueta que, de tão impressionante, era logo ali um livro. Sem tirar nem pôr. A ideia de «30 anos | 8 Dias» continha a mesma simplicidade elegante do desenho gráfico, abundante de brancos, sem nada gritar, desenrolando coisas e nomes e entradas de diário com suave delicadeza: «13 pessoas que vivem em Lisboa chegam agora aos 30 anos e descrevem, nestas páginas, 8 dias das suas vidas.» Quando lhe assinalei o meu interesse já estava em marcha o processo da autoedição, que achámos melhor não travar. Está feito, ainda que sem o logotipo abysmo. Acontece. De igual modo, acontecerá sequência. Tem qualquer coisa de solar esta preciosa cápsula do tempo. O futuro parece menos sombrio se contarmos com o presente desta geração, afinal, desenrascada, que insiste no que vai fazendo em neurociência, em design ou música, engenharia ou bailado. Difícil, precário e tal, mas haverá outro modo de se vestir o mundo? Ainda que «sem ambições literárias», descobrem-se textos brilhantes, por exemplo os de Catarina Vasconcelos, e o conjunto explode em variedade de tons e vozes e maneiras e temas sem perder equilíbrio. Espreitamos fragmentos de vidas, em momento algum banais, ainda que comuns. E que revolucionário pode ser o facto destes quotidianos serem usuais! Joana desenhou mais do que as páginas, escolheu notícias, sublinhou locais na pele de Lisboa, pediu e fotografou objectos, enfim compôs algo que rola como círculo virtuoso, LP em prato de gira-discos. Ou seja: livro, singelo e luminoso. Os 30 põem fim à juventude, diz ela. Talvez não, se depender deles. (Pareceu-me boa companhia o som «único e delicado» dos Durutti Column, apresentado pela própria Joana, no seu «Álbum de Família», na Radar (https://radarpodcasts.podbean.com/)) Horta Seca, Lisboa, 13 Julho Por mais que olhe nas múltiplas direcções, os dias continuam a atropelar-me na passadeira. Será por estar sentado quando devia correr? Receber peças do calibre de «Mutations», do mano João [Fazenda], significa, portanto, salvo-conduto para o máximo recolhimento. Na dedicatória vem um monociclista a fugir do traço encimado pela afirmação de que escrevo desenhos e invento livros. Comovo-me e travo a fundo enquanto o olhar se perde nas linhas impuras do prazer e da inteligência. Estes desenhos são lições de bem ver: uma pedra, uma paisagem, um corpo podem esconder inúmeros. Traços simples que despertam as formas adormecidas no branco, que as movimentam, que as misturam: pétalas são lascas de granito, cabelos soltos fazem nuvens, paisagens que crescem no vestido, um mineiro surge-nos da barriga, árvores viram tejadilho e locomovem-se. Podem ser apenas pensamentos pedindo a encenação do lápis ou corpos juntos pelo puro gozo do desenho. Na maior parte dos casos, vejo ideias, isto é, poemas. Riscos e pequenas nuvens de cinza a desdobrarem-se nas infinitas possibilidades do mundo que se vislumbram para lá destas portas-páginas. Bendito demiurgo, que até nas mais negras ideias, colocas o incêndio de um sorriso! Podia pegar em cada um destes poemas e lambê-lo com palavras, carimbá-lo com a desnecessária metáfora das sombras que ardem (como a que ilustra algures a página). Sabes bem que descrever as imagens são afagos no artista. Devia chamar-te ruy-belo-da-ilustração, e por aí fora, desde que poetas do mar e do vento e das inocências perdidas, até te irritares. Melhor ficar por aqui à procura da tristeza que há-de andar algures. Preciso de a alimentar. (Eu reconheci o Tom Waits, mas puxei do «Espaces Baroques», do Frederic Galliano, e deixei-o desdobrar os recantos enquanto via). Horta Seca, Lisboa, 14 Julho Como no desenho do João [Fazenda] em que um gato faz de papagaio no meio dos pássaros com avião ao fundo, assim me senti eu hoje. Convergiram amigos que há muito não via. Difícil reconhecermo-nos no âmbar daquele olhar. Nenhum de nós é ainda aquele. Ou ainda algum fio nos prende aos gestos de um puto, de um jovem? Baixa Chiado, Lisboa, 15 Julho No metropolitano, pela primeira vez em muitos meses, mas mesmo muitos, todos os lances de escadas rolantes que ligam a Baixa ao Chiado estão funcionamento. As carruagens, essas, pelo menos na linha verde, continuam à pinha em qualquer hora do dia. Para memória futura.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasA Cidade dos Amendoins e a classificação etária na China [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]ahufa, um filme de animação chinês, estreado a 13 de Julho de 2017. Com um argumento surreal e violento, Dahufa conta-nos a história de um atraente assassino que viaja até uma cidade estranha e opressiva, habitada por humanoides com cabeça de amendoim, em busca de um príncipe desaparecido. O governador da Cidade dos Amendoins é Anji o Velho, personificado por um dente de ouro. Todas as paredes da cidade estão cobertas com cartazes propagandísticos, que anunciam “O povo apoia o seu Grande Líder”. O governador tem um exército muito forte e bem treinado, que se dedica a executar todos os cidadãos-amendoim em cujos corpos crescem “cogumelos fantasma”. Neste país a vida vale o mesmo que nada. Anji o Velho trata os cidadãos como se fossem gado. Deixa que o venerem, mas, quando lhe dá na gana, manda executá-los. No entanto, o povo amendoim tem ideias curtas e aceita o seu destino, vivendo submisso sob a constante ameaça de vir a ser executado pelos odiosos “guardas”. Ou, pelo menos, assim parece. Sob uma aparência de ordem, percebe-se que se conspira e que a revolução está prestes a acontecer. O povo amendoim não se atrevia a abrir a boca e a expressar as suas opiniões. Nem se atreviam a pensar por si próprios. Mas, no final, devido à tomada de consciência de alguns “amendoins”, são conduzidos até à estrada que desemboca num novo amanhã. Este é um conto de fadas negro, destinado a adultos e que apresenta alguns temas de forma séria e brutalmente explícita. Os produtores de Dahufa tomaram a decisão de classificar o filme para M/13 anos, um aviso aos pais de que o filme poderia conter cenas impróprias para crianças com menos de 13 anos. Esta atitude sublinha o facto de na China não existir um sistema de classificação etária para os espectáculos. Por este motivo, aos produtores cinematográficos resta apenas uma opção: fazer filmes que sejam adequados para crianças. Os filmes que não encaixem nesse critério de universalidade ficam sujeitos aos cortes da entidade reguladora governamental. A classificação etária pode funcionar como uma jogada de marketing, mas também deriva de uma noção de responsabilidade social. Apesar do aviso, alguns pais vieram queixar-se do filme na comunicação social, depois de terem levado os filhos a ver o que tinham pensado ser um filme de desenhos animados inofensivo. O filme tem uma animação altamente estilizada, conteúdos contemporâneos e relevantes, e denota influências que vão de Van Gogh à pintura chinesa tradicional. Tem cenas de luta, aventuras fantásticas e uma animação fenomenal. As temáticas mais sensíveis não subestimam a inteligência do espectador. Veja o trailer aqui: bit.ly/2u0nEB3
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasO erro ontológico de Machado de Assis na análise de O Primo Basílio (I) [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]uma passagem da célebre crítica de Machado de Assis a Eça de Queirós, e mais particularmente a O Primo Basílio, lemos: “Para que Luísa me atraia e me prenda, é preciso que as tribulações que a afligem venham dela mesma; seja uma rebelde ou uma arrependida; tenha remorsos ou imprecações; mas, por Deus! dê-me a sua pessoa moral.” Ora, é precisamente isto que Eça não dá, nem quer dar. O que Machado de Assis – quero deixar bem claro que me refiro ao senhor Machado de Assis enquanto leitor e não ao escritor Machado de Assis. Não se trata aqui do escritor Machado de Assis, mas sim do leitor, da leitura que Machado de Assis fez do romance do escritor Eça de Queirós O Primo Basílio – não via, não conseguia nem ver nem aceitar, era que Eça concedesse à pessoa, na figura do personagem, tão pouco valor. Mas para Eça, é isso que é o mais importante. Para Eça, o importante é mostrar o quanto a nossa vida está longe de ser nossa; o quanto a nossa vida está longe de nos pertencer e de respondermos inteiramente sobre ela. E, neste sentido, Eça é profundamente ontológico. O humano sabe muito pouco de si, da sua condição, daquilo que lhe está acontecer, das forças que decidem o seu destino. Isto é o que Eça de Queirós – o escritor, talvez não o homem – viu muito bem. Pois se o humano é assim, porque têm os personagens de ser diferentes? O que importa a Eça não são bons ou maus efeitos literários, bons ou maus episódios, sequer moral, que parecia ser tão importante para o leitor Machado de Assis, o que importa a Eça é o humano. O humano na sua situação no mundo. Comecemos então por apurar as estruturas do humano que ardem em O Primo Basílio, as fundamentais, de modo a entender melhor a célebre passagem de Luísa, a que Machado de Assis se refere. As estruturas a analisar são: desejo, prazer e nada. Encetemos então, e primeiramente, a distinção entre desejo e prazer, através de uma passagem do livro, onde Leopoldina conversa com Luísa, já muito perto do fim do livro. Leopoldina era uma mulher casada, um pouco mais velha do que Luísa, 27 anos, muito bela, “o corpo mais perfeito de Lisboa”, reputada de mulher viciosa, de ter vários amantes e com quem o marido de Luísa, Jorge, proibira esta de se encontrar. Luísa tinha crescido com Leopoldina e tinha admiração por ela, pela sua beleza e, de algum modo, pela forma decidida com que vivia. E gostava muito de ouvir o que a outra lhe contava acerca dos seus amantes. Antes de avançarmos para a passagem que se pretende analisar, veja-se outros episódios com Leopoldina. O primeiro, ainda Jorge está em Lisboa, de partida, embora não esteja em casa, e Leopoldina fala-lhe de Basílio, que ele havia chegado a Lisboa. Depois, o que não deixa de ser curioso, aliás bastante curioso, já com o marido fora, quando Luísa se preparava para ir visitar Leopoldina, e estava contente por isso, seu primo, Basílio, apresenta-se pela primeira vez desde o regresso, fazendo com que ela se decida a já não visitar a amiga, mas antes a ficar em casa com o primo. Era como se o Eça fizesse com que, ao invés das conversas da Leopoldina acerca dos seus amantes, ela iniciasse também um caminho de fazer as suas próprias conversas. Mais tarde, sendo já amante do primo e num ataque de arrependimento, querendo e não querendo acabar, pensa em falar com Leopoldina acerca do assunto, escreve Eça: “Sacudia a cabeça com impaciência, como se aquelas imaginações fossem os ferrões de insetos importunos; esforçava-se por pensar só em Jorge; mas as idéias más voltavam, mordiam-na; e achava-se desgraçada, sem saber o que queria, com vontades confusas de estar com Jorge, de consultar Leopoldina, de fugir para longe, ao acaso. Jesus, que infeliz que era!” Quando Eça escreve “consultar Leopoldina”, obviamente não quer que pensemos que se trataria de uma procura de começar a trilhar o curso do arrependimento. O que ela pretendia, seguramente, com essa hipotética consulta era uma concordância fora dela com os seus desejos dentro dela. Ou seja, o que ela pretendia de Leopoldina era que esta lhe falasse dos enormes benefícios de se ter um amante e de como isso não traz mal nenhum ao mundo, pelo contrário. Luísa queria duas coisas que lhe pareciam irreconciliáveis: sossego, paz de alma, como se usa dizer, e satisfazer seu desejo no corpo do primo. Trata-se, portanto, de uma situação que todos nós aqui presentes conhecemos bem. Não necessariamente em relação a um amante, mas em relação a alguém com quem costumamos dormir e queremos ouvir de uma amiga ou de um amigo que devemos continuar a fazê-lo, contrariamente a um possível fim. Não é que Luísa não continuasse amante de Basílio, sem a hipotética consulta – como nós não deixamos de continuar a ficar com alguém, se outros não nos apoiarem nessa nossa decisão –, mas depois da consulta com Leopoldina, sempre continuaria a sua aventura mais aconchegada, isto é, não continuaria sozinha, levaria consigo para o seu amante um “não sou só eu que penso assim”. Este “não sou só eu que penso assim” é de extrema importância para quem sabe que está a cometer uma falha ou apenas suspeita disso. Que essa consulta nunca se realize, não tem aqui importância, pois o que está em causa, o que importa mostrar é como Leopoldina, na economia do texto, aparece sempre ligada a uma agressão contra a convenção social. Pensar em consultar tal pessoa, só pode significar não querer se pôr de bem com o status quo, com o que é convencional. Por outro lado, quando diz “Jesus, que infeliz que sou!” está a dizer a verdade, a verdade que atinge a natureza humana nessa situação em que Luísa se encontra, isto é, sentir dentro de si, em si mesma, dois quereres contraditórios: um a exigir dela que se comporte como seria de esperar de uma senhora da sua condição; outro a exigir dela a satisfação do desejo pelo primo. A infelicidade dela, aqui, na frase acima, resulta da sua vida estar a ser assaltada pelo desejo, à sua revelia. O desejo que sente faz com que não tenha mão nela, não tenha possibilidades de se segurar, isto é, Luísa não tem o controlo da sua vida. Esta é a sua infelicidade. Aqui, a infelicidade não é o desejo. A infelicidade são duas coisas: o desejo agindo sobre ela de modo a tomar-se senhor dela, seu dono; e ela sentir, saber que não o deve fazer devido à sua condição de mulher casada. E que diz então Leopoldina a Luísa de tão relevante para a nossa análise? Estas seguintes e extraordinárias palavras, quase no fim do livro: “Não, realmente tinha vontade de outra coisa, não sabia bem de quê! As vezes lembrava-se fazer-se freira! (E estirava os braços com um tédio mole.) Eram tão sensaborões todos os homens que conhecia! Tão corriqueiros todos os prazeres que encontrara! Queria uma outra vida, forte, aventurosa, perigosa, que a fizesse palpitar – ser mulher de um salteador, andar no mar; num navio pirata… Enquanto ao Fernando, o amado Fernando dava-lhe náuseas! E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus! E, depois de escancarar a boca, num bocejo de fera engaiolada: – Aborreço-me! Aborreço-me!… Oh, céus! Ficaram um momento caladas.” Iniciamos então aqui a nossa distinção entre desejo e prazer, na economia do texto de Eça e na apresentação da situação humana. O desejo, já havíamos mostrado anteriormente, com Luísa, tem o poder de nos transformar em escravos. Luísa, através do desejo, deixa de ter poder sobre a sua própria vida – quando estamos sobre esse efeito, costumamos dizer “deixei de pensar” –, Luísa deixa de ser ela no desejo. Mas agora, com Leopoldina, dá-se uma avanço na compreensão do desejo e seus mecanismos. O desejo é auto-fágico, ele traz em si mesmo a vontade de acabar, de se comer a si próprio. O desejo devora o desejo. Depois do desejo saciado, devorado, o prazer termina. Mas o desejo traz também em si, além da vontade de se acabar, uma promessa de prazer. O desejo promete prazer. É essa promessa de prazer, esse canto da sereia, que o humano não suporta ouvir, acabando por ceder ao que o desejo quer. Desejo e prazer não são o mesmo. Desejo é uma coisa que promete outra. Desejo promete prazer. Promete e dá (pelo menos, a maioria das vezes). O prazer é a morte do desejo, é o desejo a acabar-se, o desejo a comer-se a si próprio. No fim, acaba-se tudo: o desejo e o prazer. Por isso, tantas vezes acontece dizermos a nós próprios que o melhor é cair logo naquela mulher de uma vez (ou naquele homem), para depois termos sossego; pois o desejo por saciar não nos deixa sossegados, mas uma vez saciado acabou-se, voltamos a nós; e a mais das vezes é mesmo o melhor que temos a fazer, pois a promessa de um enorme prazer anunciada no desejo acaba-se por se tornar apenas fracções dessa promessa, pequenas fracções de um prazer, que faz com que isso não volte a acontecer e, quanto a esse assunto, ficamos sossegados. Mas o desejo renasce das suas próprias cinzas através de um aliado poderoso: a memória. A memória traz até nós o desejo e a sua promessa de prazer. A memória traz até, nesse trazer, aquilo que se não passou, se for caso disso, mas principalmente a idealização do que se passou. Um update do passado, daquilo que se passou. Seja com ou sem update, a verdade é que a memória devolve-nos o desejo, instiga em nós uma vontade de repetir o prazer. É assim que o desejo se tende a multiplicar. Tende a multiplicar-se em nós numa procura vã de encontrarmos um prazer que se não acabe, um prazer que veja o fundo ao desejo. Tudo isto porque a memória não nos dá descanso e permite uma entrada livre, ao desejo, em nós. A multiplicação do desejo acabará sempre, no seu melhor, numa frase assim: “E outro que viesse seria o mesmo. Sentia-se farta dos homens! Estava capaz de tentar Deus!” De facto, uma vez caídos na multiplicação do desejo, nenhum homem (ou mulher) nos pode salvar, só Deus. (continua)
Amélia Vieira h | Artes, Letras e Ideias1888 [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á anos especiais e números que se repetem como anunciados. Este oito, três vezes repetido, é uma miríade de números, sem dúvida, mas neste ano a trindade poética nasceu como se fora um octogonal propósito: Pessoa, Ungaretti, Eliot, em locais diferentes; um no Egipto, outro no Missouri e outro em Lisboa, com poucos meses de diferença, Fevereiro, Junho, Setembro, sem qualquer intimidade aparente e até mesmo cultural mas, por uma boa casualidade, fundaram o que de melhor existiu em décadas de poesia. Os tempos estavam despertos, sim, estavam abolitivos neste final de século com os séculos passados, o tempo corria rasurando muito e inventando mais, os dons eram maiores, as estradas mais sinuosas e plenas de incentivo a uma nova vibração na consciência, bem como no refinar de uma certa sensibilidade. Muitos se atiraram para o futuro de forma brilhante e irromperam pelo vinte e um tirando a modernidade ao moderno vício de ser actual. Quando os perscrutamos ficamos indefesos dentro do casulo lânguido do presente e tentamos inventar um ano como que abrangente onde caibam alguns mais latos para a dianteira do mundo e os nossos cálculos flutuam muito, dado que não repetimos tantos números assim, que têm um lado qualquer onde se suspeita estarem registos maiores do que o anos eles mesmos. Ano do Rato para os chineses que nada conheciam destas andanças da trindade. Se Eliot achava que o poeta em que se tornara não existiria se tivesse ficado nos Estados Unidos, o mesmo se pode dizer de Pessoa: se a um tempo não tivesse ido para a África do Sul, e Ungaretti nascido no Egipto, não fosse ele filho de italianos, de modo que foi-lhes proveitosa esta deriva por portos onde começaram, sem terem de ficar sujeitos a uma pátria só. Eliot vai para Inglaterra mas em Paris tem os seus anos de amor simbolista pelo seu amado Baudelaire, Pessoa não se sabe ao que veio e desagua numa Lisboa sem Baudelaire e caminha tanto que lhe perdemos os passos, Giuseppe também andou por Paris e colaborou com Giovanni Papinni numa revista, depois, e mais musculado que os seus dois congéneres, parte para as fileiras da Primeira Guerra Mundial. Haroldo de Campos traduz a sua poesia quando dá aulas mais tarde na Universidade de S.Paulo. De facto, nada há de menos belo no seu percurso literário, ao contrário dos seus momentos políticos, se formos a ver, também Eliot se converte ao cristianismo e Pessoa exerce um pensamento que hoje em alguns momentos teríamos que considerar demasiado conservador. Mas, e mesmo assim, as suas modernidades não são basculhadas na imensa inventividade e no registo de viajantes da bela construção. Em Alexandria nasce-se talvez mais poético, nos Estados Unidos depende da latitude, em Lisboa, assinala-se esse feito, mas tudo bem interligado forma uma mandala de caracteres geográficos espalhados no ano em que de oitovas se fizeram versos. – Ilumino-me de imenso – um verso de quatro palavras de Ungaretti, a concisão torna a sua poesia uma preciosa fonte de inspiração, e mesmo Eliot não se inibiu de estudar sânscrito e religiões orientais para retirar dela a previsibilidade no poema. Todos um pouco herméticos ou não fosse a capacidade da vertente poética a verdadeira essência da religião e penso que este aspecto não deverá ser neles jamais uma questão formal, mas sim, estrutural, fazendo parte da raiz que abrange estes destinos. Não há registo que tivessem escrito cartas uns aos outros, ou mesmo se conheciam a existência uns dos outros, possível que sim, mas, dado as buscas incessantes de cada um nas suas tarefas, onde se poderiam ter encontrado? No céu das suas abundâncias e nas vagas lumes dos patamares da época, Pessoa parecia mais enclausurado, até por que o país dele é mais país para ele quando mais se debruça acerca do seu próprio mito. Um mito que fragiliza e enche de neblina a vida dos seus indagadores. Se Eliot se passeia entre o jardim e o deserto indo buscar a profetas as suas escadas e visões dantescas, fá-lo no enquadramento de uma vida social activa mas sempre um pouco esquiva dado que não lhe agradavam as perguntas devolvendo ao indagador a pergunta intacta, já Ungaretti se esforçava para que um maior número de gente falasse o italiano. Eram três homens estranhos. Os números para um, a síntese para outro, a imponderabilidade tamanha em outro ainda, a correcta forma de organizar um pensamento sem o entulho gigantesco das línguas… que de números, só Pessoa tinha cincos, e Ungaretti devia ser o oito total dado que também nasceu a oito. Depois, consta-se que Eliot apenas se debruçava mais sobre o profeta Elias que tinha uns números que cabiam na sua articulação verbal. Nós somos vigiados pela narrativa dos poetas e se lhes quisermos sentir o pulso temos de não contar e, sobretudo, nunca contar como foi, dado que não deve ter sido fácil a soma de tal missão mas, há anos, como há tempos, e tempos como homens, em que vemos coisas que nos encantam de tal maneira que pensamos serem do mesmo Ovo Cósmico. Que se desova cá em baixo de forma geométrica, não tanto como as enguias, é certo, mas programados como as estrelas e umas à distância de universos embatem umas nas outras. São nossos pares aqueles que de forma concertada e incógnita giram na mesma luz do impacto e nos deixam a pensar nestas coisas. Que coisas há onde o pensamento não é necessário, e o sentir é só para quem lê, e debaixo de zimbros estamos todos sem noção aparente; regozijamo-nos por estar dispersos, pouco bem fazíamos uns aos outros… E Ungarretti nos diz: eis que chega o poeta… desta poesia me resta aquele nada de inexaurível segredo… Sem mais anos que consintam tanta dádiva acrescentamos datas à vida que dura por tempo incerto e onde muitas vezes nos sentimos tão sós, nós que com tantos, em tanto lado, não seguimos estas rotas, gostaríamos de nascer um dia em 1888. Depois seríamos arquitectos de templos octogonais, todos previstos como pistas de aterragem dos senhores dos céus, e já não havia Capelas Imperfeitas por que o tecto das Catedrais dá sempre para o infinito, não se completam, como não se termina um poema.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasRicardo Ben-Oliel (continuação) Como é que um judeu de família da Europa central nasce em Cabo Verde e cresce e forma-se em Portugal? Tudo por força do acaso . Minha mãe, nascida na Alemanha, encontrava-se em Milão, na companhia da irmã e do cunhado, quando Mussolini deu aos judeus ordem de expulsão. Teriam de abandonar a Itália dentro de um mês, sob pena de repatriamento. Por sorte, um familiar deles que à data se encontrava em Cabo Verde, conseguiu obter-lhes licença de entrada. Meu pai, também judeu, que tinha negócios em Cabo Verde, encontrava-se no porto do Mindelo quando o navio em que minha mãe viajava aí chegou. Ainda por força do acaso, conheceram-se logo após o desembarque. Meses depois estavam casados. Passados anos, já meus pais tinham três filhos, e por razões de escolaridade decidem mudar-se para Lisboa. Aí estudei desde a primária até ao final da licenciatura em direito. O que te levou a deixar Portugal e passar a viver em Israel? Esta é uma das mais complexas respostas a dar. E que respeita à mais difícil decisão da minha vida. Não fui para Israel por razões económicas ou políticas, que são as que geralmente dão origem à emigração. A razão foi ideológica. Corpo aqui (Lisboa), espírito lá (Israel), até que decidi reencontrar-me, partindo. Foi em Dezembro de 1973. Sabes que estou a escrever uma novela em que tento responder a esta tua pergunta? Isso é uma boa notícia! A propósito do que me respondes, de não haver uma razão politica na tua mudança para Israel, qual era a relação do Estado Novo com os judeus? O Estado Novo, é sabido, sempre teve uma relação ambígua para com muitos. Até para com a Igreja. Não admira que, em certa medida, o mesmo tenha sucedido com os judeus. Mas há que distinguir entre dois períodos diferentes: até ao final da Guerra e o pós-guerra. Grosso modo, diria que na primeira fase, apesar de sérios ziguezagues e mesmo graves deslizes, houve uma relação de cooperação. Judeus chegaram de comboio dos países ocupados. As autoridades criaram vários locais de acolhimento. Lisboa torna-se um porto de passagem para milhares que buscam outras bandas. A minha própria família materna encontra um abrigo em Portugal. Estes factos não podem de modo algum ser ignorados. Terminado o conflito, o relacionamento é de franco, bom entendimento. Eu conheci de perto a comunidade israelita de Lisboa, na década de sessenta e princípios dos anos setenta, nela também tive certas funções directivas. O presidente da comunidade, Prof. Moisés Amzalak, que veio a ser presidente da Academia das Ciências, foi íntimo de Salazar. Contou-me que Salazar chegou a consultá-lo para efeito de nomeação de ministros. O Prof. Kurt Jacobson chegou a vice-reitor da Universidade de Lisboa. O doutor Samuel Ruah, se bem me recordo, foi médico de Salazar. Tratava-se de uma pequena comunidade, julgo que não teria mais de mil membros, onde vários se distinguiram no mundo da medicina, do direito, da economia. Intramuros não se falava de política. Nem bem, nem mal. Tal não impediu que só em 1977 tenham sido estabelecidas relações diplomáticas a nível de embaixada com Israel, e que só em 1991 venha a ser instalada a primeira embaixada de Portugal em Telavive. Aí as considerações já eram completamente outras, e Portugal diligenciou em não afectar os seus interesses no mundo árabe. E como foi todo o processo de adaptação a Israel, à língua, à escrita, pois tornaste-te um académico respeitado nesse país? Vê que colocas a questão em termos de passado , como se o meu processo de adaptação tivesse já terminado. Não é assim. Ele está ainda em curso, e assim será. Apesar dos meus quarenta e tal anos em Israel, e de me ter tornado um académico conhecido como catedrático de direito, tenho ainda muito a aprender. A aprendizagem da língua, da escrita – e isto apesar de ter muitíssimas centenas de páginas publicadas em hebraico – da cultura, dos costumes das várias etnias que habitam o país, exigem um trabalho constante, perseverante. Sou um imigrante, terei de aceitar a minha função de ponte entre o passado e as gerações futuras. Os meus filhos já estarão integrados. Os meus netos ainda melhor. Quando começaste a escrever? Tinha os meus doze, treze anos. Fazia-o um tanto às escondidas. Escrevia histórias curtas que às vezes dava à minha irmã para ler. Nunca publiquei o que quer que fosse nos jornais juvenis à data existentes. E conhecias a tradição literária judaica ou somente a ocidental? No período que precedeu a aliá (emigração) a minha leitura visou essencialmente a compreensão da Torá, do Talmud, da Kabalá. Interessava-me captar o máximo sobre a identidade judaica, a Weltanschauung do povo judeu. No campo estritamente literário, certamente que me eram muito familiares os nomes de Chaim Bialik, Shmuel Agnon, Amos Oz, entre outros. Mas não nego que muito aprendi sobre a particular sensibilidade e olhar crítico judaico lendo escritores judeus ocidentais, tais como Stefan Zweig, Isaac Babel, Saul Bellow, Hannah Arendt , Elie Wiesel , Salinger, Philip Roth, e tantos mais, sobretudo o grande Kafka.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasDa arte do romance [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] de repente um tipo mete-se a escrever um romance e, mal passa das dez páginas sobre as quais alimenta as maiores dúvidas de que se aproveite uma linha que seja, começa a sentir um arrependimento tal que só não enfia o portátil na banheira e os dedos no liquidificador porque cometeu a imprudência de ter dito a todos os amigos que “agora é que é, vais ver, é uma ideia tão tão boa que não pode falhar”. Quando entra no terceiro capítulo, sói não raramente fumar mais do que escreve – acaso tenha a sorte de ser fumador e não dependa das unhas ou das cutículas para minorar a ansiedade – como consegue ter um vislumbre bastante adequado do que poderá ser uma vida em permanente desequilíbrio hormonal. Enquanto tenta manter a coerência interna do livro, luta com a sintaxe, com a adjectivação que lhe parece ora excessiva ora incipiente, com todas as palavras permanentemente ao lado e para as quais não consegue encontrar sinónimos, com a temperatura, sempre inadequada, com o sono, sempre a destempo e, sobretudo, com a ideia pela qual se enamorou e que lhe parece tão idiota naquele momento como lhe parecia genial antes de a começar a trabalhar. Quando alcança o que lhe parece ser o meio do livro e com alguma sorte, já está em velocidade de cruzeiro e a demanda assemelha-se mais um trabalho das nove às seis do que a um acto criativo. Está com vinte quilómetros nas pernas, faltam outros vinte e não há tempo para pensar em como ou porque se encontra ali. Pensar é parar e ele precisa de correr, porque já faltou mais. É isso: já faltou mais. De vez em quando acontece fado: um parágrafo, uma imagem e, por vezes, toda uma página. O tipo trava, relê, e sorri e, deste modo, ganha um fôlego renovado para continuar. “Não sou assim tão merdoso”, pensa. Inebriado pela resistência que demostra ao desgaste que provavelmente já lhe custou uns quilos, toda uma temporada do Narcos e até o afecto dos gatos, o tipo prossegue, preocupado apenas com a corrida: já não há como voltar atrás. Anos mais tarde, arrependido com “aquela merda incipiente que só fazia sentido naquela altura em que ainda não tinha adquirido de facto a minha voz” vai desejar ter podido voltar atrás. Ou mandar tudo às malvas na altura certa. Só consegue ver onde está. Não consegue ver o caminho que percorreu. Quando está perto da meta já vai muito cansado. Não é um cansaço físico, malgrado comer e dormir cada vez menos e lhe doerem as nalgas independentemente da posição que adopte – já experimentou de pé, mas cedo percebeu que trocava uma dor por outra –, é outro tipo de cansaço, uma espécie de incremento na gravidade que faz com que todos os movimentos tenham um custo e um peso acrescidos. Respira fundo e esfrega os olhos. De vez em quando, dá por si a contemplar um ponto na parede ou uma nódoa na toalha de mesa. Não sabe quanto tempo esteve ali sem o estar. Só há uma coisa que lhe devolve algum alento: fazer scroll até ao início do texto e voltar. É o equivalente a engolir uma generosa golfada de ar para ir ao fundo. Antes de colocar o derradeiro ponto final, imagina todas as versões alternativas e porventura mais equilibradas, mais originais, mais desafiantes, ou seja, tudo menos aquela. Quando finalmente se decide (desiste) vê o mundo a apanhá-lo antes mesmo de poder respirar: a caixa do correio atafulhada de contas e ameaças de despejo, o frigorífico onde há muito só habita uma abóbora que já é bisavó de um esporo em idade universitária e os gatos, lentos e magros da fome, que não lhe passam cavaco nem quando ele abre uma lata de atum. Diz que nunca nunca mais. Passados apenas uns meses, enamora-se de outra ideia.
Carlos Morais José h | Artes, Letras e IdeiasA dor que deveras sente “De la musique avant toute chose” In Orphão [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]averá uma frase de Borges que nos remete para o devaneio de na poesia se encontrarem contidas a música e a pintura, pois a sucessão de palavras – para além das ideias – conteria ritmos, melodias e imagens. Deixando, por ora, de lado a vertente contemplativa e considerando unicamente a música, não será difícil atribuir o carácter encantatório do fluir poético à existência de uma musicalidade no poema, seja ela derivada da sonoridade das palavras ou do modo como se entrelaçam, para depois se sucederem as imagens e os conceitos. Existe na poesia um efeito vibratório, musical, onde reside, se não o seu principal pólo de interesse, pelo menos a fonte de parte considerável do seu fascínio. “Os estímulos visuais”, refere Ester de Lemos, “não escapam tão facilmente à vigilância da razão, não são tão facilmente encarados em si mesmos como os estímulos auditivos, sobretudo os musicais.” (Lemos, 1956, p. 30) Se a música escapa à vigilância da razão, ela será o meio excelente para arrebatar, para suster essa poesia que “eleva cada indivíduo através de uma ligação específica com o todo restante.” (Novalis, 2009, 121). Este carácter sintético da poesia, em grande parte ancorado nessa musicalidade, não deverá ser entendido como referido à dialéctica, que entende um momento de negação, mas a um mero gesto de apropriação criacionista, capaz de proporcionar polaridades outras e sistemas de leitura, o que equivale a dizer reinventar universos e abrir uma miríade de possibilidades à expressão da vida. A síntese, na dialéctica, exprime, afinal, o culminar do processo de aculturação; no criacionismo, a função da negação, fundamental na construção da identidade, só estará presente na expressão poética como condição de sinceridade do media, como se pretendesse operar uma regressão a um estado anterior onde a graça da criança (das três metamorfoses de Nietzsche/Zaratrusta) lhe permite apoderar-se do mundo num golpe. Não se tratará, contudo, de uma regressão propriamente dita mas de uma reaquisição — a saudade é do futuro. Se, para Rousseau, a primeira linguagem era poética tal seria no sentido em que uma palavra dessa primitiva língua encerraria muito mais sentidos que o seu significado literal (ou que este não existiria e muitos significados estariam contidas numa palavra só) e os homens de antanho falariam basicamente por metáforas, abarcando assim mais do mundo do que eles próprios poderiam compreender, sendo a Língua o repositório de um saber que os próprios indivíduos que a falavam apenas entenderiam parcialmente. A poesia inscreve-se numa ânsia de apropriação do mundo e dos seus sentidos ocultos, num claro sentir filosófico em que, para além da vibração musical (mas também em ela), o poema expressa uma visão, eventualmente, o esboço ou o castelo final de uma qualquer metafísica. É com o primeiro Romantismo que poeta e poesia exacerbam esta ânsia, assumindo o conceito poético que elevará o “homem acima de si mesmo”. Trata-se, no dizer de Novalis, de uma poesia “transcendental”, que é “mesclada de filosofia e poesia”, e que prefigura a dissolução dos sistemas filosóficos, na medida em que “se o filósofo ordena tudo, coloca tudo, então o poeta dissolveria todos os elos. As suas palavras não são signos universais — são sons — palavras mágicas, que movem belos grupos em torno de si”. Novalis remataria: “Quando mais poético, mais verdadeiro”. Parece então que com o Iluminismo, o poeta visa ultrapassar o mero papel mediador do xamã para aspirar a ser ele mesmo – através dessa transcendentalidade que lhe proporciona o pensamento filosófico e mesmo a ciência – uma fonte de permanente problematização, expressão radical da vida mas também das volutas do espírito, sem abdicar também do modo – mágico – como eventualmente recuperará alguns restos dessa linguagem primordial, onde se rebatiam os mistérios do mundo e das coisas. Pessanha e as “nobres especulações do espírito” Sem deter o exclusivo ou sequer a preponderância, poesia e filosofia particularmente se entrelaçam no espaço da Língua Portuguesa, por razões que talvez passem pelo defeito da segunda e o excesso da primeira. Após o milagre grego, raramente o Sul produziu um assertivo pensamento lógico, mas as preocupações metafísicas, lidas através dos penetrantes filtros da experiência do mundo e de particulares sensibilidades, cedo se imiscuíram em temáticas versejadas. Já em Camões, para não irmos mais atrás, ao vate, ao cantor épico, se sobrepunha o homem dilacerado pela dúvida, onde o recurso à mitologia soa – além da epocalidade renascentista – ao desespero de constatar uma diversidade percorrida, revivida, recebida e, por tanto, a intuição de um mundo desencantado. Na segunda metade do século XIX, a presença cimeira de Antero de Quental – o que “ensinou a pensar em ritmo; descobriu-nos a verdade de que o ser imbecil não é indispensável a um poeta” (Fernando Pessoa) –, com certeza deu um tom definitivamente filosófico à expressão da poesia lusófona e talvez poético à filosofia pensada em Português. As crises, civilizacional na Europa e muito específica em Portugal, na sequência do Ultimatum britânico, eram demasiado profundas e dolorosas para que os poetas se limitassem aos devaneios dos salões, às rimas de ocasião, enfim às actividades dos que Pessanha define como “essa legião de poeta mínimos, cuja pobre musa toda a sua fecundidade esgota na concepção de cem páginas de lirismo”. Como explica Gustavo Rubim, Camilo Pessanha critica a poesia como “uma expressão directa dos sentimentos, das sensações ou da experiência vivida do poeta e opõe-lhe uma concepção mais abstracta que inscreve o discurso poético no campo das ‘especulações do espírito’”. Ora para sustentar a filosofia no discurso poético, para lhe garantir o carácter especulativo, implica, como diz o autor de Experiência da Alucinação, “uma certa dimensão impessoal” (Rubim, 1993, 142). Ou seja, o que Fernando Pessoa já exprimia, quando escreveu este revelador apontamento: (…) A cada um de só três poetas, no Portugal dos séculos XIX a XX, se pode aplicar o nome de «Mestre». São eles Antero de Quental, Cesário Verde e Camilo Pessanha. (…) O terceiro ensinou a sentir veladamente*; descobriu-nos a verdade de que para ser poeta não é mister trazer o coração nas mãos, senão que basta trazer nelas os simples sonhos dele. Estas palavras que não são nada bastam para apresentar a obra do enorme poeta Camilo Pessanha. O mais, que é tudo, é Camilo Pessanha.” Este “trazer nas mãos os sonhos do coração” implicará um duplo distanciamento: uma consciência primeira que, se bem que sob o filtro da sensibilidade, exige a exterioridade; e uma exterioridade que permite a reflexão distanciada. O poeta adquire esse distanciamento em relação a si mesmo (ao lirismo óbvio) e a possibilidade de contemplar (teorizar) o que detém agora nas mãos, operando uma espécie de processo alquímico de destilação, decantação e, finalmente, sedimentação – de sensações, sentimentos e ideias – nas palavras finais do poema. Isso é de tal modo presente em Pessanha que, mesmo quando produzia “os seus poemas por uma premente necessidade espiritual”, fazia-o “numa atitude eminentemente intelectual (…) vivendo e revivendo o sentir dos momentos de concepção poética.” (Dias Miguel, 1956, 185) É então a poesia o canto desses sonhos do coração? O que são eles? Parece-nos que Pessoa se refere, quase falando numa linguagem gémea da de Pessanha, a um processo poético. Curiosamente (e tal não deverá passar de uma coincidência), no pensamento tradicional chinês, seja ele confucionista ou daoísta, o coração (xin) é a entidade onde residem as emoções, os desejos, os sentimentos, o pensamento e a moral, ou seja, ali se entrelaça toda a fenomenologia da existência interna dos seres humanos. Se entendermos coração neste sentido, teremos então o indivíduo e todos as seus rizomas culturais nas mãos. Mas Pessanha, por outro lado, entregava-se “ao trabalho do aperfeiçoamento da expressão, preocupado até à angústia com o sortilégio e a magia verbal, condensando e polindo de tal modo, que muitas vezes obscurecia quase totalmente o sentido biográfico e directo que tinham essas poesias”, nas palavras de António Dias Miguel. (Dias Miguel, op.cit.) Assim se revelam a existência de uma matriz filosófica e uma a exigência de distanciamento biográfico, a par com a demanda extrema da musicalidade. Seguindo estas referências, parece inegável que a reflexão filosófica ocupa um lugar fundamental na poesia de Camilo Pessanha. Ainda que nem sempre explícita, a sua concepção do mundo constituiu, talvez de forma dolorosa, uma das principais episteme onde a sua poesia lançou raízes e a partir da qual se desenvolveu. A pergunta e o gelo Já em 1887, no poema Soneto de Gelo, o poeta explicitava algumas das preocupações derivadas do seu dispositivo ontológico: (…) “Eu mesmo quero a fé, e não a tenho, – Um resto de batel – quisera um lenho, Para não afundir na treva imensa, O Deus, o mesmo Deus que te fez crente… Nem saibas que esse Deus omnipotente Foi quem arrebatou a minha crença” Ou seja: a ausência da fé, uma existência num mundo sem Deus e, consequentemente, a morte como fronteira de dissolução do indivíduo. O poeta quisera uma pequena prova, ainda que só “um lenho”, de “um resto de batel” (a barca, baraka — animal fantástico, montada de Abraão e Maomé, que na mitologia islâmica opera a comunicação entre dois mundos), algo onde se suster, que o não deixe “afundir na treva imensa” de um universo vazio de sentidos divinos ou de quaisquer outras satisfatórias respostas. É precisamente essa “treva imensa”, o segredo insondável, que provoca no poeta o início de uma profunda dor metafísica, quase revolta contra a divindade pelo seu silêncio/inexistência e sua consequente falta de fé. Se foi Deus “quem arrebatou a minha crença” é porque o estado de descrença é anterior ao próprio advento do raciocínio científico-filosófico ou da intromissão da cultura. É certo que a falta de fé surgirá também como decorrente do próprio ZeitGeist, da posição do poeta num dado momento civilizacional. É a religião na qual foi educado, as relações familiares, a escola frequentada, o valor atribuído ao conhecimento científico, a sociedade emergente, enfim, o conjunto global de valores e procedimentos que constituem uma Cultura num determinado momento da História, que tornavam problemática a existência de Deus. Mas Pessanha parece afirmar que sente a sua descrença, de algum modo, anterior, constitutiva e fatal, porque lhe foi arrebatada por Deus, o que não deixa de exalar uma paradoxal ironia. A extinção da crença resultará como anteriormente resultava a sua afirmação: sem que o sujeito nela tenha uma real intervenção. Pessanha assume neste poema o seu ateísmo como condição (dolorosa) e não como decisão consciente. Até porque o novo universo, dessacralizado, não lhe fornece respostas. Simplesmente, efemeramente o admite, na sua fria indiferença, sem proporcionar qualquer consolo às angústias fundacionais dos humanos. O poeta refere esse mal-estar matricial no poema Estátua: Cansei-me de tentar o teu segredo: No teu olhar sem cor, — frio escalpelo, O meu olhar quebrei, a debatê-lo, Como a onda na crista dum rochedo. Segredo dessa alma e meu degredo E minha obsessão! Para bebê-lo Fui teu lábio oscular, num pesadelo, Por noites de pavor, cheio de medo. E o meu ósculo ardente, alucinado, Esfriou sobre mármore correcto Desse entreaberto lábio gelado: Desse lábio de mármore, discreto, Severo como um túmulo fechado, Sereno como um pélago quieto. O cansaço de procurar de respostas no olhar – acto que remete para a contemplação, a teoria –, dá lugar à ousadia do beijo – acto amoroso, a poesia. No primeiro caso, a contemplação esbarra e quebra-se “como a onda na crista de um rochedo”. No segundo, produz-se um esfriamento do que era “ardente, alucinado”. Ou seja, nem a razão consegue penetrar o insondável; nem um extremo desejo e uma vitalidade transbordante obtêm outro resultado que não seja a sua própria dissolução. Em ambos os casos, sobrevém uma existência assombrada pelo silêncio. Emana, de facto, deste poema uma sensação de horror perante um universo feito estátua, em cuja indiferença nem Razão nem Vida penetram. Estátua porque, se bem que gelado e silencioso, de olhar sem cor como as estátuas gregas, ainda assim, tal como a escultura clássica, o universo não deixa de exibir uma certa ordem e exalar uma profunda beleza. Tal acentua o sofrimento do poeta perante a impossibilidade de – não de o conhecer – mas de beber esse segredo. Não serão os conhecimentos científicos, racionais, que trariam satisfação a Camilo Pessanha, pois estes nem de perto pretendem responder às questões que o habitam. Mas, mesmo face às suas ousadias, de pesadelo, nada acontece a não ser o esfriamento perante a gravitas de um “túmulo fechado” ou de um “pélago quieto”. Pessanha habita um universo novo, que a ciência descreve através das teorias quânticas, do princípio da incerteza, da transformação sucessiva de matéria em energia e de energia em matéria, em que a própria matéria não é mais que uma vibração ou ondulação, obediente a ritmos misteriosos, desconhecidos mas dessacralizados. Não será também o uno conceito de Vontade, de Schopenauer — como tem sido repetidamente afirmado por uma ligação rápida ao dito pessimismo do alemão —, que aqui estará em jogo. Não existe uma Vontade (conceito eivado de metafísica), mas um palimpsesto de forças, de energias, de vibrações, num universo em que as formas se limitam uma existência efémera como no poema “Imagens que passais pela retina dos meus olhos / Porque não vos fixais?”, em que tudo é transitório e de sentidos vagos. Os “olhos pagãos” somente vêem os “sucessivos desertos”. E nem a sua presença deixará qualquer rasto: “Fica sequer, sombra de minhas mãos”. No lugar de Deus não existirá nada, sequer faz sentido o panteísmo de Espinosa. A ideia de um ser divino, antropomórfico ou disseminado, dará lugar a esse resfolgar contínuo de todas as coisas, essa dimensão pulsante que permite supor a existência de um ritmo primordial, incessante, inesgotável, sem face nem propósito, sem leis morais, mera energia e mera matéria, em permanente metamorfose, como o poeta sussurra ainda no seu leito de morte, à laia de despedida: “Tudo podridão… tudo matéria…” E podridão, o leitor do Octave Mirbeau de “O Jardim dos Suplícios”, novela passada em Cantão no século XIX, que Pessanha certamente era, sabe que significa metamorfose. Num plano mais pessoal, é a ausência de uma consciência divina que torna fútil a crença num destino, dando ao indivíduo a sensação solitária de à toa marear na vida, tornando-a também a ela fútil e levando à invocação da morte como acto estético último, no sentido borgesiano da iminência de uma revelação que não se produzirá. Enfim, levantou ferro. Com os lenços adeus, vai partir o navio. Longe das pedras más do meu desterro Ondas azuis do oceano, submergi-o. Que eu, desde a partida, Não sei onde vou. Roteiro da vida Quem é que o traçou? (…) A sensação de inutilidade da vida (“Foi um dia de inúteis agonias”… “Floriram por engano as rosas bravas…”) percorre a obra de Pessanha. A vivência num mundo desencantado, sublinhada pela decadência do país, estriba-se numa ontologia melancólica, onde a aura materialista acaba por ser, em confronto com a sensibilidade do poeta, fonte de uma inextirpável dor. Camilo Pessanha será um daqueles primeiros homens a ter nascido no mundo de um Deus morto (Nietzsche), mas onde a estrutura religiosa se encontra profundamente imiscuída na Cultura e mantém a sua influência noutros domínios que não o filosófico. Por exemplo, nesta linha, Michel Onfray, no seu Tratado de Ateologia, classifica de ateísmo cristão o pensamento dos homens oitocentistas que não acreditam na existência de Deus, mas cuja moral se rege pelos valores do cristianismo. No caso de Pessanha – também porque a sua poesia mergulha “as suas raízes no húmus natal” – existirá, não uma moral cristã, mas uma estética primeva que não dispensa uma concepção divina, um plano do mundo. É, sobretudo, em termos estéticos, imagéticos até, com todas as suas consequências, que esses arquétipos assombram Pessanha. Ele recorre aos mitemas da sua cultura, claramente perturbantes, para exprimir o seu desvanecimento no mundo contemporâneo e também na sua própria sensibilidade. Tal procedimento é recorrente quando o poeta se refere, por exemplo, a figuras femininas, segregando imagens como “Magra figura de vitral…”, “Madalena, cabelos de rastos…”, de nítida influência religiosa ou, num registo mais rural, mas igualmente irreal: a alma de sua mãe, pela neve, a mendigar à porta dos casais. Repare-se ainda no poema Transfiguração: Mulher forte, remiu-me a tua prece: Penitente, pagão, bem lusitano Ergo os braços ao céu quando anoitece. Judas divaga, em espiras de pecado Eis-me o Verbo de Deus, sacramentado No rebuço dum capote alentejano. A mulher (origem, cultura) fica como repositório da crença, que eventualmente, à la Pascal, o redimirá. Mas ele é Judas (traidor, em pecado) e mesmo quando poeta, expressão divina, “sacramentado”, acaba rebaixado à banal, prosaica, desencantada condição de existência “no rebuço dum capote alentejano”. Fusão ou barbárie Uma das consequências principais de um universo dessacralizado é o surgimento da morte como espaço de dissolução do indivíduo. Deus existiu moribundo na poesia do século XIX, até encontrar a sua mais desesperada e última expressão no satanismo, que precedeu o nosso poeta. Tais caminhos mostraram ser becos sem saída, meras expressões contingentes de um problema que cavava mais profundo que uma inversão, na qual, afinal, se declarava um amor supremo edipianizado. E não seria por aí que Camilo caminharia. Como refere Rubim, a partir da crítica do poeta ao livro Flores de Coral, de Alberto Osório de Castro, nele a vida surge como “uma consequência lógica” da morte, a vida significa a morte, uma não é a negação da outra. “De que havia pois de lamentar-se, ou contra o que havia, pois, de insurgir-se, se a morte é, em relação à vida, não só o termo fatal, mas também a consequência lógica?” Contudo, Pessanha não deixa de considerar a morte como algo de fatal, a par com uma consequência lógica. Daqui se entende a concepção da vida — apenas porque no humano existe à partida o conhecimento antecipado do fim —como fatalidade, embora esteja ausente o destino. O que parece aconchegar tal concepção da morte como dissolução do indivíduo, em que esta não passa de uma “consequência lógica da vida”, parece ser um desejo último de fusão com o Cosmos, finalmente de participação total, expurgadas que serão a consciência e a dor. Recortes vivos das areias, Tomai o meu corpo e abride-lhe as veias… O meu sangue entornai-o, Difundi-o sob o rútilo sol (…). Só o meu crânio, fique, Rolando, insepulto no areal, Ao abandono do simoun Que o sol e o sal o purifique. A morte será uma porta para a integração total no universo, integração que não será a de uma alma una mas da matéria que se transforma, de um corpo que se desfaz: “Róseas unhinhas que a maré partira… / Dentinhos que o vaivém desgastara… / Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos…” é o que sobra de uma vida e da “fúlgida visão, linda mentira!”. Poderá ser correcto afirmar que a biografia infantil do poeta, as suas desilusões amorosas e mesmo a sua frágil saúde terão sido razões importante para conferir à dor um lugar de relevância nos seus poemas. Mas creio que, aquém e além das referências biográficas, fará sentido outorgar a esta dor metafísica – consequência da consciência da inexistência de Deus, do indivíduo após a morte e do Destino – um papel central na obra do poeta de Clepsidra. A dor que deveras sente De tal modo a questão da dor é central na poesia de Camilo Pessanha que o poeta a transforma em energia necessária, como se ela fosse o único instrumento que permitiria uma visão mais profunda do universo e, de um modo quase perverso, justificasse a existência humana: uma espécie de Sofro, logo existo, na medida em que seria um garante de Ser. Tenho sonhos cruéis: n’alma doente Sinto um vago receio prematuro. Vou a medo na aresta do futuro, Embebido em saudades do presente… Saudades desta dor que em vão procuro Do peito afugentar bem rudemente, Devendo ao desmaiar sobre o poente, Cobrir-me o coração dum véu escuro!… Porque a dor, esta falta de harmonia, Toda a luz desgrenhada que alumia As almas doidamente, o céu de agora, Sem ela o coração é quase nada: — Um sol onde expirasse a madrugada, Porque é só madrugada quando chora. Sem a dor, o coração, os tais sonhos, “é quase nada”. São as lágrimas que justificam a madrugada e sem elas o sol não seria sol, nele se extinguiria o que ele próprio proporciona. A importância atribuída à falta de harmonia remete para a frase de Rimbaud: “Finalmente, acabei por considerar sagrada a desordem do meu espírito”. No caso do poeta português, essa desordem é fruto da dor, mas é também fonte de iluminação, de uma percepção outra do mundo, como se fora um método poético de absorção mais intensa das coisas. Este poema é de 1888. Mais tarde, o poeta acabaria por rever esta posição como adiante demonstraremos. Ora a questão da dor fora colocada no debate filosófico, entre outros, por Soren Kierkegaard e por Nietzsche que, na sua Genealogia da Moral, a refere como a grande criadora de memória. O filósofo alemão evoca os grandes espectáculos públicos da dor: as matanças, as carnificinas, as execuções públicas e a tortura, a que a Humanidade tem paulatinamente assistido e cuja função, afirma, é precisamente a criação de uma memória; a dor como uma terrível mnemotécnica, que passa mesmo, em certas sociedades, por rituais extremos e pela inscrição dos corpos. Num plano individual, a dor também proporciona a memória e demarca os limites de acção dos indivíduos, mas a sua persistência, nomeadamente de uma dor metafísica, impele o sujeito para a reflexão filosófica e – pretenderão alguns – estende o campo de percepção a outras realidades. Tal fará, em Pessanha, que a dor seja invocada: “Saudades desta dor que em vão procuro / Do peito afugentar bem rudemente”. Repare-se no paradoxo: sente-se a falta (heurística) de uma dor que se pretende eliminar, porque ela é “a luz desgrenhada que alumia as almas” e o “céu d’agora”. Ou seja, a dor é ainda o que permite, no caos que desencadeia, um determinado conhecimento de si próprio e a intuição do universo. Veja-se o exemplo do poema Branco e Vermelho, no qual a dor se transmuta em luz, em lúcida febre e proporciona a visão, a contemplação do mundo. E é toda uma humanidade agrilhoada que o poeta nos descreve, atravessando um mundo deserto, futilmente explorada e temente de um castigo, seres viventes nos charcos do medo, que só a morte liberta do sofrimento. A dor induz o poeta a um estado de luminosidade/alucinação que lhe proporciona a visão da humanidade que desfila, açoitada ao ritmo dos seus versos. E que humanidade é essa? Um grande painel de sofrimento, de desconforto metafísico e também produto do crime cometido desde o alvorecer da História: a exploração do homem pelo homem. Claro que neste poema existem outros cambiantes, outros caminhos interpretativos, nomeadamente (uma vez mais) para quem se quiser referir a conhecimentos esotéricos e à importância do maniqueísmo (a oposição luz/trevas) no pensamento templário e maçónico, sabida que é a filiação de Pessanha à maçonaria. Contudo, cremos que esta filiação, longe de ser religiosa, passava precisamente pela recusa da Igreja e por uma tendência de fraternidade social. É sabido em Macau que a loja a que Pessanha pertencia não tinha um carácter teísta, bem pelo contrário. Dela fizeram parte conhecidos ateus e republicanos. Alma lânguida e inerme À medida que em Macau Pessanha vai adensando os seus contactos com o pensamento chinês, podemos vislumbrar nos seus poemas alguns pontos de contacto com a tradição oriental, nomeadamente eventuais influências daoistas. De facto, a concepção de um mundo heraclitiano, em permanente movimento, não andará muito longe da ontologia proposta pelo pensamento daoista, mas será sobretudo o retorno à pureza original, que todo o pensamento clássico chinês prescreve, que encontra nos daoistas um método que nos surge como próximo de certos versos do nosso poeta. Para o sábio daoista, deve o homem retirar-se do mundo, afastar-se para o ventre da terra onde, no silêncio, num processo de metamorfoses, comparável ao de uma crisálida, se transformará no Feto Imortal. O daoista alimentar-se-á na sua gruta, sugando as estalactites, como se fossem os seios da Terra. Pessanha abre precisamente a Clepsidra como o famoso poema Inscrição: Eu vi a luz em um país perdido. A minha alma é lânguida e inerme. Ó! Quem pudesse deslizar sem ruído! No chão sumir-se, como faz um verme… Ou mais à frente no mesmo volume: Porque o melhor, enfim, É não ouvir nem ver… Passarem sobre mim E nada me doer! — Sorrindo interiormente, Co’as pálpebras cerradas, Às águas da torrente Já tão longe passadas. — Rixas, tumultos, lutas, Não me fazerem dano… Alheio às vãs labutas, Às estações do ano. Passar o estio, o outono, A poda, a cava, e a redra, E eu dormindo um sono Debaixo duma pedra. (…) E eu sob a terra firme, Compacta, recalcada, Muito quietinho. A rir-me De não me doer nada. Ora não se trata aqui da morte mas de atingir um estado outro de consciência, em que a fusão com a Terra, que um psicanalista poderia atribuir a um desejo de fusão com a mãe, seria o passo principal para conseguir um determinado tipo de repouso, que eliminaria a dor. Gaston Bachelard, curiosamente no mesmo livro em que refere Lúcio Pinheiro dos Santos, um filósofo amigo do poeta de Macau, entende “o repouso como um dos elementos do devir”, que se inscreve no “cerne do ser, que devemos mesmo senti-lo no fundo mesmo do nosso ser, ao nível da realidade temporal sobre a qual se apoiam a nossa consciência e a nossa pessoa. (…) Que cada um, à sua maneira, se liberte das excitações de circunstância que o põem fora de si. (…) o ser libertar-se-á de um impulso vital que o afasta para longe dos objectivos individuais, que se desgasta em actuações imitadas. (…) A consciência pura aparecer-nos-á como uma potência de espera e vigia, como uma liberdade e uma vontade de nada fazer.” (Bachelard, 2006, V-VI). Estamos então perante uma espécie de quietismo como panaceia para a dor, fonte de iluminação e, no sentido referido por Gustavo Rubim, de alucinação, na medida em que a percepção do mundo se altera, se refina, se torna rítmica através da escuta aproximada do pulsar do pensamento e da própria matéria. Também nessa crisálida emerge, finalmente, um fio de voz, plena de consciência e de musicalidade, que dará origem ao poema. Não se trata, portanto, de um desejo de morte mas de obter um lugar excelso de compreensão do mundo que passa, como no daoismo, pela participação no todo, quase mineralização, onde a impessoalidade não significa necessariamente despersonalização mas, pelo contrário, a formação de um ser outro, como a borboleta Aurelia dos neo-platónicos de Alexandria, símbolo de uma nova sabedoria. Podemos concluir que o ateísmo de Camilo Pessanha não o conduziu a um beco sem saída, como o poema Estátua parecia anunciar. Pelo contrário, permitiu-lhe navegar por territórios desconhecidos, não se fechar na sua própria cultura e dotar a sua poesia de uma universalidade e de uma atemporalidade inegáveis. Quando nos subtraímos a essa ideia onde tudo cabe e que tudo explica, ficamos sós perante o Cosmos mas é precisamente nesse momento que se revela a tragédia e a beleza da condição humana, desse animal cujo dever é olhar o universo de frente, sem improváveis mediações, assumindo-se como filho das estrelas e do mar, assombrado pela ideia de infinito e orgulhoso por ser uma pequena chama no vasto incêndio do universo. BIBLIOGRAFIA CITADA Bachelard, Gaston. La dialectique de la durée. PUF: Paris, 2006 Dias Miguel, António; Camilo Pessanha – Elementos para o estudo da sua biografia e a da sua obra. Edição de Álvaro Pinto (“Ocidente”): Lisboa, 1956. Lemos, Ester de. A “Clépsidra” de Camilo Pessanha: notas e reflexões, Tavares Martins: 1956 Novalis. Fragmentos, diálogos monólogos. Editora Iluminuras: São Paulo, 2009. Rubim, Gustavo. Experiência da Alucinação – Camilo Pessanha e a Questão da Poesia. Editorial Caminho: Lisboa, 1993.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e Ideias“Vai correr tudo bem” [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]oda a grande filosofia é sistematicamente céptica. Não o é dogmaticamente. Na infância e na juventude, escutamos dos pais e dos mais velhos, dos que têm responsabilidade e carinho por nós: “vai correr tudo bem”. No que é decisivo, em todas as situações críticas, não correu nada tudo bem. Nem correram algumas coisas bem ou só uma. Correu sempre tudo mal. Acabou. E o fim dá sempre cabo de tudo. Destrói. Apaga. Anula. Esvazia. Logo para começar o que quer dizer este “tudo”? A “vida toda”? Ou “tudo” é conteúdo da situação específica em que nos encontramos? E porque é que alguém nos diz que “tudo vai correr bem”? O que sabem as pessoas de nós e da vida para nos dizer que tudo vai correr bem? Tudo! Bem! Correr! Em que situações é que nos dizem que tudo vai correr bem. São situações em que estamos remetidos para os outros, e essa remissão configura a nossa própria vida. Não são apenas aqueles outros que são importantes para nós, por a eles nos unirem laços estreitos. São aqueles outros que causam um impacto devastador nas nossas vidas. São agentes do mal. A sua importância nas nossas vidas vem do sofrimento que causaram, do poder destrutivo, moral, afectivo, sentimental, numa palavra: existencial. Os outros projectam-se em nós de diversas maneiras e o que nos liga a eles não são apenas laços positivos de afecto são também laços negativos. Os protagonistas das nossas vidas não são heróis apenas. Há também os maus da fita. São ruins, vis, criaturas com níveis de agressão e impacto incomensuráveis. No rescaldo de situações críticas, alguém nos diz que tudo vai correr bem. Tudo? Bem! Como? Quando tudo está a correr mal, quando a situação de impactos emocionais e crises afectivas são inultrapassáveis, não são anuláveis, nada é repetível para que o pudéssemos contornar! Tudo é simplesmente irreversível. Não quer dizer que não sobrevivamos. Ficamos para contar a história e temos tantas roupas para a nossa alma quantas as suas cicatrizes. O mapa das nossas almas é vincado em baixo relevo, nas nossas almas, e algumas pessoas têm as suas existências estampadas nos seus rostos. No final da vida, tudo está lá marcado. Mas também podemos perceber que nada nunca corre bem nas separações. Achamos que está bem separar-nos, porque é difícil o amor. O amor incha numa casa com um peso insuportável ao qual o quotidiano não sobrevive. E rebenta-se pelas costuras. Entre os apaixonados há uma divindade, uma atmosfera divina. Quando ela é dissipada, os amantes passam a ser os próprios, mas sozinhos e sem os outros. É difícil conviver com os outros, quando já somos só nós e não somos ainda com aqueles outros sem os quais, achávamos, não teríamos identidade. Na separação afectiva, nada pode correr bem. Tem tudo mesmo para correr mal. E quanto à possibilidade de refazermos a vida, ela não é negada, mas é muito difícil sobreviver só, quanto mais acompanhado. Podemos levar a vida inteira para nos reavermos. Achamos que não sobrevivermos a outra história de amor, aquele amor infeliz que foi a primeira vez de todas as primeiras vezes. Nem queremos saber do que se passa com essas pessoas. Desejamos vagamente que sejam felizes, mas sobretudo que não se cruzem nunca mais connosco. E há dias sem dúvida em que lhes desejamos mal, quando nada corre bem e só há amargura, sem um consolo que desfaça o horror. Mas também nada correrá bem quando ficamos na estrada sem pai, como naquele livro, “The road”, em que a criança sobrevive ao pai. O pai tentou prepará-lo o melhor possível para a sobreviver ao holocausto. Todo o filho que sobrevive ao pai sobrevive para atravessar um holocausto. Na infância, perder o pai é tremendo. Como se os adultos e velhos que perderam os pais não estejam na infância, desprotegidos, sem poder obviar o que quer que seja! Não. Não acredito que tudo vá correr bem. Começou a correr mal e vai ser para sempre assim. Tudo vai ser diferente. A diferença não quer dizer ainda a sobreposição do mal ao bem. Quer dizer apenas que estamos sem mapa, sem bússola nem rosa dos ventos. Sem tempo já ou só desesperados. E poder-se-á pensar que estas palavras celebram o cepticismo e o mal ou o desespero. Nem pensar nisso! Nem tão pouco se deseja que tudo corra mal, como se isso fosse possível. É só uma resposta homeopática ao tudo que corre mal, ao nada que corre bem, para poder sobreviver mais umas horas na maquinaria da ansiedade e da preocupação que estanca o decurso do tempo, atrasa-o, para-o.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialCaligrafia do espanto [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]eio de visita. Não sei se vai ficar. A máquina de escrever velhinha e amarelo banana. Esquecida e discreta estes anos todos. Uma visita curta de carinho e lembranças. Do tempo devagarinho. Veio para conversar e para o retrato de família. Às vezes penso se um dia se deixará de escrever à mão. Com o gesto trabalhoso e revelador. Com o tacto atento à caneta. Com gostos e preferências de cor e espessura. Penso nisso muitas vezes quando reparo na rapidez das teclas. Mas ela não era assim. Dura e teimosa, não tornava o gesto fácil, nem muito ágil. Por isso as folhas e os cadernos de um conforto insubstituível. As folhas de linhas finas e o gosto das folhas lisas onde a escrita voa como lhe apetece num céu limpo e livre. Talvez se tenha cada vez menos paciência para esse desenho que retarda o passo. Quando gosto de alguém fico tempo sem conto e sem fim a contemplar-lhe a escrita. Não, não falo da escrita das ideias. A forma. Mas não falo da forma como as ideias se entrelaçam e desenvolvem, da estrutura frásica, do ritmo. É da caligrafia que falo. Essa impressão indelével do gesto. Do movimento, da passada que deixa registo. No seu hermetismo. Na sua significação enquanto tal. Gosto de a seguir. E o encantamento, como se face a um rosto. Como a face de um rosto. Que se tacteia mentalmente, acompanhando cada linha. Que se observa como numa carícia. Há um lugar certo para cada coisa. Eu procuro isso nos dias e nas coisas. As coisas precisam de um lugar bom para estar, para dormir. As palavras. Tudo. Procuro. E desarrumar porque é preciso ou porque é a vida. E arrumar para que tudo chegue à noite e possa dormir. Em paz. Com uma manta de afago e embalo bom. Todas as coisas. Todas as palavras. Também podiam. Como cães. Levados à rua, mas retornando a casa para dormir no seu lugar. Nunca abandonar as palavras. Como bichos de estimação. Mesmo maus. Levá-los para a cama e pô-los confortáveis para dormir. Nunca ao relento do silêncio. Um gesto. Uma carícia vaga. Quanto baste. Mas em todos os gestos se pode cruzar um mundo de ideias que tolhem, que mudam, que paralisam que arrependem. O gesto e a caligrafia do gesto. Mas não a escrita. A caligrafia da escrita. Há um lugar algures. Desconhecido todos os dias a dizer. Um lugar para cada silêncio. Como aquele onde todos os dias todas são as palavras possíveis em um tudo vale. A pena. A espada. O minuto depois e o gesto que apaga. Em tudo. Inevitáveis, mas limpas. Ásperas, ternas. Todas as que há. Todas convocadas a ver. Esse lugar ideal que há. Há um ruído que é possível lapidar. Um lugar. E pessoas firmes como âncoras. Nenhuma palavra vento as leve. E leves palavras duras como pedras a atirar em curvas e ondas e a fazer ondulação em torno de tornozelos sólidos de pés fincados no chão. Mesmo de areia. Almas ao vento no ar do céu. E pelo meio o corpo haste a ondular. É o corpo da letra. E no veio do tempo a andar deslizantes ou tensas todas as palavras. Todas são remédio ou têm antídoto colado às finas hastes. De planta para crescer. Quando é. Tudo é possível dizer. E apagar com um gesto. Denso. De sentir. Em tudo há um gesto um ápice um rasgo. A sibila adivinha mas não faz, o gesto, a criança faz mas não adivinha e às vezes ao contrário e nada. E nada vai ali, de facto. Mas era possível imaginar, ser. Um código seguro. A ler. Não nada. E há um gesto há um afago há um sentido. E nada. Nada flui e era. Mas era mesmo. Os olhos dizem a alma sente o pulmão sofre. Porque. Porque não. Mas era assim que era. Com a escrita de linhas a azul em páginas em papel em branco. A dizer em vôo visível. Tudo o que voa me enternece. E o que voa livre sem ter necessidade de fugir porque não há perigo. E tudo o que voa sem medo e sem medo flui sem ferir. E às vezes penso que todos somos refugiados mas alguns dormem em camas de conforto em casa. Mas fugidos de algo. Sou dada a emoções contemplativas. Coisas de lentidão parada. Melopeias dos sentidos da visão e do tacto. Como a eternidade da carícia num cabelo, num pelo de bicho. Uma página de dicionário. Essa explicação calma dos sentidos. Essa impressão boa de que todas se encerram ali, se ajudam na explicação da vida que se diz. Que se desmultiplicam em explicações uma das outras. Umas às outras. Como se uma espécie de família em que todas se relacionam com todas. Poucas coisas produzem em mim uma contemplação extasiada tão densa como a observação da caligrafia de uma pessoa amada. Como se move. Como se movimenta subtil por ali uma parte desvendada do seu dinamismo interior. Como se revela. Mas revelando o quê exactamente é coisa bem mais difícil de adivinhar. Estando lá. Como parte de um espaço etéreo do espírito, em que firmemente e irreprimível, se desenrola uma relação entre o gesto, a decisão implícita e a forma. Sempre a mesma nas suas subtis variações. Aquilo que subterrâneo determina a forma. Sempre reconhecida como uma de muitas expressões de um rosto uno. Espanta-me e enche de encantamento. Os laços a prender mais fortes ou com lassidão uma letra. Uma curva rápida e irreprimivelmente hesitante sempre naquele ponto e a emendar numa abrupta quase angulosidade. Que não chega quase a ser. Mas há um gesto que para sempre naquele ponto a fluidez da curva. Noutras um nó. Aqui e ali um gancho. Uma espécie de anzol em que a corda da escrita avança como se suspensa de uma falésia perigosa. Letras que se alongam e desdobram com sensualidade de quem se espreguiça. Mas sempre as mesmas mesmo se nem sempre. A curva de uma letra pequena, suspensa no ar e a descer a terra pouco firme. As que ficam suspensas, e com um braço no ar. As que se encostam sempre ao ombro da outra. E as que laçam setas rápidas em frente. Ou a subir velozes. Como se alça o braço de um d ou de um t e se enlaça em si como ao tronco de uma árvore. Um abraço em nó. Em laço. Como fica em aberto um a por pressa de escrita e como se fecha duplamente em nós um outro a ou o. Como um p se torna ponte pronta a abrir passagem a passos que se lhe sobrepusessem. Em fechamento pouco apertado. Uma duna, Quase. Como uma outra se curva para dentro quase em espiral como se a querer voltar a uma posição fetal mas já sem o abrigo primordial. Uma espiral firme e irreprimível de retorno a si no mais interior. Essa letra do abismo. Em que a saída é sempre mais atrás. Em arrependimento, em contrariedade, em necessidade de sair para a letra seguinte. Movimentos que estancam, definitivos. Ou que fecham num arabesco, como num círculo mágico de protecção. E floreados. Líricos de folhagem leve. Há letras pontes. Letras castelo. Letras torre. Letras abraço. Ou arremesso. Há gestos tensos e imbricados e retorcidos em si. Fiz isso tantas vezes. Olhar. Por um tempo. Intrigada. Com esta estranha caligrafia do ser. Como as pessoas se situam na inicial do seu nome. Se a usam como echarpe leve e descuidadamente poisada pronta a voar, ou quando dela saem a custo para as outras letras. As que dela lançam âncora e as de dela fazem torre fechada a sete chaves. As que atam e as que desatam as formas como deixando livres de voar em frente. E as que voltam atrás. As que recolhem uma curva que ficou antes, as que abraçam a memória da letra anterior. As que não acertam e as que seguem sempre em frente, esticadas languidas e desejosas de avançar. Espraiadas. Ou contidas. Pé ante pé, ou atabalhoadamente. As que se mascaram de outras. Lentas, mais lentas porque se perdem ao espelho a esquadrinhar o rosto maquilhado, a roupa diferente, os sapatos de salto desusado. Poucas coisas escapam a este desfile de pequenas figurinhas animadas pela paisagem desértica de uma página. E por isso mesmo. Sem sinais, sem uma chama que as guie no espaço físico, a vencer o deserto, simplesmente e sós. Preocupadas com uma ideia que as guia. Uma indecisão. Às vezes, mesmo, consigo próprias. Com o que vestem no momento. O arredondado e o anguloso. Com hora marcada sempre naquele ponto. Há uma configuração interior que se verte nestas formas pequeninas e irreparáveis. Há uma constância que diz delas, serem como um rosto. Um olhar que de dentro se entorna sem querer. Há, talvez um sentido descritivo possível dessa caligrafia do ser desenhada nas palavras. Teorias sobre isso. Mas o que me espanta é a inevitabilidade das formas. O padrão. A unidade coesa de alguém por detrás do desenho. Todas as figurinhas dançantes ou corredoras, ou por vezes paradas nas esquinas. Encostadas às paredes. Expectantes ou precipitadas. Esse mundo ínfimo, animado e fascinante em que me posso quedar horas. Sem por elas dar.
António Graça de Abreu h | Artes, Letras e IdeiasNuku Alofa, Ilhas Tonga, Polinésia [dropcap style≠’circle’]À[/dropcap]s oito e meia da manhã saio do navio para a descoberta impossível-possível desta ilha de Tongatapu onde se situa Nuku Alofa, a capital do reino de Tonga. Reino? Exactamente. Tonga é uma antiga monarquia e não existe mais nenhuma em toda a Polinésia. Sua Majestade o rei Tupou VI e a rainha Nanasipau’u dão logo as boas vindas aos recém-chegados, em dois painéis gigantes à entrada do pequeno porto. O arquipélago conta com 176 ilhas, sendo 40 delas habitadas, e forma também o único território do Pacífico Sul que nunca foi colonizado por estrangeiros. Os tonganeses têm orgulho nisso. A sua pele é escura, lábios grossos, olhos grandes, maçãs do rosto salientes, feições marcadas pela origem polinésia. Parecem gente simples, respeitadora do próximo e muito religiosa. Irei comprovar, um pouco por toda a parte, a existência de variadíssimas igrejas católicas e protestantes. A ilha é plana, sem edifícios altos. Em Nuku Alofa, destaca-se o palácio do rei, um excelente conjunto arquitectónico rodeado de relvados e jardins, construção de madeira pintada em branco, com telhados vermelhos, pré-fabricado na Nova Zelândia em finais do século XIX e depois trazido para a ilha, e aqui montado. Não é visitável porque Sua Majestade habita no palácio, não costuma receber convidados e mais raramente ainda é visto pelo seu povo. Dou uma volta pelo centro de Nuku Alofa, uma cidadezinha com 20 mil habitantes, não muito interessante. Descubro uma originalidade, uma agência de viagens que tem o curioso nome de Teta Tours. Entro num mini-bus que leva passageiros para parte incerta, a leste, e pergunto ao condutor se vamos passar por alguma praia. Ele responde, num catastrófico inglês, que no fim da linha existe uma praia. Avanço. Foram 20 a 25 quilómetros de estrada, sentado no meio da gente boa e simples da ilha de Tonga, sempre a sair, sempre a entrar, surpreendida por encontrar dois estrangeiros na carrinha de transporte. Passamos por um hospital moderno, circundamos a grande laguna que entra por dentro da ilha e quase a corta ao meio, atravessamos a vila de Mu’a. Continuamos viagem para norte, já não há ninguém no mini-autocarro, só nós dois e o motorista. Pergunto-lhe pela praia. Diz-me que fica dois quilómetros mais adiante mas temos de pagar três dólares US pela continuação do trajecto. Ok! Chegamos à praia, pequena, com pouca areia e as águas não completamente limpas. Falo-lhe em outras praias, mais bonitas. Sim, ele pode-nos levar, fecha o mini-bus ao serviço público – agora o negócio é outro, o veículo ficará por nossa conta –, e vamos dar a volta a toda a ilha, coisa aí para quatro horas. São 150 dólares US. Não era bem isto que eu queria. Pagamos os três dólares cada um e saímos. Olho o mapa, podemos caminhar ao longo do mar e retomar mais adiante a estrada de regresso. Encontro três tonganeses que metem conversa. Só a mulher fala um pouco de inglês e pergunta de onde é que nós somos. Não sei se entendeu o nome de Portugal, mas acrescentei: “Viajamos desde a Europa num grande navio italiano.” Algum espanto no semblante dos ilhéus que habitam em três ou quatro pobres casas de madeira, do outro lado da estrada, frente ao mar. Têm porcos pretos que andam à solta pela rua procurando comida, chafurdando à vontade por tudo quanto é sitio. Uma mãe porca, extremosa e dedicada, deixa seis ou sete bacorinhos chuparem desalmadamente as suas tetas. Os leitões assustam-se com a minha aproximação para tirar uma fotografia e fogem, cada um para seu lado. Depois voltam à protecção da mãe e às saborosas tetas da porca. Associo a cena ao nome da agência de viagens de Nuku Alofa, rigorosamente Teta Tours. É isto mesmo. Pergunto aos tonganeses se podemos tomar banho na praia. A mulher diz-me que sim, mas acrescenta que quando alguém mergulha naquelas águas lisas é normal um porco atravessar a estrada, fazer companhia ao banhista e meter-se também por dentro do mar. Tomar banho na praia de uma apetecível ilha da Polinésia, na companhia de um porco preto? Regresso a Nuku Alofa, com paragem no porto primitivo onde o capitão Cook, descobridor do sul da Austrália, desembarcou em 1777, na vinda a este lugar. Avanço. Na pequena estação de autocarros da capital pergunto por um mini-bus que me leve para o outro lado, o oeste da ilha, até à praia de Ha’atafu que, segundo o mapa de Tonga e a fotografia do folheto turístico, me parece ser um lugar excelente. Mais trinta quilómetros por boa estrada marginada por casas de melhor qualidade do que as do lado leste da ilha, e chegamos a Ha’atafu. A praia não exibe os predicados que eu imaginava. Tem águas límpidas, mas também muita pedra e areia pouco fina. Saudades das praias das Caraíbas, mas provavelmente ainda não acertei numa boa praia do Pacífico. Um bom banho, duas horas de papo para o ar e é tempo de pensar no regresso ao navio. Uma longa caminhada pelo estreito alcatrão da estrada, por entre uma estonteante floresta tropical, algumas casas bonitas rodeadas de jardins, o verde intenso dos relvados e arbustos, e chego a uma singular aldeia grande que dá pelo nome de Nukunuku. Com nome tão sugestivo, estou com curiosidade em conhecer. Vou descobrindo que o idioma tonga também é muito traiçoeiro. Pergunto qual o significado de tão estranho topónimo. Muitos simples, nuku significa “habitação, casa”, nukunuku será uma “aldeia”, “um conjunto de casas.” O nome de Nuku Alofa, a capital, tem a ver com nuku, ou seja “casa” e alofa que significa “amor”. Portanto haverá “amor nas casas”, ou um conjunto de nukus, as “casas” onde reina o “amor.” Em Nukunuku, ao lado da estrada, um grupo de miúdos joga à bola no recreio da escola. Num grande relvado, rapazes e raparigas correm, lançam-se à molhada para agarrar uma bola oval, não de futebol, mas de rugby. Tonga tem a Nova Zelândia e a Austrália como países de referência, as ilhas Fiji ficam relativamente perto. Aqui o desporto nacional é o rugby. Terminou o jogo, acabou o tempo de recreio na escola de Nukunuku. A campainha que marca a reentrada nas aulas é uma bilha de gás vazia percutida com uma espécie de martelo agitado impiedosamente pela mão de uma professora. Outro mini-bus e estou de novo em Nuku Alofa, num aprazível café onde bebo um razoável “expresso” e utilizo o wi-fi gratuito. Na minha tablet vejo os mails da última semana e leio as notícias do Portugal distante. Pelo telemóvel, ligo para os meus filhos. Dois deles ignoravam por completo que existissem umas ilhas chamadas Tonga. Últimas, e únicas, compras. Por oito dólares US, trago uma espectacular t-shirt preta com um golfinho dourado estampado no peito e, nas costas, também a dourado, as palavrasKingdom of Tonga. É para vestir no Verão, em dia de festa, em homenagem ao povo desta ilha.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasDefinitivos [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] legenda de um tempo pode ser feita a partir dos títulos comerciais para o consumo. Distantes do “marketing ” os anos sessenta e mais além (até mais aquém, no tempo em que os poetas eram óptimos publicitários) foram bastante criativos na sua função de nomear. Tanto que hoje é com espanto que damos por nós a contemplar a estrutura gráfica de embalagens, revistas, objectos e até jornais. Não sei se se vendia muito ou pouco nem mesmo das características e do sucesso dos conteúdos, mas tudo era sem dúvida feito numa escala mais atraente. Do «Português Suave» aos «Definitivos» os cigarros seriam deste ponto de vista “light”, fortes e normais, o que está muito bem designado pois que cada um procura nas coisas um certo grau de intensidade, já na marca «Coração» – desenferrujador de metais – não vemos grande ligação a não ser o símbolo solar do órgão visado… e, quanto aos metais, desenferruja-os, que os nobres por assim serem, não precisam de tal acção. Coisas tão bonitas com imagens tão refinadas que ficamos a contemplar: senhoras elegantíssimas lavando o chão até ao restaurador «Olex», em que o espanto seria a textura dos cabelos entre povos diferentes. Víamos isto como se o mundo fosse uma lenda onde todas as coisas estavam ordenadas. Os Piratas que furam as orelhas para verem melhor ao longe, num local preciso do lóbulo da orelha, eram esticados em pastilha elástica, o «Ajax» era um tornado branco a cavalgar entre sebes fazendo de um detergente um antídoto mitológico, a pasta medicinal «Couto» exaltava a dentição africana como se fosse natural andar com cadeiras na boca, as «Sebentas» tão inteligentes e úteis para fazer coisas nem que fosse riscar… era tida também como sinónimo de sujidade aplicada à condição física juvenil caso nos sujássemos todos a comer gelados «Rajá». Era um mundo assim, eufemístico, que se iria aos poucos endurecendo com o recurso cada vez maior à imagem. A legenda era uma graça que nos entrava pela imaginação adentro e onde cada um completava o artefacto dos conteúdos, não raro tinha o poder de recriar em volta um paraíso. Havia regras a preto e branco, também, aquela placa a dizer« As crianças com menos de oito anos não devem assistir aos nossos programas a partir das vinte e duas horas». Uma secura, sem canção de embalar, uma ordem, sem beijos dentro: mas, não raro, também censurávamos a programação pondo-nos à frente do ecrã que de tão grande e nós tão pequenos deixava ver as bordas dessa intransigente mensagem. Vamos assim recuperando os nossos sonhos, mas não deixávamos de ser despertos para o estranho mundo que nos envolvia. Hoje, há distância de décadas que parecem séculos, não somos essas pessoas graves urdidas de censuras constantes, pois que guardámos o transitório como se guardam os poemas antigos e não nos fizeram o mal que porventura era suposto ter sido possível fazer: não, não fizeram. O Verão é assombrosamente nostálgico para estas coisas pois que damos por nós a querer aquelas figuras com cabeças enormes que vinham nos prémios, a pensar em como um chapéu mexicano era o abrigo ideal para se ter uma etnia longínqua, as nossas bicicletas eram supersónicas, e não faltava a irreverência por capítulos de uma « Pipi das Meias Altas» que levantava polícias com as duas mãos e vivia a sós com um cavalo e um macaco dentro de uma casa cheia de dinheiro de um barco naufragado. Eram instituições! Aos oito anos vimos um senhor num programa que tinha um Ovo e que usávamos como elemento para os fios do pescoço, com olhos boca e cabelo, e esse senhor era Almada Negreiros: muito hirto, com um perfil imponente, sentado ao meio – no meio de tudo – falando monossilabicamente e o tempo parou ao contemplarmos a sua figura, ela está na minha retina como as coisas da revelação. Claro, faltava-nos todo o mecanismo da complexidade móvel dos nossos tempos, mas haverá alguém que tenha detonado pelo órgão da visão, hoje, a mesma carga energética com a intensidade desta aparição? São brasas acesas! Temos sempre de voltar a ser discípulos, principiantes, de superar os troços dos caminhos e passar a outras transformações, temos toda a rotina e todas as derrotas, e todas as conquistas em forma comprimida, mas, soltamos as vias do percurso quando nos abeiramos da infância onde nenhum sofisma é possível que possa interpretar melhor aquilo que a realidade tão bem conseguiu. Isso, suponho, seja uma grande dádiva. Esse tempo para tudo sem o arrastão demencial da “brincadeira” para adultos que a todo o momento nos querem impingir para sermos mais felizes: ninguém tem nada a ver com a nossa felicidade! Nem queremos receitas para tais estados de espírito, sentimo-nos insultados e até desconsiderados como pessoas com tanto receituário. Embora possa não parecer, nós somos de um tempo civilizado. Hoje olham-nos com a desconfiança de que olham para tudo, de soslaio e com o criticismo massivo que revela doença interpretativa, mas é natural, estamos ausentes das receitas e somos só a cobaia por onde os testes passam indiferenciadamente. Mas atrás de nós ainda há deuses, e falam forças, e estão em sentido muitas coisas que nem sabemos que as herdámos. Não viemos ocupar o maravilhoso «Homem Novo» a partir de um cromagnon ignoto que na ideia se instalou. Não, nós somos de facto de um mundo que, embora não acreditado, era à sua maneira civilizado. Certamente mais pobres, mas hoje também somos tão pobres que andamos disfarçados de ricos. A felicidade que nos querem dar não se aplica em nenhuma dimensão da vida quando a vivemos por dentro. Parece que continuamos com os mesmos enigmas disfarçados e aplicamos defesas em coisas já em si tão sitiadas… cercamo-nos de um vínculo de comportamentos externos para não termos que estar todos os dias a inventar a vida, mas seria bom inventá-la mais dado que a norma é incrivelmente parasitária. Vamos a mais locais e países porventura, mas somos turistas que é tudo quanto há de mais triste. A ir que seja para dentro dos locais e povos, de modo, a sentirmos a mesma experiência diante de um Almada de quando fôramos crianças, que seja a revelação vestida em nós, que estejamos tão dentro e perto que esqueçamos a linha divisória entre estar e visitar. Acabou tudo como sempre acabou: os mais velhos morreram, nós ficámos, os lutos são posições espaciais e não uma paragem no tempo da dor, dado que nos querem fazer acreditar que ao não existir não devemos ter intervalos para ela e que todos, numa cripta incinerada, ainda damos matéria para um elemento que poderemos utilizar ao peito e matéria para estátuas. Não longe estamos do nazismo higiénico das cinzas, mas nós que labutámos para que nada disso voltasse a acontecer, de forma cega utilizamos os moldes que nos servem a medida de uma felicidade nunca antes conquistada. O paradoxo é o acaso mais conseguido e nem sempre estamos disponíveis para continuar sem as devidas rectificações. Numericamente gravados, somos um Holocausto predestinado à fúria das convenções onde a norma é aplicada sem retaliação: afinal, tal como os primeiros da saga, não sabemos exactamente para onde vamos. Só quando fecharem a luz e os gases começarem a inundar os espaços, teremos quietos a resposta. Definitivo é este século todo de correntezas imprevistas e súbitos acontecimentos que nos deixam a fumar água pelas narinas… Sabe-se lá se os cigarros são líquidos! Daquelas lindas embalagens guardamos os rótulos como de poemas se tratassem e somos seguidos pelos fumos sombrios de um planeta voluntariosamente ígneo, mas também glacial. Numa demonstração definitiva de que não só tudo mudou como aos poucos se tornará impróprio como habitação de todos. Por isso seria bom avançar rápido com as novas formas de êxodo galáctico na medida em que definitivamente se irá tornar um planeta radical. Tudo vai, tudo volta, tortuosos são os caminhos da eternidade…
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasCamilo Pessanha desembarca em Macau [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] calendário marcava 10 de Abril de 1894 quando, por volta das cinco da tarde, encostava ao cais do Porto Interior o vapor Heungshan vindo de Hong Kong. Pouco tempo medeia entre a chegada do novo Governador da Província de Macau e Timor, o Capitão de engenharia José Maria de Sousa Horta e Costa (1858-1927), e do professor do Liceu: apenas duas semanas. Mas se era a primeira vez que Camilo Pessanha vinha a Macau, já o engenheiro Horta e Costa conhecia bem o território, pois fora empossado a 2 de Novembro de 1885 Director das Obras Públicas de Macau, posto que ocupara até 2 de Novembro de 1888. Assim, quando em 24 de Março de 1894 pela primeira vez “assume o cargo de governador, Horta e Costa sabia muito bem quais os interesses locais e os jogos de poder, o orçamento de que dispunha e as ligações político-administrativas que teria de manter com o Ministério dos Negócios da Marinha e Ultramar, sem esquecer a frente diplomática como Enviado Extraordinário e Ministro Plenipotenciário junto de Sua Majestade o Imperador da China e Rei de Sião”, segundo refere António Aresta. Acompanhado pela sua esposa Adelaide Silvano, o Governador, nomeado por decreto de 23 de Dezembro de 1893, partira de Lisboa a 18 de Fevereiro e chegara a Macau entre 22 a 24 (referindo o jornal Echo Macaense, talvez por engano, o dia 27) de Março, sendo transportado pela canhoeira Bengo, que o fora esperar no dia 21 a Hong Kong. Desembarcara no Cais do Governador, fronteiriço ao Palácio das Repartições Públicas, na Baía da Praia Grande, que muito jeito teria dado a Camilo Pessanha, pois o hotel onde iria ficar hospedado era logo ali ao lado. No entanto, o professor, como todas as comuns pessoas, fôra desembarcado no Porto Interior. A peste em Guangdong Tivesse Camilo Pessanha chegado em Maio e teria de passar pela inspecção sanitária, feita ainda no próprio barco pois, tal como Cantão, Hong Kong padecia já no pesadelo da peste bubónica, apesar de Macau se ter mantido livre de tal calamidade. O primeiro caso aparecera na última semana de Março num distrito pobre de Cantão, perto da porta Sul e nos primeiros dias de Maio manifestava-se já em Hong Kong. Por isso, todos os passageiros que vinham da então colónia britânica e da província de Guangdong eram inspeccionados na fronteira por um dos dois médicos navais, o dr. Novais ou dr. Homem de Carvalho, ali em serviço diário durante seis horas ininterruptas para fazerem a despistagem da terrível epidemia. Quem gostava de aparecer para vistoriar as passageiras estrangeiras era Ho-Lin-vong e Hip-Lui-sen que, a 22 de Junho de 1894 “entraram no vapor Heungshan juntamente com o sr. Chefe de Saúde, mostrando a sua autoridade na vigilância da inspecção dos passageiros, serviço de que se acha encarregado o sr. dr. Gomes da Silva. Este estado de coisas não pode continuar. É um desprestígio à autoridade que desempenha este trabalho e um motivo para os preponderantes alegarem serviços que não prestam nem podem prestar. Que vão inspeccionar os flower-boat do rio”, como refere no dia seguinte o jornal O Independente. De salientar continuarem em vigor em Setembro, as medidas preventivas contra a peste. Ainda em Junho, os chineses de Macau realizavam procissões com as suas divindades, percorrendo as ruas com andores para a cidade se conservar livre da terrível peste. Fôra para debelar um surto de varíola e de cólera, provenientes de Hong Kong que, em 1888, entrara na cidade a divindade Na Tcha. A estátua desse deus criança, um menino travesso dotado de poderes sobrenaturais, passeara pelas ruas de Macau e os residentes, por ele protegidos, dedicaram-lhe dois templos. Chegadas Ao desembarcarem no Porto Interior, no cais ponte feita em madeira, logo os passageiros eram apanhados pela frenética actividade e rebuliço do bazar chinês. De lembrar que ainda não existia a Avenida Almeida Ribeiro. “O comércio dos chineses é principalmente na rua do porto interior e no Bazar; na rua do porto interior faz-se a carga e descarga das inúmeras lorchas e outros barcos que demandam o porto, principalmente do peixe salgado, e no Bazar é onde os chineses tem os seus principais estabelecimentos de comércio, as casas públicas, onde eles tratam os seus negócios, as casas de jogo e colaus [restaurantes] que frequentam diariamente”, segundo refere o director das Obras Públicas, o eng. Augusto Abreu Nunes, também ele recém-chegado a Macau, a 14 de Dezembro de 1893, e ainda nomeado pelo Governador da Província Custódio Miguel de Borja, em 12 de Janeiro de 1894 para o cargo de Inspector de Incêndios. Depois do eng. Abreu Nunes, chegara a 22 de Janeiro, com a esposa e um filho, o dr. Álvaro Maria Fornelos, que vinha ocupar o cargo de Procurador dos Negócios Sínicos, interlocutor com o governo chinês. Em Fevereiro desse ano, o Administrador do Concelho das Ilhas da Taipa e Coloane e Comandante da Fortaleza da Taipa, o sr. Tenente João de Sousa Carneiro Canavarro era promovido a Capitão graduado. Os cules, trabalhadores chineses assalariados, em Macau desempenhavam o papel de serviçais ou de criados por conta própria que, desde 1858, estavam integrados numa companhia e organizados corporativamente. Mal o vapor proveniente de Hong Kong encostava ao cais de madeira, os inúmeros cules, trajados com cabaias gastas e imundas, acocorados na companhia de um cachimbo de bambu esfumando pequenas porções de tabaco durante a espera, num salto levantavam-se e precipitavam-se pelo barco dentro para descarregarem as bagagens dos passageiros. Fora, outros cules junto aos seus alugados, velhos e sujos riquexós, esperavam na praça o cliente, na esperança de conseguir a maquia suficiente para passar o resto do dia a trabalhar em lucro, refeição e jogo. Descendo do barco, com o corpo ainda a ondular, os assarapantados passageiros eram logo envolvidos pelos cules que, na tentativa de encontrar quem transportar, alimentavam o reboliço e a algazarra no Porto Interior. Os riquexós O cule coloca os varais no chão para permitir a Camilo Pessanha sentar-se na cadeira do riquexó e, após este instalado, levanta-os, preparando-se para partir. Provavelmente a bagagem era transportada noutro riquexó, por outro cule, já que nesse tempo em Macau ainda não havia automóveis. Existia a zorra, um carro baixo, com quatro rodas pequenas e grossas, para transportar objectos pesados. Em vias de desaparecer estavam as cadeirinhas, sem rodas, pois, para além do preço ser mais caro, eram mais vagarosas e desconfortáveis. Os riquexós, na linguagem oficial eram denominados jerinxá, ou jinrickshas, o nome japonês de onde a ideia deste tipo de transporte deve ter aparecido. No Japão, eram esses “carrinhos de duas rodas e varais ligeiros, puxados em corrida vertiginosa por homens designados por koruma”, como refere Ladislau Batalha. Em Macau, os riquexós surgiram na primeira metade de 1883 e desde então começaram a substituir as cadeirinhas, pois traziam a vantagem pela economia de tempo e dinheiro. Eram puxados por cules e se até 1894 havia vinte e tantos proprietários para os cerca de 280 carros, nesse ano foram eles preteridos, tendo o Senado entregue a um monopólio, que tomou conta desse negócio. Passa um cule aguadeiro a vender água aos recém-chegados, mas Camilo não se atreve a provar, guardando para mais tarde, quando deixasse a estadia do hotel, beber a água da bica do Lilau (designação então da Fonte do Nilau, ou do Lilau). A água que a cidade consumia era preferencialmente de três fontes ou, com pior qualidade, a dos poços. À chegada de Camilo Pessanha, em 1894, os poços seriam à volta de 600 particulares, dentro dos muros das habitações, e aproximadamente 140 públicos, ou comuns a muitos moradores, não sendo então ainda obrigatório os poços encontrarem-se com as bocas rodeadas de uma grade de ferro e terminar superiormente em chapa de pequena largura de modo a não servir para alguém aí se sente, ou se ponha de pé, quando tirar água, o que só vai ser legislado pelo Código de Posturas de 1896. Proveniente das fontes do Lilau, da Inveja e da Flora, a água era recolhida e transportada por cules aguadeiros, reunidos desde 30 de Outubro de 1858 numa Companhia, que a entregavam a cada um dos bairros, cobrando dinheiro pelo frete do seu transporte. Já sobre a qualidade da água potável, Macau não vai conseguir resolver esse problema durante a vida de Camilo Pessanha. Em cima do riquexó e ajustado o preço, que andaria pela dezena de avos até ao Hotel Hing Kee, no outro lado da cidade, num relance terá avistado as águas do Rio Oeste. Camilo Pessanha não sabia estar na ordem do dia o assunto dos jinrickshas, pois o Leal Senado preparava-se (concurso realizado a 26 de Junho de 1894) para licitar a entrega desse negócio a um monopólio. Os até então proprietários dos carros tinham visto em Janeiro as taxas a pagar ao Leal Senado aumentadas para $23,50 por ano, assim como aparecera publicado no Boletim Oficial a faculdade conferida ao Leal Senado de determinar as dimensões de cada carro. Queixava-se o repórter do jornal O Independente, de 13 de Janeiro de 1894, “o esquecimento dos ilustres edis de ao mesmo tempo fixarem o máximo do preço do aluguer que os proprietários dos carros têm direito a exigir aos condutores, a fim de que estes não ficassem à mercê da exploração daqueles. Esquecia-se essa postura de publicar a relação das calçadas íngremes que não sejam conduzidas por dois homens. Assim quem ia pagar o aumento da taxa eram os utentes”. De referir ter sido o aparecimento do projecto do Liceu, ao convidar a câmara a participar com um subsídio, deliberando o Senado dar 5000 patacas, que levou o seu Presidente, o sr. Comendador Basto, a dizer numa das sessões ter chegado a ocasião de apresentar a moção do vereador Victorino sobre o monopólio dos jinrickshas. Assim, quando Pessanha aqui chegou, estava essa entrega a ser preparada, sendo à partida conhecido quem ia ficar com o negócio. O difícil primeiro contacto com os estrangeiros recém-chegados, pela falta de palavras para se fazer entender e captar o cliente, o cule no levantar a voz espera conseguir, pelos poucos sons reconhecidos, dar os nomes dos hotéis desejados. Fácil quando se tratava de passageiros ocidentais pois eram então apenas dois, o Boa Vista e o Hing Kee. Os hotéis para estrangeiros O Hotel Boa Vista era propriedade desde Março de 1891 do inglês William Edward Clarke, capitão do vapor Heungshan. Fora inaugurado a 1 de Julho, após ser ampliada a casa da família Remédios, construída por volta de 1870 e onde esta continuava a residir, servindo também como local de hospedagem para muito do pessoal das companhias estrangeiras que operavam em Macau. Este hotel, situado no Chunambeiro, na Rua do Tanque do Mainato (hoje Rua do Comendador Kou Hó Neng), encontrava-se num morro protegido desde 1622 pelo então já desmantelado (desde 1892) Baluarte de Bom Parto, mas ainda sem ter sido parcialmente destruído, como veio a acontecer em 1910. O baluarte fora construído sobre as ruínas do cemitério dos Agostinhos, onde teriam os missionários espanhóis desta Ordem Religiosa edificado o seu mosteiro em 1586. Sobre a Praia do Bispo, o Hotel Boa Vista foi gerido até 1894 pela família Remédios, sendo a clientela maioritariamente britânica e era o único (segundo a propaganda) com um estatuto de verdadeiro hotel na cidade. Mas, devido ao progressivo e cada vez mais rápido assoreamento do Porto Interior, após a mudança do vapor Heungshan pelo Kiu Kiang, de menor calado e péssimo serviço a bordo, o capitão inglês William Edward Clarke deixou de poder estar presente no seu hotel e durante as travessias publicitar o Boa Vista, sobretudo aos compatriotas que de Hong Kong vinham passar o fim-de-semana. Já o hotel concorrente, o Hing Kee, hospedava os portugueses à chegada a Macau mas, após se familiarizarem com a cidade, mudavam-se para as suas próprias casas. No entanto, sabia-se ficar a estadia no hotel mais em conta do que alugar uma casa e nem mesmo nas “repúblicas”, casas alugadas por várias pessoas, os custos eram menores. Ao escutar “Hing Kee”, essa familiar sonoridade eleva-se sobre o ruído, sobre a barafunda que em frente ao cais do vapor, por momentos se dissolve para de novo se voltar a ouvir. Na postura, os cules captam os clientes e procuram proporcionar-lhes a tranquilidade de alguém ter compreendido os seus desejos. A comunicação é sustentada pela empatia e o esforço de compreender e articular os nomes em português dos lugares normalmente requeridos pelos passageiros a transportar. Camilo Pessanha entrava em Macau e, num ápice, dava por si a rolar.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasÊxodos 09/07/2017 [dropcap style≠’circle’]«Q[/dropcap]uem escreve está no exílio da escritura; aí é a sua pátria, onde ele não é profeta», anotou Blanchot em L´écriture du désastre e creio que ele entendeu tudo. O escritor aí não é profeta, nem é emissário de nada e segue o sulco da humildade. Para ele não há outra pátria para além desse “espaço de suspensão” que o exonera da identidade ou que o desobriga de quanto não seja unicamente a porosidade e a fragilidade humanas, que o irmanam aos demais. E que raio quer dizer “escritura”, e porque se obstinam alguns a preferir este termo a escrita? Simples, quando escrevemos com tema prévio (um cão-guia-para-cegos) exercemos a escrita e quando escrevemos no escuro, levados pelos ventos que despontam ali mesmo da página e urdem uma errância do pensamento, aí somos abobadados no domínio da escritura, e, neste caso sentimo-nos num êxodo feliz. 10/07/2017 Pato no tucupi. Especialidade de Belém do Pará, elaborada com tucupi, líquido de cor amarela extraído da raiz da mandioca brava, e com jambu, erva típica da região norte, diz o Wikipédia. O que importa é que a mandioca para se libertar de todas as suas toxinas tem de ferver sete dias. Com essa calda fervente no sexto dia faz-se o pato. O sabor é magnífico e o seu efeito físico nas beiças é inusitado porque estas ficam anestesiadas, como se tivéssemos saído do dentista após nos ter sido extirpados três dentes. Foi o prato que o Adão inventou para anunciar à Eva: querida saímos do paraíso. O marido descobre que a mulher o engana e precisa de desabafar com um amigo. Vão ao restaurante e ele pede pato no tucupi. Depois conta a sua mágoa ronronando – é da anestesia. Das vezes que estive na Amazónia e que pude desfrutar deste petisco percebi o seu enorme potencial de sabedoria. O homem em queda no seu paraíso, numa guinada de resiliência, descobre logo esta receita – equivale ao consolo na filosofia. Bom, mas Belém não tem só isso, nem histórias com botos que em noites de luar se convertem em homens trajados de branco e de borsalino e que seduzem e engravidam todas as mulheres, sem remissão. Belém, tem excelentes poetas e escritores, como o para-angélico Vicente Cecim, o António Moura, o Max Martins, o ensaísta Benedito Nunes. E ontem apresentaram-se-me mais dois, o Daniel da Rocha Leite e a Luciana Brandão Carreira, um casal simpatiquíssimo que conheci nos Poetas do Povo, ao Cais do Sodré. Para a semana já tenho encontro marcado com outro grande escritor brasileiro, o Ronaldo Cagiano, que, com a sua esposa e igualmente escritora Eltânia André, resolveu romper com o país e mudar-se para Lisboa. E o Ronaldo já me prometeu apresentar um outro escritor brasileiro, de renome, na mesma condição. É o êxodo. Entretanto, escrevo-me com o poeta e ensaísta de S. Paulo, Fernando Paixão, e conta-me que ele e a mulher Elaine Mores, ensaísta e especialista em Sade e literatura erótica, passaram meses em Paris e só agora voltaram a S. Paulo, antes de rumarem a Lisboa, em Setembro, por já terem cá apartamento e por só assim suportarem o país. É o êxodo. O senhor Temer é que não parece nada preocupado pela deserção dos seus melhores patriotas porque pelos vistos não tem nem sentido da proporcionalidade, nem dignidade, desaparecida que lhe foi a probidade (- consta que ela fugiu com outro). Para que não se diga que minto, transcrevo três poemas breves, cinzelados, de Luciana. Safra: eu em ti// úmida// somos o gole que deseja a fonte// as águas arrebentam na praia// ritmo e pulso// fluxos// tu em mim ; Aves migratórias: Migram as tuas asas até os meus pés./ Movem-se os contornos. / Revolvemos os nossos membros./ Minhas asas nas tuas mãos.//Híbrido caminho entre o céu e o pouso:/ sempre o mesmo movimento/ expansão e pausa.; Gume: Antes,/ desgastar o tempo/ puir seus fios/ sentir o veludo e o sagrado da espera/ arrematar o volume das sobras/ avivar o vermelho das artérias/ sem atrasar a hora/ ou perder o punhal/ com o qual o tempo se corta. Abro entretanto o livro do Daniel, aguarrás, um poeta de voz plectórica e ao arrepio da sua expressão contida, lapidar, e descubro como as mais pequenas células poéticas podem conter uma virulenta leitura política. Veja-se este narcose: afogado// o teu silêncio ainda respira em mim. Agora pense-se no Temer. Deve ser muito deprimente ser brasileiro neste momento. 11/07/2017 Estava combinado que eu iria à EC.ON (Escolas de escritas) do Luis Carmelo ler uns poemas meus no sábado, ao princípio da tarde, sessão a que se seguiria outra com o Pedro Mexia, o qual chegaria da Colombia nesse mesmo dia. A EC.ON havia previamente combinado com o Mexia para o princípio da tarde, mas devido ao problema da viagem troquei com ele. Ontem fui avisado que voltava tudo à primeira forma, que ele faria a sessão do princípio da tarde e eu o do fim da tarde. Porquê? Para ir à Colômbia o Mexia precisava de passar por Miami, e necessitaria de visto americano, o que actualmente é uma espampanante improbalidade. E acabou por não ir à Colômbia. Ocasionalmente, acabei de ler um livro do filósofo de arte Arthur Danto sobre o Andy Warhol, que ele dedicou assim: para Barack e Michelle Obama e o futuro da arte americana. Coitado do Trump que nunca vai conhecer este tipo de reconhecimento. Ou sim, no dia em que declarar Guerra à Coreia do Norte há-de um chicano embriagado querer escrever com a urina na caldeira de uma árvore, Trump es mi hombre!, porque também ele, desempregado e curtido pelos fracassos, gostaria de ter a fanfarronada que lhe permitisse esquecer os vexames sofridos. E em fanfarronada mais uma vez caiu, o dito, desta vez felizmente para nós. Ontem acordou com Putin sobre cibersegurança, hoje escreve um twitt onde refere que tal acordo “não pode acontecer”. Face a esta volubilidade prevejo um êxodo dos conservadores americanos. Proponho que se mudem para a Sibéria.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasO Facebook para criancinhas [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]oda a gente tem Facebook. Os meus amigos todos, os amigos dos meus amigos, os pais destes e até alguns animais de estimação têm Facebook. É escusado referir estatísticas de utilização. Quando esta crónica sair, já estão desactualizadas. O Facebook transformou-se na maior rede social do mundo, concretizando o que os seus percursores, como o Myspace ou o Orkut, nunca conseguiram. Para este sucesso galáctico terá contribuído certamente um aspecto da filosofia e cultura do Facebook que nem sempre é comentado com a atenção que merece: a sua radical obsessão pela não negatividade. O Facebook deu aos seus utilizadores durante muito tempo apenas uma possibilidade de interação (que não fosse o comentário) com os posts que compõem o feed: o famigerado like (perdoe-se a canga dos anglicismos). Não se podia – e ainda não se pode, apesar de o rol de interações ter sido generosamente ampliado – não gostar de uma publicação. Era algo estranho, quando um utilizador publicava uma actualização de estado na qual expressava o seu pesar pela morte de alguém que lhe era querido, que a única reacção possível fosse o like. Mas era assim. O Facebook queria proteger-nos. O Facebook quer proteger-nos. No Facebook, não sabemos quando somos desamigados. Não sabemos quando alguém nos bloqueia. Apesar de o Facebook ter uma quantidade inacreditável de notificações que nos faz chegar, muito poucas são, de facto, de carácter negativo. Uma excepção, e por motivos óbvios, será quando somos denunciados por publicar conteúdos ditos ofensivos. E, mesmo assim, a identidade daquele que denuncia é elidida, tornando a denúncia um acto anónimo que impede que denunciador e denunciado se conheçam e possam explicar reciprocamente os seus pontos de vista. Transformada numa mera função do sistema, a denúncia perde o seu carácter subjectivo e passa a ser apenas o resultado de uma acção que pretende repor a ordem. A própria vanidade natural do utilizador é mantida sob controlo. Uma das críticas que sempre se fizeram ao Facebook era a impossibilidade de o sujeito poder saber quem lhe andava a cuscar o perfil. Inteligentemente, o Facebook impede que isso aconteça porque os resultados de tal, pelo menos para a maioria dos mortais que lá andam, seria sempre insuficiente para as expectativas que criamos de nós próprios e do interesse que despertamos nos outros. Tudo no Facebook se rege por esta positividade radical. Podemos deixar de seguir um sujeito que ele nunca saberá (e o contrário aplica-se igualmente). Podemos ocultar histórias de que não gostamos e o algoritmo, elegantemente, apresenta-nos menos conteúdos desse tipo. Não sabemos se um comentário que fizemos na publicação de alguém foi apagado. Não sabemos se aceitaram um pedido de amizade que fizemos. O Facebook conta com a nossa distração e evita apresentar-nos o que quer que seja que nos melindre. O Facebook protege-nos. Se o leitor (céus, que novecentista) é como eu e se sente mais despido na rua sem smartphone do que sem calças e passa, tal como este que vos escreve, uma considerável parte do dia a contemplar a indignação no feed, talvez fosse importante tirar uns minutos para perceber, com mais acuidade, de que é feita esta morada cada vez menos alternativa onde aparentemente ”todos os meus conhecidos têm sido campões em tudo”, como dizia o poeta.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasViver as paisagens Alportel, 3 Julho [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]esço, em boa companhia, à serra algarvia ao encontro do crocodilo-mor, João de Azevedo. Fomos recolher as cores fortes, primárias, solares que assombrarão a galeria nos próximos dias. Acabadinho de cumprir meio século a pintar com diletante militância, o seu percurso não se resume ao trabalho sobre a cor, ainda que ela tenha a importância de um mergulho nas raízes, de um encontro com os primitivos de sempre e de agora, os que procuram o sabor do orvalho, o poiso do olhar da aurora nas coisas. As cores, bebidas das muitas paisagens onde se desfez, começando pelo mar natal, servem temas de sombra e assombro: os barcos, os barcos logo carregados de refugiados, os barcos-caixão, o corpo, nossa paisagem portátil, erotismo, o rosto, autorretratos, o garrote, depois ícaro, sinal maior das utopias onde se fez e desfez, depois os crocodilos, por causa de Timor e de um regresso à pintura largamente simbólico. Agora, e também isso mostraremos, regressam os empurrados da vida, mas em fundo negro, corpos atirados para a frente, com as mulheres nuas a rasteirar quem foge (ilustração algures na página). Sentámo-nos a mesa, de que outro modo podia ser?, a mastigar paisagens, a das ervas aromáticas que temperaram a noite, outras de verduras vizinhas, mas sobretudo as das muitos lugares (Níger, Moçambique, Holanda, Itália, Timor) e pessoas onde foi montando tenda. E semeando, que trabalhou muito com sementes. Juntou-se a nós um velho professor, o comum amigo Eduardo Campos Martins, que quase me empurrava para as sociologias, há muitas luas. Tantas luas e tantas vidas perdidas pelo caminho. Andámos desencontrados, por ser ele também da tribo dos nómadas, sendo eu mais árvore. E refrescado limoeiro me senti a beber os ventos naquela noite do princípio dos tempos. Joaquim Casimiro, Lisboa, 5 Julho São as coincidências que nos governam. O Pedro [Salgado], que anima o Grupo do Risco, em viagens de olhos e mãos atentas às paisagens de selvagem natureza, oferece-me o resultado da expedição mais recente, em Junho de 2016, ao Príncipe. E que contém o volumoso álbum além das ilustrações de aves e caranguejos, de pássaros e árvores, registos dos que caminham sobre a atenção? O mangal, em todo o seu sombrio esplendor. Ora, por estes dias, ando encantado com Ponta Gea, o mais recente – que dizer, romance? Talvez, mas não explica tudo. Livro de viagem a um lugar chamado infância? Memórias do que só agora existe? – de João Paulo Borges Coelho. Um dos fragmentos relata a travessia do… mangal, lugar onde a terra e o mar se cruzam de um modo tal que deixam de ser um ou outro! Deslumbrante viagem iniciática, contada como se de ilustração científica se tratasse, sendo a ciência aqui a da aventura e ao nível de um Melville ou de um Stevenson. Não há por ali moral, claro, mas tomo nota que somos obrigados a atravessar as movediças paisagens para descobrir o rosto da morte. Desencontrei-me do João Paulo, por exemplo, em Moçambique, aqui há atrasado, mas a elegante Maria Helena convocou-nos para a sua mesa. Falámos, conversámos, historiámos. Recuperámos, quem sabe, algum do atraso. O dia vinha tintado de tristeza, mas a noite mudou-lhe o tom. CCC, Caldas da Rainha, 9 Julho Naquele tempo, não via necessidade de fazer colecções na abysmo. Ei-las que surgem, de modo orgânico, ou não se tratasse de silvestre jardim. Na capa, o Sal [Nunkachov] coreografou pequena e desfocada dança de corpo nu e ramo. Ajudou a fazer um programa. Não a nomeámos, mas existe doravante, esta dedicada aos micro-contos, e existe mais ainda por se iniciar com Insanus, do Carlos (duplamente) Querido. Ou talvez seja nome seu a epígrafe roubada a Flaubert, afinal, a entrada para «livro» do seu Dicionário das Ideias Feitas: «Quel qu’il soit, toujours trop long.» Este livro vai durar, vaticino, de tão longa que será a sua permanência nos leitores. Nestas peças de relojoaria onde nada sobra ou falta, o absurdo toma as vezes de pano de fundo para o encaixe em movimento das personagens. Breves, mas intensas. Gente que consegue viajar no tempo, tornar-se invisível, perder as palavras, enlouquecer por via de um quotidiano gesto. As minhas segundas leituras floresceram no horto do absurdo, com plantas e jardineiros como Beckett ou Henrique Leiria, Jarry, Camus ou Mário de Carvalho. Descobrimos que o dito cujo cresce como espelhos de circo da nossa relação com o mundo. Por ele acedemos à matéria primeira dos objectos e dos gestos. Com a subtileza da maresia, sente-se ainda a ruralidade, essa peculiar atenção à terra, a rimar ironicamente com um Deus que protege quem se aproxima das margens, dos precipícios, dos abysmos. O Carlos, sendo mais homem bom que juiz, foi sendo, nos andamentos mais recentes, um verdadeiro mecânico de paisagens. Curiosamente, ou nem por isso, com ele os timbres mais graves da liberdade. Personagens e autores, andam presos pelo umbigo, bem o sabemos. No conto «Sombras», sublinho, portanto regressando a uma das muitas infâncias: «Fazíamos os mesmos gestos, em simultâneo, numa harmonia sem arestas, até que um dia comecei a perceber de que era ela quem tomava a iniciativa. Percebe o que lhe digo? A minha sombra movia-se, e eu imitava-lhe o movimento.» Imitar o movimento das sombras, não será vocação para um editor? Horta Seca, Lisboa, 10 Julho Começo a semana de costas, a mirar a que passou. A minha-terra-agenda fez-se confluência de rios-projectos, ao mesmo tempo adubada de desilusões e amarguras. Clássicas tragédias cheias de futuro de par com contemporâneos do risco, fotografia e ensaio, talvez ensino. Dá-me jeito a melancolia, nas manhãs de segunda… E Lucebert, traduzido por Jos van den Hoogen, que desceu, com Daniel Rocha, de outra serra ao meu encontro: «o abraço deixa-nos num jogo desesperado/com o vazio/ por essa razão procurei /a língua na sua beleza/ onde ouvi que de humana não tinha mais/ do que os defeitos de pronúncia da sombra/ da luz ensurdecedora do sol».
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasChina Gate – o portão de entrada China Gate, documentário realizado há seis anos e galardoado com diversos prémios internacionais [dropcap style≠’circle’]J[/dropcap]á anteriormente tinham sido feitos alguns documentários sobre os exames de entrada nas Universidades, mas este tornou-se inesquecível pela angústia que nos transmite. A história desenrola-se um três locais geograficamente distintos, onde se espelha a situação que a nova geração chinesa tem de enfrentar. Em Huining, província de Gansu, os estudantes reúnem-se ao final do dia, para estudar numa zona recreativa do campus. Levam água e comida e só fazem umas curtas pausas para ir à casa de banho. Estão totalmente concentrados nas montanhas de trabalhos para preparação dos exames. Mesmo depois da meia-noite, hora do recolher, alguns continuam a estudar debaixo dos lençóis à luz das lanternas. E vocês perguntam porquê. Porque, para estes miúdos, este Exame é muito mais do que uma prova: é a sua única hipótese de ascensão social. Numa aula, um dos orientadores grita para os alunos: “Se vocês são demasiado burros para atingirem os vossos objectivos, mostrem-me ao menos que conseguem suar!” Se entrevistássemos um destes jovens, ele diria: “Eu não nasci com os privilégios dos rapazes da cidade, mas tenho confiança em mim. Posso mudar o meu futuro.” Huining tornou-se famosa pela elevada percentagem de alunos que conseguem aceder à Universidade. Aqui, os estudantes aprendem para sobreviver. Para eles, o sistema de acesso à Universidade é sagrado. É como atravessar um portão inacessível e muito bem guardado. O vencedor do desafio entra na cidade consagrada e numa nova vida. De Huining passamos para Pequim, o segundo lugar do documentário. Centenas de milhares de jovens acabados de se graduar reúnem-se em Tianjialing. Muitos vieram de zonas rurais e chegaram à capital por via do exame de acesso. Agora vão lutar para ficar. Têm à sua espera uns salários miseráveis que mal chegam para garantir as necessidades básicas. A próxima escolha vais ser: ficar ou partir. Todos partilham um sonho: “Pequim não é a minha terra, mas pode vir a ser a terra do meu filho.” Vão fazer todos os esforços para ficar na capital. Se esta ambição se revelar impossível, resta-lhes, antes de se despedirem dos seus sonhos gorados, ir assistir ao ritual do hastear da bandeira e depois partir para casa, num qualquer lugar remoto do país. Para os que ficam, todas as preocupações, lamentos e a ansiedades diárias valem a pena, porque as melhores coisas da vida estão todas na capital. O terceiro lugar é Xangai. Zhang Jie é oriunda de uma família normal, no entanto toca e dá aulas de piano para ganhar a vida. Tem ainda um segundo trabalho, mas o dinheiro continua a não ser suficiente para as despesas do dia a dia. Embora tenha nascido na cidade, a precaridade que enfrenta torna-a semelhante aos jovens provincianos. Na China, desde há muito tempo, o sistema do exame de acesso à Universidade passou a ser a pequena janela de oportunidade para mudar o destino. É a única opção para a maior parte dos jovens que batem em desespero a este assustador portão de entrada.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasRicardo Ben-Oliel (CONTISTA QUE VIVE HÁ QUARENTA ANOS EM ISRAEL) E O SEU LIVRO O QUARTO TRANCADO ONDE NEM A MORTE ENTRAVA (Segunda parte) [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]orque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita. E quanto da narração não passa de vida parada! Mas não há só relato, sedução neste conto, como já víramos antes, há também a vida vivida dos outros: “Entretanto, já se fora o casal de jovens que se sentara à nossa frente. Ela saracoteando-se e a sacudir contra o azul do céu a bela cabeleira dourada; ele a perscrutar insistentemente algo no aparelhozito com que guardara uns tantos retalhos do universo. // Pouco após, veio sentar-se próximo uma senhora idosa e anafada, que passeava uma criança de berço, bem resmungona. Uma oportuna chucha enfiada a tempo restabeleceu a serenidade ameaçada.” A narrativa e mais uma interrupção por novos companheiros de mesa, até que, já levantados, já afastados do Cristo-Rei, no final do conto, Leo conta porque se riu, no início. De um simples riso à sua explicação, percorremos algumas décadas, dois continentes e alguns modos do humano se comportar uns com os outros nos dias de hoje, porque o outro – e já o escritor Mário de Carvalho nos tinha alertado na apresentação do primeiro livro de Ricardo Ben-Oliol, para essa dimensão humana, a compreensão do outro, que no seu entender domina todo o primeiro livro, em diversas tonalidades – é uma cidade onde se vive. “Entretanto, veio sentar-se na esplanada, perto de nós, um casal de velhotes, a acompanhar dois caniches, mimados e ruidosos. A imporem a sua presença. A fazerem-nos ver que havia quem mais tivesse direito a fruir um belo poente de Agosto.” Em “Pe-ter, Pe-ter, On-de Es-tás-as” inicia-se, e até ao fim do livro, os contos vindos desse pais singular: Israel. Os contos de Israel fazem-nos cair num ambiente que nos é estranho. Os campos de concentração estão presentes ao dia a dia das pessoas. São os sobreviventes ou familiares deles que referem as suas experiências, do mesmo modo que nos nossos cafés escutamos as aventuras amorosas passadas, de alguém idoso, ou uma ou outra arruaça mais atrevida. Percebe-se, pelo livro, que o sofrimento é uma crosta que cobre o país. Assim como a constante preocupação, apesar da habituação, essa característica quase essencial do humano, como o autor escreve, referindo-se a Shlomi, à pagina 68: “cidade sempre em perigo e que se habituara a viver como tal”. Por outro lado, há em Israel mais uma guerra que nos escapa a nós, portugueses de quase mil anos em todo o território, a diferença entre as cidades históricas, como Jerusalém e as cidades novas, como Telavive. Leia-se: “Telavive é a cidade dos escritórios, das grandes companhias. É a cidade do futuro, ao menos é quanto parece. Tem o mar, as praias, o Bauhaus. Até aí, tudo certo. Mas falta-lhe… – Falta-lhe o quê, quererás dizer-me? – Espaço e história!” Mas, e ainda neste mesmo conto, ficamos frente a uma dos mais estranhos e misteriosos sentimentos humanos: a guerra particular. Mais do que a guerra, é a quebra da amizade, de uma amizade que até aí parecia tão sólida quanto a Tora e de repente se rasga como papel higiénico, porque é mesmo uma marca de papel higiénico que conduz a isso. Neste conto magistral, Alan e Noa, Hana e Luna – A história De Uma Morada, em que um jovem casal que se muda para uma cidade do deserto testemunha a transformação da amizade de duas mulheres, vizinhas no mesmo prédio, em uma guerra sem piedade. E porquê? Por um rolo de papel higiénico. Pela compra de uma marca em detrimento de outra por parte de Luna sem partilhar essa informação com Hana. Informações que até aí, onde comprar mais barato e quais os produtos mais baratos, eram sempre partilhados entre elas, até ao trágico dia em que Hana se dá conta de que Luna passara a comprar Xelax ao invés de Alex, como sempre ambas fizeram, sentido nisso uma violenta traição, uma invasão da terra prometida. Leia-se à página 95: “Mal abro a porta, dou com o Alex e o Xelax, os dois estendidos pela casa fora. Dobrados e redobrados. O Xelax ganhava, era francamente maior. E as duas de joelhos, a apalparem-nos, demoradamente, a ver qual dos dois o mais macio. E o Xelax, uma vez mais, a atestar a vantagem sobre o rival. Hana, assanhada, nunca a tinha visto assim. A insistir, sempre: «E não me dizias nada, Luna! Lô, lô, Luna, lô, lô, Luna! // Noa a reviver, a recriar, zombeteira, o dizer ressabiado de Hana: «Eu, que nunca deixei de te avisar onde comprar o tomate mais barato, Luna! E a alface, e a farinha, e o mel! Quantas vezes te disse que não fosses à makolet do Arik, que vende tudo mais caro do que o Dov. Queres um canalizador, uma sanita nova, aconselho-te a que chames o Shimon, e não o Shmulik. Precisas de consertar o boiler, que procures o Kobi. Tens um estore empanado, diz ao Fadi, que é árabe e não é careiro. O tal que me pintou a casa, e até ficou bem. Mesmo quando tiveste problemas de gengivas, Luna, lá foi a pobre da Hana buscar-te à farmácia o melhor gel, e o mais em conta. E tu descobres uma coisa destas, e fechas-te em copas! Não fora eu ir lá dentro, e ficaria, sem saber que, afinal, estava a esbanjar, sem necessidade alguma. Só me faltava esta de andar a desbaratar dinheiro em papel higiénico!»” Este início de guerra entre duas amigas, que diariamente se entre ajudavam, neste preciso contexto de uma pequena cidade de Israel, não pode deixar de nos fazer pensar de como não existir o conflito entre os irmãos judeus e muçulmanos. Irmãos, sim, pois, e como é vivido e sabido em Israel, há muito mais similaridades entre o judaísmo e o islamismo do que entre qualquer uma destas religiões e o cristianismo, em qualquer das suas variantes. E, como o próprio narrador escreve páginas adiante: “Afinal, que frágil que é a teia de amizade a unir as pessoas. Às tantas, uma palavra, a mais ou a menos, um gesto mal esboçado, um qualquer esquecimento, quem sabe se propositado, ou apenas negligente, é quanto basta para tudo quebrar. Mas terá de ser assim? Não deverão a memória, o sentimento, e neste caso, até o apoio, a assistência, prevalecer sobre qualquer um desses incidentes? Às vezes, até dá a ideia de que há quem esteja à coca de uma razão, para logo desencadear a guerra.” Se é verdade que este conto e a fragilidade das amizades nos conduzem, por forças da origem da narrativa, a pensar no conflito do Médio Oriente em particular e nos conflitos ao redor do planeta em geral, não é menos verdade que neste caso também nos faz pensar em nós portugueses, e na aparente facilidade com que cortamos relações uns com os outros, levando-nos a pensar que talvez haja um modo de ser mediterrânico ao qual todos nós pertencemos. Da guerra do papel higiénico à impossibilidade da paz em Israel vai um conto. E, nesse conto seguinte, é um ex-aluno do narrador, e também ex-militar e ex-assaltante, que nos diz isto: “Todavia, se para uns a morte é um rito, uma memória, um símbolo, para nós, incapazes ou impossibilitados de construir a paz, a morte tornou-se uma vivência, uma vivência diária, uma vivência arrastada a toda a hora. E o que é pior? Fala-lhe um ex-soldado, que em circunstâncias duras se viu forçado a abater outros, deixando-lhes os corpos torcidos, os crânios esfacelados. Caídos ao mero pressionar de uma falangeta. Será esse o caminho para se alcançar a tão propagada concórdia, esse repisado shalom, dito e redito a cada instante? Mas se essa não é a via, professor, então também lhe digo que outra não haverá. A tão ansiada paz é inatingível. Nenhuma das partes no conflito se revela pronta a contemporizar, a correr os riscos necessários para a celebrar. Nenhuma delas está apta a prescindir de exigências, de condições, que desde logo inviabilizam qualquer solução. Assim sendo, só nos resta a alternativa de continuarmos a nossa existência a braços com a morte.” No último conto do livro, Balada Para Yair, o menor dos contos do livro, somos atingidos violentamente pela redemoinho da primeira frase: “Sabia que vinhas hoje, pai.” E o tempo todo de uma criança sem o pai cai-nos em cima neste começo de conto: Sabia que vinha hoje, pai. Neste último conto a morte de uma criança, Yair, filho do narrador, irmã da menina que nos atira à cara a frase com que começa o conto, é ligada a todas as atrocidades humanas, a Auschwitz Birkenau, o maior terror da história humana, onde se chegou a exterminar – infelizmente é este o termo – dez mil judeus por dia, no auge da barbárie. Porque para um judeu, matar um homem é destruir o mundo. E veja-se como o autor liga estes acontecimentos aparentemente desconexos: “Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…” Esta tristeza partilhada pelo pai e pela filha, acentua-se para nós com esta frase, em interrogação retórica, que surge como um muro entre os humanos: “Porque será que as pessoas tão bem se entendem, quando nada dizem?” E para terminar, deixo-vos com mais uma passagem do último conto do livro: “Que final de tarde, que pesadelo, eu a ouvir as sirenes e a saber-vos, os dois, sós. – Julgo que foi das poucas vezes em que vi Yair chorar. Mas sem tirar a máscara [de gás do rosto], para que eu não visse. Quando a guerra terminou, Yair e eu, de novo, a sentirmos a tua falta. Voltavas para casa sempre tão tarde! Faz hoje um ano mais, pai.“
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasComo água que corre [dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]m longo manto de Estio se precipita e não somos contemplados com as noites macias da Estação. Há na atmosfera muita fuligem que nos toma e dissecamos os instantes, não em beijos mas em torrentes de azáfamas que estão mais quentes que os combustos incêndios. Não nos permitimos correr como os rios e os tempos não são a foz das águas com caudais transparentes: por todo o lado soam avisos e para os mitigar prosseguimos como se os eles fossem os ecos de eflúvios sem sentido, nós que suados transitamos de queda em queda com formatos de guindastes e erguidos só nas intenções que gostaríamos de ver realizadas. Nenhum poeta, nenhum artista, detém sozinho o seu completo significado e tudo o que herda é de árduo labor. Porém, se aciona o fluxo das formas onde deslizam as suas fontes e enigmas mais profundos, há sim uma água que corre numa imensa dádiva tangente à dança. São orquestrações que nem de falta de som padecem. Há sempre melodia entre os sinais e sinalizar as coisas é comprometê-las com os seus pares que se transformam em outro corpo de ser, uma unidade para o efeito comum que não dispensa a parte de cada um numa manobra de simpatias que provoca a completude. Saber ir para a região que está jorrando, e nas quedas de água nos banharmos, é mais natural que estar atento a esta dimensão tão redutora de muitos sem uma voz comum de entendimento, este lastro de músculo tolhido pela formatura das pragas do entendimento estreito que lhes parece global numa máquina louca de produzir efeitos. Depois de destilados os líquidos e alguns nobres metais eles são imiscíveis mesmo tentando tocar-se, podem sim, estar lado a lado com um muro de separação qual fio de prumo que os ajuda a identificar, e lá se vai a doce visão da amálgama que tentamos saciar pelos outros, em outrem, para nos diluirmos, mas, sabemos que a partir de certas composições também nós nos separamos para sempre. Esse intransponível condão é tão extensível que vivemos dele e mesmo que queiramos interromper o fluxo da sua inexorável lei, não há forma de a contornar. O equilíbrio de forças contrastantes gera não raro um estado de beleza mas toda e qualquer permanência torna-se inadequada , se a natureza não suporta o vazio muito menos suporta a desarmonia de um estar continuado. Não endereçamos a vida a ninguém, não há nenhum receptor à nossa espera, nós somos os emissores constantes desse emissário do Deus desconhecido que se vai recriando em cada um de acordo com a sua consciência, por vezes, escutamos a sua voz, noutras, ela se silencia e cala, apenas a sua lembrança gera o movimento de prosseguir ditando alguns sinceros sinais de uma ininterrupta interrogação e vontade de fazer. Se não obscurecermos nas actividades da vida, talvez haja no fim a revelação procurada mas não discutida como finalidade, e de todas as buscas, se nos ficar só uma surpreendente verdade, todo o esforço parece então ter sido ganho. O mundo não é, ao contrário deste coro em rede, uma acção forçosamente política. Aliás, é matéria que interessa muito a inertes, demagogos, ociosos e populações a retalho nas suas pequenas hierarquias de grupo. O mundo, não é isso, este barulho, estas realidades, estas preocupações generalistas dos hiperinformados que em manobras diletantes são aspirados também eles pela malha esganada dos sugadores do fluxo. O mundo não é isso, nem matéria jurídica embrulhada em gordura legislativa para em esteiras de má conduta todos andarem ditando setenças. Há comportamentos dados pela civilidade que não necessitam do crivo legalista, eles são da ordem natural dos civilizados, e ao fazer-se um pequeno país de juristas, quer ele dizer, o pequeno Estado, que a sobredosagem nestas coisas é agora o que sobrara da opinativa forma do denunciador, regedor e delator das cidades. Perderam-se sem dúvida muitas funções que fazem das sociedades unidades harmónicas, o dom das coisas eternas deixou de funcionar e o efémero é tudo – até cada um de nós – não nos foi dado desenvolver recursos que são dádivas na formação do pensamento e um mundo desorientado e sôfrego se encaminha já cego para um estertor que ele próprio não conseguiu prever. Onde deixaram os sonhos, onde lhes faltou adquirir a dobra que faz a curva mais suave antes dos estrondos e das formas de ruína? É uma jangada à deriva, mais triste que a da orfandade daqueles que passam os mares, mas se lhes dissermos de coisas outras eles não querem, eles são quem tem as soluções, eles sabem tudo daquilo que agora já não interessa. São gentes de Estação. Finda a época eles passam como espectros sem que tenhamos deles mais lembranças, mas ainda, e sempre melhor, sem que tenhamos tido remorsos por sordidamente lhes termos infligindo algum dano. Eles desconfiam de tudo, desconfiam uns dos outros, são predadores à solta e não têm nada agora que lhes saiba verdadeiramente ao sabor sadio de uma bela e sacrificial presa. As presas prendem-nos, ficam na jaula de uma condição tão desgraçada que de os ver, a vida se encaminha quase em surdina para outros locais. Das gerações precedentes não há que tomar legado, quem se abstiver de tais fidelidades cercar-se-á de outro tónus e marchará na impertinência do tempo com toda a sua novidade que será sempre melhor que qualquer repetição. Heraclito diria isto na sua frase de sábio que é a riqueza que fica.