E a natureza produz monstros

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo delírios líricos. Como poemas soturnos e assustadores. Emoções sem limite. Razão. Intenção. Só a inevitabilidade contida no seu natural ser assim. Grandiosa e terrível. Nem seria necessário que a natureza produzisse monstros. Na sua arrasadora e sublime potencialidade de beleza – de violência. Não seria necessário, mas é talvez de aí que surgem modelos que enformam outras dinâmicas para aquém da pura percepção. Por vezes penso que são os dados desta percepção, residente nos dados dos sentidos, que formam a base estrutural de todo o sentir em desabafos metafóricos, que se transmuta em realidade temida nas ígneas e intangíveis teias de realidade, em que movemos os nossos medos como peões num jogo de tabuleiro. E não o contrário. Da poética natureza, a uma realidade induzida. Mas não seria preciso a natureza produzir monstros de rugido e violência histriónica, que nos arrasam, com a facilidade com que um deus esmaga, com uma pontinha só de uma unha divina, a insignificância que somos. Que conseguimos ser. Numa contradição de escalas que por vezes subverte a natural expectativa, e devolve a possibilidade de domínio perverso, afinal – um botão certo no local certo e o dedo errado a premir –  de tudo o que transcende. Da implosão. Ao ponto de gerar entropia na ordem natural da natureza, suficiente e em excesso mesmo, para erradicar esta fantasia delirante que somos no reino natural. Fruto de um sonho mediúnico do cosmos na sua evolução e inércia em cadeias de reacções químicas, disparates da energia a brincar com átomos e etc.

A grandiosidade do delicioso, único e temível disparate cósmico, o enlevo emotivo que nos coloca face ao grandioso e sublime no que é o cenário natural, algum conhecimento científico, alguma propensão para a contemplação e para a intermitência entre o enorme em nós e o ínfimo que se insinua irremediavelmente. A grandeza em que nos afogamos e a ilusão de tudo abarcar em nós. Talvez tudo isto seja a base do romantismo histórico. Eterno reflexo expressivo da secreta dualidade que a psique nos permite e obriga a transportar. Mas não seria essencial esse confronto com a monstruosidade natural para que as próprias paredes da casa reproduzam autonomamente monstros hirsutos. E por um tris – não, não é por uma fracção de segundo no acaso e de raspão, e a inevitabilidade consistente que nos molda – estamos a falar do abismo. Assim. Por exemplo. A vocação abismal da noção de si, dos outros para fora e para dentro de nós, do amor. Por exemplo.

E a eterna pergunta da localização face ao ser desse abismo e dessa abismal existência em si. Exterior ou interior. É, qualquer abismo, exterior ou interior à ideia que dele fazemos. Debruçados na amurada que dá para um grand canyon da mente em que nadamos preguiçosa ou inadvertidamente. Ou talvez dizer, afinal, irremediavelmente. Perscrutamos a noite do universo estranho na sua complexidade. Com a mesma naturalidade com que escolhemos frutos no mercado, ou joias numa joalharia. Tudo imperscrutável na sua aparente naturalidade sem origem.

Que abismo, na topografia das grandes massas rochosas, é parte da ideia que dele fazemos, que abismo se forma do saber da grande erupção que nos antecedeu lá muito atrás quando esse gigante rochoso se levantou do fundo dos mares, que abismo se insinuava no desconhecimento de antigos, e que ameaça real a natureza nos grita ou segreda calmamente quando em repouso. E que parte é parte do temor que lhe temos como se sempre a queda fosse inevitável. A saber. Mais tarde, ou nunca. Não fosse alguma vocação vertiginosa que nos colhe de dentro.

Que metáfora mais monumental,  global e romântica nessa enorme potencia natural de universo a engolir as larvas, ínfimas formigas que somos, do que um glaciar monstruoso e atemporal, que tristemente rendido ás maquiavélicas, pontuais e repetidas investidas ínfimas, de seres ínfimos, em que cada um faz da sua pequenez força, e que, somados os dividendos de culpa, derrota a vontade natural de uma inércia com as regras próprias do universo, e se derrama como um caudal imenso e destrutivo de lágrimas, sem olhar a estragos em cadeia que seguirão pelos séculos dos séculos. Não digo amém. Até um desgosto de icebergue destrói em redor. Não somos um pouco assim?

E de seguida, já de seguida no tempo, continuamos a escrever enormes e irremediáveis páginas de memória. Inscritas na destruição subtil, imparável e sabe-se talvez, definitiva. E só apetece trancar a gaveta das coisas difíceis. Ilusão. Fantasia. O que não é perscrutável manusear no mundo real. Remetido para a eternidade leve e irresponsável do sonho. Mergulhar fundo debaixo das ondas fofas de um edredão de penas outras. Mas nada vale e de nada vale. Dentro um calor dos infernos, e fora, o frio glacial de uma realidade quase inacreditável de tão real. Inacreditável. Como só a realidade o é.

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