Da arte do romance

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap] de repente um tipo mete-se a escrever um romance e, mal passa das dez páginas sobre as quais alimenta as maiores dúvidas de que se aproveite uma linha que seja, começa a sentir um arrependimento tal que só não enfia o portátil na banheira e os dedos no liquidificador porque cometeu a imprudência de ter dito a todos os amigos que “agora é que é, vais ver, é uma ideia tão tão boa que não pode falhar”.

Quando entra no terceiro capítulo, sói não raramente fumar mais do que escreve – acaso tenha a sorte de ser fumador e não dependa das unhas ou das cutículas para minorar a ansiedade – como consegue ter um vislumbre bastante adequado do que poderá ser uma vida em permanente desequilíbrio hormonal. Enquanto tenta manter a coerência interna do livro, luta com a sintaxe, com a adjectivação que lhe parece ora excessiva ora incipiente, com todas as palavras permanentemente ao lado e para as quais não consegue encontrar sinónimos, com a temperatura, sempre inadequada, com o sono, sempre a destempo e, sobretudo, com a ideia pela qual se enamorou e que lhe parece tão idiota naquele momento como lhe parecia genial antes de a começar a trabalhar.

Quando alcança o que lhe parece ser o meio do livro e com alguma sorte, já está em velocidade de cruzeiro e a demanda assemelha-se mais um trabalho das nove às seis do que a um acto criativo. Está com vinte quilómetros nas pernas, faltam outros vinte e não há tempo para pensar em como ou porque se encontra ali. Pensar é parar e ele precisa de correr, porque já faltou mais. É isso: já faltou mais.

De vez em quando acontece fado: um parágrafo, uma imagem e, por vezes, toda uma página. O tipo trava, relê, e sorri e, deste modo, ganha um fôlego renovado para continuar. “Não sou assim tão merdoso”, pensa. Inebriado pela resistência que demostra ao desgaste que provavelmente já lhe custou uns quilos, toda uma temporada do Narcos e até o afecto dos gatos, o tipo prossegue, preocupado apenas com a corrida: já não há como voltar atrás. Anos mais tarde, arrependido com “aquela merda incipiente que só fazia sentido naquela altura em que ainda não tinha adquirido de facto a minha voz” vai desejar ter podido voltar atrás. Ou mandar tudo às malvas na altura certa. Só consegue ver onde está. Não consegue ver o caminho que percorreu.

Quando está perto da meta já vai muito cansado. Não é um cansaço físico, malgrado comer e dormir cada vez menos e lhe doerem as nalgas independentemente da posição que adopte – já experimentou de pé, mas cedo percebeu que trocava uma dor por outra –, é outro tipo de cansaço, uma espécie de incremento na gravidade que faz com que todos os movimentos tenham um custo e um peso acrescidos. Respira fundo e esfrega os olhos. De vez em quando, dá por si a contemplar um ponto na parede ou uma nódoa na toalha de mesa. Não sabe quanto tempo esteve ali sem o estar. Só há uma coisa que lhe devolve algum alento: fazer scroll até ao início do texto e voltar. É o equivalente a engolir uma generosa golfada de ar para ir ao fundo.

Antes de colocar o derradeiro ponto final, imagina todas as versões alternativas e porventura mais equilibradas, mais originais, mais desafiantes, ou seja, tudo menos aquela. Quando finalmente se decide (desiste) vê o mundo a apanhá-lo antes mesmo de poder respirar: a caixa do correio atafulhada de contas e ameaças de despejo, o frigorífico onde há muito só habita uma abóbora que já é bisavó de um esporo em idade universitária e os gatos, lentos e magros da fome, que não lhe passam cavaco nem quando ele abre uma lata de atum. Diz que nunca nunca mais.

Passados apenas uns meses, enamora-se de outra ideia.

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