Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialPortuguês suave [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]evagar. O meu tempo precisa de vagar. A minha alma anseia vagar espaço. São assim os dias desta longa arrumação e nunca chegam. Meses que são meio ano de lentidão a sentir a voragem. Desde que se apararam as raízes rente. E ela se foi e me deixou a arrumar anos. A sarar a vida. Como as mulheres iam para o campo. Para a ceifa e para a monda. São estas coisas de mulher. Ir ao cemitério. Como se a natureza humana delegasse nesse lugar estas responsabilidades que mais ninguém quer a ocupar espaço. E os dias e as horas a abalar-me como um vento maldoso. Demasiada informação. Dias complexos de atravessar em que é difícil subir ao que é aquele momento de chegar a casa. Finalmente. De sentir que se chega a casa mesmo se dela não se saiu. De descansar um cansaço de vida a pedir velocidade. Que não se tem. De descalçar os sapatos que não se calçou pela manhã e de fechar uma porta de silêncio sobre a ansiedade crescida hora a hora do dia. Que pede palavras quando em mim só peço tempo para chegar a casa devagarinho e pensar. E aí escrever. Às vezes o dia. Outras, outras coisas. Isso. Devagar. Preciso de um tempo devagar. Como devagar ando a arrumar uma casa. A esvaziar outra. E outra. A perder o pé um pouco na memória. A despedir da memória em cada objecto que vaga a casa que há que vagar. Devagar como só assim posso. E a alma a extravasar palavras e imagens a pedir forma e substância. Tudo pelos poros de dentro na direcção do invisível. E querer abrandar a alma e sentá-la à mesa com as ferramentas pequeninas e as tintas e as teclas. Todos os dias em que até a divisão celular me custa. A vertigem. E a chegar tarde a tudo. É o sinal que o universo me dá. Sem tempo para entender para respirar. E depois já é amanhã e ainda não acabei o dia. Entendo que não é fácil entender este passo. Em que tenho que parar a observar bem. Tudo. Dentro, de fora. E fora, de dentro. Em torno daquele núcleo que é o meu nome interior. E que me habita. E que é preciso arrumar bem. Com tempo e devagar. Sou lenta. No que dói. Lembro. É uma recordação de infância e construiu uma fortaleza difícil de arrasar. O silêncio ansiosamente pedido exigido das palavras que podiam ser culpa. Um panfleto caído inadvertidamente em mãos quase juvenis. O terror dentro de portas como se as paredes. E tinham. Às vezes. ouvidos. E dos ouvidos vinham pessoas com eles colados a crânios acéfalos e levavam na maré livros pessoas e outros bens. Até ver. Os dentes cair de maduros depois de a dor ser demais. As batatas podres na cozinha assumidas pelo medo. Mesmo face aos iguais. Com bichos. As batatas dentro da panela enorme e as pessoas. Bichos. Como se. Com hematomas enormes escondidos dos filhos quando a roupa chegava para isso. Para não irem tristes. Mais tristes. Sangue pisado por ali. E excrementos. Já nada importava distinguir. Sangue ou o suor dos intestinos tudo terror e dor das mesmas vísceras em perigo de ruptura. E às vezes alguém. Que conhecia alguém, que quase dava sensação de culpa de cortar a dor em duas finalmente, antes e durante. Emendando em durante e depois. E os outros lá. Ainda. Coisa quase obsoleta de recordar hoje. Como uma ficção remota. Tenho relatos do meu avô, entranhados na memória longínqua da infância, velados, primeiro pelo cuidado, pelos ouvidos das paredes da casa. Pelos fantasmagóricos ouvidos do medo. Mas uma sobriedade a que a raiva já não contaminava. Um dia escritos um pouco assim em modo de a quem possa algum dia vir a interessar. Naquela sua letra bonita e sempre inclinada no sentido do futuro. Aquelas coisas das noites, interrompido o terror e a expectativa, pela realidade de um terror maior porque vivido e instalado. Nas casas. Ou nas celas. Os meios das noites. As noites da longa noite. Somos uns burgueses de merda hoje nas nossas queixas aqui. Num lugar de defeitos suaves. Mal comparando. agora. E de queixas corajosas de quem nunca perdeu um dente pela força. A meio de um sono pouco repousado. Para enterrar companheiros amigos ou desconhecidos. Ou de um tumor no cérebro, ou no estômago . Penso nisso quando penso nas dores da alma. Nos limites das dores. Nos lugares das dores. E nos que não quebravam e não denunciavam e não se retratavam. Até ao limite, para além do limite, e, às vezes, para além da vida. Deixada para trás. Para que outros levantassem os ossos quebrados e os devolvessem a quem os quisera. Às vezes acabava assim o medo. E o desconhecido e a justiça e a dor. Minto. A justiça não andava ali. Só uma passagem rápida a verificar quando era justo ao corpo desistir. Para ser levado como restos. Quando a alma não desistia antes e não denunciava e não implorava e não cedia. Penso muito nisso quando penso na dor. No lugar da dor e nos limiares. Fronteiras entre possível e impossível. É isso a dor. Um território relativo. Ou de fronteira, terra de ninguém. Fronteira. É um território de transição. O eterno presente, talvez. De passagem. Iniciação. Um lugar, á falta de melhor. Lugar de expectativa e esperança. O não definitivo e o sabor doce do desconhecido. O estranho, estrangeiro e belo desconhecido. O lugar não lugar da viagem. Porque é sempre de passagem e de provisória paragem. E por isso nunca estação. Nunca destino, só inevitabilidade. Entre antes e depois. Entre expectativa e memória, o que fica. Fronteira. O aqui e agora nem sempre reconhecido como tal antes de a perspectiva se instalar como distância. Lucidez. A dor como lugar de passagem. Mesmo nesse músculo cardíaco que, de pessoa para pessoa varia entre a zona de conforto e a zona de risco de diferentes maneiras. O que resiste à velocidade instantânea e o que resiste ao esforço prolongado. Diferentes atletas, estes músculos. Em diferentes modalidades. E penso no que é a frequência cardíaca máxima. Que atira o músculo físico para a zona de perigo. Difere de pessoa para pessoa como o limiar de dor. De todas as dores. Em todas as partes do corpo. E da alma. Mas este é o mais difícil de quantificar à medida que nos afastamos das coordenadas objectivas espaço, tempo, função, actividade. Onde o ritmo desse músculo, físico se mede. E neste tempo em que tudo nos atira para corridas em velocidade. Refeições rápidas e emoções rápidas. Penso. Sim. Eu também sou uma pessoa acorrentada a esse suave ou nunca percebido como tal, jugo de uma alma dorida. De vida. De vida que nos falha. Mas não há dor que se aproxime de uma unha arrancada, um a articulação esmagada a martelo, um dente arrancado a frio. O corpo. Essa miséria que foi instrumento de muitos a uma sobrevivência que deixou por vezes espaço para a exaltação da mudança. O entusiasmo de pequenos prazeres. A liberdade da contemplação. A pequena ambição sem desapontamento. Transportamos a nossa própria gaiola. E num mundo assim, passando aos escaninhos privados e pequenos da alma que somos, cada um é livre de abandonar e alimentar a sua culpa, de ser abandonado e se rebolar na volúpia liberta de ser só sem ter. As pequenas raivas das pequenas coisas das pequenas vaidades e das pequenas ambições. A ocupar espaço. Na gaiola que levamos pela mão. Em que sítio? Em que lugar do corpo da alma, ou da vida da casa? Em que ficamos. E depois, este território minado que é o da fantasia. E o da ilusão. E o do sonho. Para não falar, já da ficção. Mas são estados diferentes no mesmo país. Ou federação. Diferentes. Há que distinguir. O sonho…nos adultos torna-se difícil. perde-se talvez a capacidade de sonhar. Diria de outra maneira: passa a sonhar-se dentro dos limites do possível. E o possível é um país grande. Enorme mesmo. Tão grande como esta mania de situar cada fenómeno em nós numa parte distinta e mais simbólica do que real do corpo. Tudo vive nas químicas e nas interacções do cérebro. tudo se mistura numa alquimia que varia de pessoa para pessoa e que resulta ou não numa economia existencial positiva em função das alquimias que de outras pessoas convivem com estas. Situamos a alma em que zona do corpo e o coração – o outro – em que zona do cérebro. E a dor, esse alerta para os limites de resistência do corpo, da alma. E a emoção. Lugares. Em que ficamos. Talvez esse português suave, pejorativo a qualificar-nos, seja uma característica ancestral de um certo tipo de coração. A precisar de um cigarro, como aqueles dos maços às risquinhas e com caravelas em azul e que não eram caravelas, e de parar para retomar forças para resistir. O azul calmo e reflexivo sobre o ouro e a velocidade da luz, nos antigos maços, e não o contrário como diz o dito. Somos talvez esse português suave. Quantas vezes a sentir o crescente da dor, da agonia e da raiva, a precisar de um pouco de retorno à suavidade que nos começa a faltar. A litlle tenderness, para manter a natureza de que cada um é feito. Parei na embalagem azul. Que o meu pai fumava e que ficou por ali – a embalagem do dia a seguir que não veio. Mais. Passou a amarelo vivo. Uma coisa solar. Sem torre de defesa rodeada das águas. Com embasamento atirado em frente a sul e ao mar. Como uma enorme, pesada, obsoleta barcaça. Entre o medieval e o renascido. Ancorada a terra sempre, lunar, era a sua natureza e a do rio a recuar, e para sempre. Esse maço está ali como recordação preciosa do tacto e de um gesto. Mas cada um desses cigarros, como os outros, pega fogo. Na proximidade do fogo.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasSe não fosse a angústia [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]e não fosse a angústia, não daria conta de que estou vivo. Não percebo bem o que ela me quer dizer. Se é a ansiedade do dia seguinte a todas as vésperas. Se ela me comunica o presente inane, a terra de ninguém entre ontem e hoje. Contudo, sem a travessia de ontem para amanhã. Não sei se ela me quer dizer que a partir de agora tudo será assim: sem véspera, nem dia, nem amanhã. A angústia anula o ritmo, o volume. Anula, sobretudo, a possibilidade de melancolia. É uma pausa, mas sem som antes ou depois. Nem é bem silêncio. É uma mudez. Ou então é só volume sonoro que estoira os ouvidos. Às vezes, tenho de correr o mais veloz que conseguir e gritar debaixo da ponte, quando passa o comboio. Quando ela aí está comigo, não se ouve música, não se lê um livro, não se vai passear. Deixo-me estar quieto, porque o mais leve gesto do corpo pode acordá-la. A angústia acorda como um cão a dormir que é pontapeado. E não rosna. Morde. Morde do lado de dentro. Acelera a batida cardíaca e respira-se ofegantemente como se não houvesse ar. Não importa que haja outros que estejam ao pé de ti. Estão muitas vezes outros ao pé de ti. Ela não sucumbe por haver gente ao pé de ti. Ela amplifica-se. Cresce dentro de ti. O outro nem sabe como estás e onde andas. E ela cresce do lado de dentro com o seu corpo alienígena e toma conta de ti. Explode e pulveriza-nos. Mas não te faz perder pelos seus fragmentos estilhaçados. Vai busca-los onde quer que tenham ido: dias felizes da infância, um rosto da juventude, alguém que morreu, um futuro que certamente não virá, todas as pessoas que conheceste, todas as angústias e ansiedades, todo o tempo passado que viveste e todo o tempo da eternidade que não viverás. A angústia recolhe todos os estilhaços que és tu próprio explodido por todo o lado, todo tu, e num ápice contraí-te com ela em ti. E faz recomeçar tudo de novo. O ritmo da angústia é o da febre da infância que te faz corpo com o quarto dos teus pais jovens: expande-se e contrai-se e o teu corpo é a tua cabeça a explodir e a implodir. A tua angústia não te permite consolo. Torna o teu corpo exangue, não sem que te debatas para poderes respirar. Às vezes, permite-te uma lágrima de consolação. Arrepias-te. Achas que vais poder dormir. E adormeces. Mas só por uns breves instantes. Quando acordas, os cães da angústia mordem-te por dentro. Cegam-te. Deixam-te surdo. O teu corpo é uma chaga refrescada com o álcool que te abrasa como te encharca. Mas se não fosse a angústia, não conseguiria ter uma percepção da vida. Melhor, não conseguiria ter a percepção da vida ou da forma da vida, uma vida vazia, porque todos os seus sonhos e expectativas, todas as suas esperanças ou, pelo menos, até só uma pequena antecipação— tudo foi anulado da existência: varrido sem saber bem como. Mas sem saber-se perfeitamente quando. Não. Não foi um único acaso, nem uma sucessão de acasos. Foram acasos. Sim. Mas se a vida fosse diferente, os acasos seriam episódios que seriam esquecidos e não regressariam para nos atormentar ou então eram apenas para fazerem o próprio corpo da vida. Tenho um cortejo de mortos comigo. Ou, se calhar, sou eu o próprio cortejo feito unicamente de mim quem acompanha os mortos. E não morreram todos, de facto. Muitos continuam vivos, mas ficam vida fora ou não aparecem durante muito tempo. O tempo que passa oblitera a sua presença, talvez mútua, e não mata a saudade, também talvez recíproca. Hoje, sou o cortejo fúnebre de vivos e mortos. Hoje, sou eu o cortejo complexo de mim a assistir-me na via sacra. Mas é sem fim. É uma fila contínua que nunca mais acaba. Se ao menos pudesse cochilar um instante. E se pudesse ser, poderia ser sem sonhar? Poderia ser como aquelas noites em que antigamente dormíamos sem sonhos? Só o vazio, só o sossego ou também o alívio?
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA viagem de Camilo Pessanha até Macau Camilo Pessanha chegou pela primeira vez a Macau no dia 10 de Abril de 1894 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]amilo de Almeida Pessanha, em Coimbra onde nascera, formou-se em Direito em 1892 e após um breve período de advocacia em Óbidos, seguiu para Macau nomeado, por Boletim Oficial de 10 de Fevereiro de 1894, professor do Liceu dessa cidade no Extremo Oriente. Fora um dos 39 professores a concurso, aberto a 19 de Agosto de 1893 pela Secretaria do Ministério da Marinha e Ultramar, para leccionar no Liceu Nacional de Macau ainda por inaugurar pois fôra fundado a 27 de Julho desse ano. No Echo Macaense de 29 de Agosto de 1893, com o título Echos da Metrópole, refere-se terem as Cortes encerrado a 15 de Julho e depois disso mandado proceder ao concurso para provimento dos lugares de professores do Liceu de Macau. O sr. Silva Bastos, secretário particular do Ministro das Obras Públicas concorreria à cadeira de História, sendo possível vir a ser nomeado secretário do mesmo liceu. Mas esta era uma notícia prematura, escreve o jornal, porquanto a escolha do ocupante desse posto dependia do corpo docente e tinha de ser aprovada pelo Governo de Lisboa, ainda sobre proposta do respectivo Governador de Macau. Desabafa o redactor: “Oxalá que na escolha dos professores não predominem os empenhos, recaindo a nomeação em indivíduos que não possuem outros merecimentos senão o de serem afilhados deste ou daquele trunfo político.” José Horta e Costa, então deputado por Macau, advogara a criação do liceu nessa cidade e José Azevedo foi informado que se Pessanha não tivesse participado numa reunião do Partido Progressista (na altura encontrava-se no poder o Partido Regenerador, mas tal não era grave já que os dois partidos tinham um pacto e governavam Portugal alternadamente sobre orientação de Inglaterra) a sua nomeação estava garantida, como conta Daniel Pires. Ainda assim conseguiu, a 18 de Dezembro, ser um dos quatro escolhidos. Com 26 anos, Camilo Pessanha parte então de Portugal, contratado como Professor do Liceu Nacional de Macau, estabelecimento de ensino que ia abrir as portas para colmatar o espaço vazio das Humanidades, num tempo em que a educação escolar apenas se destinava a preparar os jovens para o mundo do trabalho na área comercial. Outra notícia do Echo Macaense, de 29 de Agosto de 1893, refere o que se diz em Lisboa acerca do provimento do Governo de Macau, mas as informações não são concordantes pois constara há tempos que ia ser nomeado para Governador o sr. Ferreira de Almeida. No entanto, uma outra versão garantia que “este sr. vai ser nomeado para Macau, mas para dali ser transferido para Cabo Verde e ocupando o seu primeiro lugar o sr. Horta e Costa”. Este último pertencia nessa altura a uma comissão que estudava as causas da depreciação da moeda de prata na Índia e em Macau. Formularam-se quesitos respeitantes a Macau e Timor para se adoptar como unidade monetária a pataca, subsidiária em prata e cobre, sendo daí calculados os vencimentos dos funcionários públicos. Já quanto à Índia, “não se tomou resolução, aguardando-se o parecer de Inglaterra com respeito aos efeitos da crise da prata nas suas colónias ultramarinas”. A viagem, a bordo do navio espanhol Santo Domingo, iniciara-se a 19 de Fevereiro de 1894. Depois de cinco dias em Barcelona, o navio levou apenas mais dois até atracar em Port-Said, no Egipto. Cruzando os 162 km do Canal do Suez (inaugurado a 17 de Novembro de 1869), desembocava agora no Mar Vermelho onde, nos umbrais do Oceano Índico, aportou em Adém (na Arábia Feliz, actual Iémen, então na dependência do Comissariado da Província Britânica da Índia). Depois atravessou o Mar Arábico até Colombo, no Sri Lanka, onde permaneceu apenas por duas horas. O vapor espanhol seguiu então pelo Estreito de Malaca até Singapura e daí para Manila. Camilo Pessanha chegou a Macau no dia 10 de Abril de 1894, mas será pela viagem feita em Janeiro desse ano pelo novo Procurador dos Negócios Sínicos, Álvaro Maria Fornelos, que conseguimos desfazer a dúvida sobre o percurso dos barcos desde Manila até Macau: iam primeiro a Hong Kong e, noutra embarcação, seguia-se até ao porto de Macau, que sofria de um adiantado estado de assoreamento. Com apenas cinquenta anos, Hong Kong era já o principal porto dos vapores provenientes da Europa. Viagem de Hong Kong para Macau Camilo Pessanha, às duas da tarde de 10 de Abril de 1894, embarcara muito provavelmente no vapor Heungshan para Macau. Este barco da Hong Kong, Canton & Macau Steamer Co. Ltd., capitaneado pelo inglês William Edward Clarke, já por várias vezes ficara encalhado no Porto Interior devido ao assoreamento e por isso nos jornais da época era publicada pelo secretário da Companhia, T. Arnord, a tabela das horas de partida de Hong Kong para Macau nos meses de Maio a Agosto do referido vapor. Para se perceber o insólito e excepcional procedimento que a companhia Hong Kong & Macau Steam Boat tinha com os habitantes de Macau, o jornal político e noticioso O Independente, cujo redactor principal era José da Silva, apelava a 25 de Julho de 1891 que esta reconsiderasse a sua atitude: “Já não é pouco a elevada tarifa de passagem entre Macau e Hong Kong, uma distância de 38 milhas, por 3 patacas, se a compararmos com o mesmo preço para a passagem entre Hong Kong e Cantão, que é mais do que o duplo da distância. (…) Note-se que entre Macau e Hong Kong o principal elemento servido pela companhia é português, enquanto no outro trajecto não o é. Este tratamento diferencial é já por si só injustíssimo e repugnante. A companhia é inglesa. Como regra, paga aos seus empregados portugueses menos do que aos empregados ingleses. Se quisermos fazer sobressair esta grande diferença, basta lembrar que pagava ao seu secretário português, Costa, umas 300 patacas por mês, enquanto ao seu sucessor, o inglês Arnhold, que não vale mais do que valia o Sr. Costa, paga 700 patacas mensalmente. Assim a poderosa companhia quando paga a um português, paga menos, quando recebe de um português, exige mais, com a circunstância agravante de que ela sabe muito bem, até pelos jornais da colónia, onde tem a sua sede, que se fartam de o dizer que os portugueses estão pobres. É talvez por isso que os explora, porque, em geral, é à custa dos desgraçados e infelizes que os avarentos argentários se opulentam. Sobre esta injustíssima exploração lembrou-se ainda de proibir aos seus empregados o encargo de pequenas encomendas, como é uso fazer-se em todos os navios mercantes que traficam na China, para cobrar, ela, em seu proveito, uns 10 avos por cada pequeno pacote. Ainda neste caso foi só em Macau e portanto, e especialmente, no elemento português que a companhia quis acertar, o que é sobre maneira revoltante. (Não esquecer que os mais antigos aliados de Portugal, os ingleses em 11 de Janeiro de 1890 tinham-lhe feito um Ultimatum, o que provocara um protesto nacional pelo roubo das terras africanas entre Angola e Moçambique.) Não pedimos aos directores portugueses, que há na companhia, que exerçam a sua influência a fim de que se acabe com este procedimento injusto e até vexatório, porque bem sabemos que, em se tratando dos seus compatriotas, são aqueles senhores directores lusitanos os primeiros a atacá-los e amesquinhá-los…” Macau à vista Pessanha mergulha nas primeiras imagens de Macau: são de montes e são de praias que, num iniciático momento, se misturam, pois ainda desconhece os nomes do que avista do barco ao contornar a península. Mais tarde saberia o nome daqueles lugares e assim, apresentando a primeira visão, apareceu-lhe, ao passar pela Enseada das Portas do Cerco, a Praia da Areia Preta, então usada para piqueniques pela nata da sociedade macaense. Uma escondida e pequena ilha demarcava-se, enquanto o barco seguia a Sul e se postava o forte edificado, em 19 de Fevereiro de 1852, na Colina de D. Maria II, sobranceiro à Praia de Cacilhas. Vagueando o olhar e terminada a praia, situada na base do Ramal dos Mouros, dava agora pelo Monte da Guia e, sempre a trepar, até à parte mais alta do cume, dentro da Fortaleza depara com a plataforma onde um provisório farol de madeira aproveita o antigo aparelho de iluminação, enquanto espera ser um dia reconstruído e retomar a sua traça original. Em baixo, sob a Praia da Guia, a Chácara do Leitão, onde por vezes Pessanha, na companhia do proprietário, Francisco Filipe Leitão, haveria de espairecer. Levantando os olhos, no alto da Colina de S. Januário, observa o Hospital Militar Conde de S. Januário, inquilino recente a ocupar o lugar do Baluarte de S. Jerónimo, construído por volta de 1622 pela muralha proveniente da Fortaleza do Monte e que nesse local fazia uma mudança da trajectória para Sul. Então já demolido, restava parte da muralha a descer até à Fortaleza de São Francisco (a ocupar o lugar do convento franciscano demolido em 1864), ao nível do mar. À sua frente e sobre as águas, a Bateria 1.º de Dezembro, construída em 1872 e remodelada em 1888. Continuando a estibordo, apresenta-se-lhe a belíssima baía, enfeitada de um elegante casario. Alguém aponta em direcção a um fortim, chamado de S. Pedro, erguido na altura em que se construíram as muralhas da cidade e demolido, tal como a Bateria 1.º de Dezembro, por razões urbanísticas, em 1934, sempre presentes no quotidiano das cinco estadias em Macau de Camilo Pessanha. À direita do Fortim de S. Pedro está o hotel onde se irá hospedar e, recuando um pouco, a moradia que muito mais tarde virá a ser a sua alugada residência e onde viverá até à morte. Após a passagem da Baía da Praia Grande, que termina na Fortaleza de Nossa Senhora de Bom Parto, aparece a enseada com a Praia do Tanque dos Mainatos, seguindo-se por entre penedos a Baía do Bispo, e contornando a parte Sul da península navegava o vapor bem próximo da Fortaleza da Barra. No entanto, outras fontes referem que a seguir à Baía da Praia Grande havia outras duas, a do Bom Pastor, que da curva de Bom Parto chega à ponta da Santa Sancha e na Praia do Bispo, onde os ingleses do Hotel Bela Vista nadavam, por isso reconhecida também pela formosíssima Praia da Boa Vista. Na ponta Sul da península, a Fortaleza da Barra ou de São Tiago, e à entrada da Barra do porto interior o antiquíssimo Templo de A-Má, divindade protectora dos mareantes. Por fim, antes do vapor atracar numa das três ponte-cais de madeira, surge a Praia do Tanque do Maniato. Sobe agora o barco pelo Porto Interior, um canal do Rio Oeste entre a Ilha da Lapa e a península de Macau, “por entre uma infinidade de grandes lorchas e de pequenos tankás, entre os quais se via um único vapor, o da carreira de Cantão” – observação de Adolfo Loureiro, seguramente não muito diferente da presenciada por Pessanha, que assim chega, aparentemente, são e salvo a Macau. Os companheiros de viagem Entre os perto de quatrocentos passageiros que com Camilo Pessanha viajaram no vapor Heungshan, provenientes do reino, vinham para trabalhar na colónia os senhores António Augusto de Almeida Arez, como delegado do Procurador da Coroa e Fazenda desta Comarca, e Hermano de Castro, farmacêutico, e sua Senhora. Dos nove professores de Liceu nomeados para esta província, chegavam os srs. dr. Horácio Afonso da Silva Poiares, para a 1.ª cadeira, de Língua e Literatura Portuguesa, dr. Camilo de Almeida Pessanha para a 8.ª cadeira, Filosofia Elementar, e o engenheiro civil Mateus António de Lima, para a 2.ª cadeira, Língua Francesa. Este último, pouco tempo depois seria também nomeado Condutor das Obras Públicas, após a exoneração do condutor de segunda classe, o Tenente António Mendes da Silva. Já o quarto professor do Liceu para leccionar a 7.ª cadeira, Geografia e História, João Pereira Vasco, só chegou a Macau a 12 de Maio de 1894, tomando posse dois dias depois. Os restantes cinco professores encontravam-se em Macau pois, pelo Artigo 7.º, “Os lugares de professores das 3.ª, 4.ª, 5.ª, 6.ª e 9.ª cadeiras serão providos em indivíduos, funcionários do Estado em Macau, de reconhecida aptidão para as disciplinas que hajam de professar, sendo preferidos os que tiverem já prática do magistério das mesmas disciplinas”. Viajava também com os três professores do Liceu o Cónego Francisco Pedro Gonçalves, ex-reitor do Seminário de S. José, mas este, oito dias depois, a 18 de Abril seguiu para Singapura no cargo de Superior das Missões. Após três horas de navegação, encosta o vapor no cais ponte da carreira de Hong Kong. Haveria alguém à espera de Camilo Pessanha e dos outros dois professores? É provável que sim, mas desconhecendo esse facto, pois que ninguém a isso se refere, terão sido tratados do modo como ocorreria ao comum passageiro.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasJoão Simões: “Não faço coisas, faço ver coisas” [dropcap]É[/dropcap] interessante ver que tens exposto regularmente em Nova Iorque, tens textos sobre o teu trabalho escritos pelos críticos Julian Myers e Julia Robinson – além do texto que eu mesmo escrevi, “Da Matéria” – a tua primeira exposição foi no Museu de Arte Moderna de Paris, em 1996, há algum tempo expuseste no Museu Tinguely, em Basileia e recebeste bolsas e encomendas de Fundações importantes – como a Fundação Calouste Gulbenkian e a All Art Initiative Foundation, de Amesterdão, mas não tiveste qualquer eco por parte da critica em Portugal. Julgas que há alguma razão ou é apenas por mero acaso que as coisas tenham acontecido assim? Não julgo que seja por acaso! Vivi muitos anos fora de Portugal – em Milão, Paris, Barcelona e entre 2004 e 2014 principalmente em Nova Iorque – foram quase 20 anos fora de Portugal. O meu trabalho não é visto em Portugal por uma questão de tradição. Por outro lado, a minha formação académica em arquitectura obstaculiza de imediato que me vejam como “artista”, há um preconceito… Para não falar sequer do teu mestrado em teoria da arquitectura… Sim, isso ainda piora as coisas. Porque o ponto de vista dos artistas e da arte, principalmente na Europa, está muito ligada à tradição da palavra grega technê, ainda que isso não seja propriamente consciente. E o “artista” é aquele que faz coisas dentro de uma técnica que de algum modo aprendeu, quer seja na academia, quer seja com outros artistas; numa comunidade técnica onde fazem coisas. E tu não fazes coisas? Não! Eu não faço coisas, faço ver coisas. O meu trabalho (exceptuando o “queijo de mulher”) não constrói, não faz aparecer novas coisas, por assim dizer. Mas tenta antes fazer aparecer as coisas que já existem. Fazendo uso das tuas palavras [em “Da Matéria”], o que eu faço aparecer é a falta que sempre temos de ver as próprias coisas, porque vemos de menos. Podes dar um exemplo, por favor. Por exemplo, o trabalho que fiz no museu de arte moderna de Paris, que consistiu em introduzir bolas de naftalina no sistema de ar condicionado do museu. O que aconteceu foi que as pessoas que entravam sentiam um desconforto que nunca tinham consciencializado antes: o cheiro subtil da naftalina entrava em confronto com as obras de arte contemporânea expostas. Havia um conflito entre os sentidos e os juízos. De modo geral, esse conflito não aparece na arte. Porque ajustamos sempre uns aos outros, ou estamos sempre a ajustar uns aos outros, mas ali as pessoas não estavam a conseguir ajustar. Não estavam a conseguir ajustar-se a si mesmas… Exactamente! Porque, de repente, estavam a ser confrontadas com o que elas assumem como indiscutível: que a arte é universal e, depois de concretizada, invulnerável no que se pretende que seja o seu próprio espaço: o espaço próprio da obra. Mas neste caso as obras estavam a mostrar uma total vulnerabilidade ao ataque de meras bolas de naftalina. E, acima de tudo, as pessoas não estavam a gostar, pois não conseguiam ajustar os sentidos com os juízos e os pré-juízos que traziam, que trazem. Já o disse uma vez e vou repeti-lo aqui: na arte, o teu trabalho é um trabalho de carácter ensaístico, mais do que de carácter poético. Concordas? Sabes bem que não concordo com isso! Mas, por outro lado, percebo o que pode levar-te a dizê-lo: porque o meu trabalho privilegia o fazer pensar em detrimento do fazer sentir. Mas, e por essa mesma razão, podemos chamar com mais propriedade a O Livro do Desassossego, de Pessoa, um ensaio do que um poema? Não me parece. E, no entanto, como o filósofo António de C. Caeiro costuma dizer, esse livro de Pessoa é um livro onde a língua, ela mesma, pensa. É evidente que nas Letras isso não constitui problema, dizer que um poema nos faz pensar mais do que sentir, mas quando se diz isso de uma obra de arte já temos de arranjar uma nova prateleira para arrumá-la. Voltando ao teu trabalho, o trabalho que apareceu mencionado na Rihzome/New Museum, e bastante elogiosamente, é também absolutamente descritivo da tua obsessão por fazer ver o que não se vê. Quem ler esta entrevista, pode não ter lido o teu texto acerca do meu trabalho, por isso gostava de explicitar esse fazer ver o que não se vê. Pois mais do que tratar-se de fazer ver, é tornar existente o que ainda não existia. Não no sentido de construir um objecto (artístico ou não), mas no sentido de pôr no mundo, na consciência do mundo o que ainda não estava. Este trabalho a que te referes, mais do que ser um metáfora acerca da descoberta do que ainda não se viu, consistiu em fazer vir à existência o vazio, pelo menos a consciência do vazio. Porque há um imensidão de lugares na net que estão vazios, que não têm ninguém. E, aí sim, podes ver isto como uma metáfora da própria existência humana.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasLivre Pauvre – Livre Riche [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] manuscrito, que tanto saiu de moda nas lides da escrita, tem ainda pelo mundo alguns amantes que em colecções de muita beleza e criatividade unem não só a arte da caligrafia como expressão visual identitária de cada um, bem como nela inserem a pintura e o desenho numa orquestração de Livro de Horas. Falo de uma criação que há muito galgou o espaço da sua origem e tem unido poetas e pintores pelo mundo « Livre Pauvre-Livre Riche», criado por Daniel Leuwers, professor de literatura na universidade de Tours, crítico literário e especialista de Rimbaud. Um livro que em si resume a natureza principal que o objecto designa, neste caso, um texto, sempre acompanhado de uma composição pictórica que releva para a sua primeira essência : sendo de uma extrema humildade, pois que não passa pelos circuitos editoriais, impressão, distribuição e outros, é no entanto o mais luxuoso objecto livresco dadas a sua raridade e composição e foi por isso assim apelidado por causa da não confrontação com o circuito económico. Por outro lado, a primeira colecção foi apresentada no priorado de Saint-Cosme, situado em La Riche, onde Pierre de Ronsard viveu os seus últimos vinte anos. O poeta, que era dado à botânica e cultivou rosas, não foi esquecido neste emblemático título. É um projecto que começou por volta do ano dois mil com um vasto roteiro de correspondência pelo mundo e onde todos se foram agrupando de forma criativa, consensual, rica, em relação a projectos e aberturas de múltiplas formas. Há colecções belíssimas, desde a Gallimard às autarquias por onde passaram algumas das suas exposições de exemplares únicos em várias línguas e formatos, sem dúvida uma Babel multicultural repleta de cor e grafismos raros. Foi por aqui que conheci o poeta sírio-libanês, Adonis, outros da Martinica e argelinos, um mundo onde a política não toca, mas onde os poetas têm o dever de se comprometer na luta pelo bem dos povos sem resvalarem na forma agreste dos comentaristas, um mundo quase belo num desastre ambientalista de ideologias e esquemas internacionalmente enfadonhos, esses, sim, pobres, muito pobres. Teve contudo este projecto o chamado projecto-mãe: a colecção « Vice Versa» com os seus delfins e grandes adeptos do livro de artista como Jacques Dupin, Bernard Noel, Jean-Luc Parant e Yves Bonnefoy, que se associou ao pintor Gérard Titus-Carmel, consagrando apaixonantes estudos. Quase que estamos numa emanação desse Livro de Horas na pista do duque de Berry, mas esta colecção galgou as fronteiras da poesia e foi extensível a Michel Tournier, Fernando Arrabal, Jean-Marie Laclavetine e outros, e se nos remetermos à ideia de Jean Cocteau para quem tudo era poesia: poesia do romance, poesia do teatro… poesia da poesia, então, estamos na presença de um grande e imenso tratado poético. E continua a sua marcha com outra das colecções «Les amoureux solaires», a colecção «Pli», em dois mil e três e que vai em definitivo encontrar a simplicidade de uma folha de papel, anotando a expressão de Mallarmé na sua nomeação, é uma colecção da francofonia pelo mundo; colecção « Éventail», com o poeta vietnamita Nguyen Chi Trung, um iminente calígrafo que nesta colecção se apresenta como escriba. Depois, Portugal- Brasil, onde venho com Victor Belém numa Lua-Nova que no dizer do autor é aquela que irradia no mundo, vem o poeta Ernesto Melo e Castro que gentilmente convidei via Leuwers num Fractal-Vento , Roberval Pereyr (quatro rotas de solidão), António Brasileiro com pintura de Juraci Dórea. Das Américas vêm também outros nomes como a jovem poeta colombiana Andrea Cote e do Quebéc Rocher des Roches e Jacques Rancourt. Há depois toda uma parte dedicada aos poetas helvéticos e seus pintores, um mundo de imensa perfusão e quase constelar. Em dois mil e quatro aparece « Feuillets entre-bâillés » que tanto entusiasmou os pintores sempre mais sensíveis ao formato da visualidade. Há um lado de «Caligramas» nesta colecção com a arte alfabética como base da expressão. « Feuillet d’album» a mais simples das colecções que são quase pequenos haikus em folhas minúsculas , poetas tunisinos e belgas numa manifesta noção de economia verbal, Alexandre Voisard, Fernando Arrabal. Segue-se «Billet» que recebe o primeiro livro em língua alemã e o primeiro livro em língua árabe de Moncef Mezghanni. E a aventura continua. Uma bela colecção de dois mil e dezasseis «Entre Alfa e Omega», uma leitura Apocalíptica publicada em Angers do «Livre Pauvre» foi doada à Biblioteca Municipal que dela fez uma exposição com um livro-catálogo de rara beleza. É, sem dúvida, emblemática toda esta natureza da escrita e da sua complementar amiga, a pintura, poetas e pintores foram sempre próximos, e não raro se estimularam mutuamente para a realização das suas obras, e este imenso lastro de beleza relacional não raro me recorda os tempos em que se estava junto com todos, fazendo-nos mais completos e solidários, onde ainda não havia vedetas, nem cismas, ostracizados, que inundou de modo vário o presente em que vivemos. Parecendo tudo mais fácil, creio que é bem mais difícil formar com os da nossa natureza um mundo melhor. Dispersos os ossos como na «Quarta-feira de cinzas» quem voltará a juntá-los? Por outro lado, falta uma vocação nova ao país para certas coisas que o dinheiro pareceu amordaçar e a soberba contaminou. Estamos esquartejados uns para cada lado fazendo dos dedos a vocação que ainda não findou. Mas, se não fosse o mundo, que estaríamos também nós a fazer aqui tão dentro de casa? Nada. Com o que sabemos e podemos não tinham nada para nós. Mesmo assim, vamos deixando pedaços que o país guardará mais tarde como presentes indispensáveis e para os quais não soube ou mesmo se dignou olhar. O luxo estará hoje naquilo que é essencial e bom. Todos parecemos fatigados do forte entulho descritivo que conseguiu eludir o mundo de falsos saberes. Regressar “à La Pauvreté”. O país e a língua portuguesa continuarão a ter assento aqui se o desejarem e se para tanto o louvor de cada um não achar esta gesta um serviço menor. Nestas coisas devemos ser como os amantes: amar e não fazer perguntas, o resultado da confiança é sempre um alto instante poético. E resulta bem quando o espaço é alargado e cada um ressalva a sua memória e a sua cultura. É muito bom ele existir. É urgente que exista.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasDo Trânsito da Lucidez 02/07/2017 [dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio uma longa e admirável entrevista de Susan Sontag à Rolling Stone, depois ampliada em livro, e, como sempre, há várias coisas que ela viu antes do tempo. Uma delas esta: «(…) voltando a falar de ciência, acho que um dos seus maiores feitos é o facto de que hoje, pela primeira vez na história do planeta, as pessoas têm a possibilidade de mudar de sexo». E dá como exemplo o caso de Jan Morris, um escritor de viagens britânico que em metade da vida e carreira foi homem e depois mulher, o que o fez escrever sobre Veneza a partir das duas percepções. Provavelmente a última grande aventura ontológica abissal talvez passe por esta mutação voluntária da identidade sexual. Não falo desse reajuste do corpo à representação psíquica duma sexualidade virtual e longamente desejada, como acontece na transsexualidade, mas de uma aventura infrapsíquica que explora o lado oculto de um continente subitamente iluminado. Da mesma forma que imagino que este tipo de experiência não se associa à bissexualidade, mas à dimensão distinta que só pode ocorrer com a imersão da nossa identidade num corpo outro, diverso. Em vez de irmos aos anéis de Saturno mudamos de corpo. Admito que o ser humano possa evoluir em urbanidade e empatia no dia em que, desviado da obsessão falocrática, lhe for comum atravessar ciclos de alternância na identidade sexual. Cresço como homem, sou depois transformado em mulher e volto a ser homem, até me instalar num estranhamento ao mundo que me induza a reparar nas singularidades que só uma outra percepção me propicia. Seria uma educação-para-o-outro radical mas talvez resolvesse insensibilidades profundas, um coeficiente de desatenção à vida, na sua textura plural. Estou prestes a aterrar em Lisboa, onde voltarei a comer caracóis, criatura que pode à vez ser macho e fêmea. Hei-de perguntar-lhes. Brinco, mas eu raramente brinco. Na mesma entrevista, Sontag discreteia sobre a sua viagem a Hanoi, em plena guerra do Vietname, e a sua reportagem, tão controversa, na qual não iludiu a sua perplexidade face à personalidade colectivista dos vietnamitas. E, numa demonstração de honestidade intelectual, refere: «Senti que era importante reconhecer que os vietnamitas são diferentes de nós. Não gosto dessa ideia liberal de que todos somos iguais, acho que realmente existem diferenças culturais e que é muito importante ficarmos atentos a essas coisas. Então parei de lutar para que, de alguma forma, eles fossem compreendidos e me dessem algo que eu reconheceria como um acto generoso em relação a mim, porque o seu modo de expressar generosidade era diferente do meu. Eles têm o seu modo tradicional de agir e falar e o que entendem por intimidade não é o mesmo que nós entendemos. Era como se aprendesse um tipo de respeito pelo mundo. O mundo é complicado e não pode de modo nenhum ser reduzido ao modo que você acha que deve reduzi-lo». Treze anos depois de aterrar em África subscrevo inteiramente o que ela diz. A cultura africana é-me absolutamente exterior, nele antevejo o rosto da alteridade, e felizmente aterrei demasiado tarde (com 45 anos) para ter a ingenuidade de tentar a fusão. Um dos itens que nos diferencia sustentar-se-ia na circunstância de eu, como europeu, ser filho da Revolução Francesa e do Iluminismo, mas o que nos separa é mais profundo e gramatical, e, como ela diz: o que eles concebem como intimidade, reciprocidade, amizade, responsabilidade social, fidelidade, liberdade, poder e mando, sobre o que seja a curiosidade ou para que serve o conhecimento, está nos antípodas das noções que adquiri e desenvolvi. Foi o que surpreendeu Sontag: os vietnamitas concebiam coisas muito divergentes sobre o uso a fazer da revolução, da sua liberdade e autonomia, das que a escritora americana (imbuída no espírito de uma esquerda que nunca deixa de repensar-se), havia alguma vez imaginado. E percebeu que viviam em mundos paralelos, que podiam ter intersecções, mas nunca poderiam coincidir. Respeitar isso é uma das maiores lições da vida. «Todos diferentes, todos iguais», um slogan que nasceu do multiculturalismo, foi um dos slogans mais enganosos das últimas décadas, que enfermou milhões de equívocos. Ē um slogan que nasce ainda como efeito de uma ferida narcísica, sobrevinda duma situação pós-colonial. Precisamos de reinventar os Universais, para que possamos encetar um novo diálogo, mas primeiro teremos de lucidamente aceitar a irredutibilidade do outro e só a sua assimetria em relação a nós e aos nossos valores despertará a necessidade de compreendê-lo, sendo então possível negociar uma fronteira comum, na qual as nossas diferenças não colidam. Mas facto é: as fronteiras existem. Algo muito distinto da ideia que é veiculada pelas indústrias culturais e o seu afã de uniformização global, mas isso é já outra conversa. 04/07/2017 Daqui a três dias o Boeing fará a sua manobra de aproximação a Lisboa e sobrevoarei o Tejo. Que foi para mim um grande foco de atracção porque eu cresci em Almada, na outra margem da capital. O rio representava o trânsito do desejo. E então fantasiava sobre ele, sobre a sua profundidade. Como acontece em certos troços do Nilo, menos de seiscentos metros de profundidade era algo de inconcebível para mim; espessura submarina povoada de criaturas tentaculares, assaz discretas e inenarráveis e que só em alturas de convulsão tectónica assomariam à superfície. Um dia, já nos trintas e muitos, tive acesso a uma carta do rio e foi um choque: no seu máximo de profundidade o Tejo não ultrapassa os 40 metros, e a maior parte do leito, entre o estuário e o Mar da Palha, queda-se a uns míseros 10 metros. Embriaguei-me nesse dia em que o Tejo passou a ser um alguidar. Face a uma tal decepção passou a ser difícil recuperar-lhe a dignidade. Um dia contando isto ao poeta Jorge Fallorca ele desatou numa gargalhada e acrescentou, Ē incrível como as pessoas alucinam, mas então tu quando chegas de avião nunca reparaste nas escunas e caravelas que se vêem no fundo do Tejo? Evidentemente que ele gozava comigo, mas desde aí sempre que chego a Lisboa arrisco o torcicolo no frenesim de vasculhar as naus do Fallorca.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasContar o tempo Horta Seca, Lisboa, 28 Junho [dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]enho pelo menos um leitor. A pensar em noites desinspiradas como esta, fui atirando notas para uma página. E sendo a tendência escrever mais do que a medida, ali arquivei entrada excedente sobre desarrumação. Usei-a algures em Março, não a apaguei e esqueci-me. Voltei a usá-la agora. Um leitor fez o favor de mo assinalar. Veio-me à memória o que se projectava durante palestra de conferencista distraído: «verificar a conexão da fonte e o modo de entrar». Mymosa, Lisboa, 29 Junho Coube-me o terceiro dia nesta criação em torno dos «vinte anos de prática projectual em design gráfico» de Jorge_dos_Reis. Sete dias, cada um com um tipo de peças (cartazes, letras, livros e publicações, catálogos, identidades gráficas, esboços e finalmente pinturas) desenham esta «Terra Plana», assim se chama a exposição, patente na Casa da Cerca, em Almada, e o deslumbrante catálogo que o Jorge agora me entrega enquanto solta gargalhadas que enchem o lugar. Impressiona o rigor com que duas décadas de trabalho se apresentam, de modo visceral, mas arrumado em lúdicas geometrias. Impressiona o deleite com que se apresenta, nos detalhes, nos diferentes papéis, no formato. Cheguei ao Jorge pelo lado da investigação sobre tipografia e só depois descobri o criador, que invocava invariavelmente uma paisagem de serras que me foi próxima, ao serviço de curioso programa: «páginas à procura de uma lombada, homens à procura de uma morada». Aquela sua pesquisa em torno dos caracteres móveis tocava-me por conter muito de labor poético, que abordei erguendo-me em esforço do magma de confusão destes meus dias, cada vez mais esboços do indistinto. «Daqui, de onde o vejo, até com as mãos, encontro uma peculiar estranheza no corpus do Jorge_dos_Reis. Lúdica e confortável, mas estranheza. Simplesmente porque […] combina opostos e diferenças de maneira única: vejo máquinas e mecanismos e peças, mas logo encontro jardim do mais orgânico esplendor vegetal; uma linha irregular, risco distraído no papel que se transfigura em simetrias e rigor geométrico; tem tanto de abstracto como estruturante, formas de puro deleite ou sinais que emitem informação; faz-se paisagem e habitada por pequenos seres, quase sempre paisagem de papel e pequenos seres de tinta, mas pode dar-se o contrário; elementos oriundos do passado distante a conviverem com pixéis latentes de ecrã; o conforto do reconhecível e o assombro do novo.» Se se pudessem arrumar décadas de trabalho irrequieto, teria que ser assim, abrindo com o azul petróleo de uma qualquer «materica acqua». Entra o Raquesh, que espalha gentileza, paga uma rodada e grita: «É o fim!». Nada disso, vamos lá tratar de habitar esta «Terra Plana». Mymosa, Lisboa, 30 Junho Sento-me à mesa de mais um projecto com o António Eloy, velho companheiro de lutas que nos pareciam ganhas. Erradamente, como a sempiterna energia nuclear, um desvario maior da gula energética das sociedades contemporâneas. Nem sei a razão do desvio, mas deu-nos para folhear álbum (in)comum de amores e ódios, causas e nomes, mestres, personagens, amigos ou nem por isso. A sua passagem pelo Partido Radical, projecto libertário assaz peculiar de Marco Panella, falecido no ano passado, motivou inúmeras histórias. Muito para além da porno-deputada Cicciolina… Nem me lembrava da proposta de colocar Ghandi no logótipo, à qual Eloy e a maioria de uma qualquer assembleia se opôs, até que o carisma de Panella inverteu a tendência. Pelo meu lado, recordo os esforços transnacionais para a legalização das drogas. Tenho para mim que não valorizamos devidamente o memorialismo, e, em resposta, criámos, na Arranha-céus, colecção que acolhe textos que queiram testemunhar do vivido. Lancei desafios dos quais espero ansiosamente resultados. Para cortar no tempo. São Julião, Lisboa, 30 Junho As Festas da Cidade dão-se por findas, mas nada mais enganoso. Em Lisboa, as festas são um fado, uma tatuagem, um acaso da geografia, um resultado da meteorologia. Este ano erguemos um arco de papel com a EGEAC e editámos a preto e branco, para adultos e nem tanto colorirem, algumas das ilustrações com que o Nuno [Saraiva] tintou as festas, do ano passado e deste (um exemplo, nesta página). Uma brincadeira, dir-me-ão. Sim, mas quem afirmou a nossa seriedade? O gesto de colorir acalma os nervos, faz passar o tempo, exercita o músculo estético. Faz-nos ainda regressar a uma qualquer infância, o que se justifica sobremaneira para quem vive (em festa) aqui e usa os transportes públicos. Brincadeira, claro, mas se olharmos com atenção estes desenhos encontramos, a traço fino, um retrato da cidade que somos. Há anos que anda a povoar lisboas, e nos últimos tempos, até pelas paredes conta histórias. Invariavelmente fazem dos corpos um palco. Não por acaso, no caso revisita a obra do enorme Rafael [Bordalo Pinheiro]. Não deixámos ainda de ser nem zés nem povinhos. Em fundo musical, está alinhada, qual desfocada foto na parede da colectividade, uma galeria de personagens do mais transversal e transgressor cosmopolitismo genético. Fui ver e diz que «um ente geométrico é transversal quando o seu sentido é oblíquo em relação a determinado referente». Somos partes em recomposição, identidades sem bilhete nos apertos de um metro veloz. A cegonha acaba em pernas com meias de renda, sim a que enfia o bico do mito na garganta da raposa-PA. O DJ toca pratos, mas de chouriço e sardinha. As varinas são tatuadas, usam piercing e marcham de estilete, os marujos saltam para dança gay-pop, chinesas partilham arco e balão com um rajá das índias profundas do Martim Moniz. Siga o baile, desde que com selfie na ponta do pau. Depois ainda têm muito que contar os manjericos, em desfile de seres que são também comentários aos tiques e aos estereótipos alfacinhas. Isto e mais está deslavado em formato generoso à espera da cor de cada um. Em aperto de simbólica, marcámos o lançamento para o fim do mês, perto da Praça do Município, em plena exposição das sardinhas, essoutra brincadeira que se tornou fenómeno internacional, com cardumes cada vez mais numerosos a redesenhar o popular bicho, levando o ícone popular à exaustão. Não apareceu quase ninguém, o que nos deixou de lápis coloridos na mão. A escolha de dia e hora para atiramentos é ciência que não se deixa dominar. Os fregueses deviam estar distraídos algures num arraial. Vai daí, fomos à festa.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasOkja: o E.T. boçal da Coreia do Sul [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando o filme mais recente de Bong Joon-ho acabou de ser exibido na última edição do Festival de Cinema de Cannes, a audiência aplaudiu de pé, mas quando o logo da produtora, a Netflix, apareceu no ecrã foi recebido com vaias. Okja é um filme maravilhoso e a primeira obra-prima da Netflix. A história começa com uma apresentação encantatória da personagem que dá nome ao filme. Quem é Okja? Lucy Mirando (Tilda Swinton), uma entusiasmadíssima mulher de negócios, está ansiosa por contar a história. Lucy recorre a uma apresentação multimédia, para revelar aos jornalistas e aos accionistas da sua multinacional uma descoberta fantástica: uma nova estirpe de porco, um “super-porco”. Uma criatura estranha e gigantesca é apresentada como o futuro da culinária. Resultado de experiências genéticas, este enorme animal tem também um temperamento dócil e representa sobretudo uma enorme fonte de alimento. Mas a multinacional mente sobre a origem deste animal e alega que pertence a uma nova espécie encontrada no Chile, em estado selvagem. Okja, uma fêmea premiada, é enviada para uma quinta na Coreia do Sul, no âmbito de um programa global desenhado para encontrar o melhor habitat para a espécie. Neste cenário a nossa “porquinha” vai deambular pelas montanhas durante 10 anos, comer o pasto e tornar-se a companheira inseparável da pequena Mija (Ahn Seo-hyun), neta do fazendeiro. E, neste panorama bucólico, vemos Mija e a sua gigantesca amiga passeando de cá para lá, sob o olhar protector do avô (Byun Hee-bong). No entanto, fica claro desde o início, a realidade vai entrar em cena e, quando entra, magoa. Okja é uma espécie de E.T., mas mais boçal e, imaginando que o E.T. tinha corrido o risco de se tornar num produto para consumo alimentar das massas. Este filme fala-nos da perda da inocência, mas mais importante do que isso, fala-nos sobre o valor da inocência. A força do filme de Bong está na pureza do espírito de Mija, que pode servir de lição para muitos de nós (especialmente para os consumidores de carne). Okja é, evidentemente, um ícone—os espectadores já sabem isso antes de lhe terem visto o focinhito. É um símbolo que representa todos os animais criados em quintas industriais, onde acontecem as maiores desumanidades, decorrentes da produção em massa e do comércio global. Mas o amor que Mija sente por ela não é superficial, nem se apaga facilmente. Mesmo a multinacional que a fabricou compreende o valor comercial deste afecto—e é por isso que Lucy tenta apresentar Okja como um animal doméstico, igual aos outros, de modo a que clientela não tenha medo de fritar o seu toucinho geneticamente modificado para o pequeno almoço. Okja é o primeiro filme de Bong Joon-ho a participar num dos mais importantes Festivais de Cinema europeus. Bong não foi “acarinhado” pelo júri do Festival porque os seus filmes são considerados “comerciais”: o que ele faz é para ser visto e apreciado por grandes audiências. Inicialmente Okja não foi aceite para concorrer à Palma d’Ouro. Depois, Okja foi exibido na Netflix e acusado de ter um “problema de identidade”. Tudo isto não passa de um sintoma do eterno conflito entre a liberdade criativa e os diversos poderes instalados. bit.ly/2qVaKpf
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasRicardo Ben-Oliel (Contista que vive há 40 anos em Israel” Ricardo Ben-Oliel [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]icardo Ben-Oliel é aquilo a que podemos chamar de um autor tardio. Se não na escrita, pelo menos na publicação. Em 2013, e já com mais de sessenta anos, publica na Abysmo o seu primeiro livro, um conjunto de contos intitulado Silêncio. Com formação em direito e muitos anos de estudo de música e piano, aos vinte e oito anos de idade muda-se de vez para Israel onde passa a viver e a exercer o cargo de professor universitário de direito, até aos dias de hoje. A sua escrita está impregnada do lugar onde habita, contrariamente a muitos escritores emigrados ou exilados, que tantas vezes escrevem tão-somente acerca de onde vieram e não acerca de onde estão. Não se veja, contudo, nesta minha afirmação uma qualquer crítica velada, mas tão somente uma constatação, até porque não sabemos o que seja melhor para aquele que escreve e para o leitor, se uma escrita acerca da prisão de onde se fugiu ou uma escrita acerca da prisão a onde se chegou. Assim, Ricardo Ben-Oliel neste seu segundo livro – O Quarto Trancado Onde Nem A Morte Entrava – e apesar de ter dois contos, os primeiros, que são passados em Portugal, remete-nos para um livro tão não-Ocidental como o seu primeiro livro, Silêncio, onde se lia à página 26: “Muito gosto eu dessas largas avenidas que há pelas capitais europeias. Sobretudo numa manhã límpida e azul. // A vida parece tornar-se, aí, mais fácil e leve. Prometedora. Alegre. São as esplanadas, os arvoredos, as largas montras envidraçadas a oferecerem um quase-tudo. Há um luxo disseminado, uma conjugação de esforços a criar um cenário optimista, uma risonha mentira consensual.” Trata-se efectivamente de uma visão de alguém que vem de fora da Europa, da calma e segura Europa das últimas décadas, das décadas do pós-guerra. E tal como algumas funções da vida nos ficam coladas à pele, como escreve o autor logo na segunda página do primeiro conto deste livro – “Era ele o magistrado-mor. Ou melhor, fora-o durante o tempo de uma vida; e quando tal acontece, é sabido que a função fica colada à pele como a crosta de uma insarável ferida.” – também um país ou uma zona geográfica nos fica colada à pele, quando aí vivemos mais de quarenta anos, como é o caso de Ricardo Ben-Oliel em Israel, nesse singular país, nessa singular região do planeta Terra. Quem tem a experiência de viver anos fora da Europa, em continentes e em países onde a violência faz parte da paisagem, não pode deixar de se sentir em casa ao ler estes contos. Aqueles que vivem o seu quotidiano sem tiros, sem sangue na rua, ou a sua possibilidade a cada instante, podem chegar a estes contos com alguma desconfiança. Não pelas descrições de violência, que as não tem, mas, por um lado, pelo ambiente contínuo de preocupação que se faz sentir nestes relatos e, por outro, pela omnipresença de um passado recente de dor, de fim do mundo que une as pessoas retratadas. Estas contínuas preocupação e memória colectiva da vivência ou iminência do fim do mundo percorrem todos os contos deste livro. Mas veja-se este exemplo no último conto do livro, já nas suas últimas páginas, e a que voltaremos mais tarde: “Uma mina, e o jipe que saltou. E com ele Yair, pai. Como é possível, ainda há dias, e na semana passada, e no último Verão, e quando há uns anos fomos os três a Varsóvia, a Auschwitz, depois a marcha a Birkenau…” Posso afirmar mais: a iminência do fim do mundo percorre todos os contos deste escritor, que até agora tem apenas dois livros publicados, contando já com este que aqui nos traz. Assim como também a precisão e a beleza da linguagem, aqui acerca de um vilarejo no Alentejo: “O vilar era um desses à maneira de pueblo blanco, onde as calçadas angustas serpeiam, libidinosas, por entre o casario. Baixo e acotovelado. Quase até ao castelo. Este, recortado como um brinquedo, pleno de infantil altivez, vinha do tempo em que os reis eram todos Sanchos e Afonsos. Mas, quando olhado de perto, já o mesmo parecia acanhar-se do seu pano de muralhas remendado, das ameias por terra esquecidas.” Aqui, e apesar de em um vilarejo alentejano, o assunto é algo tão universal e intemporal quanto é o humano: “Estirado na sua enxerga, as mãos sob a nuca, deleitava-se o velho magistrado com a quietação em redor, enquanto para si repetia, com sentido júbilo, já nada ter a ver com o vulgar mundo em que se sua e labuta. Finalmente, dava corpo ao grande sonho da sua vida. Que era pará-la, sustê-la, a ela e à morte também. // Conseguira quanto almejara. O gozo da imobilidade. A paragem no tempo.” As fronteiras que limitam a escrita deste autor, e que podemos ler logo de início no primeiro conto, são estas: um olhar de além-Ocidente e inquietações bíblicas. O território que é limitado por estas fronteiras mostra-nos uma linguagem precisa e bela como raramente se encontra em nossa língua. Leia-se, por exemplo, e logo nas primeiras páginas do livro, para além do já aqui transcrito: “Em baixo, para sul, uma lasca de rio verde-lodo, por onde, assim se dizia, coleavam, incessantes, as cobras-d’água.” ou “Num repente, assustou-se. Eram estilhaços a embater na pequena ventã. Uma chusma deles. Incessantemente. Uns tantos caíam inertes à altura do parapeito; outros aí se quedavam revirados, de patas no ar, num último esforço. Saltões. Os gafanhotos. De novo a morte, disse para consigo. Passou a espiá-los. Com o escoar dos dias, a ressequirem mais e mais.” Ou ainda: “Ficou-se a ouvir o zunido do vento suão. Era um silvo que crescia e recuava, que ganhava fôlego, e que o perdia, que se esgueirava pelas ruelas do povoado, para logo trepar montes e espraiar-se pela planície longa. Mas que voltava, como o respiro de um fogoso gigante a vogar no espaço. Vento fugido. Vento cigano.” e ainda mais esta “Comprara-o no mercado quinzenal. De caule franzino, folhas parcas, raiz bebé. Um pé de limoeiro. Vieram plantá-lo ao fundo do quintal. Mas mal começaram a rasgar a terra, logo deram com objetos duros e estranhos. Envoltos em terra mais que ressequida. Resquícios soltos, uma mandíbula, ainda uma outra, uma tíbia, logo uns fanecos de vasilhame. Ficou uma tarecada dispersa pelos cantos, aos montículos.” Muitos são também os momentos em que a metafísica se levanta, como já vimos anteriormente, mas veja-se mais um exemplo em que a linguagem para além da beleza e da precisão, levanta os pés do chão. Veja-se, e ainda nas primeiras três páginas: “Havia muito que a morte o intrigava. Que o atormentava até. Sobretudo pelo mutismo que se lhe segue. Qual o enigma por detrás daquela insondável, provocante quietude, tão próxima e tão remota, qual a razão para logo tudo se silenciar? Era quanto o alto magistrado inquiria em momentos de maior cogitação, que os tinha. O “após” sempre fora para ele o grande mistério, sobretudo depois que um dia…” Tudo é uma verdadeira relíquia. E não só pela linguagem, mas também pelo mundo que se abre diante de nós daquilo que fomos, ainda não há tanto tempo atrás, pois desde o tempo em que o conto nos mete até agora, passou-se não mais do que uma mão de décadas. E veja-se esta maravilha, onde a metafísica se torna bela só para se rir de nós, humanos: “Seguiu-se a audiência, quem lá estava era a Laldinha, em tempos rica de curvas, quem diria ser a mesma quando ao peito já só trazia penduradas como que duas alforrecas dadas à costa, veja-se no que a natureza dá volvidas as idades (…)”. No segundo conto, Sorrindo ao Cristo-Rei ou Simplesmente Perversa, a precisão e beleza da linguagem não nos abandona. Quase de início deparamo-nos com este curto parágrafo: “Passeamos junto ao rio, que ondula molemente. Súbito, é um sol de Agosto que se liberta de umas nuvens vagabundas e que nos ataca, esbraseado, impiedoso.” E estamos no meio de um passeio com um homem e uma mulher, o narrador Leo Blaustein, e Dafna. Um passeio de domingo ao Cristo-Rei. E o logo de seguida “Temos duas esplanadas à escolha. Uma lá mais ao fundo, de onde vem um intolerável banzé electrónico (…)”, mostra-nos claramente já não tratar-se de um outro tempo, como no conto anterior, mas deste nosso tempo de barulho ensurdecedor. Este conto corta-nos a direito. O modo como o narrador nos mostra o humano nas suas actividades de lazer, hoje, e ao mesmo tempo ligando-as sempre a uma ontologia, e como tal de sempre, é magistral. Leia-se as seguintes passagens: “Decorridos uns momentos, há um casal de jovens que se aproxima, a quebrar o letargo envolvente. Sentam-se diante de nós. Ela, elegante nos seus jeans, coçados à moda, e de uma deslumbrante cabeleira fulva; ele, atrapalhado na vestimenta, cabelos na vertical, olhos protuberantes e mortiços à Homer Jay Simpson.” Saltando um parágrafo, o narrador massacra-nos com aquilo que tantas vezes acontece na vida e só quem está a viver esse acontecimento não vê: “Então é o jovem quem, depois de fotografar o cenário, desata a disparar a máquina sobre a companheira – um clique, e mais outro, outro ainda, depois um último, já de muito perto – enquanto ela volteia instantemente os já desgrenhados cabelos áureos. Depois, é-lhe encontrada a mão. Porém, não obstante os carinhos, era notório o cunho de efemeridade que emanava daquela ralação, esteticamente tão díspar.” O autor sempre a lembrar-nos que a vida só a sabe quem a não vive. Só aquele que a observa pode julgar e saber convenientemente, ou mais aproximado da verdade humana, aquilo que acontece. Nunca aquele que vive. Nunca se sabe o que se vive. Há ao longo de todo este conto uma espécie de “Mil e Uma Noites”, e aqui então a narrativa retrocede no tempo, não como entretenimento do sultão, mas como artifício de pôr o outro a escutar a sua história. O artificio é simples, o mesmo usado na sedução, fazer parecer que vai beijar, contar, mas adiar continuamente o beijo e derramar a história um pouco mais para diante, ao ponto de Dafna chegar a perguntar-lhe directamente: “Mas diz-me uma coisa, Leo: será que, de facto, tencionas responder à minha pergunta, ou apenas entreter-me com mais uma das tuas histórias?” Este beijo que Dafna tanto espera, a resposta à sua pergunta logo no início do conto – “Importas-te de me esclarecer o porquê desse teu sorriso?” – será tão mais adiada quanto a maestria do contador. Assim, e tal como Sherazade vai adiando a sua morte, ao contar histórias ao sultão, também Leo vai adiando a resposta na certeza de com isso ter toda a atenção de Dafna, que é também um modo de adiamento da morte. Porque todos precisamos de contar a nossa história àqueles de quem gostamos. Porque narrar não é apenas uma necessidade; narrar é fazer viver o vivido, fazer-nos viver de novo. Quem não narra não ressuscita.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasMosteiro de Santa Maria de Pombeiro Órgão de tubos do volta a fazer-se ouvir após mais de 200 anos de silêncio [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o dia 25 de Maio de 2017, após mais de 200 anos de inactividade, o órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, em Felgueiras, no distrito do Porto, em Portugal, voltou a fazer-se ouvir, ecoando os sons celestiais da Avé Maria de Bach/ Gounod, dando início ao 4.o Fórum Internacional do Património Arquitectónico Portugal/ Brasil. O restauro do instrumento representou um investimento de 255.000 euros, co-financiado em 80% pelo ON.2 – O Novo Norte (Programa Operacional Regional do Norte) e pelo Quadro de Referência Estratégica Nacional, através do Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, e em 20% pelo Município de Felgueiras. A obra de restauro foi executada pelo consórcio luso-espanhol Acitores-Samthiago, constituído pelas empresas Atelier Samthiago Conservação e Restauro (Viana do Castelo) e Taller de Organería Acitores de Torquemada (Palencia), também responsável pela recuperação recente dos dois órgãos da Igreja dos Clérigos, no Porto, um dos mais importantes conjuntos de órgãos gémeos da Península Ibérica, e do órgão de tubos da Igreja Matriz de Torre de Moncorvo. Destaca-se a cooperação que este consórcio vem desenvolvendo deste 2010 no âmbito da restauração patrimonial e em concreto na protecção e conservação de órgãos de tubos, que para além dos citados, incluem ainda os restauros do órgão da igreja de San Martín de Valdeiglesias em Madrid e do órgão da ermida de Nuestra Señora en Tiedra (Valladolid), e ainda do órgão do Convento de San Quirce de Valladolid, em Espanha. O órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, datado de 1766, é obra do organeiro galego radicado em Portugal, Dom Francisco António Solla, facto comprovado por uma inscrição existente no interior do instrumento. Este organeiro representa a ligação mais paradigmática da vinculação da organeria galaico-portuguesa, que se integra na definição genérica de “órgão ibérico”. O autor das caixas – em talha dourada e fundos policromados imitando mármores, de estilo barroco ibérico com elementos das escolas galega, castelhana e portuguesa – encontra-se por determinar mas, possivelmente, será o escultor beneditino Frei José de Santo António Ferreira Vilaça, artista polifacetado e autor de numerosas obras de arquitectura, escultura, talha, mobiliário, pintura, estuque e ferro forjado, incluindo a decoração da igreja do Mosteiro de Pombeiros. O instrumento está localizado no coro alto da igreja, do lado do Evangelho. Do lado da Epístola, na procura de simetria e por razões estéticas, foi colocado um outro semelhante, mas falso ou mudo. O órgão, após mais de dois séculos de inactividade, apresentava-se em muito mau estado de conservação, para o qual contribuíram, em grande parte, as Invasões Francesas em Portugal e, logo a seguir, a extinção das ordens religiosas, em 1834, na sequência da qual o coro alto e o respectivo espólio integrado entraram, progressivamente, em ruína. Em 1930 deu-se o roubo da canaria dos órgãos. Em 1994, no contexto da recuperação do Mosteiro, o órgão foi alvo de uma intervenção ao nível do suporte e do revestimento cromático. Posteriormente, todas as peças constituintes da máquina, bem como alguns elementos com talha pertencentes à caixa, foram desmontados por uma empresa da especialidade, tendo então sido feito um inventário e um levantamento rigoroso das existências. No âmbito da presente recuperação, o estudo dos elementos do instrumento, cuja construção está documentada nos Estados de Pombeiro, relatórios trienais elaborados pelos respectivos Abades, relativos ao triénio de 1764-1767, permitiu conhecer a autoria e a composição de registos e comprovar que, apesar da deterioração, se conservavam elementos mecânicos. Procedeu-se ao estudo minucioso de outros órgãos do autor para replicar a tubagem segundo os mesmos parâmetros de construção, e procedeu-se a uma análise exaustiva do material dos escassos tubos preservados. Tudo isto, em conjunto com a harmonização posterior, permitiu recuperar não apenas a sua materialidade mas também a sua particular sonoridade, que em última instância é o elemento patrimonial mais importante a conservar no restauro de um órgão. O Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro está incluído no projecto turístico-cultural Rota do Românico, gerido pela Associação de Municípios do Vale do Sousa (VALSOUSA). Este projecto está ancorado num conjunto de 58 monumentos de grande valor e de excepcionais particularidades. Esta Rota pretende assumir um papel de excelência no âmbito do turismo cultural e paisagístico, capaz de posicionar a região como um destino de referência do românico, estilo arquitectónico que perdurou entre os séculos XI e XIV. A Direcção-Geral de Cultura do Norte, organismo que tutela o Mosteiro de Pombeiro, considera que as igrejas podem também desempenhar um papel cada vez mais reforçado no domínio da activação cultural da região, estando-se a fazer, por toda a região norte, um grande esforço e revitalização de órgãos de tubos em várias estruturas patrimoniais, desde Trás-os-Montes ao Minho, passando pelo Douro Litoral. Este esforço vai permitir criar pequenos ou grandes circuitos de concertos mediante as especificidades de cada tipo de órgão, sendo possível, desta maneira, uma rentabilização de recursos financeiros e de um conjunto de músicos que possam vir, por exemplo, de Itália, França, Alemanha, ou mesmo portugueses, e um enriquecimento cultural da oferta de toda a região. Este importante restauro, um anseio antigo dos felgueirenses, vem ainda valorizar a magnífica igreja monástica do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro, sem dúvida, um dos mais importantes edifícios religiosos de Portugal, testemunha de desvairados gostos e variados estilos desde o período medieval, românico-gótico ao barroco. A igreja de Pombeiro pode mesmo classificar-se como a jóia da arte de Fr. José de Santo António Ferreira Vilaça – “das obras que tenho feito, a milhor” – como ele próprio diz. A inauguração da recuperação do órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro marca o culminar de uma importante etapa de projectos de recuperação patrimonial e colaboração institucional realizados entre a Associação de Municípios de Vale do Sousa e a Direcção Regional de Cultura do Norte. Com este investimento foi possível devolver à região uma peça sem igual no panorama cultural e patrimonial, que irá permitir ao Mosteiro desenvolver com regularidade a organização de concertos e até integrar ciclos de música sacra da grande região do Porto. O projecto de recuperação do órgão de tubos do Mosteiro de Santa Maria de Pombeiro foi um dos oito finalistas do Prémio Internacional AR&PA (Bienal de Restauração e Gestão do Património) de Intervenção no Património Cultural, em Espanha, em Novembro de 2016.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasA ressurreição da rosa [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz a lenda que rosas nascidas no Inverno são prenúncio de mau agouro. Talvez por isso a exclamação do rei não tenha sido de desconfiança mas de receio, de súbita apreensão, nesta altura ainda ele plantava uma nação feita de baldios por todas as áreas recentemente conquistadas e a cavalo conhecia bem o país e dele tirava amplas vantagens de generosos acolhimentos. As rosas são comestíveis e não há mesmo sinal de mesquinhez por parte de tão gentil rei. Distantes andamos contudo desses tempos mas, neste tão lustroso em que temos a maior honra de viver, outrora como agora tive a mesma interrogação em pleno Inverno: rosas em Janeiro? Mudei logo e pensei: o mundo é um grande país e as rosas florescem em qualquer Estação, os anos são convenções de medida para o Tempo – o nosso tempo Alfa, do mandatário, do coronário, dos órgãos gigantes em pequenos tufos de carne e esqueleto que já sabe que vamos morrer ou somos mortais por eles, por causa deles, e que seria bom para já uma Humanidade a pilhas, mudadas a cada Glaciar. A terna noção de “estufa” foi rompida como sabem. Hoje a temperatura, as condições, são fórmulas absolutamente radicais, neve-fogo, ventos-calmarias, abrasa-gela… Um pontapé sem precedentes na nossa secular vida bucólica dos queridos tempos de antanho. Penso que o local que se mantém muito igual a si mesmo desde o tempo em que Deus lá nasceu é mesmo o deserto, tendo levado, claro está, o rombo da gigantesca pegada, mas mais em altura do que em largura… a sua robustez pode ainda ser considerada como a manutenção de uma ordem e por ela nasce o ser eterno que é a Rosa de Jericó. Ela, porém, não é a rosa efémera procurando o instante, a colorida e elegante menina dos olhos em botão, a enjeitada; ela é a eterna, a robusta, a densa, a mais complexa, a vertiginosa evidência de que tocamos numa outra “plantação”. Ela tem o dom de fechar, secar e morrer, e mesmo nas escaldantes areias se lhe tocamos morta, ela está fria não passando de uma ressequida imagem de um esqueleto, mas podemos voltar e ela já não estar por lá, levada pelos ventos. Sem dúvida, foi-se para ressuscitar mais para além. Ao primeiro dia ela rola, ao segundo sai do sepulcro e ao terceiro torna-se verde. Esta rosa não é unida à Estação. Assim, basta-lhe condições propícias da ordem dos bons ventos e de contacto imediato com pequenas concentrações de água, para o sucedido. Por aqui as rosas já tinham de novo nascido na estação delas, mas as do Inverno estavam intactas na sua lei fatal, não querendo falar na estrutura linguística das “inverdades” como sinal abrupto de Leviatã, nem em “inveracidades” da ordem do probabilístico, pois está provado que o que está certo são sempre as contas pequenas. Sabemos, no entanto, que na catástrofe só enumeramos números grandes, a rapidez é grandiosa e quase sempre rica em génio arrasador, pois que “tomar gosto a” não é um efeito fúria mesmo que se possa ser viciado em desportos radicais “tomar gosto” é uma educação pelo gosto, onde há pilares de benfeitoria que atenuam o risco do impacto. Dir-se-ia que é um aprendizado de amor, se os instintos e a sensibilidade são espontâneos, naturais, por vezes deliciosamente fortes e até brutais, épicos, já o amor fica longe de tudo isto e por ser tão diferente é preciosa uma educação de forma a não corromper a sua designação. E no distrito do rei das rosas passou um fogo devorador, anunciado já pelas minhas próprias rosas, que forças desceriam na equação simples de um numeral consequente na ordem da manifestação de três para três. É aqui que perdemos o livre arbítrio e jamais na terra de ninguém onde toda a razão nos pertence – pensei muito no rei – no rei das rosas que semeou pinhais e namorou gentilmente por ali e fez sementeiras de filhos, que namorava em nichos escondidos nas florestas. Se lhe ardesse o seu pinhal que ele não viu crescer à distância de cem anos, se não foi excessivo visionarismo, se o visse arder em sonhos, se os sonhos ardem… enfim, pensei nele como nas rosas para não ter a doente propagação de um coro de outros condenados. A rosa é ,no entanto, «sem porquê»… a rosa é sem porquê: floresce porque floresce, não cuida de si própria, não pergunta se a vemos. Ângelus Silesius, na sua bem conhecida obra de aforismos, qual novo florilégio, o jansenista teólogo que no instante das grandes lutas religiosas se manteve em relativa paz com os luteranos da sua cidade – ele o era de origem -, teve esta metáfora fundadora da Rosa como místico e como teólogo. Os dísticos são belos e descrevem uma profunda raiz do pensamento Ocidental como síntese de uma abordagem. Tanto de ressequido tem a terra que habitamos que mesmo agora gostaríamos de dizer como Silesius : “Gosto de ouvir as trombetas. O meu corpo, ao seu clamor, de sob a terra despertará e voltará a ser meu“. A Rosa de Jericó! Ouve-se cantar pela zona do impacto melodias nada agrárias que o dinheiro que salva é o mesmo que mata e o dinheiro arde se for todo em papel e não houver mais rosas, nem ouro que o funda numa outra riqueza que também já não vem nos mapas pois que foi ele o cúmplice e combustível por onde a fornalha se agiganta. “ Amigo, onde quer que estejas, não te deixes lá ficar, é preciso incessantemente partir de luz em luz.” Os que partiram já não estão aqui, como é óbvio, os que ficaram estão no mesmo sítio onde a luz não penetra por entre a negra folhagem, não há comunicação alquímica com a haste, aquele segredo que lhe diz.. .cresce, cresce… preside ao estrondo o ruído, aceleram-se os requerimentos, armazenam-se mantimentos. Investiga-se quem tem o desplante na imprensa estrangeira inventar boatos falsos acerca da orquestração territorial, e, amealham-se víveres que bem poderão servir para outra imponderabilidade. Faltam duas. Isto se não nascerem mais rosas em Janeiro.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Seminário-Liceu de Macau [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] instituição de ensino secundário Liceu foi criada em Portugal no reinado de D. Maria II pelo então ministro Passos Manuel, em Novembro de 1836. Resolução para colmatar a lacuna existente nos cursos secundários, anteriormente quase exclusivamente ministrados pelas Ordens e Congregações Religiosas, mas extintas em Portugal por decreto de 28 de Maio de 1834 de Joaquim António de Aguiar e em Macau, só a 19 de Setembro de 1835. Repetia-se o que se passara por ordem do Marquês do Pombal com a expulsão da Companhia de Jesus, efectivada em Macau no ano de 1762 e que veio fechar os estabelecimentos jesuítas como a Universidade, no Colégio de S. Paulo e o Seminário de S. José, fundado em 1728 e onde funcionava o ensino primário e secundário. D. Frei Alexandre de Gouvea, eleito Bispo de Pequim e sagrado em Lisboa a 7 de Fevereiro de 1783, veio para Macau e ao passar por Goa visitou o Seminário de Chorão, então regido pelos lazaristas, onde convidou dois padres da Congregação da Missão para irem dirigir o Seminário de S. José em Macau, ficando este assim restabelecido em 1784 e confiado aos lazaristas como Colégio de S. José. No advento do Liberalismo, os lazaristas aderiram ao constitucionalismo, mas este movimento em 23 de Setembro de 1823 foi substituído pelo conservador Conselho de Governo, presidido pelo Bispo de Macau, Frei Chacim e os lazaristas protestaram, sendo presos em 4 de Outubro três professores do Colégio de S. José. Joaquim Afonso Gonçalves e Luís Álvares Gonzaga fugiram para Manila, regressando poucos anos depois, talvez em 1825, onde continuaram a leccionar como seculares no Real Colégio de S. José (o antigo Seminário), que agora tinha na direcção o Padre Nicolau Rodrigues Borja. O Colégio voltou a funcionar, mas sem a regularidade anterior, contando com novos padres vindos de Portugal. Por aí passou Jerónimo José da Mata, primeiro, em 1826 como aluno, onde terminou os seus estudos e nos anos trinta do século XIX como professor. Eram as “grandes reformas do Liberalismo, com a introdução de órgãos mais especializados de supervisão do ensino. Início do ensino secundário, público e privado, em Macau”, segundo Aureliano Barata que adita, “O Seminário de S. José foi suspenso em 1845, sendo os seus alunos distribuídos pelos diferentes vicariatos da Congregação da Missão de S. Vicente de Paulo ou lazaristas, na China. No Colégio apenas ficou o Padre Joaquim Leite, que continuou a ensinar Latim, vindo a falecer em 1854. O Colégio de S. José reabriu em 6 de Janeiro de 1857, existindo também aí a instrução primária, que a 3 de Novembro de 1858 o Governador Isidoro Guimarães propôs reunir com a Escola Principal de Instrução Primária, o que não foi aceite. Já a Nova Escola Macaense, idealizada pelo Barão de Cercal, António Alexandrino de Melo e inaugurada a 5 de Janeiro de 1862, contou com três professores contratados na Metrópole, mas, ao terminarem os contratos feitos por seis anos, fechou em 21 de Outubro de 1867. Já como Bispo de Macau, D. Jerónimo José da Mata ao encontrar no Colégio de S. José apenas um aluno interno e outros oito ou nove externos, em 1862 pediu para voltar este estabelecimento de ensino a receber professores jesuítas, pois em 1814 o Papa Pio VII reabilitara a Companhia de Jesus. Chegaram os padres Francisco Xavier Rôndina e José Joaquim da Fonseca Matos a Macau e em dez anos, com um “escolhido corpo docente” transformaram o Seminário numa das melhores e exemplares escolas de toda a Ásia. Atraídos por bons professores de diversas nacionalidades, a afluência de alunos era grande, apesar de a maioria não fazer intenção de seguir a vida sacerdotal e assim, quando terminaram o curso, muitos ocuparam lugares de destaque na Administração. Em Macau, o ensino secundário oficial surgiu em 1870, integrado no Seminário de S. José, segundo Aureliano Barata, referindo que no ano seguinte os missionários estrangeiros daqui foram expulsos. Tal criou graves problemas no funcionamento, pois no Seminário “funcionava não só o ensino liceal mas também uma escola comercial, onde estudavam, nomeadamente, os portugueses de Macau. Esta situação despoletou a comunidade macaense a constituir a Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (APIM), liderada por homens afazendados de Macau e Hong Kong”. O Seminário-Liceu e a Escola Comercial Sete anos após a fundação da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses (A.P.I.M.), tempo necessário para encontrar professores, em 8 de Janeiro de 1878 foi criada a Escola Comercial, que funcionava no edifício do Seminário de S. José, na Colina de Santo Agostinho. Pedro Nolasco da Silva assumiu o cargo de Director e em 1881 também o de Presidente da Associação. Na Escola Comercial havia a Classe Elementar, onde se ensinava Português, Geografia, Aritmética, Catecismo e Inglês e a Classe Superior, com Português, História e Geografia, Inglês, Aritmética, Álgebra, Escrituração Comercial, havendo ainda língua chinesa escrita e falada, Caligrafia e duas vezes por semana rudimentos de ciências naturais. Para se perceber a eficácia da Escola Comercial, o jornal O Independente de 13 de Fevereiro de 1886 refere: “Ninguém duvida que a causa da instrução pública em Macau ganhou muito, imenso, com a fundação da Associação Promotora da Instrução dos Macaenses e com a sua Escola Comercial. Preparar a mocidade para a única carreira profissional que a habilitasse a ganhar a vida nos escritórios estrangeiros e nacionais, em Hong Kong, em Xangai, nos diversos portos do tratado do Japão, ou mesmo em Singapura e na Austrália, era sem dúvida uma missão digna de patriotas e de pais de família.” Este grande elogio à importância da Escola Comercial e à APIM aconteceu após formados os primeiros alunos do curso e logo terem conseguido emprego em Macau e nos escritórios no estrangeiro, mas também já se sabia do convénio assinado em Junho de 1885, entre Pedro Nolasco da Silva, como presidente da APIM e o Bispo da Diocese de Macau, José Manuel Carvalho, que estipulava serem as aulas da Escola Comercial dadas nas salas do Seminário de S. José, o que veio a acontecer durante dezasseis anos, até 1901. Por Decreto de 22 de Dezembro de 1881 os estudos do Seminário de S. José foram reorganizados e com o nome de Seminário-Liceu de S. José de Macau passou a ter também o ensino comercial, mantendo-se aí a serem leccionadas a cadeira de Náutica e as aulas da Escola Comercial. Aureliano Barata refere: “Desta forma, passaram a existir em Macau duas escolas comerciais”. A APIM tomou então a iniciativa de fundir a sua Escola Comercial com a já existente no Seminário-Liceu de S. José. O Macaense de 1891 refere existirem quase todas as cadeiras de instrução secundária, mas dispersas, sem nexo entre elas; o que se precisa é reuni-las e formar um curso. Percebe-se ter fracassado a reforma do ensino secundário no Seminário-Liceu de S. José e para colmatar tal falha, por Carta Régia de 27 de Julho de 1893 voltou o Ensino a ser organizado, com a criação do Liceu Nacional de Macau.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasUma praça cheia de gente [dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á uma desproporção entre a configuração anatómica do ser humano e o que somos. Despertamos sensações uns nos outros pela nossa aparência. Podemos nem sempre percebê-lo. Podemos passar despercebidos uns pelos outros. Mas não me estou a referir a impressões que causamos uns aos outros. Estados em que nos deixamos uns aos outros. Estou a referir-me a uma outra forma de desproporção. Numa praça cheia de gente, a praça é o local onde as pessoas se encontram. É um sítio que alberga todas elas. Mas ali há tantas praças quantas as pessoas que lá se encontram. No mínimo. Mas é muito difícil de perceber porque fazemos caber cada pessoa: bebé, criança, jovem, adulto, velho, homem ou mulher nas fronteiras compactas do seu corpo, no interior da sua anatomia. Há tantos seres humanos quantos os corpos que lá estiverem. Sim. É verdade. É inegável. Mas a lotação pode estar esgotada e tocamos uns nos outros, desviamo-nos uns dos outros, deixamo-nos passar uns aos outros. Estamos a ir à casa de banho ou ao bar, a entrar ou a sair e não apenas de sítios mas vamos às nossas vidas, como viemos das nossas vidas. Como poderíamos nós vir de outro tempo e ir para outro tempo que não os das nossas vidas? Não estamos nas nossas anatomias apenas espacialmente. Estamos sempre fora: de casa para o trabalho, a ir para onde vamos e a regressar. Estamos sempre a ir, como se ser fosse ir e com efeito a ter de ir. Mas estamos sempre distendidos entre o quando saímos de casa para vir até aqui ou ir onde vamos e o quando regressarmos. Sair e chegar, partir e regressar não são fronteiras estanques. Desde sempre estamos a sair: quando foi a primeira vez de todas as primeiras vezes e havermos de ter uma última vez de todas as vezes. E podemos já nem sair, nem partir, podemos só estar. Quando partimos só já estamos, e talvez nem seja assim. Nos sonhos dos moribundos tal como nos sonhos das crianças estão a ser inventadas vidas já vividas ou por viver. A vida distende-se e faz-se mesmo no interior estanque de onde não vem já sorriso nem queixume. Às vezes uma lágrima mas que pode ser do sebo da carne no quarto de hospital. Na praça apinhada de gente, estão troços de vidas, uns mais longos do que outros, uns com rumo e tempo outros sem rumo nem tempo. Mas nada do que está ali está ali. O trânsito humano numa praça: um aeroporto, um igreja, uma praia, uma esplanada ou a Praça do Comércio não existem primeiramente geograficamente, mas como encruzilhada onde nada está parado e tudo é escoado e se precipita para não se sabe bem onde. Há uma desproporção entre o que achamos ser uma vida humana e o seu corpo. E sim: o corpo é o órgão do tempo. Mas o corpo não é estanque e aponta também para o tempo. E vibra em nós o tempo no corpo, quando o forma e definha. Mas não é só assim que a vida e o tempo fazem corpo com a sua anatomia. Não somos sem pai nem mãe, nem antepassados nem descendentes, nem sem amigos, namoradas. Encontramo-nos no corpo uns dos outros e desencontramo-nos de nós por não nos encontramos no corpo uns dos outros. E encontramo-nos sem ser só no toque. Pode ser no olhar, no cheiro e quando nos escutamos. É difícil conhecermos o tom de cada pessoa, quando não a conhecemos. Mas cada um forma essa possibilidade. Eu, por exemplo, sou lá uma multidão de gente. Não apenas os meus que até posso esquecer, mas os outros mais ou menos afastados. Pode ser uma nação, quando vivemos nesse país, pode ser uma única pessoa que está a dar o mote à cadência vibrante da chegada ou da partida. Numa praça de gente estão muitos destinos, muitas cadências vibrantes, cada pessoa entroncada com os seus destinos, o tempo que houve e o que há-de haver, com e sem esperança. Não está nunca simplesmente onde está. Não está primariamente onde está. Está onde não está. Coisa estranha.
Anabela Canas h | Artes, Letras e Ideias Iluminação ArtificialA curva e o foco [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] fascínio da geometria – volto a ele – e das suas formas e superfícies regradas. Puras. Os sólidos de revolução, fantasias intelectuais perfeitas e de vida expectável. Como quereria a linguagem. Qualquer linguagem. Mas de abstracções não se tece a vida nem urde a existência. Hiperbólica, metafórica, saturada de figuras, de uma retórica que é paradigma ou pura ilusão. Da hipérbole, dois ramos, numa curvatura que resulta do corte de duas superfícies cónicas por um plano. Sabe-se-lhe a intensão do plano, sabe-se-lhe o foco. Como noutras curvas. Pontos externos e de misterioso domínio sobre a expectativa da curvatura obtida. Como essências que determinam subterraneamente uma forma existencial. Sem deixarem de ser elementares, ínfimos e fundamentais. Invisíveis geradores. E as linhas, geratrizes de revolução. Nas superfícies. Fico extática perante o poder metafórico da geometria. E o quanto de existencial, na geometria possível do ser enquanto tal, se rebela de uma estrutura que é definição e orientação a uma coerência confortável. Mas tão desnorteada. E que não é rígida só porque existe. Existe na sua perfeição utópica. Às vezes, na vida. E depois, essa oscilação pendular entre a corrosiva e imparável teatralização do sentir, que torna cada um tão fingidor como o poeta e tão dorido como ele, e a compulsão da verdade como se ela existisse. E um dia. Um dia de chofre. Uma luz cortante. E o paradigma dissolve-se no ar como um leve bouquet de feromonas em fuga, até não restar senão memória de um perfume. Uma verdade sempre acarinhada como antro de um bem maior e que se revela perversa, inóspita. Traindo a disposição dos focos, dessas curvaturas duplas em ramos estilizados, de uma árvore que deixa de ser construção e vida para ser demolidora. A competir com o ar respirável. Morreu. A verdade morreu. De saturação e excessos existenciais. De precipitação. Dela sobrevive-se com a prescrição dos maiores cuidados de futuro. De presente. Mas como uma doença crónica, como um alcoolismo, fica latente para sempre e para sempre a requerer cuidados. À espreita, enganosa e divergente como só ela. Emoção, o terror a evitar, o perigo abismal, a selvajaria incontrolada, como curva em crescente, gerada num foco íntimo e distante. Como uma oxidação que corrói para dentro a pureza de um metal. Uma ferrugem a lapidar até á raiz do corpo onde reside a essência mascarada de castanhos ferrosos. Verdades múltiplas e disparadas como armas mortíferas. Químicos de fórmula desadequada. O que não cura, pode matar. Um espelho. Que se segura contra um rosto, como uma lente a ferir de sol uma haste seca. Até incendiar. Eu às vezes sinto a embriaguez enorme e arrepiante de palavras com as vísceras em fogo, de líquidos derramados em páginas como lava fresca de vulcão extinto de imediato ou mesmo antes e são bolas porosas e de cores extravagantes que rolam página abaixo e se esvaem nas margens. Ou para além delas. Tão para além que não voltam. Não adianta perscrutar os outros dias das palavras poéticas, porque em muito se furtam a um retorno a que o tempo invalida a costura. Emoções de um tempo preciso. Ou porque não eram as minhas vísceras, o meu tempo ou a minha ferida que ali se abria. Era. Era a ferida como se ressonância por simpatia. Como se telecomandada a partir de uma origem, como corpo a abrir ao primeiro raio de um poema. De sol, digo. Como flor. Como gineceu túmido na azul glória matinal. Mas são outros tempos do corpo e são outros corpos do sentido tacto. Na fantasia das manchas ensolaradas e das sombras magras e febris dessas palavras texto, tecido de uma urgência outra. Ou de outra urgência minha. Tudo a debandar das páginas folheadas como dedos naquele ponto. Naquele preciso ponto húmido. Onde mesmo os dedos podem ser ásperos. Nenhuma carícia é demais para as flores. Mas por vezes mata de peso e inércia desmedida para a espessura de uma determinada configuração que não condiz com o gesto. Mas não nos incomodemos a chorar se uma estrofe não volta a dizer o que disse. Nunca prender com âncoras marinhas o destino que é térreo. E nele o balanço ondulado das ondas, de carreiros pedregosos. Ou arar ondas de mar. Cada emoção tem um único tempo. Um compasso e uma melodia irrepetível. E depois, numa daquelas epifanias de trazer a dias sem pretensões, ver todas aquelas frases a cair, misturadas e desarranjadas, desgrenhadas mesmo, amotinadas de fresco das suas linhas seguras, umas para andares abaixo, outras em flick flack destemido a ultrapassar o limite do texto, da folha, do mundo. O delírio mais lírico de um poema. Entornar-se no mundo e misturar-se entre as pessoas. Em bocadinhos, com de pão com manteiga, em interjeições sem destino certo, em negações do que era e do que era para ser se fosse. Tudo a invadir a capa. Partes de texto poético a andar para trás. Há pessoas assim. A confusão de sentidos intercomunicantes pode trovejar-nos na cabeça mesmo no seu lugar. A cabeça. E subitamente esqueci se era a cabeça ou o lugar dos sentidos. O lugar certo. Mas depois nem isto importa. Não devia ser permitido usar pronomes pessoais para abstracções. Como se fossem flores e concretas como tal. Chamar ela a uma hipérbole retorcida em si. Ou a angústia. Como defini-la sem dela se dizer o que a transforme em entidade. E, no entanto, há uma espécie de textura de uma densidade própria e deslizante. Lentamente a entorpecer talvez de cima para baixo. Mas a cor. Tentar entender-lhe a cor, parece fútil face ao abraço entorpecente e espesso. Que anula até a dor. Olhar para aquele lado. São enormes pedras de jazz. De sal, era o que queria dizer. Mas caiu dali outra palavra. Com luz natural de lâmpada no interior. As pedras. Enormes. De sal. E que lhes vem de dentro como é da natureza do que se acende. A partir de um ponto e em expansão. E sem voltar atrás. A luz. Espreito sempre à porta antes de entrar por um livro adentro não vá estar em trajes menores. E surpreendo-o, àquelas horas com as palavras a sair por todos os cantos como numa sandes demasiado cheia e desleixada. A capa com nódoas de pequenas palavras que se soltaram mesmo. Uma coisa do outro mundo. O descrédito quase me faz rir. Mesmo que à custa de um livro desmanchado de poemas. Por isso penso mas porque se escreve ainda quando todas as palavras já foram usadas com todas as temperaturas a expelir fumo de todos os termómetros inaplicáveis. É que o fogo que lavra destemente a qualquer deus e a qualquer balança, é privado de braços e pernas se não atacar outras folhas. Não há descanso. Para a verdade crónica e imperfeita. Escrever, é uma coisa triste. O desvendar da alma a quem só nós conhecemos. O desabafo tão íntimo e tão privado que só nós ouvimos. Filtrado das linhas mesmo se baralhadas como cartas de jogar. Tudo o que se tenha que definir em mais do que duas ou três palavras, a substitui por um gesto. Um sorriso. E chega. Ando há tempo a rondar este ângulo muito específico de estarmos a enlouquecer. Dizer isso como irremediável. E talvez porque muito da vida já o é, dizer. Estamos. Muito de nós está. A enlouquecer de desespero. De sabe-se lá, sabemos nós, não o sabemos, talvez a enlouquecer. Sim. De como as roupas que vestimos dia a dia hora a hora e circunstância a circunstância. E lugar. Hiperbólicas. A esquecer o foco. Talvez se escolha o ângulo concreto da loucura diária, como uma roupa e uma deixa, que nem sempre encaixa na fala global da peça, mas não sabemos fazer melhor. É talvez um facto que se vive entre paredes, entre as circunstâncias em que queremos ser amados e vistos com um olhar benévolo, e a necessidade de que os outros nos vejam na crua realidade do que se é. E ainda assim. Ser amados. Sofrer de figuras de estilo. Sofrer de lugares geométricos que tendem, ao invés da sua natureza matemática de rigor e abstracção, a deixar-nos num limbo de curvaturas várias num universo de espaço amplo e ilimitado. À mercê de elevações e expansões para as quais o corpo não oferece limite à fuga. Encosto-me a uma amurada, junto daquele mar imenso que é o único a entender-me, e a dizer que se nele mergulho ou nado, sem saber regras e correntes, tudo depende da força que tiver. Para resistir às vagas. O mar que não pune nem castiga, simplesmente segue a natureza desmedida que há que conhecer. Já nos humanos, a natureza é razão que se pode ponderar. Porque há o lugar geométrico do apaziguamento. Encosto-me a essa amurada com vista, só porque me sinto menos só face ao mar e é a este que devo escutar. Encosto-me mais ao olhar. Apuro o ouvido. Vejo-me de costas como quem diz que é de costas que melhor nos vemos e aos outros. Hiperbólicos, sentidos. Muito. Às vezes demais. Para uma única superfície de pele de rosto. De pelos nos braços, insuficientes na expressão de tamanho arrepio. Porque o vento vem forte. E hiperbólicas. Pessoas assim, a quem dói a temperatura do corpo. E para quem a respiração é um risco a sangrar. Quando a sacralização de cada regra pode enfermar de uma ferida que se agrava. A verdade. Não mais que um momento. Os conceitos que amamos, as definições. Outra coisa é a explicação dos anjos. Sem nome. Os anjos não têm nome. Não subjaz à forma o sentido, mas uma realidade motora que conduz a emoção do gesto à sua origem. Ao seu destino. O que liberta e o que contém envolve numa ilusão lúcida. A da realidade feita e perfeita, mas numa camada lírica, como num corpo, uma emoção e um sentido íntimo. Onde se vive mas não se encontra. Como a curva ao foco. Pequeno pirilampo. Ou o beijo da razão. Nem na verdade, nem na emoção.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz | O Filho [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vista, do terraço do restaurante do Conrad Hotel, é uma das mais terríveis do planeta Terra. É o lugar onde o que o homem faz e o que a natureza é se encontram esplendorosamente, sem máculas e sem culpas. Fui apenas duas vezes a esse lugar: a primeira por amor de uma mulher; a segunda pela morte de um homem. Karadeniz morreu em sua casa junto à torre de Gálata, numa das muitas noites em que lá ficava, em que não me apetecia apanhar um táxi para a minha casa em Baltalimani, junto a Bebek, no Bósforo. Deve ter tido uma morte santa, sem sofrer. Foi para a morte como se tivesse ido apenas deitar para outro dia. Encontrei-o de manhã com o rosto mais pálido do que o costume, e já só consegui tocar-lhe o frio. O homem já não estava ali. Tinha o passado à minha frente, diante do rosto e das mãos e não sabia o que fazer. Fiquei ali parado, sem fazer nada, a saber a morte. A seguir ao funeral de Karadeniz, em Istambul, o seu filho, T., que conheci na cerimónia, pediu-me para jantar com ele. Precisava de falar comigo com urgência, antes de partir para Londres, ainda essa noite. T: Soube pelo porteiro que você passava muito tempo com o meu pai, posso saber porquê? PJM: Porque gostava dele e ele me ensinava muito. T: Ensinava-lhe o quê? PJM: Tudo! Só não me ensinou a matar. T: A mim, foi só o que ele me ensinou. PJM: Ensinou-o a matar!? T: Não propriamente, mas vi-o várias vezes a disparar com a espingarda contra os gatos da rua. PJM: Foi só para saber porque me encontrava com o seu pai, que quis encontrar-se comigo? T: Não, não foi só por isso! Queria saber como é que ele morreu, parece que não sofreu, pois não? PJM: Não, não sofreu. Morreu a dormir. T: Morreu como viveu! PJM: A dormir!? T: Não, sem sofrer. PJM: Julga que o seu pai não sofreu na vida, é isso que me está a dizer? T: Não me leve a mal, mas não quero falar sobre isto consigo, com quem nunca vi e provavelmente nunca mais vou ver. Não me leve a mal, mas não sou muito bom a falar de mim. PJM: Não tem de que se desculpar! Compreendo perfeitamente. Há mais alguma coisa que queira saber? T: Gostava de saber o que é que você faz na vida? PJM: Escrevo livros. T: Que tipo de livros é que escreve? PJM: Romances, poesia e teatro. T: Romances acerca de quê? PJM: Acerca da vida e da morte, acerca dos homens. T: E isso dá-lhe para viver? PJM: Às vezes, dá! Outras vezes, não. T: Então e quando não dá, o que é que você faz? PJM: Isto é alguma entrevista, que me está a fazer? T: Se quiser não me responda, não é obrigado a fazê-lo. Mas tenho curiosidade em saber que tipo de pessoa passou os últimos… PJM: Dois anos! T: Dois anos!? PJM: Sim! T: Pois, gostava de saber que tipo de pessoa passou os últimos dois anos a visitar o meu pai, a fazer-lhe companhia. PJM: A companhia era mútua. Quanto à sua pergunta anterior, quando os livros não dão para viver, peço dinheiro emprestado, até que volte a dar. T: O meu pai chegou a emprestar-lhe dinheiro? PJM: Não! Estou num momento em que não é preciso. T: O meu pai chegou a falar-lhe de mim, a dizer-lhe o que faço? PJM: Sim! T: E o que é que ele disse que eu fazia? PJM: Disse-me que você era um homem de negócios, que importava vegetais da Turquia para Inglaterra. T: Foi só isso que ele disse, não mencionou mais nada? PJM: Não, só me disse isso. Porquê, há mais alguma coisa que você faça que o seu pai não me tenha contado? T: Não, não há mais nada. Queria só ter a certeza de que o velho não tinha perdido o juízo, nestes últimos anos de vida. PJM: O seu pai esteve sempre muito lúcido até ao fim, pode ficar descansado. O seu pai era um homem muito bom. T: Muito bom!? Ele chegou a contar-lhe como era o inferno? PJM: Qual inferno? T: Qual inferno!? A casa! Crescer naquela casa com dois loucos à volta dos gatos: um aos tiros aos animais e o outro a salvá-los; e eu no meio, sem ser gato. E nem os matava, nem os salvava. Ele não contou isso, pois não? PJM: O seu pai contou-me dos gatos, sim. Também me parece que sempre soube do mal que tudo isso lhe fez. Até ao fim, nunca quis aceitar culpa de nada, mas julgo que ele sempre se sentiu culpado em relação a si. T: Que mais culpas é que ele poderia ter? PJM: Culpa em relação à sua mãe. T: Em relação à minha mãe, não teve culpa nenhuma. A minha mãe era louca. Não se pode fazer nada por um louco, muito menos ser responsável por ele. PJM: O seu pai amava muito a sua mãe. T: Essa é que é a sua culpa! Nunca lhe perdoei, ter-se sempre esquecido de mim, do que eu precisava, por causa dessa louca. PJM: Se pensa assim da sua mãe, porque foi com ela para Londres, porque não pediu para ficar com o seu pai? T: Precisamente para magoá-lo. E também, porque não queria ter mais nada que ver com ele. Queria esquecê-lo. Queria ser uma pessoa completamente diferente dele. Queria ser o homem que ele nunca foi. PJM: Não sente culpa, por isso? T: Na vingança não há culpa. Depois de um longo silêncio, T. pegou no seu telefone e deu instruções para o piloto do helicóptero que o esperava no heliporto do hotel. Nesse momento pensei que Karadeniz sempre estava certo acerca das actividades do filho, que não é só legumes que ele importa para Inglaterra. Despedimo-nos e eu fiquei ainda ali sentado à espera de ver o ferro a voar para o aeroporto, levando para sempre da minha vida a história desta estranha família. Uma família sem culpa, a vingar-se da vida.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasE agora, as autárquicas [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste ano teremos eleições autárquicas e, com elas, a multiplicidade infinda de cartazes, porta-chaves, autocolantes e demais brindes de campanha, estradas remendadas com uma pasta muito semelhante a alcatrão mas com um tempo de vida útil substancialmente inferior ao do alcatrão, soluções para tudo menos para a morte, tempos de antena na RTP com pessoas estranhamente parecidas com pessoas, discussões acerca do centralismo e dos seus malefícios, partidos-bebé com siglas de doenças, caixas de correio entupidas de circulares desenhadas pelo primo de um cunhado que tem muito jeito, arraiais e arruadas para todos os gostos menos para o nosso e os habituais comícios enfeitados por figurantes tão entusiasmados como crianças numa leitura de poesia. Lisboa, por exemplo, e a julgar pelas obras que decorrem a um ritmo frenético para estarem concluídas antes das eleições, está em campanha há quase dois anos. A zona do Campo das Cebolas e arredores, se seguirmos o mesmo critério, está em campanha desde o início do século XXI, e não há previsão para que finalmente deixe de estar e cumpra a função de fazer pender o voto. As eleições têm o condão de precipitar todas as decisões, arranjos e melhorias que podiam ter sido feitos ao longo dos quatro anos que corresponde ao mandato daqueles que foram eleitos para os últimos doze meses do mesmo, porque os políticos, justa ou injustamente, acham que a memória dos eleitores é semelhante à do peixinho de aquário que confunde os dejectos da ida com a comida da volta. Os primeiros três anos do mandato são de “estabilização e renovação”, o que equivale a resolver de forma unilateral todas as avenças do partido deposto do poder e à contratação ou adjudicação das pessoas “da nossa confiança”, no caso de uma mudança de cor política, ou, no caso da continuidade, a um inexplicável mas aparentemente confortável nada mascarado de planeamento. Como a taxa de natalidade em Portugal é ainda mais baixa do que a taxa de crescimento, as campanhas apontam baterias, invariavelmente, aos velhos que, em linguagem política, são ora a população idosa, ora a população sénior, ou qualquer outro jargão pós-moderno e politicamente correcto que cumpra a função de desossar das palavras a realidade que lhes subjaz. E os velhos, como se sabe, têm de ser tratados como crianças acumulando décadas de mau-gosto. Afinfa-se-lhes portanto o cantor pimba da moda, uma excursão a Badajoz para evocar a lembrança da fome e das maravilhas que Abril cumpriu e uns arraiais com bifanas à pala que cada um cuida de comer como se não o fizesse há largos dias. Quando o triste espectáculo do disparate continuado finalmente termina, ficam os cartazes, outdoors e mupis desbotando, verão após verão, até da criatura constando neles se assemelhar uma nódoa informe numa toalha velha, ficam as promessas ainda mais desbotadas dos que as criaturas dos cartazes, ainda mais desossadas do que as palavras da moda, as promessas de que não nada resta senão, como escrevia o Eça na Relíquia, a “ousadia de afirmar”. A única coisa boa é que o circo se repete somente de quatro em quatro anos. É o intervalo possível entre estas apneias de sentido em que já ninguém acredita mas que cumprem o propósito higiénico de simular uma alternância trajada de alternativa.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO senhor sete [dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] chegado o momento em que teremos de ir buscar autores por gerações esquecidos, concluída a inércia do fulgor literário a partir de distúrbios disfuncionais da componente da leitura que tem ficado em jazidas, passado o impacto da novidade e, talvez, da deslocação linguística que não ajudou a modelar a capacidade inventiva da língua como uma ferramenta de transformação, tão pouco como código de uma herança vasta e simbólica: esquecidas as fontes, os rios secam. Desarticuladas andam as funções entre leitura e narração, como se houvesse um hiato intransponível entre fenómenos complementares, esquecendo o poder encantatório da linguagem no desenvolvimento de um cérebro saudável. A língua é uma cifra onde todos querem algemar sentimentos e sensações, pequenos conhecimentos na cadeia do aprendido, respostas, e quase nenhuma indagação, nenhuma outra ilusão que a transponha – que sensações e sentimentos não devem interessar a não ser quando produzidos por fértil capacidade de junção das partes dissonantes – ou seja, se dentro de quem sente estiver uma grande capacidade onírica de despertar. Trindade Coelho é o senhor do título acima mencionado. E que título é este? Ele advém de um estudo que o autor se deu a coligir da tradição portuguesa, é uma interpretação da arte contística e fruto do seu estudo etnográfico. Autor do século dezanove abrangido ainda pelo período Romântico é talvez o mais emblemático dos seus representantes, andou pelo país recolhendo dele a lenda e o sonho, amante por esta sua corrente da cultura popular nas suas formas mais remotas que passam necessariamente por poemas, provérbios, rezas, superstições, contos orais; aqui se dignifica a capacidade da linguagem enquanto material que ajuda ao espaço onírico que tanto agora nos falha. Será impossível fazer-se um ordenamento do território, seja ele qual for, se não tivermos presentes certas coisas a ele integrado, como e onde se produziram os sonhos, os mitos, as correntezas que desaguaram naquilo e não noutra coisa; preciso será entender essa linha de terra que nos passa em toda a superfície e mais fundo no chão. O que acontece é que exauridos os laços com a forma e a terra governada sem lembranças, ordenamento e território são funções tão cegas como desordenamento e não espaço. Daí que, não havendo plano, não há leitura. Em boa medida, digamos que, um bom Plano Nacional para a Leitura poderia travar os fogos! Mas um plano que não fosse ele mesmo tão inclinado. — Sim, as gerações descarnadas dos seus autores, neste caso, um republicano, romântico e maçon, também, religiosidade de madrigal, as gerações assim impedidas de aceder a tais riquezas não poderão ir ordenar coisa nenhuma, muito menos um território. — Há caminhos tão fantásticos nestas transmissões que longe andam dos asfaltos de alamedas de árvores sombrias que se deslocam em todas as direcções que vão dar a locais onde nem queríamos passar… caminhos de Santiago, que romar é ir até cumprir o sonho da viagem. Não se pode exigir que sirvam um país quando não lhes servimos a memória e se, como sentinelas os mais frágeis ficam nas terras quais sonhos esquecidos, não saberemos entender as suas lágrimas nem a desolação que se lhes abate de formas surpreendentes quando as duras provas irrompem. Os grandes dons quando não exercitados transferem-se para outros, como os que têm “incendiado” a Nação: a inveja destilada em paranóia, a megalomania demencial, a usura, e assim se avança como nos guindastes até o céu num movimento quase perfeito nos atirar dele abaixo, exactamente no solo que plantámos. « Onde a crónica se cala e a tradição não fala antes quero uma página inteira de pontinhos ou toda branca ou toda preta….do que uma só linha de invenção de croniqueiro….» Garrett. Seguramente que este número não é em vão, sete é todo o imaginário, a tradição, a configuração de um tempo interior que nos fala – o número mágico – também há o «Senhor Teste» de Valéry» e os «Sete Cantos Iluminados» de Blake. Uma mistura que daria « Os sete iluminados senhores». Iluminados senhores, nem que seja por um raio, dado que a crescente cavalgada de calor não parece alumiar os cérebros, nem tirar deles a devida claridade para uma coordenada iluminação. Estamos em terreiro sem memória, com sombras escuras e com saudades dos antigos carvalhos por onde nesta noite e neste dia (21 de Junho) algures, cantavam os celtas do território, ainda não ordenado, as suas lendas. E outros! Estamos sem borboletas, e joaninhas, e andorinhas, e raposas, e lebres e linces. Calcinados de vazio. Trindade Coelho escrevia para jornais. A sua imensa dimensão do espaço, onde havia um território ainda em folha vegetal, exaltava nas mentes desejos verdes, mas verdes na folha de jornais brancos e pretos que não eram menos verdes que as suas terras transmontanas. Foi deliciosamente espirituoso no uso dos dialectos, semeou oráculos e hoje creio que ninguém está apetrechado para uma sinalética que impeça os desastres – nós somos construtores de desastres – que nem disso já tem firme noção: há até frases mágicas exercitadas por mulheres das serranias que possuíam ( imaginem só a força da palavra) o poder de mudar os ventos, amainar tormentas, fecundar os solos. Dito assim é tudo lenda, mas lido de outra maneira é a única forma de voltarmos à terra. Se não quisermos, ela também não há-de querer: nós só queremos a quem nos quer e a terra até ver é de dura cerviz no que respeita à infidelidade dos hóspedes. A mesma negligência dos homens para com as mulheres reflecte-se na terra. E estranho é o uso de contemplação face a duros carrascos de uma mesma natureza. Quase não parece, está tudo muito decorado, muito pleno de coisas artificiais, mas não, não nos deixemos enganar: há dolo e não há «plano» de leitura e de território. Será bom voltar a desocultar o que está oculto e ler o que não foi lido ao invés de plantar desordenadamente o “eucalipto” do intelecto que alastra com a mesma ignição. Deus também será, e é, em última instância tal como foi no princípio. Sempre. « Um fogo devorador». Os contos de tradição oral são aqui os mais relevantes e alguns já tinham sido publicados na Tribuna em 1899 em versão mais arcaica , menos literária, dando assim a entender que compunha os próprios textos para edição final. ….. subir ao sétimo céu é, pois, alçapremar-se uma pessoa num grande gozo, subir lá por essas esferas, até à sétima, que deve corresponder no sistema de Ptolomeu , ao Empíreo, ou ao lugar dos Bem-aventurados! In – O Senhor Sete. Melhor é experimentá-lo que julgá-lo, Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo! Camões.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasOs jardins da língua [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] coração do canário dá mil batidas por minuto. O do elefante vinte e cinco. As minhas andam pelas setenta, mas a máquina acelera quando deparo com a estultícia que nos afoga. Nestas bandas do Índico o tu cá tu lá com o sobrenatural, com os Espíritos e Antepassados é mato – a quantidade de médiuns e espíritas e de gente que paira acima do terreno é estarrecedor. Têm muito mais dificuldades com a língua, o português. E a minha perplexidade nessa contradição é do mesmo grau da que encontrava Bernardo Soares, em discorrendo sobre o que o separava dos ocultistas: «O que sobretudo me impressiona nestes mestres e sabedores do invisível é que, quando escrevem para contar ou sugerir os seus mistérios, escrevem todos mal. Ofende-me o entendimento de que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa». Interessam agora as razões para isso? Começou com o “brando” colonialismo português e o racismo – o tal que como Midas corrompe tudo o que toca. E continuou nas políticas pouco ambiciosas com que hoje os líderes moçambicanos – na sua maioria educados na bainha da oralidade – reforçam anualmente o orçamento do Ministério da Defesa (para o exército e a polícia política) em detrimento do da Educação. Acontece-me cogitar nas aulas: Este marmanjo em changana ou macua se calhar é um orador formidável, para quê esquartejá-lo numa língua em que não namora e que aprendeu demasiado tarde? Entretanto, para arredondar as contas faço revisões de livros e de relatórios. O português dos relatórios das ONGs devia dar direito a electrochoques. Ou a prisão perpétua, vá lá com pena suspensa! E quando se quer mostrar que a “pesquisa qualitativa” se apoia em entrevistas à fatia de povo escolhido para “amostra”, a fórmula repete-se e transcrevem-se escrupulosamente as frases dos populares, tal e qual foram ditas e não conforme a intenção do que queriam dizer. Escrupulosamente carregam-se nos erros, nas distorções da língua, até extremos como este: “…a maioria diz que eu não quero fazer planeamento porque vou matar o quê não vou nascer mais é por isso estou a nascer para acabar toda filha, é assim mesmo (risos), não vou fazer planeamento porque não vou nascer mais, vou fechar de vez, é assim (risos)…”. A pobre quer explicar que deixou de fazer planeamento familiar e de tomar a pílula ou de usar qualquer contraceptivo por acreditar que tais métodos conduzem à esterilidade. Mas se o que ela quis transmitir foi percebido pelo entrevistador, por que fazê-la passar por inapta? Eu garanto que farei o mesmo papel se me colocam a perguntar por uma farmácia para camaleões em grego, sueco, ou se calhar até mesmo em inglês. Há um escrúpulo “científico” associado ao esforço políticamente correcto de não se corrigir a gramática ou a sintaxe das pessoas e que me cheira a encapotada indiferença. Uma vez pediram-me que redigisse as legendas para um documentário moçambicano. Revi o filme de trás para a frente para entender na perfeição o que as pessoas queriam dizer e depois enviei as legendas. Recebi um telefonema furioso, tinha colocado as pessoas a falar bem. Então meu animal, reagi eu, afinal para que é que querias as legendas? Queria porque elas falam mal, para se perceber o mínimo. Bravo, querias multiplicar o embaralhamento, os lapsos, os curto-circuitos verbais, duplicando-os por escrito… pois agora, pelo contrário, percebe-se melhor, porque os teus entrevistados, se pudessem, era assim que gostariam de formular as coisas. Nunca transcrevi em dezenas de entrevistas uma calinada de um meu entrevistado, a não ser que isso fizesse parte da sua matéria expressiva ou da sua personalidade. Um erro, uma falha de sentido, uma má expressão não desqualifica as pessoas – conheço pessoas de uma sensibilidade de eleição que se debatem com dificuldades em articular. A prosa canhestra de Husserl não o torna mais estúpido do que Heidegger cujo estilo, ao pé da do seu mestre, é a de um sedutor. Diferente será, obrigatoriamente, na ficção onde “escrever bem” pode implicar uma forte dose de agramaticalidade, um reforço da coloquialidade e dos seus desvios e desmandos. Contudo, em todos os outros géneros que mexam com ideias, conceitos, com descrições que peçam detalhe e apuro, não vejo porque não ajudar o outro a traduzir o seu próprio pensamento. A não ser que cretinamente me queira distinguir dele, Reparem na minha excelência e na desarticulação do indígena! O paternalismo de reproduzir as frases desconexas do nosso interlocutor não é uma face perversa, mesmo que ingénua, do mal. Conheço quem borde em torno da grande criatividade das falas e do vernáculo populares, etc. Também eu me pélo se ouço a ameaça, Vou-te aos gorgomilos, meu canguinchas! E fico à espera. Também já aproveitei algumas frases no ar, que incorporei, e até um título. Um dia em Nampula li num pasquim: “os crimes montanhosos que hoje se cometem na cidade”. Recriei logo ali um título que é o de um livro inédito meu: “O Corvo de Colarinho Branco e os Crimes Montanhosos” e estou contentíssimo com a oferta. Porém, sei que aquela aparente riqueza da expressão, naquele redactor que escrevia com os pés botos e emaranhava as frases numa sintaxe de feio empeno, veio-lhe por acaso, soprada por uma falta tremenda de vocabulário – não é fruto de um engenho que ele saiba repetir. Ē preciso desmistificar: o Hemingway não reproduziu nada as falas do quotidiano da sua época, ele criou apenas um estilo novo de diálogo que depois foi imitado, inclusive na vida. O Guimarães Rosa ou o Mia Couto não ouvem todo o santo dia aqueles neologismos que parecem reproduzir, eles inventam oitenta por cento das cabriolices que fazem com a língua. Se a vida depois lhes imita os livros, melhor. A criatividade exige que saibamos articular a língua, mesmo que seja para depois a desaprender. Contudo, nada se faz ao contrário. Ē mentira!
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasA linguagem do cinema chinês: Idade 29 + 1 Hong Kong. Tempo: Presente. [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]hristy Lam, interpretada por Chrissie Chau, é o protótipo da rapariga nascida e criada em Hong Kong. Aparentemente tem uma vida feliz. Tem namorado e é admirada no trabalho. No entanto, um mês antes de completar 30 anos, Christy fica a saber que o pai está gravemente doente e acabamos por perceber que afinal a sua vida amorosa não é nenhum mar de rosas. Para rematar, as coisas no trabalho sofrem um volte face muito negativo. Wong Tin-Lok, interpretada por Joyce Cheng, também está à beira dos 30. Wong tem uma vida completamente diferente. É baixota, gorducha, não tem dinheiro, não tem carreira nem namorado. Os seus seios só foram tocados pelos médicos. Wong tem cancro da mama, mas apesar disso sempre encarou a vida com um espírito optimista. Com os 30 anos na linha do horizonte, toma uma decisão arrojada; pega nas malas e enche-as com os sonhos de infância. Pela primeira vez na sua vida sai de Hong Kong e apanha um voo para Paris. As duas mulheres não se conhecem e as suas personalidades são diferentes como a noite do dia. Mas o destino intervém e Christy muda-se temporariamente para casa de Wong. Instalada no apartamento, Christy depara-se com o diário de Wong. Descobre que partilham a data de nascimento e começa a desvendar pedaços da vida da dona da casa. À medida que os seus laços virtuais aumentam, Christy dá por si a admirar a forma como Wong aborda a vida, de tal forma que se vai identificando cada vez mais com esta perspectiva. A realizadora Kearen Pang彭秀慧 adaptou ao cinema com mestria esta peça de teatro, da sua autoria, estreada em 2005. Na versão para teatro as duas protagonistas eram interpretadas pela autora. Pang optou por manter a estrutura pouco convencional da história, o que mostra a sua auto-confiança, embora seguindo o registo mais realista do cinema. Esta transição foi facilitada por duas protagonistas perfeitas: Chau brinda-nos com um dos seus trabalhos mais sofisticados de sempre, embora Cheng acabe por arrebatar as atenções, com uma interpretação absolutamente tocante, cheia de alegria e de calor humano. Para a maioria das mulheres, os 30 representam a “fronteira para o desconhecido”. A antevisão deste período da vida dá uma sensação de impotência, não só física como psicológica, devido a todo o tipo de pressões sociais. A realizadora Kearen Peng usa a câmara como se fosse um aparelho de raio-X para explorar as emoções, o trabalho e a vida das protagonistas. A idade perturba as mulheres. E será que alguém tem o direito de limitar as mulheres colocando-lhes um rótulo etário, ou qualquer outro tipo de rótulo? Kearen Peng abre graciosamente a sua alma a uma audiência mais vasta, com uma comédia repleta de sensibilidade e positivismo. O filme recebeu o Prémio de Melhor Realização no Festival de Cinema de Nice. Veja o trailer aqui: https://www.youtube.com/watch?v=F8NuSFX-ltE
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasNoites todos os dias Joaquina, Lisboa, 13 Junho [dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]e vez em quando, mergulho em apneia no grande oceano da música brasileira. As redes permitem pescar com fartura e nas profundezas do passado. Se feito ao desafio, como há um ano e muito por culpa da Elza Soares, então as agruras ganham o perfume da dama-da-noite. Incontáveis vozes femininas cantam em veludo os desamores e as pedras da calçada do quotidiano. E ao serviço de letras que constroem sabiamente contos, crónicas, poemas, aforismos. Cresceu-me o introito a propósito de uma daquelas noites que só o Junho alfacinha contém. Na Rua Joaquina, vila sobranceira a uma das minhas colinas preferidas, ainda que sejam muitas as dilectas, costuma acontecer festa rija e fado solto. Desta vez, na ressaca da noite sacrificada ao santo, estamos postos a celebrar a amizade, que o André [Gago] acaba de fazer comovida pelo discurso aniversariante. Eis que o puto Gaspar [Varela Silva], bisneto de Celeste Rodrigues, com primeiro concerto anunciado para Novembro, pega na viola portuguesa, deixa assobiar o vento nos caracóis, e ali mesmo celebra Dolores Duran, pois adora «A Noite do Meu Bem»: «Eu quero toda beleza do mundo/ Para enfeitar a noite do meu bem/ Ah! como este bem demorou a chegar/ Eu já nem sei se terei no olhar/ Toda pureza que eu quero lhe dar». O talento ouve-se a olhos vistos, mas custa a crer na força de vontade que prende o Gaspar às cordas. Pureza enfeitando a noite. Feira do Livro, Lisboa, 18 Junho Sob sol inclemente e com o país mergulhado na tragédia, fecha mais uma edição da Feira. Por mais voltas que dê, vejo-lhe os modos e as maneiras a moribundar. Mais do que momento anual de ter ao alcance do entendimento e da bolsa o catálogo completo de cada editora, o armazém tornado montra, o rosto a vislumbrar-se muito para além da marca, aquilo está disforme venda de saldos ao ar livre. Tudo entalado entre isto e aquilo. A maltosa passeia, mas já não disfruta. Vai para comprar o barato, mais do que livro. Praças inteiras de maduros, mais ou menos anónimos, à espera de quem lhes reconheça o autógrafo. Barracas de farturas e fartura de barracadas. Talvez não haja volta a dar, apenas subir e descer. Sem dispensar uns encontrões, que andamos sem ver onde pôr os pés. Horta Seca, 19 Junho Acabo a «Marquesa de Alorna» contada aos pequenos, e nem tanto, pela Luísa Paiva Boléo e pelo André [Carrilho], minha vizinha na colecção «Grandes Vidas Portuguesas». O conto espraia-se sem floreados, acreditando bem a Luísa que a personagem se agiganta só com o estender dos factos. «Querida Leonor» foi grande figura, não restam dúvidas, antes páginas. Prometo visitá-las. O mister do André usa o esboço nos cenários de um modo que parece história, sugerindo apenas para que completemos nós. (Confira-se com a ilustração do terramoto de 1755, algures nesta página) Leonor surge de rosto definido em detalhes e de corpo enchendo o tempo e os lugares. Entre cenário e corpo, dá-se a aventura. Horta Seca, Lisboa, 21 Abril Sem variação, mas com variantes, cada um que entra na minha oficina se espanta com a aparente desarrumação das mesas e das estantes. Não, o plural não é gralha, que são várias as mesas onde acumulo, sobretudo livros, mas também revistas e jornais e revistas, a repetição não é gralha, e cartazes e documentos, enfim, papel e pó. Esta acumulação resulta de um processo único, próximo do zen, desenvolvido com preguiça e argúcia ao longo dos anos: se não estiver perto, esqueço. Por folha estará ao menos uma ideia, cada monte contém infinita potência de leitura ou de projecto. Preciso sopesar formatos, respirar grafismos, tocar a haste da letra, beber a imagem, mergulhar no pensamento, enfim, achar que posso ler, a qualquer momento. Esta proximidade define horizontes e estruturas, sem as colunas em altura desmorono, sem a visão dos tons infinitos e movediços do papel paraliso. Moro nos antípodas do origami, ess’arte de, com dobras engenhosas, domesticar o espaço. Para que o mundo e as suas formas caibam na mão. E assim encolher o tempo. Aqui o caos parece congelar o tempo, propondo-lhe um labirinto. Não morro menos por isso. Belém, Lisboa, 22 Junho O Filipe [Raposo] deixa-me nas mãos uma «Inquiétude» em tons de amarelo. Os dias seguintes caminharão sobre pianos. As composições, quase todas suas, resultam de dois anos de aprendizagens várias em Estocolmo, pelo que nos chegam com as marcas da viagem, pedaços de paisagem nas botas, as malas cheias de elementos, água e vento, fogo e céu. E palavras. Há voz, ligeira, que se toca como instrumento, pois não são canções. Contudo, este jazz das planícies (interiores, ainda que lá fora) tem, no que parece ser uma constante no trabalho do Filipe, fortíssima ligação à poesia. Ténue como corda de funâmbulo. A cada tema corresponde um poema, mesmo que seja só frase, no desdobrável que acompanha o disco, entre os quais o de Louise Bourgeois que forneceu o acertado título, metendo estudo nisto do desassossego. Logo me desperta o jogo de ler o poema e ir tentar descortinar as notas que cosem relações. Surge uma Leonor, acontece Grabato sobre o Cosmos página branca, e «coisas deixadas para trás» a pretexto de um haiku: «Enquanto com a manga/ varro a minha cama/ e me sento nela/ à tua espera/ a lua já se pôs». São degraus, estas teclas. Hoje Macau, 23 Junho Saravá, António, que agora trazes novas tonalidades a estas páginas. Nós, os escravos do tempo, te saudamos ó grande intérprete das faldas e sinuosidades. Deixa ainda acrescentar que se fez pedra no charco o teu, tão breve quanto intenso, «É Um Clássico», na RTP2, aos sábados, pelas 21h22, mas a qualquer hora, como se vê agora televisão. Até te perdoo as mãos nos bolsos, se continuares a desfiar melancólica clareza com a perfumada alvura das manhãs que se sucedem às noites alfacinhas de Junho. Horta Seca, 25 Junho Vejo desta coluna a semana que passou e são tantos os sítios onde gostaria de ter estado sem o conseguir que me arrisco a perder assunto, a perder o pé: as leituras que a Rita [Taborda Duarte] organizou na Leituria, o lançamento da Patrícia [Portela], a inauguração do Jorge [dos Reis], a festa dos vizinhos na rua Joaquina, a homenagem ao Bernardo Sassetti, que será doravante também uma sala-jardim, o Nuno [Saraiva] a mostrar originais das Festas, a visita guiada do Jorge [Silva] ao Pavia. Verdade fique dita, o social dói-me sempre algures.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasDestruir a morte à custa da vida Um pequeno apontamento acerca de Fernando Pessoa [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] heteronímia está longe de ser mero artifício literário. Ela é expressão de profunda convicção do que deve ser o humano, daquilo que deve ser a vida humana na sua excelência. A heteronímia é expressão de uma nova weltenschaung (mundivisão), de uma nova visão do ser humano. O que está em causa no processo heteronímico de Pessoa é a excelência humana, a possibilidade de alcançar a excelência humana, isto é, a possibilidade do ser humano ser melhor do que é, de ser melhor do que lhe é imediatamente dado. Excelência essa que não visa uma prática religiosa ou ética, mas estética. Mas há um Fernando Pessoa heterónimo, que se iguala ou mesmo perde em existência para os outros heterónimos, e há um outro anterior: o que rejeita a vida para poder escrever. Aquele que rejeita a vida para criar o complexo jogo existencial é anterior a toda a criação, como o Criador é anterior à obra criada ou como a existência de algo antes do Big Bang. Por conseguinte, o privilégio deste Pessoa-criador é mais do que o do registo civil, é o privilégio do criador em relação à sua obra. Privilégio esse que lhe confere, entre outros, o privilégio da consciência da obra e dos esforços necessários para realizá-la; neste caso, a abdicação de vida, como ele tantas vezes escreve. E é precisamente nesta consciência de realização da obra, da sua obra, que a heteronímia não tem uma raiz ontológica, e sim estética. Pois tudo é jogo, nada mais do que jogo. Tudo é lúdico. Existir é brincar às existências. A ontologia aparecerá nos vários heterónimos que ele projecta, nos vários heterónimos que ele é, mas não na totalidade da obra, não na concepção da obra. Por outro lado, não se pense que esta consciência da existência como uma impossibilidade de escapar do lúdico traz em si uma facilidade para a existência, que não traz em si mesma um terrível drama. Haverá dor maior do que ter consciência de não haver verdade, de não haver existência para além do jogo, do lúdico, e ver isso com uma claridade tão grande que se recusa a vida? Fernando Pessoa deixou sempre claro ao longo dos seus textos o primado da escrita sobre a vida. A vida não interessa a ninguém. A vida só pode interessar aos animais ou à parte animal que nos habita, a parte animal que somos, nunca ao espírito, à parte espiritual que somos. Tanto no Livro do Desassossego, § 149, quanto em Reflexões Pessoais (374-5) Pessoa refere uma frase do biologista Haeckel (entre o macaco e o homem normal há menos diferença do que entre o homem normal e um homem de génio) para dissertar acerca desta distinção que lhe parece evidente e fundamental, isto é, viver segundo a carne, a mundanidade ou segundo o espírito. O que está aqui em causa, neste projecto de Pessoa, é, literalmente, à imagem da metafísica ou ontologia cristã: ganhar a vida perdendo-a. Ganha-se a vida se fizermos dela uma coisa maior do que ela é, se lhe encontrarmos um sentido que valha a pena ser seguido, fazer da vida algo que valha a pena. Por outro lado, ganhar a vida perdendo-a, já é muito diferente. Ganhar a vida perdendo-a, é um ponto de vista do entendimento ontológico ou metafísico cristão. E, embora Fernando Pessoa não fosse cristão, não acreditasse em Cristo, o seu entendimento ontológico ou metafísico da vida aproxima-se do entendimento ontológico cristão. O que é que aproxima e afasta Fernando Pessoa, e seu projecto de existir, da ontologia cristã? Imediatamente devemos responder: o para além da vida. A saber, ganhar a vida, perdendo-a, em sentido cristão, implica estar certo de haver uma vida depois da morte, uma vida em Deus para além desta vida terrena. Para Fernando Pessoa, a vida terrena esgota-se e tudo se esgota. O para além da vida, em Pessoa, é na vida. Perder a vida é perder tudo o que se tem em troca de nada. Fernando Pessoa, embora também rejeite a vida terrena, não espera alcançar Deus. Pessoa não abdica da sua vida para Deus, nem sequer para si mesmo, mas para o seu jogo. E, neste sentido, bem podemos falar de um cristianismo pagão. Fernando Pessoa, embora não numa linguagem filosófica, compreendia a falência da metafísica, isto é, da ontologia tradicional metafísica. Fernando Pessoa compreendia que a metafísica não dava conta do mistério. No fundo, podemos agora dizê-lo, a metafísica deixava escapar o jogo. Era deste modo que Pessoa compreendia a metafísica. Veja-se algumas passagens: “A metafísica – caixa para conter o Infinito (…)”; “Negada a verdade, não temos com que entreter-nos senão a mentira. Com ela nos entretenhamos, dando-a porém como tal, que não como verdade; se uma hipótese metafísica nos ocorre, façamos com ela não a mentira de um sistema (onde possa ser verdade) mas a verdade de um poema ou de uma novela – verdade em saber que é mentira, e assim não mentir.” Chega mesmo a pôr em causa, através de uma inversão completa, a posição socrática do conhecimento: “Conhecer-se é errar (…). Desconhecer-se conscientemente, eis o caminho.” Há uma total desconfiança por parte de Fernando Pessoa em relação à metafísica e à possibilidade do conhecimento dos fundamentos, daquilo que faz do humano o humano, daquilo que faz do mundo o mundo, daquilo que faz do universo o universo. Uma coisa ele sabe: ele desconhece-se. Do centro deste desconhecer-se, Fernando Pessoa irá traçar uma poderosa e profunda forma de pensar que será projectada na sua própria vida. Fernando Pessoa vive o que pensa. Não há propriamente uma redução da vida ao pensar, mas há uma formalização dessa relação. A vida é uma arca vazia, que foi feita para encher de coisas. O conceito central e fundante de todo o pensamento de Fernando Pessoa é o conceito de vida. Vida é aquilo que nos é dado, aquilo que partilhamos com tudo o que há, com tudo o que existe. Por conseguinte, também a pedra tem vida. Vida é estar no universo. Mas este estar é sempre dependente de uma consciência. A frase com que termina as suas Reflexões Pessoais é: “Vida é consciência.” Vida é existir para uma consciência. Ao tornar-se um dado da consciência a pedra torna-se vida, pertence à vida, assim como os sapatos que calço ou o meu vizinho do lado. Assim a vida não nos pertence. Só somos vida para um outro. A vida é nos dada, ao nascer, e depois continuamente dada pela consciência de um outro. “Assim é a vida, mas eu não concordo.” A partir daqui, a vida assume-se claramente como inimigo, adversário ou algo incómodo. A vida é aquilo que nos mata, aquilo que nos reduz, que nos impede de sermos nós próprios. “Nunca saímos do cárcere de viver, nem com a morte que é a vida individual das muitas de que a nossa unidade ficticiamente se forma.” A vida é uma servidão. Todo o projecto de Fernando Pessoa é uma guerra contra a vida, contra a servidão e a impossibilidade de, nela, sermos nós próprios. Como pode isso ser possível? Como pode Fernando Pessoa dizer estas frases: “Que tenho eu com a vida?” ou “Que coisa reles e baixa que é a vida!” Como pode ele escapar da vida? Como se pode escapar da vida? Para Pessoa, faz sentido dizer que ele não quer ganhar a vida, ele quer ganhar à vida. Ele quer aumentar-se, quer tornar-se maior do que é, quer tornar-se à sua medida. Tornar-se à medida do humano que se pode ser para além da menoridade da vida. Esta noção de aumentar-se aparece em Reflexões Pessoais (embora seja desenvolvida de múltiplas formas em Livro do Desassossego): “2. Aumentar é aumentar-se. // 3. Invadir a individualidade alheia é. Além de contrário ao princípio fundamental [1. Cada um de nós não tem de seu nem de real senão a própria individualidade.], contrário (por isso mesmo também) a nós mesmos, pois invadir é sair de si, e ficamos sempre onde ganhamos. (Por isso o criminoso é um débil, e o chefe um escravo. ) (O verdadeiro forte é um despertador, nos outros, da energia deles. O verdadeiro Mestre é um mestre de não o acompanharem.) // 4. Atrair os outros a si é, ainda assim, o sinal da individualidade.” Pessoa perde a vida, não para ganhar Deus ou a si mesmo, mas para ganhar os outros. Aumentar-se é aumentar o número de si mesmo, desdobrar-se em muitos, fazer de si mais do que é, alargar o espaço e o tempo do que é. Veja-se a nota do filósofo António C. Caeiro à sua tradução das Píticas de Píndaro: “Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, um identificação e um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. Ao vencer-se é-se maior do que se era, é-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também não quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si, desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame.” Por conseguinte, não se pense apressadamente que este aumentar-se está na origem da heteronímia, pois seria errado pensar assim. A heteronímia é a expressão do si mesmo, da individualidade de Pessoa; o aumentar-se é o sinal da individualidade nos outros, isto é, o reflexo da sua própria individualidade no mundo. Posso expressar-me sem que haja sinal disso, mas o sinal da minha expressão é o reflexo que o mundo dá da minha individualidade. Fernando Pessoa dá a vida em troca do mundo. Escreve ele numa das páginas dos seus diários: “Não faço visitas, nem ando em sociedade alguma – nem de salas, nem de cafés. Fazê-lo seria sacrificar a minha unidade interior, entregar-me a conversas inúteis, furtar tempo se não aos meus raciocínios e aos meus projectos, pelo menos aos meus sonhos, que sempre são mais belos que a conversa alheia. // Devo-me à humanidade futura. Quanto me desperdiçar desperdiço do divino património possível dos homens de amanhã; diminuo-lhes a felicidade que lhes posso dar e diminuo-me a mim próprio, não só aos meus olhos reais, mas aos olhos possíveis de Deus. // Isto pode não ser assim, mas sinto que é meu dever crê-lo.” A vitória é aumentar-se. Multiplicar-se pelo tempo futuro. Esta multiplicação é, simultaneamente, superar as condições que esmagam o humano. Se me entregar à vida e aos seus prazeres, jamais serei lembrado, jamais conseguirei um lugar para ser. “O prazer é para os cães (…)”, escreve Pessoa enquanto Barão de Teive. Que devemos então fazer? “Reduzir as necessidades ao mínimo, para que em nada dependamos de outrem. // É certo que, em absoluto, esta vida é impossível. Mas não é impossível relativamente.” Há nesta redução das necessidades, de algum modo, um projecto de âmbito estóico. Não podemos esquecer que os estóicos e os santos sempre atraíram Fernando Pessoa. Sempre lhe atraíram as formas mais radicais do humano, de ser humano. Por outro lado, o seu livro, atribuído ao semi-heterónimo Barão de Teive, denomina-se a educação do estóico. Mas mais do que um projecto estóico, trata-se de um projecto de lucidez humana, um projecto de aproveitamento máximo dos recursos de uma possibilidade de excelência humana. Não no sentido do humanismo, mas no sentido do humano, no sentido do jogo. A redução das necessidades não tem como fundo a contenção do sofrimento e da alegria, mas a contenção do outro, isto é, a amplificação da possibilidade máxima de se estar a só consigo mesmo. Porque o outro nos escraviza. O humano ou é só, ou é um escravo. Escreve em O Livro do Desassossego: “Toda a alma digna de si própria deseja viver a vida em Extremo. Contentar-se com o que lhe dão é próprio dos escravos. (…) Viver a vida em Extremo significa vivê-la até ao limite (…).” E que limite é este, que aqui se fala e que devemos alcançar, se não é um limite de estóico? A resposta é-nos dada no mesmo livro, em menos de vinte páginas adiante: “Achei sempre que a virtude estava em obter o que não se alcançava, em viver onde não se está, em ser mais vivo depois de morto que quando se está vivo (…) durar depois de não existir.” Chegamos por fim ao centro do vulcão. Aquilo que verdadeiramente importa é destruir a morte. Derrotar a morte e a realidade do mundo, os dois opressores do humano. A morte, porque nos faz desaparecer para sempre; a realidade do mundo que nos limita, nos sufoca enquanto existimos. O que esta em causa, tal como vimos para Píndaro, é a vitória. A vitória aqui não é vencer na vida, mas uma vitória mais radical: vencer da vida. Esta vitória sobre a vida é simultaneamente a vitória sobre a morte e sobre a realidade do mundo. Para se ser mais vivo depois de morto do que quando se está vivo é fundamental e necessário vencer a vida em vida. Vencer a vida no seu próprio terreno. Há como que uma estética da abstenção, uma estética que abstém-se de tudo o que não seja a própria arte a ser feita. Não é a arte pela arte, é a vida pela arte. Viver é criar. Outras frases fortes: “Viver é não pensar.; e Viver é ser outro.” Viver é ser outro, porque aquilo que somos é seres que criam, seres criadores, e na vida deixamos de ser o que somos. A vida mata-nos mais do que a morte. Mais do que viver, é necessário criar. É preciso dar a vida pela arte.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasTodos os dias o medo [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] nosso quotidiano não disfarça ainda a nossa perplexidade perante o efeito do desastre e suas leis que devem ser muito precisas e por isso de infalibilidade revestidas: comovem-nos sempre como se não pertencessem por inerência a todo este propósito. O impacto dele nos é dado nos dias que vivemos e nem por isso nos insensibiliza cada vez que um acontece, como se estivéssemos em pleno cenário de guerra com lesões do funcionamento neuronal. Há gente que cai aleatoriamente enquanto passa por locais onde todos acabámos de passar, mares de azul lindíssimo feitos mortalhas, edifícios em chamas trespassados por máquinas voadoras, sangue em todas as arenas. Noite após dia, dia após noite, olhamos incrédulos, sempre, para o último amontoado de escombros como se um frémito violento nos levantasse das nossas calmas funções. O longo caminho da História deu-nos terreiros e hortos para a compenetração formal da morte que vinha como inimiga a combater: tinha trombetas, frases mágicas, líderes que a encabeçavam, como se de um compromisso se tratasse. Isto embora saibamos que, por onde passassem estes guerreiros, as populações nem sempre estavam a salvo: a guerra obedecia a um plano, havendo mesmo datas combinadas com o inimigo para exercitá-la, mas a nossa realidade, de contingências feitas, não nos dá segurança nenhuma nestas coisas e tudo o que existe à vista é uma guerra contínua e disparatada, feita de picaretas e outros utensílios que nos rebentam nas mãos. Com choques, afrontas, colapsos, amálgamas de cimento e sangue, de luz e treva, que é de arrepiar as nossas reservas de coragem. Nós, cuja liberdade nos fora consagrada como um registo pessoal, temos por isso toda a legitimidade de nos alhearmos e vivermos os dias à nossa maneira, transcritos à nossa realidade. Cada ser pode firmar para si um isolamento saudável como partícula de sobrevivência e, até chegar a esse globalizante desastre, nada entretanto aconteceu. Mas isto, que parece a melhor das aptidões do instante, tira-nos a perspectiva da ocasião e do momento histórico que nos foi dado viver – para viver – por vezes há que desviver devagarinho… A realidade, essa, será sempre esse ponto de partida por onde nos é dado então regular o que queremos esteja inscrito nos acontecimentos não permitindo o acto invasivo do mundo se aproximar de nós. Ao iniciarmos os dias, não devemos começá-los por notícias e visões esmagadoras: a nossa força vacila e a nossa coragem esmorece, a esperança ofusca-se, o diálogo embarga-se, os olhos ficam grandes de espanto perante imagens tão sobrenaturais… existe um imediato reflexo de insustentável pavor e, até nos colocarmos na marcha da lucidez necessária, temos de ir deixando passar as horas. Nós sofremos quando vimos os outros em dor. Nada daquilo é gratuito e apenas informativo, existirá sempre um fio condutor que nos liga aos outros no instante em que padecem, e tantos, e tão continuamente, gera a mais preocupante prostração. O facto de irmos antecipando a nossa defesa nestas coisas, promove uma vantagem contra o meio ambiente, que é o de haver pessoas saudáveis quando for preciso a sua imediata intervenção. Nota-se muito a desarticulação das fontes de salvamento, o titubear dos que podem e não sabem… da avalanche quase demencial deste cenário. O medo aproxima-se de nós também como um amigo, pois que nos insufla de consciência, mas andar aterrorizado sem saber atrai o caos e a vida começa a ser um jogo diário onde não vemos o propósito maior que é o estar vivo para além dos nossos medos. Claro, esquecemos, temos de ir, de fazer, de continuar dentro de nós; no entanto, não sabemos bem como avançar de forma precisa, a nossa mente está em alerta, o nosso cérebro tem hoje, talvez, possíveis ligamentos em áreas que lhes estavam reservadas para funções que não se parecem com estas. Toda a nossa antecipação na arbitrariedade da vida nos deixa inquietos na busca de a vivermos sem que saibamos dirigir o desígnio do viver. As coisas vão baixando como as pragas e se a economia nos secou a visão onírica, hoje estamos “salpicados” de sangue que nos dias corre no seio da União. Desconfiamos de todos, claro está, quem são os que nos matam? Serão quem se diz? Ou somos já nós a fazer esse projecto para adicionar interesses que fingem ser incólumes? Vamos vendo à medida que os sinais se propagam… vendo coisas novas que não estavam lá, e sabemos do medo imenso que é o da loucura mais grosseira nos ter possuído. De quem, afinal, não devemos ter medo, quando nos dizem para não ter? Que calma querem que tenhamos no meio de tais acontecimentos e quem nos educa para a abulia total de sermos os espectadores de coisas tais? Que confiança, em que liberdade, em que maravilhoso sistema desejam que acreditemos? Desculpar-me-ão mas eu não acredito nele. Pois que tenho medo e sei o que significa chegar aqui de olhos abertos a ver todas estas impensáveis realidades que nem dela fugindo estamos a salvo. Construímos por ócio todos os fantasmas e tecemos a malvadez como um plano bastante inclinado mas deveras excitante, e, enquanto ele vogava na sétima arte, e na ficção, eram nossas todas as perversões da alma, já danada, de tanta felicidade, agora, eles mesmos, os espectros se tornaram tão autónomos como nós, e agora, somos nós e eles, de corpo presente a constatar a nossa mais medonha obra. Concomitante a toda a nossa realidade, seja ela resguardada, ou mantida em dose máxima de informação, há outras realidades que se passeiam, tão reais quanto estas. E dessas não temos memória, e estamos a construir espaço para a podermos abarcar, pois que nem em sonhos e visionarismos se teria previsto tanto! Como não ser a realidade uma esfera à parte, até da nossa capacidade de mediúnicos informadores?! Nestes quotidianos, assim vamos vivendo como se de um cadáver nos estivéssemos alimentando, tornámo-nos necrófilos sociais, para não se desaparecer de vez e nos levarem as doces bactérias que restam à ameaçante guerra de neutrões que nos há-de suportar lavados de dissolventes naturais. E se as bombas não chegarem a Nova Iorque, vão chegar a outro local, que Nova Iorque é agora uma metáfora de Babel . E se os nossos filhos morrerem a percorrer o mundo, que tão generosamente lhes insuflámos na mente como lugar extraordinário, que mesmo assim não tenhamos medo das nossas lágrimas e saibamos com dignidade ir abrindo espaço à gravidade desta situação social. Vivemos ameaçados, com cortes, com despejos, com ofensas, com desconsiderações tais que dava para nos atordoarmos de espanto até ao fim dos nossos dias, e agora mais esta terrível realidade de grupo que queremos contornar com uma compostura mumificante e nos trespassa a noite como um raio impúdico e imprudente. Sair disto sem feridas é impossível, nós estamos mais ou menos já em chaga, mas, talvez ainda se consiga uma certa nobreza que fará sempre parte de uma saudosa Humanidade sonhada. Nós, que inventámos o sonho e fizemos da vida uma obra de Arte ( os que a fizeram), não devemos acabar assim. O mundo é o cenário de um grande dramaturgo poético, um mundo em que o criador está presente em toda a parte, e em toda a parte oculto.
Paulo José Miranda Em modo de perguntar h | Artes, Letras e IdeiasKaradeniz: “Saber matar bem tem sempre futuro” PJM: Lá está você a dizer mal do seu filho, Karadeniz! K: É verdade, tens razão!… PJM: O Karadeniz também frequentou a prostituição de elite, porque critica o seu filho? K: É muito diferente, Paulo! Muito diferente. Eu ia algumas vezes a Zurique, mas já foi depois de ter ficado sem a mãe dele, sem quaisquer possibilidades de nos encontrarmos. Quando se ama muito alguém que não se esquece, só se pode ir às putas. Mas para o meu filho, as putas vêm antes do amor. Antes e depois, que ele não conhece outro modo de se relacionar com uma mulher. PJM: Sente culpa em relação ao seu filho? K: Não, não sinto culpa. Tenho pena que nunca nos tenhamos chegado a encontrar, mas não sinto culpa. O amor que sentia pela mãe dele, esse amor sempre desencontrado, não me deixava ver mais nada. PJM: O Karadeniz gostava mais da sua mulher do que do seu filho, não gostava? K: É verdade, Paulo! Não podia fazer nada. PJM: Julga que o seu filho sabia disso, que ele sabe disso? K: Não sei. Eu não sei quase nada do meu filho. O meu verdadeiro filho é as coisas que tenho naquela casa perto de Eminonu. PJM: Não gostava de estar mais com o seu filho, nesta fase da sua vida? K: Antes de morrer, queres tu dizer! Não sei se gosto do meu filho, Paulo! Tenho-lhe amor, como pai, quero que tudo lhe corra como ele quiser que corra, mas julgo que não gosto da pessoa que ele é. Julgo que ele também não gosta da pessoa que eu sou. Vivi sem hipocrisias e não quero morrer próximo dela. É melhor assim como está, cada um para seu lado. Se pudesse, antes de morrer, gostava era de ver uma vez mais a minha mulher. Ver o amor pela última vez. Mas isso não é possível. PJM: A sua vida parece uma canção de amor e morte, Karadeniz! K: Não, Paulo, a minha vida é, como já te tinha dito, uma história de amor. Mas não há histórias de amor sem mortes. Aliás, a morte só ganha sentido com o amor. Se não sentíssemos amor à vida, amor a alguém a morte não tinha poder nenhum; a morte não assustava ninguém. A morte é de quem a vê, de quem fica, de quem se sente afectado pelo que vê, afectado por quem acaba de perder. A morte só existe na vida. Não há morte depois da vida. Isto é uma coisa que se aprende na profissão que tive. Por isso é que a morte que fazia acontecer aos outros não era morte. Eu não a via acontecer, eu não perdia ninguém. Eu não era aquele que ficava, era aquele que continuava, que é muito diferente. Saberes da morte de um desconhecido não é saberes a morte, mas saberes da morte de alguém que amas é saber a morte. PJM: Antes e depois de cada um dos seus trabalhos, costumava pensar acerca da morte ou, pelo contrário, concentrava-se apenas na técnica e na perícia necessária à execução? K: Precisamente, Paulo, antes e depois de fazer acontecer a morte a alguém, a morte é apenas algo a realizar e todos os pensamentos vão nessa direcção: identificação dos problemas possíveis à realização do trabalho e encontrar as soluções para os mesmos; após a realização, faz-se o balanço de tudo. A morte nesses momentos é apenas um objectivo a alcançar, como para o atleta cortar a meta. Só mais tarde, passados uns dias, já no conforto de casa é que a morte se tornava pensamento, uma coisa geral, uma coisa de todos. Quando se está em campo, presos na dualidade de se ser atingido ou preso, ou fazer a morte, a morte não aparece. Ela pode acontecer, mas não aparece. PJM: Julga que também é isso que acontece na guerra, em combate? K: Não, Paulo! Aí a morte dos outros à tua volta pode fazer com que a morte fique à tua frente de um modo que não te deixa ver mais nada. Nesses casos, a morte não te deixa fazer nada. Absolutamente nada. A presença da morte torna-se tão evidente que anula a acção e a vontade. É a cobardia extrema. PJM: Mas essa evidência também pode empurrar o homem para a frente, para um acto absolutamente temerário, não pode? K: Sim, também pode! A evidência total da morte produz dois efeitos completamente contrários: a inacção e acção total. De qualquer modo, esta acção total é, acima de tudo, uma tentativa de fugir à morte. A morte é tão presente que o homem foge dela, indo na direcção daquele que pode fazer a sua morte acontecer. Repara que a expressão que se usa é a de “fuga para a frente”, de fuga para morte. Fugir da morte na direcção dela, de onde ela vem. No fundo, é um acto religioso, porque quem avança na direcção da morte, acredita que pode assustá-la ou fazê-la parar, só pelo facto de ir enfrentá-la completamente a descoberto. Acredita que vai ser recompensado. PJM: Mas pode acontecer, ou não? K: Pode! Como também pode acontecer pormos cinco balas no tambor de uma arma de seis tiros, rodá-lo, apontá-lo à cabeça, disparar e ser a vez da câmara vazia. Mas quem é que sensatamente faria essa aposta? PJM: Sim, só no desespero completo alguém faria uma coisa dessas! K: Precisamente! O desespero completo é ter a morte como evidência total. PJM: Também pode acontecer na vida de cada um, sem ser em combate. K: Acontece sempre. A diferença é que em combate é tudo mais decisivo, é tudo mais apressado, e também tudo muito mais tangível. Em combate a morte sente-se fora de nós e à flor da pele. Se já tiveste a experiência de lutar na rua com desconhecidos, sabes que essa luta é muito mais do que uma luta a treinar. Podes sair magoado de ambas, mas na luta de rua, tudo à tua volta é sentido por ti como possibilidade de dor. Uma garrafa na mão do outro, já não é uma garrafa, é uma possibilidade que pode acabar contigo naquele momento. A grande diferença é que em combate a morte não é pensada, é sentida, na vida a morte é fundamentalmente pensada. Em combate, as coisas estão contra nós, se não estiverem a nosso favor. Na vida, as coisas são as coisas, são neutras, não precisam de ser nem a favor, nem contra. É por isso que em combate a morte se sente mais. PJM: Presumo então que o Karadeniz também esteve em combate! K: Claro! Antes de ser assassino profissional, fui militar. E cheguei a estar em combate. PJM: Aonde é que combateu e quando? K: Fiz o serviço militar nas forças especiais, quando regressei dos EUA, depois do curso de engenharia, e cheguei a combater em operações secretas nas montanhas entre a Turquia, o Irão e o Iraque. PJM: Foi aí que adquiriu a perícia para a sua posterior profissão? K: Uma parte dela, sim. A Turquia tinha, e ainda deve ter, das melhores forças especiais do mundo. A Turquia sempre foi e tem de continuar a ser fortemente militarizada, por causa do lugar onde se encontra. Vivíamos, e ainda vivemos, rodeados de inimigos. PJM: Se, nos dias de hoje, estivesse a começar a sua vida, voltaria a ter a mesma profissão? K: Voltaria. Parece-me uma profissão de futuro. Saber matar bem tem sempre futuro.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasA ideia de construir uma larga avenida [dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o primeiro número do hebdomadário noticioso, histórico e literário Ta-Ssi-Yang-Kuo (resposta de Mateus Ricci, para dizer de onde vinha: ‘Grande Reino do Mar de Oeste’) de 8 de Outubro de 1863, nas Notícias Diversas e título Alargamento da Cidade refere António Feliciano Marques Pereira: “Quem é que não tem observado que, no Bazar, há uma acumulação de casas e habitantes, muito e muito além do que o local permite”. Já o estudo de Maria Calado, Clara Mendes e Michel Toussant, refere “tal como no século anterior, a cidade portuguesa permanecia organizada em torno das igrejas e conventos, envolvidos por amplos espaços abertos e públicos, em contraste com a zona chinesa, situada a norte, entre Santo Agostinho, São Paulo e o mar. Esta caracterizava-se por quarteirões de forma alongada, cortados por becos e travessas estreitas, era preenchida por habitações de dois pisos, dos quais o inferior era ocupado por comércio familiar e pequenas unidades industriais de carácter artesanal. Os becos correspondiam, em regra, a espaços de circulação de peões, mas como não tinham saída adquiriram uma certa privacidade…”. A actividade dos chineses desenrola-se no Bazar, que enquadrava o Convento de São Domingos e integrava as ruas dos Mercadores, dos Ervanários, das Estalagens e da Palha, segundo refere Pedro Dias. Já o Director das Obras Públicas, o Engenheiro Augusto Abreu Nunes, que chegara a Macau em 1893, pouco tempo antes de Camilo Pessanha, no final da sua comissão arquitectou um plano para “construir uma Avenida larga e espaçosa, que estabeleça uma comunicação directa entre a Rua Marginal do Porto Interior e o centro da cidade, entre estas duas ruas de principal movimento: a rua da Felicidade e a rua das Estalagens; e alargar as comunicações transversais destas três ruas, será sem contestação, um melhoramento de primeira ordem para a Colónia, debaixo de todos os pontos de vista, porque facilitará o comércio e o trânsito e melhoraria as condições higiénicas da cidade, dando ocasião, também, a que se construa um cano colector na Avenida para os esgotos, e canos nas ruas transversais, melhorando assim consideravelmente, o estado deplorável em que se encontra a canalização da cidade. Dado este primeiro passo para o saneamento do Bazar chinês, o que faltará para o pôr completamente em boas condições, efectuar-se-á depois rápida e naturalmente, como consequência deste primeiro melhoramento”. Expropriações Na memória descritiva e justificativa, o engenheiro Augusto Abreu Nunes refere o projecto de construção de uma avenida desde o Largo do Senado até à Rua Marginal do Porto Interior e alargamento das ruas dos Mercadores, do Mastro, do Aterro Novo e travessa da Cordoaria. “As obras que se propõem para realizar este melhoramento consistem pois: na construção de uma Avenida, com 15 metros de largura desde o largo do Senado à rua marginal do porto interior, reservando-se para mais tarde o seu prolongamento até à Praia Grande, por ser mais dispendioso e menos urgente a sua construção, porque são melhores as suas condições de trânsito actual; alargar as ruas dos Mercadores, do Mastro e Aterro Novo, dando-lhes a largura de 10 metros, e prolongar a travessa da Cordoaria até à rua da Felicidade. Estas obras trarão, ainda, como consequência, (sem outra despesas), o alargamento da rua da Caldeira e da parte das ruas do Matapau, Barca da Lenha e Nova d’ El Rei; a abertura dos becos do Professor, do Paralelo, do Louceiro, do Barbeiro, do Cotovelo, do Poço etc. e ainda, a supressão de muitos pátios, de vários moradores cada um, e que são outros tantos focos de infecção que empestam a cidade pela dificuldade de se exercer nelas a devida fiscalização, além da falta de ar e luz que ali existe”. “Para se realizar este melhoramento importantíssimo, é necessário fazerem-se importantes expropriações; mas eu entendo que, sendo este melhoramento quase exclusivamente para utilidade dos chineses, deverão ser eles que devem principalmente pagá-lo, evitando onerar os cofres da Fazenda com despesas para o conseguir e reservando a sua receita para outros melhoramentos de que tanto carece a Colónia e cuja importância não é tão fácil fazer recair sobre eles. “Nesta instrução eu entendi que devia fazer a avaliação das expropriações não tomando por base o rendimento dos prédios, não só porque é completamente desconhecido este rendimento exacto por serem as avaliações das matrizes incorrectas e mal feitas, o que tornaria portanto desigual qualquer avaliação feita sobre este rendimento, mas porque sendo em geral grande o rendimento das propriedades, seria enorme o custo das expropriações calculada sobre esta base. Além disso, esta circunstância poderia impossibilitar o Governo de intentar um melhoramento que sendo de primeira necessidade para o saneamento da Colónia, visitada anualmente pelas epidemias de cólera e peste, traria a meu ver outros prejuízos muito maiores e principalmente para os mesmos indivíduos sobre quem recai estes sacrifícios. Não hesitei por isso em pôr de parte este sistema de fazer as avaliações e limitei-me a fazê-las sobre a base unicamente do valor da construção, como se tem feito até aqui, por motivos análogos. “Creio que se poderá porém compensar as consequências deste modo de fazer as avaliações das expropriações, dando aos proprietários, a quem se fazem as expropriações, a preferência na aquisição dos terrenos que sobrarem dos melhoramentos projectados. “Procedendo deste modo, os terrenos que sobram da abertura e alargamento das ruas poderão ser vendidos depois, por um preço muito mais elevado do que o custo das expropriações, como é natural, por isso que ficam marginando avenidas e ruas largas, bem ventiladas e bem canalizadas, e eu suponho que a importância destes terrenos cobrirá todas as despesas da expropriação e ainda da construção do pavimento e canalização das ruas. “A Avenida projectada, como disse, tem uma largura de 15 metros, mas nesta largura compreende-se a de 2,5 metros que cada lado, as construções devem deixar no pavimento térreo para servir de passeios, cobertos em arcadas, abrangendo as construções estes espaços nos pavimentos superiores, ficando portanto a Avenida com 10 metros de largura para o trânsito de carros entre estes passeios. Para nos convencermos que esta largura é suficiente bastaria dizer que a rua principal, Ducerio Road, em Hong Kong, tem entre os passeios 10,5 metros de largura”.