Tempos e lugares

Setúbal, 10 Junho

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]emos como se estivéssemos em pleno acontecer, mas não será nunca assim. A esta distância percebo que o dia maior da Festa da Ilustração, a segunda leva de inaugurações, será marcado pelos tempos, até os contratempos, além das geografias e dos lugares. Tem-se pouca noção da quantidade de trabalho exigido, do esforço envolvido, das horas perdidas, dos milhentos acertos e vontades que precisam coincidir para que o milagre aconteça. Este ano, por inúmeras razões, foi particularmente difícil. Justifica-se, também por isso, mais a festa.

Por coincidência, o país celebra-se em dia mítico, torturando Camões e torturado pelo calor, que se abate sobre nós com desejada brutalidade. A jornada começa pelo futuro, a meio da tarde, no Convento de Jesus, onde a metade ainda em obras se abriu para acolher a «Ilustração Portuguesa». Cenário apropriado, portanto. Ano após ano, continuo surpreendido com a biodiversidade nacional: paisagens, palcos, experiências, desenvolvimentos, cores e corpos, abstrações e perspectivas, gestos e retratos, reflexões e deslumbramentos. Estranho e maravilhoso país, este.

À beira-mar, no Cais 3, está ancorada uma fatia de passado, entre 1895 e 1969: grande selecção, feita pelo Jorge [Silva], a partir da sua ímpar colecção de publicações, de anúncios ilustrados pelos melhores artistas portugueses (de Lima de Freitas a Fred Kradolfer, de Alonso a Jorge Barradas, de Cottinelli Telmo a Roberto Nobre, de Carlos Botelho a Bernardo Marques, de Maria Keil a Piló, de Luís Filipe de Abreu a Lázaro e tantos outros). O armazém contém, em altas torres, «Anúncios Classificados», essas inúmeras variantes de que é feito o horizonte mirífico do desejo de saúde e bem-estar, de beleza e prazer, de comida e bebida, de cultura e progresso. O humor está omnipresente, bem como a ideologia. Além do delirante conjunto de imagens, testemunho gritante de outros tempos. Dá gozo ver quem vê a exposição, com os seus comentários e sublinhados, com as suas gargalhadas e indignações.

A tarde finda-se virada a sul. «O Alentejo do Espanto e do Sonho» será, muito provavelmente, a maior e mais animada das (poucas) retrospectivas dedicadas a Manuel Ribeiro de Pavia (ilustração ao lado), cujo centenário do nascimento se celebra, enquanto, ao mesmo tempo, se lamentam os 50 anos passados sobre a sua morte, no mesmo exacto dia 19 de Março. Fica bem vincado o carácter onírico do trabalho de Pavia, o seu olhar sobre o feminino e a paisagem, todas as formas irmanadas em ondas e massas, momento e movimento. Uma parede inteira de capas de livros, na sua grande maioria de autores neo-realistas, abrem curiosa janela. Não se consegue escapar à tragédia e ao mito criado, com a revista Vértice a celebrar na morte o que não soube fazer em vida. Diria Eugénio de Andrade: «Morreu o Manuel Ribeiro de Pavia. Levou-o uma pneumonia que o foi encontrar depauperado por uma vida quase de miséria. Passava fome! Tinha uma única camisa! Não pagava o quarto há imenso tempo! E nós a falarmos-lhe de poesia…»

Feira do Livro, Lisboa, 11 Junho

A Inês [Fonseca Santos] entrevistou dezenas de escritores em busca de resposta para a pergunta: «Vale a Pena?». O pequeno volume, da prolixa Retratos da Fundação, outra das preciosas colecções dirigidas pelo António [Araújo] para a Fundação Francisco Manuel dos Santos, contém afinal mais interrogações, mas que permitem retrato breve e dinâmico do panorama literário nacional, sobretudo nos seus aspectos mais funcionais. Pretexto para conversa, em tarde quente, com a autora, Mário de Carvalho e Paulo José Miranda, acerca dos lugares onde foi arrumando os criadores: começa pelo nevoento e disperso do intelectual na actual praça pública, com o desaparecimento do diálogo crítico, entra depois quarto adentro, sítio maior da indispensável solidão, avança pela aprendizagem, depois pelo dinheiro, sua importância e quase ausência, para chegar ao mercado, subtil tirano. Não haverá por aqui consensos, e estranho seria se assim fosse, mas há muitas concordâncias. Estará a vida literária ameaçada pela extinção, seja da voz activa do intelectual, de um lado, e a do olhar-leitor, do outro? A vocação, a impossibilidade de sobrevivência sem o uso da palavra e da imaginação, parece impor-se a cada vicissitude mais ou menos prática, mais ou menos filosófica. O resto, em ideia cara ao Paulo [José Miranda], terá que resolver-se com a leitura criativa, ao alcance de qualquer um: ler criticamente, partilhadamente, acaloradamente, cada vez mais livros, velhos ou novos. Mas afinal não se edita demais?

Largo de S. Sebastião, S. Brás de Alportel, 15 Junho

Temo que seja ignorado, este «Escrytos», volume que reúne os ensaios do Paulo Pires, programador e criador completo, tocando tão bem a escrita como o acordeão, sobre cultura contemporânea, com que inauguramos a colecção Doença Crónica, na Arranha-céus. Tenho pena, pois as suas reflexões, por exemplo sobre leitura ou programação cultural (autárquica), são muito desafiantes. Pensam a partir de uma prática quotidiana, cruzam-se com as leituras mais diversas, praticam a cultura como o fole vital do acordeão: respirando. Quase uma centena de pessoas enfrentaram a canícula em pleno Largo de São Sebastião, sob os auspícios das palavras de Roberto Nobre e à sombra mínima do busto de Bernardo Passos, cuja poesia tenho que visitar, para ouvir Ana Isabel Soares enquadrar com sabor e saber: «Escrever, fixar o vocabulário do pensamento, é uma atitude de resistência ao adormecimento cultural ou à aceitação das sucessivas crises (que sempre vêm). Paulo Pires, escrytor, oferece aqui o seu contributo para contrariar aquilo a que, em Vocabularies of the economy, Doreen Massey chamou a “hegemonia do neoliberalismo”, nas pérfidas consequências que impõe às várias formas de manifestação cultural dos povos.»

Feira do Livro, Lisboa, 17 Junho

Suo as estopinhas, na boa companhia do Pedro [Lourenço], para apresentar à sociedade uma senhora das sombras: Dona Antónia. Inclui-se na colecção Vidas Portuguesas, parceria da Imprensa Nacional, do Duarte [Azinheira], com a Pato Lógico, do André [Letria], modos de fazer que se unem, o do património ao de laboratório, passados e futuros. Foi custoso de processos, mas acabou sendo prazeroso nos finalmentes, com o Pedro a desenvolver metáforas visuais e cores que até no escuro deixam brilhar o lado solar das encostas do Douro. Sabemos pouco sobre a figura, quanto baste para acender o fascínio. Teremos chegado perto?

21 Jun 2017

As cores do arco-íris chinês 中国的颜色

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando um designer ocidental ou um produto querem agradar ao mercado chinês “vestem-se” de VERMELHO e toda a gente exclama imediatamente: uau fixe, isto é a China! Evidentemente os chineses aplaudem por simpatia, porque os chineses são pessoas educadas e nunca explicam que o vermelho é … bem, não é uma cor chinesa, nem o verde, ou o cliché da combinação verde/vermelho, a não ser na cozinha Sichuan que usa muitos pimentos destas cores.

De facto, a China tradicional não pintava tudo de vermelho. Durante milhares de anos os chineses colecionaram centenas de belíssimas cores. Espertos, não é verdade? Neste artigo vou falar-vos da sensibilidade cromática chinesa.

Por exemplo, estes nomes curiosos descrevem duas cores que vocês não vão conseguir adivinhar quais são:

竹月, literalmente “o mês do bambu”. Esta cor é descrita através da sensação que nos transmite um bambu erguido à luz de um luar prateado, metálico, com um toque de azul e violeta.

百草霜, literalmente “orvalho em cem plantas”. Pensei imediatamente num qualquer tom de branco, mas não. É cinzento escuro. O seu significado vem de uma mezinha da medicina tradicional, uma combinação cinzas com uma mistura de ervas. Estas cinzas resultavam da queima de certas plantas e são tão leves como o orvalho.

Na antiga China, o povo pintava toda a complexidade das suas vidas, incluindo a política e a religião, com cinco cores, que condensavam a visão chinesa do mundo.

Estas cinco cores eram: vermelho, amarelo, azul esverdeado, preto e branco. As cores apontam direcções e correspondem aos cinco elementos cósmicos. Os antigos chineses tinham uma imaginação cromática muito rica.

  • Por exemplo: o branco corresponde ao metal e aponta para Ocidente. É representado pelo tigre branco. O metal está associado às armas e à matança.

O preto é a cor do Norte, representa a água e o seu animal é a tartaruga negra.

O preto significa também “mistério” e “profundo”. É a cor que podemos divisar em torno de uma estrela cintilante num céu nocturno, profundamente misterioso e com um leve toque de vermelho.

E o azul esverdeado, como é que esta cor é percepcionada pelos chineses?

Cabelo azul esverdeado 青丝 significa cabelo negro. Céu azul, escreve-se青天 e relva verde, 青草。É por isso uma cor muito caprichosa. Mas imagine uma montanha coberta do viço verde de inúmeras plantas. Se olharmos de longe torna-se azul, mas quando colocada no horizonte longínquo veste-se de cinzento escuro.

A porcelana chinesa azul representa a cor do céu que se vislumbra entre as nuvens, depois da chuva torrencial. É um azul belo, delicado, nada berrante.

Os chineses coloriram o seu mundo com uma sabedoria muito peculiar.

Foto: Desfile da Victoria’s Secret em Xangai

21 Jun 2017

Que faremos quando tudo arde?

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]té agora, 62 mortos. É possível que sejam mais, consequência de um dos piores incêndios de que há memória. Que fazemos? O governo diz que a culpa é do calor e da trovoada seca. A oposição diz que a culpa é do governo e da péssima gestão dos recursos disponíveis. O governo diz que a culpa é das péssimas decisões que a oposição tomou quando era governo. A oposição, por sua vez, garante ter feito sempre mais enquanto governo do que o governo actual. O governo assegura não somente ter feito mais nas suas anteriores encarnações enquanto governo como afiança ter sido mais exigente, enquanto oposição, com a oposição quando esta foi governo. A oposição indigna-se com a genealogia da culpa como meio de aproveitamento político. O governo apela ao recato num momento de consternação nacional e está chocado com a forma como a oposição desrespeita o pedido de silêncio. Entretanto, que fazemos?

O presidente da liga dos bombeiros diz que “quando a natureza está zangada, é muito difícil de contrariar”. A PJ garante ter identificado a árvore suspeita pela deflagração das chamas. O tudólogo Marques Mendes faz saber que assistiu a tragédia de forma tranquila, em casa. Ficamos sem saber se temos de sacrificar uns cordeiros para apaziguar a natureza zangada, se empreendemos uma verificação maciça do cadastro criminal das árvores portuguesas ou se seremos algum dia capazes de dar um uso a Marques Mendes para além de soporífero nacional que, embora lhe sendo muito adequado o papel, não lhe faz jus às enormes potencialidades que todos lhe reconhecem.

A Judite de Sousa, numa tentativa de desanuviar o pesar nacional, faz um remake do sketch dos Monty Python onde estes entrevistam três pessoas mortas sobre a vida depois da morte. A coisa não corre bem e milhares de pessoas justamente indignadas partilham indignadíssimas um screenshot onde esta aparece ao lado de um cadáver. A coisa não corre bem e outros tantos milhares indignam-se com o despudor da Judite de Sousa e com aqueles que partilharam a imagem. A onda de indignação cresce até rebentar, mansa, num gif de um gatinho a comer uma banana que algum distraído postou.

Os portugueses, solidários, acorrem aos bombeiros com mantimentos. A ministra da administração interna, até aí conhecida unicamente por tirar o secretário de estado do caminho para a selfie televisiva com o presidente da república, diz os portugueses para pararem, que já não há arrumação para tanta generosidade. Entretanto, o presidente da república diz que não se poderia ter feito mais antes mesmo de saber cabalmente o que aconteceu e o que foi feito. Marcelo Rebelo de Sousa tornou-se o ursinho de peluche de todos os portugueses, o objecto de segurança no qual a pátria se refugia quando se ouve rosnar por debaixo da cama. Do anterior presidente, diz-se que o deveriam ter tirado do formol comatoso antes de o colocarem em funções. Deste, que se poderá dizer? Chegará naturalmente ao fim do segundo mandato como companheiro preferido das fotos de perfil do Facebook e, a querer, não lhe faltará trabalho como sol dos Teletubbies.

Três dias de luto. Tenho a certeza de que se encomendarão estudos e pareceres a comissões especializadas sobre o que aconteceu e como evitá-lo. Como sempre se fez. Entretanto, as caixinhas de comentários dos jornais estão atafulhadas de especialistas instantâneos em incêndios. Toda a gente tem qualquer coisa a dizer sobre tudo, o que naturalmente ocorre nas sociedades em que o valor do conhecimento é inversamente proporcional à quantidade de opiniões produzidas. No fundo, somos todos o Trump na cimeira da NATO, a ministra da administração interna ao lado do presidente da república num directo: aparecer, já há muito, tornou-se sinónimo de ser. Cumprimentos do Andy Warhol.

Entretanto, que fazemos? Transferimos dinheiro mediante chamadas telefónicas em que dez dos sessenta cêntimos ficam retidos para proveito privado e o IVA para proveito do estado (que é, claramente, o de todos nós, bem assegurado). Nada de novo. Resta-nos chorar os nossos mortos e esperar que arrefeça.

20 Jun 2017

Equívocos de juízo acerca dos escritores

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]oje vivemos num mundo em que queremos que os escritores sejam excelentes cidadãos e aceitamos que os políticos sejam maus cidadãos. Quantas pessoas se escandalizam ao saberem, ou verem, que o escritor ou poeta que tanto admiravam, é um bêbado em público? Como se isso não fosse natural. Quantos escritores e poetas ao longo dos tempos não eram bêbados? Fernando Pessoa, Charles Bukowski, James Joyce, Tenesse Williams, Dylan Thomas, Ernst Hemingway, Edgar Alan Poe, Serguei Iessienin, Camões, Li Bai…

Por isso, tem de se traçar uma linha entre o escritor e a pessoa. Podemos evidentemente não querer privar com um escritor bêbado, mas não devemos deixar que esse comportamento vá influenciar a leitura dos seus livros. Provavelmente seria pesaroso para muitos privar com Dylan Thomas ou James Joyce, pelas histórias que se contam, mas não deixamos de ler os seus livros por causa disso, mesmo que fôssemos seus contemporâneos. Não me parece uma condição necessária a um escritor, a sobriedade, contrariamente a um político.

E se em relação à bebida estamos conversados, pois talvez todos concordem com o que aqui foi escrito, ainda que possam depois não o praticar, a verdade é que em relação às posições políticas dos escritores a concordância fica muito mais difícil. Conheço pessoas que não lêem ou não valorizam um poeta ou um escritor, apenas porque ele é politicamente de direita. Como se ser de direita fosse equivalente a escrever mal! Como se tantos e tantos bons escritores e poetas ao longo dos tempo não tivessem posições de direita nas suas vidas! O grande dramaturgo norueguês Hentik Ibsen dizia, algo controversamente, que o escritor é por natureza um animal conservador no modo como conduz a sua vida e revolucionário no modo como escreve. Talvez se estivesse a ver a si mesmo, mas no fundo o que ele está também a dizer é que um escritor deve ser julgado pelo que escreve e não pela vida que leva. E por falar em norueguês, temos um dos maiores escritores do século XX, que era não apenas de direita, mas de direita reaccionária, Knut Hamsun.

Contrariamente ao professor Georg Steiner, que é judeu e separa completamente o trabalho intelectual de um autor do cidadão que esse autor foi, o professor Harold Bloom não o consegue fazer, invocando o que esses cidadãos fizeram de mal ao povo judeu, não conseguindo claramente separar o escritor do cidadão. Por isso vemos fora do seu Cânone Ocidental, autores como Kunt Hamsun, Pirandello ou Céline. Mas numa livraria de Telaviv encontrei livros de Céline, mostrando-me que a nação judaica consegue fazer essa separação.

Por outro lado, hoje, se um escritor tem a ingenuidade de dizer numa rede social que é de direita, erguer-se-ão vozes, que em breve se multiplicarão em milhares, a acusá-lo de fascista, acrescentando que não irão ler mais livro nenhum dele (caso o tenham feito antes). E o mesmo acontecerá se um escritor escrever no seu mural de Facebook: eu sou comunista. De um lado e do outro formam-se fileiras de exércitos de opiniões, acusando a escrita deles. Conheço quem não leia José Saramago por ele ter sido comunista a vida toda. E conheço quem o leia apenas porque ele foi comunista a vida toda. Qualquer um destes leitores está errado. Pois se José Saramago ao escrever não fosse muito maior do que era enquanto cidadão, não valaria a pena lê-lo. Qualquer grande escritor é muito maior a escrever do que é enquanto pessoa. É precisamente por isso que ele é um grande escritor: porque escreve acima daquilo que é como cidadão.

E este equívoco estende-se a muitas facetas das nossas vidas. Por vezes, ao se falar de futebol, oiço alguém a criticar o jogador Cristiano Ronaldo por ele ser vaidoso ou por outras idiossincrasias da sua personalidade. Ora, aquilo que deve interessar na apreciação de um jogador de futebol é o seu desempenho entre as quatro linhas do relvado. Fora das quatro linhas, o Cristiano Ronaldo interessa-me apenas na medida em que também me interessa um habitante distante das Maldivas, isto é, espero que não sofra.

Esta crescente confusão entre a excelência de uma actividade e a cidadania tem vindo a aumentar com as chamadas redes sociais. Estas, como promotoras de opiniões que são, tendem a julgar as actividades das pessoas pelo comportamento delas. E isto acontece, porque as pessoas naturalmente querem falar, querem fazer-se ouvir, e também porque é mais fácil julgar alguém a cair de bêbado ou uma frase que escreve no Facebook do que ler os livros que ele escreveu.

Sem dúvida, um escritor é um humano. E deve ser julgado como humano na sua praxis e como escritor na sua actividade. Aqueles a quem devemos julgar pelas suas acções são os políticos, pois esses têm o dever de ser exemplos. Evidentemente, não falo da vida privada, falo da vida pública. Um político deve ser exemplar. Não um escritor, um cantor, um cineasta ou um jogador de futebol. Devemos exigir decência a Donald Trump, a Vladimir Putin, a Marcelo Rebelo de Sousa, e julgá-los por isso, e não a Bukowski, Iessienin ou Pessoa (ainda que, como cidadão, qualquer um deles deva ser julgado pela sua cidadania ou falta dela).

20 Jun 2017

Riquexós, meio de transporte de Macau

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s jinrichshas surgiram em Macau na primeira metade do ano de 1883 (informação proveniente do jornal O Macaense de 12 de Julho) e dez anos mais tarde, em 1893 o assunto dos Jinrickshas estava na ordem do dia, pois o Leal Senado preparava-se para entregar a um monopólio os cerca de 280 carros de vinte proprietários então existentes. Puxado em cadenciada corrida por cules, vencida a conquista do cliente, o resto do dia era trabalhar para refeição e jogo. Envergando uma cabaia gasta, qual solas dos pés de calcarruar/percorrer travessas estreitas e íngremes ruas, faz o cule o transporte de pessoas e bens, agora ajudado por duas rodas.

Quando Adolfo Loureiro chegou a Macau a 15 de Setembro de 1883, já existiam, como se pode constatar, os riquexós, os carros japoneses ou jinrickshas. No entanto, durante a sua estadia de seis meses na cidade não os menciona no seu diário, que veio a dar o livro No Oriente – De Nápoles à China. Refere sim: “Ninguém em Macau anda a pé. Há as cadeirinhas de praça, com tarifas aprovadas pela Câmara, que em Macau se apelida de Leal Senado. Uma pessoa que se preze tem, porém a sua cadeirinha, com os seus dois cules uniformizados. A minha devia ser esplêndida, com vidraças e stores, e os meus culis teriam cabaias e calções brancos, orlados de azul e branco, com os seus grandes chapéus de palha de bambu também pintados de azul e branco”. (…) “Este serviço custar-me-ia: a boa cadeirinha 10 patacas; o fardamento dos dois culis, outras 10; e o salário destes dois homens não passaria também de 10 patacas por mês, e a seco!…”

No Projecto de postura municipal aprovado pelo Conselho de Província ao consultar o Boletim Oficial da Província de Macau e Timor n.º 42 de 20 de Outubro de 1883 demos conta terem os condutores de jin rik sha, ou riquexó, da praça de tirar uma licença no Senado para os conduzir, custando essa uma pataca. Tinham também de ter a tabela de preços em português e chinês e o número atribuído pela secretaria do Leal Senado afixado ou pintado num lugar visível. Na licença que se passar a cada jin rik sha será designado o local em que deverá estacionar, e a onde deverá estar colocado por modo que não cause embaraço ao trânsito público, alertando para as ruas que tenham menos de cinco metros de largura, nenhum jin rik sha, embora alugado, poderá estar postado à espera de alugado. Transitando dois em sentidos opostos, cada um dá a sua direita, mas de modo que se não toquem. Têm de se apresentar devidamente asseados, e todo o jin rik shas estando na estação, ou sendo encontrado na via pública desocupado, é obrigado a receber e transportar qualquer pessoa, que se apresentar para esse fim, a qualquer hora do dia ou da noite, pelo preço marcado na tabela, devendo circular à noite com uma lanterna acesa. O cule pode recusar transportar pessoas alcoolizadas.

No Boletim Oficial da Província de Macau e Timor n.º 2 de 12 de Janeiro de 1888 refere-se às alterações do regulamento de 1883, entre elas o aumento da licença para 5 patacas e terem os jin rik shas os números escritos tanto na forma portuguesa, como em chinês. Foi neste B. Oficial que ficou proibido os jinrikshas de subirem ou descerem ladeiras ou calçadas íngremes, a não ser se forem conduzidos por dois condutores e estes devem ser homens robustos, que se devem apresentar decentemente trajados. Já quanto à tabela de preços a praticar é a mesma de 1883, isto é, pela primeira hora $0,05 e por cada meia hora mais, $0,05, mas se o percurso de uma hora for para fora da cidade o preço é de $0,10. A única diferença que existe após cinco anos é no transporte de duas pessoas, que em 1883 era aberto mediante o entendimento entre as partes e em 1888, o preço para dois condutores é o dobro.

Para o Projecto do Liceu

Se a palavra jinricksha não chamou a nossa atenção ao passarmos uma vista de olhos por alto aos dez anos de jornais desse período, a partir de meados de 1893 ela tornou-se uma constante, continuando pelo ano seguinte os artigos sobre esse assunto. Aqui deixamos escrito o que neles recolhemos.

O semanário Luso-Chinês Echo Macaense, cujo proprietário e responsável era Francisco H. Fernandes, no dia 1 de Agosto de 1893 publica um artigo com o título Uma Explicação onde refere, “Apresentamos primeiro os motivos que levaram o Leal Senado a dar o passo que deu em monopolizar as licenças para este ramo de indústria que dá uma avultada verba para o orçamento municipal. Há também uns 4 meses o vereador Victorino propôs à câmara o monopolizar essa indústria, se assim se pode chamar, fundando-se nas seguintes razões: 1.º Os carros actuais já estão bem estragados, e a maior parte deles já deviam há muito ter sido condenados. 2.º Estando essa indústria à responsabilidade de um só indivíduo, o serviço de polícia seria mais bem feito. 3.º Os lucros serão o duplo do que actualmente.

Essa moção do ilustre senhor foi posta à discussão, e, sujeita à votação, foi julgada ainda inoportuna alegando o presidente que não via grande necessidade de aumentar os impostos, e por conseguinte que ficava essa moção para ser renovada quando fosse necessário. [O Leal Senado rejeitou a proposta para a concessão do exclusivo das licenças de jinrickshas, mas autorizou a elevação da taxa das mesmas, que passou a ser de $15 anuais, o que resultava o aumento da receita que o LS tinha em vista; era Presidente o secretário-geral Alfredo Lello, sendo o Delegado interino do procurador da Coroa e Fazenda Câncio Jorge, o secretário do Conselho Francisco Filipe Leitão e faziam parte também Domingos Clemente Pacheco e Pedro Nolasco da Silva.]

Passado tempo, apareceu o projecto do Liceu, a câmara foi convidada a dar um subsídio, e o Leal Senado deliberou dar 5000 patacas; foi então que o ilustre presidente o Sr. Comendador Basto, disse numa das sessões que chegou a ocasião de apresentar a moção do vereador Victorino sobre os jinrickshas, e assim se fez. Nessa ocasião se espalhou por fora que o Leal Senado ia avançar as licenças dos carros jinrickshas e logo apresentou-se um requerimento pedindo a avença das referidas licenças oferecendo à câmara a quantia de $6000 por ano, por tempo de cinco anos, sob as condições que o Leal Senado apresentasse. O Leal Senado demorou ainda o despacho desse requerimento dando assim tempo para que se fizesse um estudo mais profundo sobre o pedido. Uma semana depois apresentou-se um outro requerimento dos actuais proprietários dos carros que são uns 20 indivíduos, alegando que lhes constava que a câmara ia monopolizar os carros jinrickshas e pedia que assim não fizesse, porque isso ia prejudicar os seus interesses, e alegou mais, que muitos para adquirir esses carros venderam e empenharam os seus filhos (chamo para esse período a atenção do delegado da coroa) e que conservassem os carros no statu quo; esse requerimento não chegou a ser apresentado por lhe constar que um dos vereadores sabendo desse requerimento tinha dito que o único despacho sério era mandar com visto ao ministério público.

16 Jun 2017

Karadeniz: “Na vingança não se tem remorsos!”

(continuação)

5. A MORTE

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mediterrâneo é um vasto continente cheio de história e de rochedos com vegetação rasteira junto à água. Depois de Istambul, é o lugar onde Karadeniz se sente melhor. Tinha aí uma pequena, mas confortável casa junto a Kas. Os túmulos hititas no meio da vila, no meio dos passos das pessoas parecem dizer que a morte é bela, que a morte se transforma em pedra e em arte. Ao fim da tarde, costumávamos passear por entre as pessoas e por entre a morte como se fossem coisas separadas, como se não houvesse ligação nenhuma entre ambas, como se a morte fosse um lugar para se visitar e tirar fotografias. Depois, no porto, vemos os barcos dos pescadores a trazer a morte de um ou outro tubarão agarrada à popa, e que muito diverte o Karadeniz, por causa da usual reacção de pânico dos turistas. Acrescentava sempre: “este hoje não se pode comer, só amanhã”. A carne precisava ainda de horas para amaciar. Aproximávamo-nos então dos baldes onde vinham os peixes e ele acabava por perguntar ao pescador para que restaurante ia o peixe que ele queria, e apontava. A morte vinda do mar é que ditava sempre o lugar onde íamos jantar.

Qual é a sua relação com a morte? Ela foi mudando ao longo da vida, segundo o ponto de vista daquele que a sabia fazer, segundo o ponto de vista daquele que também sabia que um dia ela lhe iria acontecer e segundo o ponto de vista daquele que está próximo dela? Fale-me da morte, por favor!

No início a morte não era a morte. A morte era matar e matar era uma forma de ganhar a vida. Para quem, como eu, viveu da morte, e ainda vive dela, dos seus lucros, ela não assusta, Paulo. Por outro lado, sempre fui meio-morto, na minha vida cheia de segredos. Fui provavelmente o melhor assassino profissional do século XX e ninguém sabe disso. Quem soube, tão poucos, ou já morreram ou estão prestes a levar com eles para sempre o meu segredo, o testemunho da minha perícia. Imagina saberes que és um dos melhores escritores do teu tempo e ninguém saber disso! Isso sim, assusta mais do que a morte, meu amigo. Senti mais vezes o terror, que muitos atribuem à morte, em outras coisas da vida do que na morte propriamente dita.

Em que coisas?

Sabes o que é acordar a meio da noite alagado de terror, porque sonhaste com uma mulher que amaste no teu passado, com quem viveste, a fazer amor com outro homem, e isso estar a passar-se no tempo em que ainda viviam juntos? Um sonho acerca de um facto que nunca existiu, provavelmente, mas após tanto tempo como se pode realmente saber se não aconteceu? Ela já não vive contigo há anos e volta à noite por entre os sonhos para destruir, não só o teu descanso, mas também o teu passado. Alagar de dúvidas e de rancores e de mágoa e de desânimo toda a tua vida. Não é fácil perceber que facilmente se mata um homem à distância, mas que na distância do tempo não consegues sequer impedir que uma mulher faça de ti o que quiser. Só não te mata, porque seria pôr a sofrer-te de menos. Nunca sofri pesadelos pelos homens que matei e, no entanto, uma mulher tortura-me todas as noites, vinda de longe, vinda da morte. E esta morte que nos atormenta, que nos faz sangrar de infelicidade, cabisbaixos pelo dia fora, não se transforma num belo túmulo, para que apreciemos o passado. Para mim, a morte é aquilo que poderia ter evitado e acabou por se tornar inevitável. A outra, a do fim de tudo, não sei do que se trata, não me mete medo. A morte fez muito por mim, não tenho de que me queixar, Paulo! Mas o evitável a tornar-se inevitável é que me macera a existência toda.

É mesmo verdade que nunca sentiu pesadelos pela morte que fazia acontecer aos outros?

Completamente! Nunca senti remorsos pelo meu trabalho. Alguém tinha de o fazer e eu era muito bom a fazê-lo. Fosse eu crente e diria que a minha perícia tinha sido uma bênção de Deus.

Também nunca sentiu remorsos pelos gatos que matava, gratuitamente?

Não, porque estava apaixonado por esse ódio. Queria vingar-me da minha mulher, da falta de amor dela por mim, da falta de amor dela pelo filho, da falta de amor do meu filho por mim. Se não era falta de amor, pelo menos era falta de vivência desse amor. Na vingança não se tem remorsos! Nem por um momento deixei de dormir ou acordei alagado de suor e terror pelas balas que cravei nos gatos.

Não se arrepende de nada na sua vida?

Arrepender, não, mas se pudesse voltar atrás tinha começado a minha colecção mais cedo. Tinha começado a colecção antes da minha mulher se ter ido embora.

Alguma vez a deixou de amar, à sua mulher?

Nunca! Esse é que é o problema, essa é que é a morte. Uma mulher que diz que me ama, mas que não consegue fazê-lo, embora continue a dizê-lo e mesmo assim tu não consegues deixar de amá-la nem mandá-la embora. A minha morte é a minha mulher.

Tornou-se a sua morte desde que o deixou ou desde que morreu?

Não, Paulo, tornou-se a minha morte desde que a conheci. Foi o evitável a tornar-se inevitável. No fundo, a minha vida é uma história de amor.

Mas quando conheceu a B. já há muito que trabalhava, que havia tomado importantes decisões acerca do rumo da sua vida. Antes da B., já matava para viver.

Mas nunca havia amado antes, nem amei mais ninguém depois. E isso conta mais do que o modo como ganhava a vida. Matar não durou para sempre, mas o amor por ela durou para sempre. Provavelmente, não haverá muitas pessoas no mundo que possam dizer isso. Pois não, Paulo?

Hoje, provavelmente, nenhuma. Mas o seu amor só durou para sempre porque nunca se concretizou, não pensa assim?

Tens razão, Paulo! Durou para sempre porque nunca nos chegámos a ter um ao outro. Ela queria-me de um modo e eu queria-a de outro muito diferente. Nunca nos chegámos a encontrar no nosso amor.

O seu filho sabe desse seu grande amor pela mãe dele?

O meu filho não quer saber de nada que não seja dinheiro e poder. Herdou da mãe a distância em relação às pessoas e herdou de mim o pragmatismo em relação à vida. Para o meu filho, o amor é uma puta fina.

16 Jun 2017

Gustavo Adolfo Bécquer

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stamos, os da minha idade, naquele tempo em que mais, muito mais, do que a receptividade ao novo, somos automaticamente levados a recordar, a lembrar… nós, os da memória selectiva (porque creio que o muito mau tendemos a esquecer ou a remeter para uma zona onde não há sequer contacto como se de uma demarcação se tratasse para nos permitir a marcha do que foi importante salvaguardar). E assim aconteceu neste robusto e límpido Maio onde de repente me recordo das «Oscuras Golondrinas», o poema de Bécquer, como de um sonho bom de antanho… daqueles em que me lembro viva, a um tempo em que todo o meu cérebro eram andorinhas negras e não sabia o que queria ainda dizer: «esas non volverán!» – Hoje, eu sei! – Sei da beleza intransponível do poema de Bécquer, ainda não esqueci as que voltaram e quedo de olhos postos no encanto das coisas como um principiante: não há palavras que descrevam algumas outras palavras que descreveram estas sem as palavras que nos foram sucedendo: (…) mas Tu voltaste, e, isso é tudo quanto basta para cobrir a Primavera.

Deixámos, fomos deixando muitas coisas; deixámos amigos, deixámos amores, deixaram-nos desamores, deixámos as casas, deixámos a paz, deixámos que nos maltratassem, deixámos sem dúvida também secretas saudades, deixámos as horas fumadas, esquecidas, as manhãs frias e lúcidas, deixámos a corrida ao novo, aquele que não dá provas de ser moderno, deixámos a carroça das vaidades sem valor levarem para longe as gentes por quem não sentíamos empatia… os sorvedores do lixo, os mecânicos das épocas, deixámos de pintar o cabelo, deixámos o “baton” no fundo do saco… não nos sentimos alinhados com tanta demonstração. Já dificilmente nos apaixonamos, já não queremos como dantes, mas nem por isso o amor se tornou um divertimento de gozadores sem causa… e foi nestes desfechos que a memória foi de novo à fonte e nos banhou das coisas esquecidas.

Bécker é o poeta, digamos, do pós-romantismo espanhol, mas demasiado romântico ainda para lhe tirarmos o epíteto. Nascido em Sevilha, mas de origem flamenga, em 1836, em pleno Realismo portanto, acabará por inspirar mais tarde Juan Ramón Jiménez, Rúben Dario, Miguel de Unamuno, Rafael Alberti, Luis Cernuda, Garcia Lorca, Dámaso Alonso e outros. Pródigo na história fantástica «Lendas», recordada na memória, hoje, como um conjunto de contos que o encostam ainda mais ao Romantismo pelas temáticas, prodigaliza assim um novo anunciado literário na prosa lendária: – uma lenda escuta-se e a ninguém é permitido revivê-la – diz. Temos as «Rimas» com o melhor da sua poesia, ele que, com Rosália de Castro, inaugura a lírica moderna espanhola.

Bécquer foi jornalista, narrador e não raro com apetência para aquilo que designamos hoje de conto policial. Foi demasiado dotado e virtuoso para que não sintamos que estamos diante de alguém que não tinha nada de comum a não ser uma vida frágil, magoada e talvez até desventurada, dada a recolhimentos em mosteiros e de saúde frágil. Foi um viandante algo atormentado que morreu novo de pneumonia aos trinta e quatro anos. Senhor de uma sólida educação, era irmão do pintor Valeriano Bécker e filho também de pintor, a boa raiz da escola flamenga. Situá-lo é importante dado que nem sempre nos lembramos dos que são de facto o fio de prumo de uma escola de gente memorável, mas apesar de tudo ele era andaluz, a cultura do sul na vertente mais luminosa de uma obra. E sem dúvida reportarei aqui um dos poemas de «Rimas» e o que me veio buscar cativa nesta Primavera …O recurso estilístico à anáfora tão ao gosto romântico:

Volverán las oscuras golondrinas

En tu balcón los nidos a colgar,

Y otra vez con el ala en los cristales.

Jugando llamarán.

Pero aquellas que el vuelo refanaba

Tu hermosura y mi dicha al contemplar.

Aquellas que aprendieron nuestros nombres…

Esas…no volverán!

Volverán las tulipas madressilvas

De tu jardin las tapas a escalar.

Y otra vez a la tarde aún más hermosas.

Sus flores abrirán.

Pero aquellas, cuajadas de rocío

Cuyas gotas mirábamos templar.

Y caer como lágrimas del día…

Esas…no volverán!

Volverán del amor en tus oídos

Las palabras ardientes a sonar, tu corázon de tu profundo

Sueno tal vez despertará.

É sem dúvida um poema ibérico que convém lembrar e também há nele recursos estilísticos e literários que nos levam facilmente a Calderon de La Barca, “La vida es sueno” .

“Não voltaram os poetas absortos, o teu nome, e a minha idade, a luz que deixei cair entre a sinuosa rua de Toledo com uma placa que dizia: — Em nome dos poetas e dos que sonham e que estudam proíbe-se à civilização que toque num só destes tijolos com mão demolidora e prosaica”. Tudo o que não for tocado pela asa de uma escura “golondrina” será um local gentio, e, não dar a vida a tentar transformar o parado que nos mostra estradas abertas calcadas de rodas sôfregas em trânsito por pontos vários… Há um segredo nas aves migratórias que nascem com a viagem… e há sempre aquelas que não regressarão e sabiam de cor os nossos nomes , que assistiram ao mais secreto das fontes de nos darmos… “esás no volverán”… talvez não venham mais, já brancas em suas penas, e nós, que sabemos o porquê deste longo adeus, despertemos e saibamos os seus nomes: partimos rápido das coisas amadas como se sonhos fôssemos na corrente migratória das aves dos céus..há instantes a que não vamos retornar.. e um dia, nós mesmos não voltaremos, só para as ver chegar. E há apenas uma que guardei secretamente para o fim:” Tu cozazón, mudo absorto e de rodillas escute: como yo te hay querido … desenganate… aí no te querrán.”

É a morte, o mais absorto e radical amante. Sem par.

Há de facto poemas que mergulham na génese assombrada da revelação e tão cedo o compreendeu Bécquer que volvidas são agora todas as “golondrinas” elas existem em outros beirais dentro de nós e o que vemos é o que lembramos de quando os olhos ainda sabiam chorar.

15 Jun 2017

Carta aos Ovnis 

10/06/17

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] de Hegel a piada sobre o judeu que colocado diante da escolha de obter a salvação imediata ou de ler o matutino todos os dias se decide pela leitura dos jornais.

Aí está um problema que não tenho. Os jornais moçambicanos são tão destituídos de sulfatos que não se perde nada – nem informação – em deixar de os ler. Mas estão cheios de opinião.

Lendo os jornais portugueses online também constato que a opinião é hoje o desporto-rei. Já nem falo do fb porque aí é o forum próprio para a opinião;  porém, que nos jornais o nível não seja um pouco mais elevado é que reside o drama.

Que tem de mal a opinião? O que tem de mal é ser na maioria esmagadora dos casos um simples veículo para as ideias recebidas. A maior parte dos escribas parece não ter um centro interior, uma personalidade, manifesta-se sempre como se fizesse parte de uma multidão, quando aquilo que era necessário, em tratando-se de dar um passo para emitir uma opinião, era exibir o que Stendhal chamava a coragem moral, a coragem de pensar por si próprio.    

Ora, não creio que quem tenha alguma coisa realmente própria a dizer o faça de um modo comum, impessoal, como se fosse um homem sem qualidades e em vez de respirar pelos seus poros, respirasse pela ideologia do consenso. Não há verdadeira opinião sem forma que a distinga. Se alguém abre uma crónica sobre a pena de morte escrevendo, “Sou a favor da pena de morte entre as moscas.” – sei que a seguir acrescentará algo ao tema e me fará reflectir, pois há desde a primeira linha o compromisso de um ponto-de-vista. Não se tratou de fazer humor fácil, quem ataca o tema de forma inesperada dificilmente degenera em lugares-comuns, só se chega à Forma através de uma mutação prévia no teor do húmus.

Se pelo contrário o artigo ou a crónica faz o rol dos argumentos sobre o dilema e depois de forma árida, vazia, expõe a sua ideia, como se de apenas mais um comunicado político ou institucional se tratasse, em 95% dos casos, estamos face a uma ideia recebida. E porquê? Porque aquela opinião cumpre apenas um impulso mimético, não é sustentada por qualquer ângulo de visão. Em 95% dos casos quem, ao escrever, denota uma paixão pela forma impessoal unicamente pretende descartar-se e não compremeter-se, estando sem o saber em pleno fingimento.

Nos antípodas, escreve Stendhal, em Memoires d´un Touriste: «Não é por egotismo que digo “eu”; é apenas porque não há outro meio de contar a vida». Como pôde uma simples evidência ter atraído tantas incompreensões, tantos e tão espalhafatosos nhurros?

Ao invés, quem em vez de particularizar um ângulo de visão manifesta opinião está apenas em heteromia, usando palavras-peruca. É contra a pena de morte, como poderia ser a favor, dependendo do consenso que lhe mobila a mente, e, tal como os sofistas na antiguidade clássica, confunde os jogos-de-palavras ou a pertinência do argumento lógico com a opinião.

A opinião que saia da doxa é muitíssimo rara, e quem realmente a tem tem-na porque como aos bebés é-lhe impossível deixar de bolçar, mas opinião era uma coisa de que se pudesse prescindiria.

12/06/17

O livro olhava para mim, da estante. Bebi o café e comi a torrada, repimpado na cama, mas o livro não desarmava. Fitava-me, de esguelha (ou de lombada), na estante. Depois da última golada de café decidi-me, fui buscá-lo. Uma antologia alentada do poeta polaco Tadeusz Rózewicz, nascido em 1921 e uma das vozes mais autênticas da “anti-poesia” universal. Como o chileno Nicanor Parra, que já traduzi, ou, nos Balcãs, o Vasko Popa, de quem hei-de de ensaiar versões.

Abro o livro ao calhas e sai-me isto:

Correcção: A morte não corrigirá/ nem uma linha de um verso/ não é uma correctora/ não é uma benevolente/ redactora/ uma má metáfora é imortal/ o mau poeta que morreu/ é um mau poeta morto/ o aborrecido trás a morte entedia/ o pateta vomita patetices/ e estupidifica a própria tumba.

Estupidificado na própria cama, apanho um susto de morte. Uma má metáfora é imortal. Já fui responsável de quantas centenas de más metáforas, de quantos milhares? Imortal? Como os vírus, afinal?

Há uma ecologia para o verbo a que de facto não ligamos. Devíamos ser mais parcos, posto que na verdade não ressuscitaremos para corrigir qualquer coisinha, enquanto as más metáforas são imortais.

Alguém tem por aí um aparador de relva que me empreste?

13/06/17

Era para escrever uma crónica sobre o ódio ao turista que começa a fustigar algumas cidades-ícones da Europa.

“Turist, go home”, “Gaudí hates you”, ou “Parai de destroçar as nossas vidas!”: mensagens que se lêem pixadas nas paredes ou grafadas em comunicados que se colam nas árvores, em Barcelona. Já foi baptizado este sentimento, turismofobia.

Também os lisboetas se fartam da presença maciça dos turistas, pois o sector turístico comporta-se como o organismo que produz um excesso de glóbulos brancos e rompe equilíbrios. Afinal, o meu espaço público da cidade está condenado a ser o mesmo do do turista, interroga o cidadão da cidade invadida, sobretudo se tal começa a ter como efeitos uma paradoxal descaracterização identitária e uma inflação estúpida, porque oportunista. Ē mais um problema que atinge as cidades históricas e que se varre para debaixo do tapete.

Para que não se instale uma onda xenófoba que inclusive degenere num novo tipo de terrorismo, só enxergo solução numa espécie de rogo cósmico, de Carta aos Ovnis. Proponho que cada um escreva a sua, a pedir que não nos abandonem e que de quando em quando levem alguns políticos de nível duvidoso e um contingente de turistas, sobretudo aqueles que apostem em não ter déjà vu. Só a inauguração do turismo cósmico nos aliviará esta sensação iniludível de, submergidos nos eternos problemas, estarmos mais fartos uns dos outros, ó compaňeros!

15 Jun 2017

Paisagens dispersas

Horta Seca, Lisboa, 4 Junho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] ceifeira continua o seu trabalhinho, passou por Marraquexe e levou Juan Goytisolo, aos 86 anos. Dançaram logo à minha volta as bruxas-saudades do desafiante desassossego, do pensamento insaciável, da mística curiosidade, da fracturante narrativa, da carpintaria identitária, da ternurenta solidão de mais um dos derradeiros intelectuais, no velho e explosivo sentido da palavra. «La libertad y aislamiento serán la recompensa del creador inmerso hasta las cejas en una cultura múltiple y sin frontera, capaz de trashumar a su aire al pasto que le convenga y sin aquerenciarse a ninguno.» Vou à estante e colho Makbara, para me acompanhar nos dias próximos. Os livros são excelentes ressuscitadores.

S. José, Lisboa, 6 Junho

A subida da colina de Santana tornou-se rotina. Gosto deste pedaço da cidade, onde se cheiram outras épocas, de versos à maneira de Cesário, onde as ruínas possuem alma. Não durará muito, bem sei. Lisboa tem no corpo mistérios, como um cemitérios dos prazeres, ou de insistir em fazer coincidir hospital e miradouro, um dos mais belos, por não sacrificar apenas ao mar da palha. Na cama, o meu pai insistia em localizar-se. Sem se mexer, estava perdido. Com a patética condescendência com que tratamos os doentes, insistia em explicar-lhe as geografias enquanto piscava o olho à Senhora do Monte. Não, não estava no inexplicável Campo Grande, nem o mais perceptível S. Sebastião da Pedreira. «Sabes, filho», disse-me, «a minha cabeça tem andado por paisagens dispersas».

CCB, Lisboa, 8 Junho

As últimas sessões do Obra Aberta (https://www.abysmo.pt/obra-aberta/) foram brilhantes na sua diferença. Nada de substancial, que o terreno de ambas foi o da inteligência, melhor, da lucidez, se uma foi tintada de negro, estoutra mais recente fez-se solar que nem dia de praia, mas dos meus, feitos e conversa e sombra à beira-mar. Isto mesmo eram as nossas pretensões para o programa, conversa solta sobre livros, os seus temas, o que eles em nós suscitam, mudam, provocam, isto é: leituras.

O historiador António Araújo quis falar do Gulag, de Alexander Soljenítsin, sem esquecer o nazismo, já que trouxe ainda o texto de Hannah Arendt sobre Eichmaan, esse relato da presença do supremo carrasco na cidade que se ergueu sobre as vítimas. Pairou uma ideia essencial: não há anormalidade no horror, qualquer um de nós, nas circunstâncias exactas, pode tornar-se algoz. O escritor de origem judaica, Richard Zimler, dialogou a partir de um propósito ético da literatura, mas brilhou com a diatribe contra essa aparente excrescência do homem comum que se chama Donald Trump.

Gerida pela Maria João Costa, a segunda conversa juntou Sérgio Godinho e Isabela Figueiredo num distendido elogio à literatura, à imaginação, enfim, ao modo como a escrita permite aceder ao mundo, torná-lo maior e ao mesmo tempo acessível. Mas nunca domesticado. Em qualquer dos casos, aconteceram testemunhos na primeira pessoa de quem acredita no valor redentor da palavra. Com uma autenticidade que me parece rara e sem esta pompa que não consigo escovar da frase.

Horta Seca, Lisboa, 8 Junho

A galeria está impossível, parece o anticiclone dos Açores, o cruzamento das mais díspares correntes de ar. Pode até parecer exagero, mas fixa comprovado nos rostos de quem se confronta com a luxuriante inocência dos cartazes de Bráulio Amado (Almada, 1987). Há vozes e silêncios, gritos e sussurros, rostos e membros, corpos e olhos, murros e carícias, música electrónica e punk rock, fanzines e revistas de arte, a opinião e um convite, festas e tristezas, vastas paisagens e detalhes mínimos, décadas distantes e o dia de ontem, tudo a acontecer em simultâneo, apenas porque se imprimiram em grande formato estes posters. Afixam, não tanto uma qualquer circunstância, mas a contemporaneidade. Esta é a pele dos nossos dias. Como o próprio conta, no Bráulio Amado 2016, que a Stolen Books editou por estes dias, os cartazes eram uma perturbadora encomenda de uma amiga para um clube nova-iorquino de house/techno que tinha que ser feito no dia de fecho da Bloomberg Businesseweek, da qual era art director. O resultado era apressado, muito influenciado pela música que mais ou menos desconhecia, pela vontade de experimentar e pelo humor. E assim nasceu um estilo. Surpreendente na diversidade; inteligente na combinação dos elementos, na inserção da tipologia, muito dela manuscrita; divertido no uso das cores. Revejo-me neste cabeçudo (ao lado), imenso balão branco, preso à âncora de um rosto tombado. Digam-me porquê ou encham-me de cor.

Horta Seca, Lisboa, 9 Junho

Faz meio ano que comecei estas linhas arrevesadas. A princípio, era apenas outro afazer em lista atulhada até aos impossíveis. Depois tornou-se exercício, de ganhar músculo, de voltar a andar. O fim da tarde de terça, deste lado do globo, assinalava-se com a chegada do pdf. Dei por mim a lamentar a quantidade de quartas-feiras que foram feriado em lugar tão distante. Agora, a minha semana não é sem este ponto da situação. Estranhamente, não estendo este diário com entradas para a gaveta, mais íntimas. Esta semana, por exemplo, sofri duas conversas, dolorosas chamadas à realidade, que justificariam isso mesmo. Ainda não dei esse passo, provavelmente não darei: entre gaveta e preguiça, escolherei sempre a segunda. Mas surgiu-me isto a propósito do sortilégio do papel. O mano António [de Castro Caeiro] cometeu a gentileza de trazer da sua incursão macaense um exemplar do Hoje Macau. Raios! Que diferença, poder desdobrar os 25 x 38,5 cm de papel de jornal. Não há brilho, não consigo ampliar detalhes, mas os olhos percorrem o filete, param nas cabeças, regressam ao título, descansam no branco, penduram-se nas colunas, sentem-lhe os dentes. As mãos erguem o lençol em busca de luz. O toque parece transmitir o cinza leve do fundo. A tinta rima com o mundo. (E depois ao lado estão os clássicos Ruis, o Cascais da palavra, e o Rasquinho da imagem, com quem aprendo sempre e até parece que acertamos assunto, são assim os clássicos e mereciam edição, meus caros.) Sou, concluo, duplo cronista, o do ecrã e o da folha.

14 Jun 2017

We are so so lost

[dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uase todos os indicadores pelos quais se mede o bem-estar e desenvolvimento humanos nos dizem que nunca tivemos tanto dinheiro, tanta tecnologia e tanta saúde. Nunca vivemos tanto tempo de vida como agora. E cada geração futura parece condenada, salvo a possibilidade sempre presente de um cataclismo, a ter ainda mais de tudo quanto a anterior teve. Condenados a quebrar recordes de longevidade. E, no entanto, algo não está bem. Há uma espécie de aura, imprecisa, inominável, que nos tapa a luz do sol como as nuvens unipessoais que acompanham os deprimidos e os azarados na banda desenhada.

No filme “The matrix” a personagem Agent Smith, ensaiando o clássico “monólogo do vilão”, revela a Morpheus que a primeira versão da Matriz – a realidade virtual em que os humanos, transformados em meras baterias no mundo físico, vivem – era absolutamente perfeita. Não havia sofrimento, dor, tristeza, doença ou guerra. Os seres humanos viviam em perfeita harmonia com tudo como as crianças acariciando dóceis leões nas brochuras dos jeovás sobre o paraíso. Não obstante, continua, o projecto acabou por retumbar num gigantesco fracasso. Os humanos não aceitaram aquele mundo perfeito e perderam-se colheitas inteiras. Tiveram de reprogramar o sistema para que este se tornasse um decalque fidedigno do mundo à altura. Os humanos, sugere Smith, só aceitam a realidade se esta comportar dor e sofrimento. A perfeição é vivida como um sonho de que o cérebro tenta escapar como de uma prisão.

A minha visão do futuro comporta uma ausência de sentido que não consigo ultrapassar. E, quando olho à minha volta e ouço as pessoas que vão traçando órbitas neste sistema a que chamamos presente, vejo nelas o mesmo semblante de pesar que acompanha este luto crónico e indefinido. Por um lado, sabemos que temos de fazer alguma coisa, porque há tanto que está tão profundamente errado. A realidade entra-nos vista adentro todas as manhãs quando ligamos o smartphone e perscrutamos as notícias matinais. A realidade e o seu cortejo fúnebre de pobreza remediável e de condições de vida sub-humanas a que se poderia decretar um fim houvesse vontade política para isso, a realidade das guerras fora e dentro de portas, do fanatismo de todo o tipo que impede duas pessoas adultas de se sentarem e falarem sem pontuarem a conversa com murros – na melhor das hipóteses – na mesa. A realidade a que assistimos diz-se interactiva mas somos incapazes de encontrar uma forma de moldá-la e limitamo-mos a assistir ao seu decorrer na qualidade de espectadores interessados. Lutamos contra sombras que não precisam sequer de se esquivarem aos nossos golpes. Vencem-nos pelo cansaço. Vencem-nos pela impotência que nos fazem sentir.

O mundo polarizado da Guerra Fria – o único de que tenho idade para me lembrar – tinha a vantagem de definir claramente duas opções de vida pela qual parecia valer a pena lutar: o comunismo e o capitalismo. Os inimigos tinham cara, tinham corpo. Cada uma delas, certas ou erradas, justas ou equivocadas, comportava em si própria aquilo que nenhuma posição contemporânea parece comportar: a capacidade de fazer com que uma luta tenha um sentido que nos transcende e do qual o futuro de nós, enquanto criaturas gregárias e capazes de empatia, depende. Éramos maiores porque as nossas lutas eram maiores. Éramos maiores porque éramos capazes de ver mais longe. Agora somos somente da altura que temos. Formigas irrequietas trabalhando sem propósito.

Como diz o meu amigo Paulo José Miranda no dia de aniversário das pessoas de quem gosta: “espero que o mundo concorde contigo”. Espero que sim, porque parecemos estar tão tão perdidos.

14 Jun 2017

Venus terá sido asiática? 亚洲人是彻底的“女尊男卑” (Parte 3)

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]abem o que quer dizer género BL?

Boys love (que é como quem diz Amor entre Rapazes) também conhecido por yaoi, é um género de cinema erótico dirigido a mulheres. Os fãs do BL apaixonaram-se por este género inovador e sexy. As personagens são todas masculinas; algumas pertencem ao tipo sério, outras ao espampanante, algumas são mais aristocratas e, finalmente, existem os efeminados. Mas também cabem neste género os que são mais heterossexuais que D. Juan.

As histórias variam pouco: rapaz conhece rapaz e apaixona-se por ele. Depois procura encontrar a melhor maneira de vir a ser aceite pelo seu amado, pese embora a discriminação que possam vir a sofrer, mas que os fará apelar a toda a sua perseverança. Sempre que querem exibir o seu amor em público, são impedidos porque os outros se sentem incomodados. No entanto, isso não os impede de continuar a fortificar a relação. O amor verdadeiro move montanhas. Assim, no sentido restrito, são romances gay. Tendo por pano de fundo fantasias muito pouco realistas, estas histórias deixam as fãs surpreendidas e excitadas, porque as narrativas se desenrolam em diversos planos e são multi-facetadas. Grande parte dos BL não se focam apenas nos romances gay, o que enriquece as histórias e as torna mais apelativas. Acabam por lançar vários tópicos que, de alguma forma, são filosóficos e falam sobre auto-descoberta e transformação.

Na China, as fãs do BL regozijam com as relações homossexuais explícitas entre rapazes e entre homens. Nestas histórias podem ser encontradas algumas das personagens ficcionais mais em voga, celebridades reais, ou personificações masculinas de objectos do dia-a-dia e de animais, bem como personagens originais. A cultura BL é dominada pelas mulheres, na sua maioria heterossexuais. A “ostracizada” comunidade de fãs tornou-se suficientemente significativa para captar a atenção dos média que têm estigmatizado o BL e as suas seguidoras em toda a China. Esta sub-cultura é constantemente apresentada de forma negativa e preconceituosa, por uma moralidade à beira de um ataque de nervos.

Vários factores contribuem para a estigmatização das jovens chinesas admiradoras do BL. Em primeiro lugar, a homossexualidade é silenciada porque continua a ser um tabu na sociedade chinesa, fortemente heterossexual e patriarcal. Em segundo lugar, as sequências revelam cenas de sexo explícito e este tipo de imagens são consideradas obscenas e doentias, ofensivas para a tradição e a cultura chinesas.

No entanto, esta é uma das contradições que eu adoro na China.  Nos últimos anos tem havido uma grande quantidade de produções BL, apesar da tentativa impedir a homossexualidade e da censura na internet. Deixo-vos aqui o link para o trailer de uma nova série para poderem dar uma espreitadela no universo do BL.

bit.ly/2r9qxx5

14 Jun 2017

Notas acerca do livro A Urna, de David Oscar Vaz

Para Valério Romão

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]avid Oscar Vaz é um escritor brasileiro, de São Paulo, que recebeu em 1997 o prestigiado prémio de revelação da APCA (Associação Paulista de Críticos de Arte), um dos mais importantes prémios brasileiros, com o seu livro de contos Resíduos (Ateliê Editorial). Em 2000, e também pela Ateliê, edita o seu segundo livro, também de contos, A Urna. Livro que iremos ler aqui através de alguns dos contos que o compõe.

“A CASA”

“A Casa” acaba connosco. Acaba connosco a recolhermo-nos ao cérebro e a perguntar: é verdade ou não? E, com esta pergunta, voltamos atrás no canto, atrás no texto. Talvez seja esta a mestria dos grandes contistas: a capacidade de nos fazer voltar atrás, sempre para trás. Voltar atrás, perguntar se é verdade ou não, aqui, não é do foro dos factos, nem tão pouco ontológico. Voltamos atrás e perguntamos pela veracidade estética do conto. Independentemente da sua veracidade ontológica. A factual é que não é sequer p’r’aqui chamada. Verdade factual interessa tanto ao conto como a água interessa ao vinho. Conto bom, dá à ré! Tão contrário ao romance, com a sua seta afiada em direcção ao futuro do tempo! Ainda que continuemos o romance, depois dele acabar, não voltamos atrás, pelo contrário, vamos para a frente. No fim de um romance, o que ficou para trás não causa perplexidade. No fim do conto, é o que já lemos que causa perplexidade, isto é, o que lemos e que agora se nos é revelado como “se calhar não lemos”. Este conto, de David Oscar Vaz, de apenas meia dúzia de páginas, mostra de um modo extraordinário a peculiar arte do conto. Independentemente do seu conteúdo, excelente, de resto, é na sua formalidade que encontro a razão que me faz começar por ele, na curta leitura deste livro.

“A URNA”

Conto que dá título ao livro e com o qual se começa. Tem a particularidade de se centrar num tempo muito anterior ao nosso: há um século atrás. E, talvez por essa mesma razão, a comparação com a tradição machadiana torna-se inevitável. Sem dúvida, lembra Machado no seu melhor. Lembra Machado, no seu melhor, no uso preciso da linguagem; preciso das metáforas, preciso como um relógio, e é tão difícil acertar uma metáfora; no uso preciso do ritmo; no uso preciso dos desequilíbrios narrativos, no uso preciso da lei universal do conto: o que é dado por certo ao leitor, no início, é directa e proporcionalmente retirado no fim. Por conseguinte, uma vez mais, ao terminarmos a leitura do texto, todo o conto é posto em causa. Lá vamos nós outra vez para trás à procura de onde nos enganámos, de onde nos deixámos enganar.

“TALAGARÇA”

Este é um conto dentro de um conto. Sem dúvida, uma técnica clássica de narrativa. Mas difícil é sustentar o clássico na contemporaneidade, como uma mulher que entra hoje num clube nocturno vestida como nos idos anos vinte do século passado e, ainda assim, ninguém consegue tirar os olhos dela; não por excentricidade, mas precisamente porque ela e o vestido fazem todo o sentido. Quem ainda não viu uma mulher assim, nunca viu uma mulher. Pois estou convicto de que somente nas revelações em contra-posição se chega realmente a ver alguma coisa. Depois, o conto, antes mesmo da sua formalidade clássica, começa com uma frase pré-clássica, isto é, uma frase antes do conto, antes do clássico, antes dos espartilhos de género literário. O conto começa assim: “Você pergunta se eu acredito em fantasma! Mas, se veio me procurar é porque já sabe a resposta.” Para as senhoras e os senhoras mais familiarizados com a obra de Platão, torna-se claro o ponto de vista da reminiscência. Reminiscência, porque já trazemos em nós uma resposta daquilo que perguntamos, isto é, já trazemos em nós um conhecimento prévio daquilo que desconhecemos. Imagine-se um homem que chega de Portugal a São Paulo e pergunta onde fica a Avenida Paulista. Ele pergunta por algo que não desconhece de todo, embora não saiba disso, claro. Ele não sabe onde fica, mas sabe que fica em São Paulo e que se trata de uma avenida, e que fica “não sei onde”. Ele pergunta, não por aquilo que desconhece de todo, mas por aquilo que vislumbra. Ora, e o que é um vislumbre senão um fantasma. É o próprio Platão que diz que há fantasmas, ao afirmar que se sabem coisas em forma de simulacro. Simulacro em Grego Antigo é precisamente phantom (fantasma). Assim, todo aquele que pergunta, pergunta por um fantasma, pergunta por aquilo que o assombra, isto é, pergunta pelo conhecimento que deseja. E só se deseja o que não se tem, mas que, de algum modo, lhe acedemos, que vemos, nem que em sonhos. Por conseguinte, DOV (David Oscar Vaz) começa o seu conto com um projecto iminentemente platónico. Correcto será dizer: com um projecto de filiação a Platão. De qualquer modo, e a apesar da profundidade do seu início, trata-se de um conto e não de um texto filosófico. Por isso mesmo, a terceira frase é: “O que você quer saber é da minha estória, não é?” DOV não pretende enganar o leitor, vendendo gato por lebre, dando conto por filosofia. O autor engana-nos apenas na justa medida do que nós merecemos; na justa medida de cada um como leitor. E quanto mais treinado, mais enganado. Todo o texto que vale a pena ser lido trai o seu autor, põe-lhe os cornos, é sabido, mas neste caso particular o texto também põe os cornos ao leitor. Pois durante toda a narrativa do conto o leitor fica preso aos acontecimentos relatados, à relação entre aquele que relata e a sua falecida mulher, embora na verdade, no final, leve com um grande par de cornos, isto é, no final explode todo o sentido formal deste conto: “Às vezes penso que o fantasma seja eu, preso a minha casa e ao labirinto das minhas lembranças. Já tem minha estória, moço. Agora, aperte minha mão.” Terá sido coincidência o autor terminar o livro precisamente com essas duas frases, não apenas o conto, mas o livro? Parece-me pouco provável. Em relação ao conto, a transladação do fantasma para o próprio, recupera o sentido original de Platão e das primeiras duas frases do conto, à revelia de toda a narrativa. O fantasma não é ninguém senão o próprio. O fantasma não é ninguém senão a reminiscência que nos habita, que nos enforma. Mais: é o fantasma que escreve contos. É o fantasma que escreve poemas. O filosofo é precisamente o caça-fantasmas, aquele que ambiciona e esforça-se por estar acima do seu próprio fantasma; ele luta contra o fantasma que é. O escritor, não. O escritor assume a sua condição de fantasma. O escritor diz: Platão você tem toda a razão, mas eu não consigo ser de outro modo, não consigo ir para além do meu fantasma. Mas, e isto parece-me evidente, quem escreve as frases que escreveu neste conto, tem consciência clara e aguda disto mesmo. Entre a verdade e a verdade há uma estória. A estória que é narrada no conto intromete-se entre a verdade das primeiras frases e a verdade das últimas. De qualquer modo, e isto parece exemplar neste conto, a estória é sempre uma reminiscência, uma imagem da verdade, um simulacro, embora não seja mentira, não seja um embuste. Assim, parece-me claro que fazer “Talagarça” ser o conto final deste livro não é por acaso. Pois que melhor conto nos faria andar para trás no livro todo, na reflexão acerca do livro e da própria escrita?

“O OUTRO”

Talvez este não seja o conto que eu prefiro, mas é seguramente o mais perfeito. A técnica narrativa, a beleza de expressão e a filiação a Platão atingem aqui o seu ponto máximo. O que importa, ou o que parece ser recorrente (obsessivo?) em DVO é precisamente o lugar da reminiscência: o lugar do que está em nós, não estando; do que se faz sentir, sem conhecer; do que nos aparece, sem aparecer. A reminiscência, em Platão, é precisamente esse lugar intermediário entre o que há e o que não há, entre o que se tem e o que não se tem, entre nós e nós mesmos. Usando as palavras de DOV “quando o outro é você mesmo.” O outro nós-mesmo é esse lugar intermédio, esse lugar a meio caminho entre saber e não saber, isto é, o lugar humano. O lugar que poderia ser descrito hoje como que o lugar da revelação fotográfica, como aparece escrito no conto: “qual solução de nitrato de prata a fazer surgir em papel lavado de branco a imagem que não havia, mas que ele, o papel possui sem saber”. E se essa imagem é escrita para mostrar o amor pelo outro a aparecer na poeira do dia, também podemos usá-la para mostrar tudo o que aparece em nós. Nós somos o que não sabemos que somos. E esta é a grande obsessão destes contos. Mas, se para Platão, há uma saída, não para a condição humana, mas para uma melhoria da sua condição, através do conhecimento, para DOV isso nem sequer é secretamente pensado. Viver não tem saída, isto é, não tem uma seta na direcção do melhor, pois nunca se sai da reminiscência. A reminiscência não é um modus operandi que através de uma tenaz perseguição do conhecimento nos põe num estádio diferente de consciência. Não. Reminiscência é o que somos sempre, o que não podemos deixar de ser. Viemos ao ser como reminiscência e vamo-nos de igual modo. Como se lê no conto: “Renato tentou se ver vendo, saber o que sentia ao vê-lo.” Tentar pode-se, mas não leva a lugar nenhum diferente daquele em que se está. Adiante, escreve: “Quando deu por si, se é que de fato deu por si”. Diria que toda a escrita de DOV é este movimento de nos fazer dar por nós, mas sem que de facto isso altere o nosso estádio de reminiscência. Dar por nós é compreender a prisão reminiscente em que nos encontramos. Por isso, o conto assume a certa medida desta verdade. O conto é, em si mesmo, uma contínua e perpétua reminiscência, pelo menos neste autor. O ser humano está claramente, nesta escrita, entre sucinto e explicativo, entre o poema e o romance, entre o fragmento e o ensaio. Concordemos ou não, o humano tem na escrita de Vaz a dimensão do conto. Humano e conto são uma e a mesma coisa. Não há uma seta na direcção do melhor; há uma recorrência do que há. E nesta recorrência se faz a vida e a pomos a pensar e a escrever, que é pensar pra fora.

13 Jun 2017

Convento e Igreja de Santo Agostinho

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] Frade espanhol Francisco Manrique, da Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, trabalhava nas Filipinas desde 1575 e aportou em Macau a 1 de Novembro de 1586, dia da festa de Todos os Santos, acompanhado pelos padres Diogo Despinal e Nicolau Tolentino. Comprou uma casa talvez próximo do local onde foi depois construído o Baluarte de Bom Parto e aí, em honra de Nossa Senhora da Graça fundou o Mosteiro de Sto. Agostinho.

A 9 de Agosto de 1589, Filipe II de Espanha ordenou a retirada dos religiosos espanhóis de Macau e assim, logo treze dias depois Fr. Miguel dos Santos aqui fundou os agostinhos portugueses, sendo-lhe então entregue o mosteiro. Já em 1591 foi o convento transferido para o actual local, na Colina de Sto. Agostinho, sendo ao lado construída a igreja. Os Agostinhos aí se mantiveram até serem colocados fora de Macau devido ao Legado Pontifício para a China, o Patriarca de Antioquia Charles Thomas Maillard de Tournon, que após publicar em Nanjing a 25 de Janeiro de 1706 um decreto condenando os Ritos de Confúcio sobre o culto dos Antepassados, foi expulso pelo Imperador Kang Xi. Também os religiosos que missionavam na China e comungavam as ideias de Tournon, muitos vieram para Macau e assim, no Império Celeste só se mantiveram os jesuítas. Regressado a Macau em 30 de Junho de 1707, o Patriarca Tournon quis que fosse aplicado aqui o seu decreto, mas o Bispo de Macau, D. João de Casal não só se recusou a publicá-lo, mas ordenou às autoridades eclesiásticas que negassem obediência ao Patriarca. Tal levou a um conflito com troca de excomunhões, colocando-se os Agostinhos e os Dominicanos ao lado de Tournon. “O Cardeal Tournon hospedou-se no convento de Sto. Agostinho de Macau e aqui faleceu a 8 de Julho de 1710”, segundo Benjamim Videira Pires, que refere, “Por isso, os Agostinhos principiaram a perder, desde essa data, o seu prestígio junto do Bispo, do Governador e da população patriota de Macau [todos eles excomungados pelo Patriarca], até serem daqui expulsos em 15 de Janeiro de 1712”. Nessa data, por ordem do Vice-Rei de Goa D. João Rodrigo da Costa, foi retirado aos frades o Convento de Santo Agostinho e a igreja, sendo eles deportados para a Índia em 1717. Por ordem do Rei D. João V, o convento foi devolvido aos Agostinhos em 1721.

Batalhão aquartelado

“Em Janeiro de 1808, solicitava-se para a corte medidas para a organização de um Batalhão de Infantaria, com exercício de Artilharia, para Macau, com um total de 376 homens, entre oficiais e soldados” segundo Jorge de Abreu Arrimar. Tal se devia à defesa da Colónia contra os piratas e também pelas tentativas dos ingleses de com a pretensão de proteger Macau contra os franceses tentarem ocupá-la. Assim, o Batalhão Príncipe Regente foi criado a 13 de Maio de 1810 e “os soldados que o compõem, são para ali enviados da Capital da Ásia Portuguesa, os quais, sobre serem os piores que produz aquela Região, se tornam, pela mudança do clima, de uma repugnante nulidade”, segundo o Tenente-coronel José Guimarães e Freitas. Essa guarnição militar de 39 praças, enviada da Índia pelo Vice-Rei, chegou a Macau a 15 de Junho de 1823 e foi aumentada com a mocidade macaense para um número próximo dos 400. Tinha também o cargo de polícia da cidade, ou melhor, a Polícia servia-se desses militares.

O Bispo de Macau colocou dificuldades para ser o aquartelamento instalado no edifício do antigo Colégio de S. Paulo, desocupado pela pombalina expulsão dos jesuítas e por sugestão do Senado, aprovada pelo Rei, foram colocadas duas Companhias no antigo quartel e outras duas, na Fortaleza do Monte. No amplo Convento de Santo Agostinho, devido aos poucos frades que nele residiam, foi aquartelado o Batalhão Príncipe Regente, provocando em 30 de Março de 1829 um protesto da parte do provincial da Ordem em Goa. Mas aí ficou ainda aquartelado por mais dois anos, pois a 14 de Abril de 1831 encontrando-se o Convento em estado de ruína, passou o Batalhão para o Colégio de S. Paulo, <tanto por ser Edifício da Real Fazenda, como nenhum edifício se oferece melhor>. A 26 de Janeiro de 1835, devido ao incêndio no Colégio de S. Paulo, que devorou todo o edifício e a igreja, restando apenas a fachada, voltou o Batalhão a ocupar o Convento de Santo Agostinho.

Com a definitiva vitória dos Liberais em 1834 e o decreto de Joaquim António de Aguiar a extinguir as Ordens e Congregações religiosas do território português e o sequestro de todos os seus bens, em Macau deu-se o abandono dos conventos pelos frades em Setembro de 1835. O Governo apossou-se do Convento de Sto. Agostinho, para onde voltou o Batalhão, mas a 13 de Maio de 1837, o seu comandante queixava-se que dentro do convento chovia <como na rua, em todas as Companhias>.

A escola

No Convento de Sto. Agostinho esteve até 1846 o Batalhão Príncipe Regente, tendo o Bispo de Macau Jerónimo José da Mata a 5 de Julho de 1845 solicitado a concessão do edifício para nele estabelecer uma casa de educação para a mocidade do sexo feminino. Por se encontrar esse edifício hipotecado ao fundo do Recolhimento de Santa Rosa, por vinte mil patacas, o Governador achou por bem fazer essa transacção <que desse o duplicado resultado de constituir o dito Recolhimento possuidor daquele edifício, com o fim indicado, e de ficar a Fazenda aliviada do encargo correspondente ao valor dele>. Assim, a 10 de Agosto de 1846 o Convento de Sto. Agostinho foi transformado em escola de meninas. O Recolhimento de Santa Rosa de Lima em 21 de Dezembro de 1848 passou a ter na direcção as Filhas de Caridade de S. Vicente de Paula e como estava destinado à educação das meninas órfãs, aí se juntou com a escola feminina, até que em 1857, o Recolhimento e os seus rendimentos foram transferidos para o Mosteiro de S. Clara. Com essa saída, o Convento de Sto. Agostinho albergou em 1857 o Corpo de Polícia, onde se encontrava também o Hospital Militar, que aí esteve até à inauguração do Hospital Conde de S. Januário, em 6 de Janeiro de 1874. O Corpo de Polícia manteve-se no Convento, até que em 18 de Janeiro de 1879, o Governador Carlos Eugénio Correia o dissolveu e criou em seu lugar a Guarda Policial de Macau, ficando aí aquartelada a 1.ª Divisão. O Convento em 1886 foi de novo reparado devido à sua péssima construção, permanecendo a 1.ª Divisão da Guarda Policial até 4 de Outubro de 1893, quando se mudou para o Quartel de S. Francisco, preparando-se o antigo Convento para servir de instalações ao Liceu.

Em 1894, o Liceu de Macau, apesar de provisoriamente instalado no Convento de Sto. Agostinho, nele ficou até ao final do ano lectivo de 1899/1900, sendo em meados de 1900 transferido para a Calçada do Governador (hoje do P. Luís Fróis, S.J.).

Em ruínas, o Convento de Santo Agostinho foi depois comprado por Artur Basto (1873-1935, filho primogénito de António Joaquim Basto), que o transformou em sua residência. Com a sua morte (a 11 de Março de 1935) foi adquirido pela Companhia de Jesus e serviu de casa de repouso aos jesuítas sobre o nome Residência de Nossa Senhora de Fátima, actual Vila Flor.

9 Jun 2017

Karadeniz: “O que nos espera é o nada”

(Continuação)

Mas o Karadeniz disse que também tem moedas muito antigas, de antes deste seu tempo!…

É verdade, mas não foram procuradas como raridades de colecção! Foram encontradas em lugares do dia a dia, compradas a quem não sabia do seu real valor. Essas moedas são mais um testemunho do que se encontra nas ruas da cidade neste meu tempo do que um troféu raro. Não é peça de colecção, é peça do que se encontra na cidade.

O que é que o Karadeniz pretende fazer com tudo isto?

Enquanto for vivo, vou juntando mais coisas todos os dias. Quando morrer já não posso decidir nada acerca disto. Provavelmente vai tudo para o lixo.

Mas não o angustia saber que todo este seu esforço vai acabar em nada?

É como a vida! No fundo, o que aqui estou a fazer é uma metáfora da vida. Provavelmente, preferiríamos viver para sempre, ou ser recordados para sempre, mas o que nos espera é o nada. Não é, Paulo?

O que vamos ser quando já não formos, ainda não sabemos!

Não sabemos, mas temos bons indícios do que vai ser. Sabes o que é que também colecciono, Paulo?

O quê?

Esqueletos de peixes.

Esqueletos?!

Sim, espinhas de peixe! Tenho um esqueleto de cada um dos peixes que se pode comer em Istambul.

De todos?!

Bem, de quase todos. Desfio-os com muito cuidado antes de comer e depois guardo o esqueleto do peixe.

E hoje, portanto, é esta a sua vida?!

Podemos dizer que sim! Por vezes, vejo o que faço como uma grande obra de arte. Outras vezes, vejo tudo isto apenas como uma obsessão em relação à permanência. Gostava que as coisas permanecessem. Gostava que o que vem a seguir não apagasse o que já há. O que há devia haver sempre. O que há não devia tornar-se passado.

A sua mulher chegou a saber desta casa, deste amontoado de coisas?

Nem ela, nem o meu filho.

Já pensou que esta casa, esta obsessão por juntar coisas não é muito diferente da obsessão da sua mulher pelos gatos?

Já! Quem está apaixonado, seja pelo que for, não tem jeito para mais nada.

Não se pode estar apaixonado por mais do que uma coisa, por exemplo, uma pessoa e aquilo que se faz, ou por mais do que uma coisa que se faz ou por mais do que uma pessoa?

Não estou certo disso. Podemos ter relações intensas com várias coisas ou várias pessoas, mas julgo que a paixão é um sentimento exclusivo. A paixão pode ser um ódio. O ódio que tive aos gatos era uma paixão. Não me deixava ver mais nada. O ódio é a carga negativa da paixão; a paixão é a carga positiva do ódio. Por isso é que tantas vezes se passa de uma carga para outra em relação ao mesmo objecto ou à mesma actividade ou à mesma pessoa. Nunca sentiste ódio pela escrita ou por uma pessoa por quem já estiveste apaixonado?

Adiante! Há alguém que saiba da sua colecção? Há alguém que já aqui tenha estado?

Não e não. Um cidadão não pode compreender o que se passa aqui. As pessoas que moram neste prédio, nos outros andares, se soubessem de tudo o que aqui está, obrigavam-me a vazar o apartamento. Tenho sempre medo de que alguém venha a saber.

Uma vez mais, uma actividade que tem de manter em segredo!

Infelizmente assim é! Trago as coisas a horas diferentes, de modo a que tenham dificuldade em controlar as minhas entradas e o que faço. Porque, como já viste, o amontoado de coisas é tão grande que a porta de entrada já nem sequer abre toda. Se me virem a entrar de lado vão pensar que há algo de estranho. Vão querer saber. Vão começar a bisbilhotar.

Um destes dias já nem sequer consegue cá entrar, Karadeniz! Como é que vai fazer, arranjar outra casa?

Com a minha idade já não vai ser preciso, Paulo. Mas imagina que tinha começado com isto muitos anos antes! Então, sim, é que teria de arranjar outra casa. Por outro lado, não conseguiria deixar umas coisas aqui e outras lá. Teria de mudar tudo para uma casa maior, teria de ter tudo junto. Não consigo ver as minhas coisas separadas. Nem conseguiria separar-me delas. E então teria outro problema: a mudança de tudo isto. (pausa) Gostava de morrer aqui entre as coisas.

Só que o seu corpo poderia apodrecer aqui, sem que ninguém desse por isso!

Era bonito! Tornava-me eu mesmo parte da colecção, parte do amontoado de coisas.

O Karadeniz não tem mais nenhum familiar vivo, para além do seu filho?

Não! Fui filho único e os outros parentes há décadas que não sei deles. Como o meu filho não vai precisar do meu dinheiro, nem sequer o vai querer, gasto o dinheiro nestas coisas e nas viagens que faço, que agora já vão sendo poucas. Quase ninguém sabe de mim, no mundo inteiro. Julgo que nasci para ser tudo o que quisesse, desde que não fosse conhecido, desde que passasse completamente despercebido. Comecei por matar pessoas e gostava de acabar entre estas coisas que ninguém quer.

Mas há muita grandeza na sua vida, Karadeniz!

Muita grandeza, como assim!?

Você deixa de matar pessoas pelo ódio aos animais, que passa a matar, e acaba por encontrar o amor, a paixão entre as coisas que ninguém guarda, que ninguém quer, nessa sua obra de arte, como por vezes lhe chama. Não vê grandeza nisso? Você foi sempre exemplar em tudo o que fez!

Uma coisa é certa e, se bem te percebo, tens razão, vivi sempre nos limites do humano. Se isso é uma grandeza, já não sei.

(continua)

9 Jun 2017

Lençóis de água

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo pessoas, dormem enroladas sobre si próprias, como bichos friorentos e mergulhadas fundo na massa espessa das roupas confusas e amorfas. E outras, arrumadas numa rigorosa comissura do universo, feito de pregas lisas e dobras impecáveis. Como umas se afundam, ansiosas ou desalentadas, num buraco profundo e escuro e como se na própria noite cósmica, e outras se expõem desatentas de perigos, desconhecimentos e sonhos, em que umas e outras se sujeitam a perecer de angústia ou desalento. Sonhos que são despedidas que já foram e sonhos que são reencontros com os que já não estando, ainda doem. Os mortos que começam a voltar quando se situam com mais clareza no mapa de constelações com que cobrem o céu. Privado. Como um toldo etéreo no pátio de cada um e na sua porção de mundo. E que voltam, sem que raramente seja para mais do que anunciar que já estão. Longe. Outras vezes uma espécie de ilusão passageira e doce, como para matar saudades. Aceites no imediato do dia porque não há como vencê-los senão com o momento seguinte. Virar a página, com o gesto de afastar o lençol. Dormir. Uma pausa no sobreaquecimento das emoções. Uma desistência precisa. Uma demissão até breve. Mas às vezes um pouco à superfície da noite, do leito feito lençol de água espessa e densa, em que nenhum corpo mergulha e os braços tentam cortar em braçadas sofridas e vãs. De bruços sobre um oceano viscoso em que o corpo quereria mergulhar e avançar ao ritmo remado do esforço despendido. Recorrente sonho em secreto receio de Freud.

Essa matéria estranha e confusamente mesclada, das matérias têxteis de uma realidade visível, e das camadas subterrâneas a um cenário interior. Um paraíso de todos os dias. As noites. Perdido e reencontrado como tal. Temido por insones. Por crianças. Por sonhadores sem rédea. No sono. Talvez a consistência exacta do conforto da protecção. Uma espécie de abraço da parte física da criatura a reencontrar no segredo da noite. Nas águas de colorido e densidade variada. Como as águas em Bachelard. As límpidas, transparentes em profundidade. Mas repletas de brilhos e tão calmas e sorridentes que paradoxalmente não se deixam atravessar. Espelho narcísico que nada revela de si sem o outro, o rosto que se contempla e morre de tamanha devolução. Ou as profundas insondáveis em si, e desconhecidas nas suas escuridões que tudo escondem e que nelas sugam o olhar. O engolem em profundezas por explorar, o perdem, devolvendo em si e de si, unicamente o olhar que nelas mergulha como ao interior de si próprio. As primaveris e superficiais, alegres, frescas e repletas de brilhos, e as viscosas e obscuras, que fazem do ser o retorno a si próprio, não em forma de reflexo mas à forma da reflexão.

Como as pessoas são diferentes e diferentes de como são com os outros ou os outros outros. Como se a cada uma, uma das faces dessas criaturas aladas caprichosas e míticas que personificam com caracteres diversos os deuses dos sonhos filhos de Hipnos, o do sono irmão da morte. Quando nunca se sabe afinal se não é unicamente este que espera de braços abertos recolher o corpo abandonado. Como se fora o seu irmão. E que às vezes se distrai para ele.

No centro do eterno retorno da casa. Cama, barcaça enorme como um monumento digno do espaço ocupado, elegida a sua natureza de pódio. Muito altas ou rasas a tocar a terra. Enformada de pesados veludos e pregas acetinadas em tonalidades ricas, de fogo e de luz. Pesados brocados em festa barroca, pueris poéticas de estrelas, geométricas e vastas linhas, rectas como autoestradas recentes de sentidos únicos. Sempre, ir e voltar. Em parques ensolarados, ou, pensando na deliciosa descrição de Ovídio, nas Metamorfoses, em que é a de Morfeu, de negro ébano, entranhada numa escura caverna: “Nunca lhe pode o Sol mandar seus raios; (…) Do lugar o silêncio nunca rompem/ Os solícitos cães, os roucos patos,(…) Nele alterados sons de voz humana” . E decorada com flores. Papoilas, as “fecundas dormideiras”. As do ópio verdadeiro como o dos sonhos. Alguns.

Era Morfeu – é – diz o nome, aquele que forma ou dá forma. Moldador de sonhos. Era talvez o irmão escultor das visões dos outros três. O dos pesadelos, o das coisas, o das ilusões.

Ser objecto. Ser objecto de si e não muito sentir ser mais do que isso. Essa dependência do espelho. Do espelho como reciprocidade. Ou como comunicação. Do espelho de um olhar a mais do que o de se ser em si e não mais. E precisar de ser em mais. Esta ânsia de comunicação de eco de devolução. E a barcaça-cama a devolver em espelho o que se procura. Em linhos ou cetins. Talvez o irmão fantasia. Mas nunca se sabe qual dos irmãos nos acolhe na noite. E não chegar o ser em si porque se neutraliza na ausência do eco de si em si mesmo. O sono. Se não se distrair para Tanatos.

Sempre esta dúvida da cor que é o nada. O negro profundo ou branco superficial.

Em branco. Sempre gostei de lençóis brancos como uma página. Matérias antiquadas, finas ou rústicas, de linho e algodão. Bordados à máquina ou à mão, que importa o valor das mãos, se estão lá. Sempre, com amor ou por dever. Um lugar em branco. Em brancos vários. De restos de recordações de família e de restos de recordações de recordações contadas. Recontadas. Ou construídas. No viver. Sobre o branco, como uma página. Porque é ali que tudo se faz e desfaz. E se refaz. Que os dias começam e que os dias acabam. E, como a alvura dos lençóis agradáveis à pele, a clareza límpida e nova de todos os dias a ter que recomeçar. Talvez a alma lavada de fresco e virada para a frente. Sem lastro. Com tudo o que foi e com tudo o que fica, fresco e limpo como se novo em folha. Em folha branca. Para recomeçar no ponto preciso em que se fico na anterior. O grau zero. Com todo o sono e o apagado pelo meio. Como se de tudo sobrasse uma alma limpa e nova. O que é tão transcendente como fazer a cama todos os dias. Amorosamente. Porque não se diz disso refazer. Fazer. Como se nunca tivesse sido. De fresco. Com lençóis bordados a branco sobre branco. A lembrar climas quentes e outros tempos. A lembrar a disciplina de outros tempos e rituais. Mas nunca puxar as orelhas à cama, expressão tonta. Porque fez o seu papel sem culpa, como lhe estava destinado. A lembrar a frescura de outros tempos e de outras idades. A lembrar o que é preciso esquecer todos os dias. A lembrar o que não se quer lembrar. E a lembrar o que se quer guardar de alma de duas faces. Leve e pesada em simultâneo. Leve e pesada como os intervalos da música. Pausas. Às vezes apenas pesada. De penas. Mas fácil de pintar em tons matinais. Transparentes a resguardar um dia diferente. Sempre. E brancos de síntese cansada e nocturna. Em branco para renascer. Como das cinzas. Como do fumo em que mais um dia se esvaiu, muitas vezes sem remédio. Sempre sem retorno.

Sem poder voltar atrás, sem poder querer. Antes a vida numa página em branco. Mais fácil dizê-lo que fazê-lo. Abrir a cama fresca e depurada à noite e serenar a alma colorida de muitas cores e sombras.

Acordar como se fosse a primeira vez.

Ando há tantos dias a pensar nisto do irremediável. Que é a vida inteira e tudo. Tudo o que se faz, tudo o que se diz, tudo o que se pensa. Não há emenda possível depois de haver acontecido, sido, feito, dito, desdito. Pensar, fazer. Dizer. Tudo e em tudo, o irremediável. Nada de ilusões, emendas, desculpas, esquecimentos ou perdões. Uma construção. Em frente e em altura. Às vezes, matérias de pouca qualidade. Que fazer à pobre imagem do humano que se é… Desfazer e empregar matérias de mais valor. Isso sim. Nas construções. Mas a vida não é assim. Tudo o que foi, fica. Para sempre na aleatória construção e destruição da memória. Com defeitos, efeitos. Um impacto só visível com uma dose enorme de fantasia no depois. Nem sei se, além dessa leitura meio fantástico, meio dedução, meio por meio fé ou interpretação, se vislumbram de facto conclusões, relações de uma causa, ela própria indiscernível e de um efeito desligado de todos os possíveis, de tudo. E de parentesco por atribuir. Mas uma coisa sei: penso, ou sei, tudo é sem remédio. Mas só se não fosse a aprendizagem dos materiais. As matérias  melhores na arquitectura dos dias. A conhecer, a acolher, a escolher a preferir. O dia depois do dia que foi, é o caminho possível. O que vem a seguir. Uma página felizmente em branco, forçada, teimosamente forçada. Em branco para escrever. Sim. Só assim esta sensação aterrorizante e de aliviada, se bem que temporária, eternidade é suportável. Até amanhã. A íntima desconfiança de que não é para sempre embora o que dói pareça ser. A absoluta certeza de que a vida já mostrou que não dura. A irremediável sensação de que se fosse para sempre tudo era talvez pior porque a fé no placebo ou no remedio se estendia nos dias preguiçosa, langorosamente.

Mas quanto se impõe no inevitável respirar – na escrita- Tão dominado por emoções que o retiram, mas nunca o suficiente. Quase nunca. E como tal. A sensação de que a eternidade é em cada momento, e a certeza do momento seguinte. Na melhor das hipóteses. E mas ainda, porque sonhamos, até amanhã. Aqui. Nunca à mesma hora – diria – nunca no mesmo lugar. Nunca a mesma de hoje. Mas a mesma de amanhã. De sempre, mas tendo dormido de fresco em lençóis brancos. Quando se dorme. Perto de Tanatos mas para a vida.

Abrir a cama à noite. Como um livro branco. Fechar o livro, o dia, a noite. A última página. Sobre o corpo. Tudo. A certeza de que só há uma vez para cada coisa. Como águas da passagem de um rio. Eternas, repetidas e únicas. Desfazer a cama. Como no amor. E depois, manhã clara, abrir o livro e sair-lhe de dentro como o dia, uma história por contar. Fazer a cama de lençóis em branco. Fazer o dia como uma página a escrever.

9 Jun 2017

Vergílio Ferreira: Memória, realidade e imaginação

Ferreira, Vergílio, Rápida a Sombra, Bertrand, Lisboa, 1993
Descritores: Literatura Portuguesa, Romance, Memória, Regresso, Paraíso Perdido, 214, [2] p.: 21 cm, ISBN: 972-25-0269-7.

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]m Rápida a Sombra dominam os temas que são estruturais na obra de Vergílio Ferreira, como por exemplo a ideia de um regresso, que é quase sempre a uma aldeia. A ideia de regresso após um longo afastamento está também no Cântico Final, no Para Sempre, em Signo Sinal e em outros romances. É o regresso que geralmente potencia a elaboração de uma espécie de balanço reflexivo através do uso da memória. A analepse é uma das figuras de estilo mais caras a Vergílio Ferreira, desde logo por isso, porque os regressos e os exercícios de memória são recorrentes. Contudo neste romance, Rápida a Sombra, o regresso de Júlio Neves é-nos dado apenas em termos imaginários enquanto em Para Sempre se trata de um regresso definitivo, o que de facto também não muda nada, pois a ideia de regresso é sempre ao mesmo tempo real e fictícia.

O romance usa espaços distintos e não só a cidade e a aldeia, mas também o escritório, a praia, as várias casas, etc., mas o que não é nomeável, sendo porém muito mais da ordem do arquétipo ontológico, é a oposição mais estruturante entre o espaço do visível e o espaço do invisível. São as figuras femininas que delimitam, em minha opinião, as fronteiras, ou seja, as verdadeiras fronteiras, aquelas que separam e organizam duas modulações de Ser. Este é outro tema recorrente nos romances de Vergílio Ferreira. Há sempre duas mulheres paradigmáticas tal como neste romance Helena, a sua mulher, e Hélia, mulher sonhada e paradigma de desejo e nostalgia. É esta bifurcação ôntica que permite a instauração de três domínios existenciais, o da memória, o da realidade presente e o da pura imaginação. O visível e o invisível, contudo, não são afins de nenhum dos três domínios de forma esquemática ou simplista. O invisível pode fazer a sua erupção tanto através da imaginação como da memória, o que parece óbvio, mas pode também irromper, fazer a sua aparição, a partir justamente da realidade. Como diz Vergílio Ferreira, em Rápida a Sombra “só o invisível se vê, a irrealidade é real, nos intervalos do real e do visível!”.

É esse, o papel próprio da ficção, do romance e da novela em particular, dar a ver um tipo de realidade que mais nenhuma arte é capaz de dar, essa espessura existencial que se não vê. Neste sentido radical há uma aparição em toda a arte do romance. O romance é a forma de arte em que o invisível, o intangível puro, se torna visível e aparece. O romance é sempre a expressão de uma epifania porque nos narra a experiência do acesso ao rosto do que é invisível e não tem rosto. Em boa verdade devo desdobrar este conceito de narrativa em dois elementos, o que ela, narrativa, narra e o que pela narrativa se faz aparecer, pois são duas realidades imbrincadas mas distintas. Narrando uma ordem de coisas e de factos o narrador, através do seu poder, faz aparecer outra ordem de factos e de coisas. É como se de uma arte da prestidigitação se tratasse. Vergílio Ferreira di-lo e nesse sentido diz o mesmo que Milan Kundera, embora por outras palavras: “Todo o real tem atrás de si outro real. E é nesta diferença que se insere a distinção entre o ‘saber’ e o ‘ver’. Saber que se é mortal só é ver que se é mortal quando se passa para o lado de lá do saber. É onde está a ‘aparição’. O que está para lá é do domínio do intangível e do sagrado. Como aos deuses, não se lhe pode ver a face. Ou só em breves instantes de privilégio”.

Não partilho com Vergílio Ferreira, no entanto, a ideia de que a aparição, a epifania portanto, responda a uma pergunta. Partilho com Kundera a ideia da insustentável leveza do ser. Num romance a narrativa faz aparecer essa dimensão da existência, única, essa erupção do que se não vê, justamente porque não pergunta nem questiona, não especula nem investiga; narra apenas e narra, quase que se pode dizer, de uma forma intelectualmente pobre e não filosoficamente pretensiosa; pois é a narrativa do aparentemente nada que faz fulgurar, nunca porém de repente, mas como uma moinha que de nós se apropria, uma outra dimensão da existência. A dimensão da existência que o romance mostra e da qual nos faz participar é rigorosamente como um estado de alma que aos poucos se apodera de nós e nos mantém cativos durante um certo tempo.  

     

Sinopse e Ficha Crítica de Leitura

Vergílio Ferreira nasceu na aldeia de Melo, no Distrito da Guarda a 28 de janeiro de 1916 e faleceu em Lisboa no dia 1 de Março de 1996. Formou-se na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra em Filologia Românica. Em 1942 começou a sua carreira como professor de Português, Latim e Grego. Em 1953 publicou a sua primeira colecção de contos, “A Face Sangrenta”. Em 1959 publicou a “Aparição”, livro com o qual ganhou o Prémio “Camilo Castelo Branco” da Sociedade Portuguesa de Escritores. Em 1984, foi eleito sócio correspondente da Academia Brasileira de Letras. As suas obras vão do neorrealismo ao existencialismo. Considera-se geralmente que o romance Mudança assinala justamente a mudança de uma fase para outra. Na fase final da sua carreira pode-se dizer que Vergílio Ferreira tocou as fronteiras de um puro niilismo. Em 1992 foi eleito para a Academia das Ciências de Lisboa e além disso, recebeu o Prémio Camões, no mesmo ano.

Obras principais: Mudança (1949), Manhã Submersa (1954), Aparição (1959), Para Sempre (1983), Até ao Fim (1987), Em Nome da Terra (1990) e Na tua Face (1993).  O autor faleceu em 1996, em Lisboa. Deixou uma obra incompleta, Cartas a Sandra, que foi publicada após a sua morte. A partir de 1980 e até 1994 foram sendo publicados os seus diários, com a designação de Conta Corrente. Deve ainda salientar-se a publicação do conjunto de ensaios intitulado O Espaço do Invisível entre 1965 e 1987.

8 Jun 2017

Virgens e meninos rabinos

05/05/2017

Max Ernst – “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas” (1926)

[dropcap style≠’circle’]U[/dropcap]ma vez, pensava na vida olhando a minha filha mais pequena que brincava com um pato amarelo, de plástico, e perguntei-lhe de chofre: Filha, o que é a mentira? Ela, entretida com o  pato, atirou: Uma tartaruga. Não me desmanchei: E quantas patas tem? Respondeu firme: Duas.

Depois, sob pretexto de lhe ler uma história, mostrei-lhe uma gravura com uma tartaruga. Ela concluiu o resto, não precisei de lhe dizer uma palavra. Chama-se a isto a racionalidade: a capacidade de mudarmos as nossas concepções quando confrontamos aquilo  em que acreditávamos com a experiência da realidade.

O que se denota pelo comportamento de Trump é que para ele as tartarugas ainda têm duas patas e continuarão a ter.

Dizia o presidente americano que os EUA abandonam o acordo por ser mau para o emprego nos Estados Unidos, pois afecta a indústria do carvão e de outros combustíveis fósseis. O que ele não diz – eis uma personagem em quem até as omissões mentem – é que o acordo, simultaneamente, estimula outras indústrias bem mais florescentes na economia dos EUA. Elucidam os jornais: «Segundo números do Departamento da Energia, citados pela CNN, a indústria do gás natural emprega 362 mil pessoas, a solar 374 mil e a eólica 102 mil. Já a indústria do carvão dá emprego a 164 mil funcionários, um número que tem vindo a descer há décadas. Os dados mostram ainda que a empregabilidade na indústria solar cresceu, em 2016, 17 vezes mais que o crescimento total do emprego.» Não são recicláveis os operários americanos? A tal da perna curta, etc.

Na verdade, a única coisa que lhe interessa são duas.

A primeira é exibir músculo para ver se ganha ao resto do mundo a discussão sobre quem estabelece as regras da relação, o vulgo “quem manda em casa!”. E as coisas não estão a sair-lhe bem.

A segunda é a que resulta disto: em Trump, neste momento, por detrás da máscara da arrogância, existe uma criança tremendamente assustada. Alguém que deu conta de que pode haver despistes mortais num triciclo.

Em estudando-lhe as expressões faciais, nos momentos chaves da sua exposição mediática, nota-se alguém tremendamente dividido entre o papel de que ele se acha investido e a mortificação de já não saber que máscara adoptar com precisão em cada ocasião. A urgência pomposamente solene com que empurrou Montenegro (a macia matéria do mundo) para depois apertar um botão do casaco em Grande-Plano não é congruente com o ar de pilhéria com que anuncia que se está nas tintas para que o planeta fique estufado – um ar de puto radiante por contrariar os outros.

A lição dura que Trump está a ter através de humilhações sucessivas, dentro e fora – e proporcionais à irrealidade com que as nega no twitter – é a derrota do homem comum americano: a sua impropriedade para enfrentar a complexidade do mundo actual, dado padecer da inércia de nunca se interrogar se a tartaruga terá mesmo duas patas.

Por isso jamais poderá agir Trump como diplomata e nunca almejará ser mais do que o ladino intermediário de alguns negócios, não coincidindo exactamente o seu primeiro interesse com os interesses da  América, antes fixando-os na manutenção do rating da sua imagem. Será que o triciclo se aguenta na curva?

Só este pânico explica a inadequação dos tuites em que desqualifica o mayor londrino. Não é a pertinência, a justeza da palavra que ele visa, isso é irrelevante, ele apenas roga, desesperadamente, por atenção e, quiçá, ternura.

Apetecia convocar aqui a “Virgem que espanca o Menino Jesus observada por três testemunhas”, de Max Ernst (o quadro que ilustra a crónica)” – são imensamente friáveis as nádegas do Menino, seu filho. E, para já, tirar o triciclo a Trump. Quanto a mim prometo não voltar ao tema dos meninos rabinos.

06/05/2017

Esta Virgem e a crónica de há duas semanas do Valério sobre as 72 Virgens que aguardam por mártir de um Islão no Paraíso, fez-me pensar no tipo de virgens que quereria para mim, depois duma minha virtual conversão. Eis algumas que já me ocorreram:

  1. a) Têm todas de ter um certificado de garantia de que nunca estiverem em hotel russo ao mesmo tempo que um milionário americano, não quero hímenes restaurados;
  2. b) quero uma virgem com uma genitália que seja uma espiral de quatrocentos e cinquenta metros de diâmetro, com rochas negras de basalto, para que eu exercite os meus dotes de montanhista;
  3. c) outra com uma (sic) como a que descrevi exaustivamente num conto: com quatro cantões como a Suiça. Já que a nomeei mereço frequentá-la;
  4. d) uma virgem, como pediria o filósofo Agamben, de “uma beleza-por-vir” mas que não seja demasiado linguaruda como a Xerazade, podendo no entanto herdar-lhe as axilas, que diziam aromatizadas em jasmim. Melhor, que seja só axilas…
  5. e) uma virgem que, como queria o gnóstico Valentim, não obre e não urine e saia ilesa de todas as minhas fantasias;
  6. f) uma virgem cuja palavra menstrue, para que me lembre. Outra
  7. g) tão inteligente que, de cada vez que me veja nu, não sinta logo necessidade de chamar os bombeiros;
  8. h) uma virgem que tenha pomares nas virilhas e exsude em aparos moles;
  9. i) uma virgem tão feliz em sê-lo que a cole num postal para o Papa Francisco;
  10. j) uma virgem especialista sobre o vasto mundo do paguro;    
  11. k) uma virgem inautêntica, até sincera nisso, e duma fantasmagórica vacuidade para que eu possa dormir lá dentro;
  12. l) uma especialista em sânscrito que me possa ler o Kama Sutra, na língua que o incarna, sem precisarmos de nos cansarmos no espaldar;
  13. m) uma não-virgem, que pode ser a minha mulher (troco-a por vinte e cinco virgens), pra que naquela imensa eternidade tenha alguém que me diga que não;
  14. n) uma virgem que respeite a minha decisão de não querer ser informado sobre os pormenores da incandescente cópula do gafanhoto (16 horas de labor operático).

Por favor, recrutadores, passem a palavra.

8 Jun 2017

Baleia azul

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]pareceu esta estranha designação que tem por detrás práticas destrutivas e incentivo à destruição como meio de averiguar o limite das capacidades quando norteadas por um engenhoso cérebro de « Encantador de Serpentes». Não creio por isso que o seu inventor seja um jovem de vinte e dois anos — isso é apenas mais um embuste de carácter «Lobo Solitário» que sabemos não existir quando se trata de mecanismos mais vastos. Estamos perante um teste laboriosamente criado para analisar a vulnerabilidade dos jovens, até que ponto eles estão receptivos a um propósito cego e vertiginoso que, tal como a magia, os guie num canto suicida.

Todo este mecanismo não afirma: “Quero acabar com a Humanidade!” Um mecanismo destes não produz frases, deixando-as para os mais jovens e radicais. Os jovens sagram sempre. Há mesmo ritualisticamente a herança sacrificial dos mais belos, dos sem defeito, para acalmar a fúria dos deuses, pois que se for velho, com defeito ou feio, a tempestade não acalma: Abraão não vai do presente para o passado – o degolador do filho – apenas do passado para o futuro do Homem que praticava costumes tribais de matança dos inocentes na linha dessa necessidade. A sua importância firma-se pelo fim dessa prática, já que na consciência humana representada pelo anjo ele evolui para uma nova dimensão. Passam então os animais a cumprir esse antigo desígnio: os cordeiros, as pombas, os bois, sempre jovens, pois que um cordeiro adulto se transforma em carneiro. Manteve-se o princípio: o sangue velho é um plasma que também não apazigua o deus do monoteísmo.

Mas as nossas sociedades estão cada vez mais velhas, como bem se constata proporcionalmente à média de vida atribuída neste período do tempo, pois que se fôssemos homens bíblicos estaríamos certamente entre o imberbe e a pequena infância e o que daqui resulta é que da nossa vida já vivida, as ideias ,os conceitos e as realidades, ultrapassam em muito os sonhos juvenis e os espaços de manobra que eles têm para ser. No meio de tal abundância eles colidem ainda com o artefacto adulto de uma “juventude” que se prolonga, sendo por embuste que nos aproximamos muitas vezes das suas naturezas.

Sabemos que o tempo que lhes dedicamos é um dever feito com esforço e uma imensa insegurança. Queremos defendê-los mas não sabemos de que forma. No nosso íntimo achamo-los desagradáveis e problemáticos e desejamos que aquilo passe; crescer é uma dor que presenciamos e não sabemos ainda resolver; nós que resolvemos quase tudo… ou pensamos ser assim. Lembramo-nos, não raro, com um certo alívio, que mesmo em queda, ali não voltaremos mais, lembramos a nossa dor nesses domínios, mas o tempo era outro e o estranho é que a placa de vidro frio das antigas gerações é exatamente a mesma que eles projectam em nós. Nós, tão diferentes de tudo, temos de ser expostos a um teste que denuncia paralisação.

Os jovens mesmo em queda são milhões pelo mundo fora e há que saber testar os seus limites e fazer experiências ao grau de extremo abandono a que, não parecendo, estão sujeitos. É uma “central” que de certa forma quer saber se pode contar com este “exército” quando o mote das suas ordens se fizer sentir e assim estes e outros jogos e outras baleias avançam para um primeiro escrutínio experimental. Um líder jovem que não sabe dos estatutos da missão dirá ainda ingenuamente: «Quero acabar com toda a Humanidade» mas, por detrás, o saguim e o sardónico manejam os cordéis. Estes cordéis que podemos, mesmo metaforicamente, remeter para a primeira felicidade de Pinóquio « Não há cordões em mim! (…) posso andar, posso falar, posso mexer(…)». Mais tarde também ele se encontrará no ventre da Baleia, da Dona Monstra.

Aliás, a ideia de uma Humanidade engolida por um ser marinho é comum em todas as civilizações. Jonas por lá andou retido e o delírio da sua invocação e da salvação foi tanto que é vomitado do seu ventre para fora. O mar é inimigo de Deus desde a origem, é visto como um reino da morte quer como o caminho que a ela conduz e, se formos a um dos mais emblemáticos romances do século vinte, «Moby Dick» de Herman Melville, saberemos identificar alguns signos desta verdade: o seu herói é Ismael que luta contra o grande Leviatã, neste caso, a Baleia Branca. O deserto é a antítese deste Inferno e, até ver, onde Deus nasceu, bem como todos os homens das tribos desérticas. Existe ainda por lá o Paraíso. Ismael, filho de Abraão, também não foi morto tal como o seu irmão Isaac: o deserto salvou-o do sacrifício criancista. O monstro é absolutamente de identificação marítima. E agora do grande romance que diz assim: (ainda e a propósito dos jogos jovens ou dos jogos com os jovens, dos testes que só a eles sangra, e que não vemos, impávidos como andamos, a sua tão líquida frescura. E este romance é quase uma profecia).

«GRANDE E DISPUTADA ELEIÇÃO PARA A PRESIDÊNCIA DOS ESTADOS UNIDOS»

« VIAGEM DE UM TAL ISMAEL NUM BALEEIRO»

« BATALHA SANGRENTA NO AFEGANISTÃO»

« No entanto, não consigo adivinhar por que motivo esses encenadores, os Destinos, me designaram para um reles papel numa expedição baleeira, quando outros receberam magníficos papéis em grandiosas tragédias, e falas breves e simples em comédias ou em farsas; mas agora que recordo todas as circunstâncias, começo a compreender as origens e os motivos que, astuciosamente apresentados sob vários disfarces, me induzem a aceitar este papel, além de me levarem a cair no engano de que se tratava de uma escolha resultante do meu livre arbítrio e do meu discernimento.»

O populismo não é apenas político, mas também cultural, afásicos sistemas que consistem na degradação e banalização do pensamento e, se não se fizer mais que dar notícias e querer-se inventar tudo a partir de uma ideia milagrosa que geralmente se afirma de modo terrorista, com frases bombásticas e antevisões de conhecimentos panfletários, nunca iremos saber o porquê destas Baleias, desta hiperbólica boca aberta para um ventre de que o próprio Leviatã se demitiu na sua imponderável denúncia de não querer saber mais disto para nada. É depois uns contra os outros que iremos ser vomitados sem que saibamos da “central” nem de coisa nenhuma.

Os livros não são um fim em si, mas uma ajuda, e quase seria melhor abdicar de um entulho argumentativo dissolvente que empoeirou a visão da consciência do que andar perdido entre resmas de “verdades” insolventes. Parecem-nos todas longínquas estas outras Baleias, mas não, são exactamente as mesmas que esta Azul, indisfarçavelmente monstruosas, e só outros poderes as conseguem subjugar. A atenção requer entrega, um aspecto que a “central” sabe não existir, e entregamos-lhes assim por indiferenciação esmagadora a vida dos nossos filhos.

8 Jun 2017

Sombras e vento frio

Metro, Lisboa, 29 Maio

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]inda no REALIZAR:poesia, durante o lançamento de Vertem-se Bíblias em Quimbundo (ed. Miasoave), o João Paulo Esteves da Silva explicou muito explicadinho a origem do volume: um amigo hebreu e poeta ofereceu-lhe um tablet e ele pôs-se a «andar pela cidade com os polegares». Usei os meus para tomar nota no telemóvel, mas desnecessariamente, pois não me esqueci. O livro traz ainda um cd com as canções de um outro projecto, Crime, mas os poemas iniciais têm pouco a ver, a não ser no que indica uma epígrafe: na luta diária, os nossos gestos poderiam cometer crimes. Ainda assim, aqueles percursos pelo quotidiano são compostos no modo narrativo da voz off de um qualquer filme noir, com os olhos a fazer a vez dos polegares no tocar da cidade. Muita sombra perpassa, não sei se melancólica, nas descrições falsamente fotográficas do que se faz e desfaz, da chuva e das árvores, tantas árvores, do vazio e de Deus, mas também de memórias e de anseios, por outro sítio ou por neve. Longos versos a dizer em baixo contínuo de cortante singeleza. Falho paragens no metro atulhado com a voz off a empurrar-me, de súbito flanêur de filme noir na cidade branca. Branca por que raio? «Claro que preciso do apoio dos livros, empilho-os, encosto-me, descanso/Pouso-os na mesa, sombras benfazejas, anjos sentinelas//Às vezes, tenho a mão sobre um enquanto leio outro/Acompanho com toques mais ou menos ritmados//Agrada-me escrever em contraluz, virado de frente para o livro/ A ver o lado mais sombrio das formas, iluminadas por trás (…)».

Cemitério da Paz, Setúbal, 30 Maio

Interrogações. De que espécie era a pequena árvore que nos refrescou naquele deserto, sobreiro ou oliveira? De onde vinha e para que apontava o arbusto que se erguia do vazio da gigantesca cabeça tombada, céu ou terra? De que mineral nasceu a cabeça tombada, lioz ou granito? Sabe o coração que os seus batimentos desenham paisagens, montanhas e fossas? Que lonjura e profundidade deve ter o traço para fazer um destino?

Facebook, Lisboa, 1 Junho

Leio notícia da morte de Armando Silva Carvalho (quantos dos citadores instantâneos e lamentadores terá comprado um dos seus livros?). Não consigo relembrar-me da última conversa sobre Deus. Ou seria morte? Será possível falar daquele sem esta? Qual espelha o quê? «Entrego estes frutos minerais/tardios./ Envolvo numa sombra a mão/ que mos recebe. / A isso chamo eu mundo./ Entrego mais e mais, amei falsificando,/ e ajeito o pescoço à lâmina/dos dias./ Com os olhos bem abertos abarco/ toda a queda./ Eu sei, é o outono.» (De Canis Dei, incluído em O Que Foi Passado a Limpo, ed. Assírio & Alvim, volume que sobreviveu com marcas à inundação). Sopra na cidade, mal anoitece, um vento frio.

Horta Seca, Lisboa, 1 Junho

Apesar do vento, fez-se festa, esta finissage. Como nas boas receitas, a qualidade de cada ingrediente foi-se encaixando para fazer mais, muito mais, do que a soma das partes nesta edição especial de «Desenhar Em Cima da Conserva», caixa com livro e latas de conserva. Surjam agora mãos-leitoras que o usem para se apoiar. A ideia do mano Tiago [Ferreira] de convocar ilustradores capazes de ocupar, com imagens, um vazio desenvolveu-se, à mesa, para cadáver esquisito em banda desenhada que contasse mais uma história de marinheiros e sereias. Aconteceram encontros mensais, na loja da Conserveira de Lisboa, para assistir ao desenho ao vivo até que o Museu do Trabalho, antiga conserveira de Setúbal, acolheu há um ano, uma primeira mostra do conjunto dessas obras, enquanto o André [Carrilho] encerrava a histórica com épica baleia. Outro mano, José Teófilo [Duarte], com ajuda do João Silva, desenhou o objecto com o peso exacto de cor e modo, antes de ser passado a caixa, de modo a conter duas latas Tricana, cuja imagem aproveitaria personagens da Susana [Carvalhinhos] e do Pedro [Brito]. E estou longe de esgotar a lista de competentes contributos. Outro dos casos, portanto, em que as páginas dos livros se transfiram em ramos de árvore abrindo espaços na paisagem e tocando mundos e fundos. Por exemplo, neste dia fez-se toalha para dispor os sensíveis e delirantes amuse-bouche da Ingrid [Correia], tão bem acompanhados pelos espirituais Syrah, Viosinho e Touriga Nacional, da Quinta do Gradil, gentileza da Ana Matias. Tenho até carinho por caixas, sobretudo de cartão, mas não tinha nas estantes que vou construindo nada com esta luxúria bruta. A bd dentro vive de brincar entre o negro e o branco, seja traço ou mancha. Cada vez que a folheio encontro tranquilidades e tempestades, o delírio e o medo, além do amor. E depois o mar, em (pro)fundo.

Casa da Cultura, Setúbal, 2 Junho

O rosto da Festa da Ilustração soma, este ano, ao grafismo sólido do José Teófilo [Duarte] a fluidez do desenho do António Jorge [Gonçalves]: figura que corre, com lápis na vez a perna, traçando o chão que pisa. Preciso aqui desmontar a metáfora como se fosse prótese?

Pelas zero horas, estamos, os organizadores, tolhidos pela quase solenidade no meio dos seus desenhos que são quase só traços. Dizem, com pujante energia, que somos isso, afinal, linhas, vestígios. Com método, leu a Casa da Cultura e instalou três momentos do trabalho que vem fazendo, começando pela ampliação dos seus inseparáveis cadernos do registo imediato de gente sentada viajando de metropolitano nos cinco continentes. Ao que se segue o trabalho de desenho ao vivo de par com música, teatro ou dança, para acabar em A Minha Casa Não Tem Dentro, com o essencial do seu livro mais recente, de toque abysmático. Disse três momentos? Erro. São quatro, pois a improvisação é componente essencial do seu modus operandi: a vida prolonga-se nas páginas do caderno onde assenta notas, sejam desenhadas ou escritas, ou ambas as coisas. E dali frutificam depois para o que der e vier. Havia uma parede cega na Casa da Cultura, a caminho dos Desenhos Éfemeros, a tal onde às escuras assinala a parte do seu trabalho com a luz. Faça-se da parede folha de caderno (veja-se foto ao lado), com perguntas e desenhos ou perguntas desenhadas. «Respondo-me ao perguntar? Desenho porque desejo-te? O medo mata? O medo salva?» Obrigado por perguntares: «Como te sentas hoje?»

7 Jun 2017

Venús terá sido asiática? 亚洲人是彻底的“女尊男卑” (Parte 2)

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]os finais do século XX o Japão exportou para o mundo ocidental um universo visual que parecia naïve e a léguas de distância das artes gráficas tradicionais Ukiyo-e. Personagens animadas fofinhas, como o Pokemon e a Hello Kitty, foram amplamente adoptadas pela juventude ocidental e foram crescendo dentro da série manga da Nintendo. O ocidente começou então a criar bonecos inspirados nos japoneses. A Selfridges de Londres elegeu como mascote da loja uma boneca de olhos rasgados e cabeça grande para celebrar o tema “A vida em Tóquio”. Jovens designers começaram a incorporar alguns destes elementos nas suas criações e estas mascotes tornaram-se moda no ocidente. Os consumidores do mundo inteiro aderiram entusiasmados à novidade, até ter sido substituída pela “descoberta” seguinte. Contudo, no Extremo Oriente os bonecos fofinhos continuaram de vento em popa porque fazem parte de uma cultura cimentada ao longo da História, e não de uma febre consumista pontual. O gosto popular por bonecos fofinhos está enraizado numa estética tradicional e continua a desempenhar um papel importante no dia a dia das pessoas.

A série manga destina-se a todos – homens, mulheres e crianças – e inclui os temas mais variados, desde a comédia ao romance e da Filosofia à História. A “mania do boneco” vai muito além da cultura dos jovens porque dá às pessoas a hipótese de identificação. A aparência segura e ternurenta sugere o desejo de ser protegido. E as pessoas são protegidas quando não exprimem opiniões, que é um sinal de saberem o que é o “respeito”. Não dizer abertamente o que se pensa e o que se quer, significa que pomos as opiniões e as necessidades dos outros à frente das nossas. E este tipo de “respeito” mantém-nos seguros e fofinhos. A um ocidental dá seguramente a impressão de estar perante alguém que lhe lembra uma criança. E é aqui que está a diferença. Se lhe chamarem “fofinho” em Tóquio, querem dizer mais ou menos o mesmo que os tipos da Califórnia quando lhe chamam “cool”.

Entretanto os jovens fãs chineses fazem upload e remix dos vídeos de animação japoneses, criando um género AMV (Animation Music Videos). Extraem os pedaços de músicas e de filmes de animação japoneses de que gostam mais, e depois editam-nos em conjunto. A juventude chinesa desenvolve a sua sexualidade dentro do contexto de uma cultura consumista, porque as fantasias sexuais das pessoas são afectadas pela febre de censura da RPC. Os jovens vêem na abertura do estilo japonês uma fuga aos estigmas da cultura sexual chinesa, um misto de controle do Estado e de moral confuciana.

A seguir também temos a pornografia japonesa, exportada para o ocidente com grande sucesso, uma mais valia para a imaginação do homem branco. Por exemplo, os filmes pornográficos japoneses com mais saída dedicam grande parte do tempo a mostrar corpos femininos a serem beijados e acariciados. Parecem “gostar” mais das mulheres do que os seus congéneres ocidentais, que apenas as “exploram”.

Da próxima vez quero falar-vos de um filme pornográfico destinado às mulheres que se chama ‘Amor Entre Rapazes’ e que nos mostra o amor gay e outras aventuras. Este sub-género tem actualmente muita popularidade nos sites que partilham vídeos como o Youtube.com.

Termino com as palavras de Lemy Motörhead: “Não podemos ser só de uma cor. Para esta coisa do sangue vir algum dia a funcionar como deve de ser, temos de misturar as raças e fornicarmos desalmadamente até ficarmos todos mulatos.” Da próxima vez que se deparar com racismo, lembre-se destas palavras.

Noutra cidade, noutro lugar, noutra raça. Hasta la vista.

7 Jun 2017

Poesia ao vivo

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado domingo, actuaram em Macau os No Precipício Era O Verbo, grupo de música e poesia composto pelos músicos Carlos Barreto (contra-baixo) e José Anjos (percussões e também o poeta que incorpora o grupo), pelo actor André Gago e pelo filósofo e tradutor de Grego clássico e alemão António de Castro Caeiro. Trata-se de um grupo que concilia a música, de vertente experimental, e a recitação de poemas. Poemas esses que vão desde poemas portugueses a poemas da antiga Grécia, lidos no original e em tradução, assim como alguns poemas alemães, também lidos no original e em tradução (poemas alemães e gregos lidos por António de Castro Caeiro). Recentemente editaram um belo disco, com um precioso trabalho gráfico levado a cabo por Dulce Cruz e com ilustrações de André da Loba, que já tinha feito um livro em conjunto com a poeta Rita Taborda Duarte, também ele um livro precioso. No Precipício Era O Verbo não é o único projecto deste género, embora seja o mais recente. A Lisbon Poetry Orchestra é outro destes projectos, do qual já fez parte o actor André Gago, e que envolve vários músicos, entre eles o antigo baixista dos Rádio Macau e actual proprietário do bar Povo, onde desde há cinco anos se lê poesia todas as segundas-feiras a partir das 22h.

Aqui, no Povo, também as leituras de poesia são acompanhadas por um ou mais músicos. Mas estas leituras de poesia não se ficam pelo Bar Povo, que têm à frente do projecto Alex Cortez e Nuno Miguel Guedes; deste projecto nasceu também a revista literária Cidade Nua. E, em Lisboa, este é apenas um dos projectos a que se juntam vários outros: Terças de Poesia Clandestina, que neste momento é no Titanic Sur Mer, e o evento está também ligado à revista Apócrifa; e os encontros mensais, nas primeiras terças-feiras de cada mês, no Teatro Nacional D. Maria II, a cargo da actriz Teresa Coutinho; recentemente desapareceu as leituras de poesia, em Lisboa, com mais tempo e mais sessões, as leituras às quintas-feiras no bar do Teatro da Barraca, a cargo do poeta Miguel Martins, também editor da Tea For One; e ainda outros pontuais, como os que aconteceram recentemente no Bar Irreal, por iniciativa do poeta José Anjos (também regular colaborador do Bar Povo). Mais recentemente, em Maio passado, deu-se início às leituras na livraria Ferin / Ler Devagar, projecto liderado pela Marta Lapa e que acontece uma vez por mês (no último sábado do mês) à volta de um poeta. Na cidade do Porto já tinha começado há mais anos, com o Rui Sprangler, no Café Pinguim, e continua; e também com as Quintas de Leitura, projecto do João Gesta, no Teatro do Campo Alegre.

Há duas décadas atrás, Nuno Moura e Paulo Condessa iniciavam, nessa altura completamente a contra-corrente, o projecto O Copo, que consistia em leituras de poemas e performance à volta dos mesmos. Hoje a leitura de poesia em público parece estar na moda, e isso por si só não é bom nem mau. Há leituras melhores do que outras, escolhas melhores do que outras, e talvez resida precisamente aqui, nas escolhas, a diferença entre as leituras que acontecem, um pouco por todo o país.

O poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920) dividiu a sua obra em duas “águas”: a primeira seria a da comunicação restrita, elaborada e de difícil leitura, poemas que necessitavam de mais de uma leitura; a segunda, uma poesia mais popular, de compreensão mais imediata, que não necessitaria de mais de uma leitura para se fazerem sentir, aos quais chamou de “poemas em voz alta”, que foram escritos para serem lidos a um público ouvinte. Assim também entendo que há poemas, não que sejam para ser lido em voz alta, mas que sem dúvida resultam melhor em voz alta do que outros, que necessitam de uma maior concentração, de uma maior atenção. Seja como for, a verdade é que estes eventos e estes grupos, de poesia lida em voz alta para grupos de pessoas e acompanhada de música (ou não), parece ter vindo para ficar. E parece ser um modo eficaz de divulgação dos poetas que são lidos. O tempo o dirá. Mas para já, já se passaram uns anos e a tendência é para que o fenómeno cresça. Seria talvez bom, que alguns destes eventos pudessem ser reproduzidos em Macau. Para já, Macau pôde assistir ao singular projecto, fruto deste tempo de poesia ao vivo, No Precipício Era o Verbo.

6 Jun 2017

Do turismo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] turismo chegou para ficar. Pelo menos enquanto Lisboa for a capital do cool e da luz de Byron, os portugueses o povo mais acolhedor da Europa e Portugal um país tão pacífico como ridiculamente barato. No fundo, como alguém de que não me recordo terá dito, o melhor dos mundos consiste em viver num país do sul com um ordenado de um país do norte.

Mas a questão do turismo, para os lisboetas, está longe de ser respondida de forma consensual. Se há os que prezam e louvam tudo quanto os turistas trouxeram de bom a uma cidade que, há apenas dez anos, se encontrava em estado vegetativo, desertificada no seu centro excepto por aqueles que não tinham para onde ir e por meia dúzia de excêntricos encantados por morar num quarto andar sem elevador desde que se visse uma nesga de rio, existem também os que protestam por causa do aumento absurdo das rendas, por causa da sobrelotação dos transportes públicos, por causa do barulho nocturno e da sujidade e, não infrequentemente, por causa dos tuk tuks que se tornaram uma espécie de cartão postal da cidade e um hóspede regular dos pesadelos dos lisboetas mais agorafóbicos que se imaginam a ser atropelados por um daqueles modelos cem porcento eléctricos que fazem menos barulho do que uma geisha na cerimónia do chá.

Eu vivi muito tempo em Albufeira, antes de esta se ter tornado um protectorado britânico, antes dos pubs com live football e typical english breakfast e antes de o cheiro a terra vermelha tostada pelo sol ter sido substituído pelo cheiro a bronzeador na variante coco e cenoura. Na altura, a estrada que ligava Albufeira às Areias de São João era de terra e brita – very typical –, a praia de Albufeira ainda tinha uma generosa porção de areia reservada aos barcos dos pescadores e o português ainda era a língua oficial, embora alguns afoitos do engate de praia se aventurassem em iterações do inglês – factor tuelve, beibi, no sics – a que as inglesas respondiam com a generosidade do sorriso.

A inesgotável cobiça e o passar do tempo fizeram com que Albufeira fosse crescendo de forma absolutamente caótica excepto pelo facto de tudo passar a ser feito pelo e para o turista: os aparthotéis, os restaurantes, as esplanadas de praia com preços proibitivos para os autóctones, as lojecas de rua entupidas de bóias e baldes de plástico e de todo o tipo de jornais e tabaco exceptuando, claro, os nacionais. De repente, o turista com algumas posses e sequioso de sol e sossego passa a cruzar-se, na Albufeira que escolheu para torrar o subsídio de férias em gins e cataplanas de marisco, com o seu jardineiro, com o tipo que lhe guarda o jornal no quiosque e com o taxista que por vezes o leva a casa depois de uma noite no pub. De repente, os pescadores convertem-se ao comércio de bugigangas nas artérias que circundam a praia ou ao alcoolismo profissional, as tascas em pistas de dança multicolores animadas por sessões de karaoke e música de micro-ondas e as praias, outrora tão desertas como paradisíacas, são agora línguas ínfimas de areia pejadas de gente desejosa de levar para casa um melanoma de origem demarcada.

Lisboa, ainda vamos a tempo de perceber a distinção entre óptimo e o incomportável, entre qualidade e quantidade e entre viver e sermos meros actores involuntários ou bichos de circo. Lisboa só tem graça porque é the real thing e não uma encenação feita para consumo alheio. E as pessoas percebem isso. E as que não percebem ou não se importam, acreditem, não queremos que sejam a maioria dos que vêm para cá.

6 Jun 2017

Tempo de ser a coisa outra

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] transparência nada nos diz que transpareça grande coisa nas questões que hoje nos propomos contemplar. Andamos na urdidura sempre maníaca da verdade para corrigir o que supostamente a mentira é e, sem que saibamos de uma ou de outra, toda a gente se arvora em grande entusiasta dessa designação mais vanguardista que não quer dizer nada, a não ser a vã e pouco lembrada memória das coisas. Estamos obliquamente condenados a ir buscar e a refazer o conteúdo de múltiplos saberes. Se a um dado momento nele entoava uma emoção precisa, neste entoa a falta de emoção imprecisa, que será mais uma malvadez ao arrepio da receptividade para aquilo que naturalmente nos faz bem, nem que seja o fazer bem o não fazer nada. Mas há que fazer nem que seja desfazendo o que estava feito, para tornar a fazer num exercício laborioso de adpatabilidade e de movimento. Os pressupostos ficam amargamente incomunicantes, as coisas que para aí se dizem como seja “inverdades” são inversas e cada um recria a cripta por onde um moribundo há-de dormir finalmente a paz tão desejada.

Basta haver um nódulo, um grão na engrenagem e todo o aparelho fica em alerta máximo. Por questões extemporâneas os homens tornam-se um género que “empapa” tudo não deixando passar o feminino na fonte dos seus saberes, ou mesmo, não saberes! Dos seus sabores. Onde o género impera, impera também a expansão e ela é tão explanativa que em frémito ideólogo ele se amarfanha por todos os recintos onde houver espaço de fecundação. Depois, dizem, com ares graves que estão sós nas suas competências e, sempre que se armam as discussões para todos, parece que o feminino se instala num pavoroso tédio masculinizante e se encripta numa forma que faz denotar em pólvora qualquer saber.

É muito amarga a realidade das coisas: se por um lado achamos que somos nós que enquanto pessoas que estamos cansadas, somos humildes também em reconhecer a nossa ignorância, a nossa impreparação para tarefa tão grande como a de existir; por outro, também andamos e flutuamos num mundo onde cada um tenta impor o seu domínio de forma “atabalhoadamente” absoluta, não crendo por isso que seja o de um espectro artificiosamente obscurantista, para isso seriam precisas componentes mais requintadas. Não, não é isso: é uma desmesura de índole autoritária que se acerca e se condiciona a si mesmo pela repetição, os séquitos, a demagogia e o artefacto mais ininteligível.

Em boa verdade, não acho a espécie Humana inteligente. Inteligir nem sempre é uma Teofania carregada de sujeições maiores. Somos o que podemos ser , talvez a caminho de uma qualquer inteligência, sim, que a manifestar-se vai ser andróide, vai ser a da ordem do homem vindouro, aquele que já não passa pela lei do ter de subsistir em qualquer domínio. Aspectos como a moral, a ética e até a transcendência terão de ser analisados e integrados de outras maneiras. Tudo será um processo sem dúvida tenaz e, esse sim, inteligente, onde por caminhos de massas melhoradas na sua superfície onde o mais fundo são as bases dos seus ecrãs algo se possa modificar. O grande mito do hermafrodita pode passar a ser real com a necessidade de estreitar o dissonante, de continuar lutando por aquilo que tão bem viu Almada Negreiros: «Unanimidade».

Eu sinto, enquanto mulher, a expansão da natureza homem em todos os canais – a televisão -, as técnicas, o mundo, as construções: e as mulheres estão libertas, sim, mas não tanto como se esperaria enquanto género humano que tende a ser mais um vício parado que espécie inventiva. E se não se conseguir andar mais e melhor pela idade, por causa do cansaço ou saturação, que se seja natural e reponhamos então as ordens vitais. O isolacionismo é um anátema que as sociedades de todos os grupos vivos impõem a alguns elementos, tanto podem ser cardumes, bandos, rebanhos ou manadas… há que colaborar de uma forma automática na função da sobrevivência, prova-se contudo que nem todo o organismo vivo é sustentado por anima. Pode viver sem estar animado ou estar tão desanimado pelo facto de viver que paralisa: para abrangência que detone e denote aspectos emocionais de carácter mais raro, há uma extensão que diz que essa probabilidade é amor, esse dom negado como princípio superlativo aos mais pensantes das tribos, o mais forte ou o mais sábio cria uma artificialidade que tende a abandonar os barcos que se afundam, como agora no Mediterrâneo. Por desleixo e falta de empatia, sem dúvida, mas também porque somos muitos, quando um dia que há-de vir olharmos para alguém será da ordem da aparição, mas isso só um dia quando formos tão poucos que tentemos salvar o outro como o nosso mais próximo bem- amado.

Por ora, tudo se move de maneira flutuante nesta Barca que tamanha onda há-de tragar sem que para isso sejamos convocados.

Nós que faltamos, que arranjamos no labor das nossas reservas oníricas apenas espaços para descrer, profanar ou vilipendiar o espaço outro, que ardilamos, que subjugamos, que somos levianos até à completa falta de talento;

Nós que temos muito e queremos mais, que tudo nos falta e nada produzimos, que tudo nos é devido sem dever, que somos importantes sem o ser, que, que, que….

Nós, esta imensa fornalha de despojos onde uma só força móvel não passou, estamos à espera diariamente de ganhar: a lotaria, o amor, a alimentação, as diversões, as coisas, de nos abastecermos de vida para que a nossa pareça a nossos olhos mais vivida. Mas é sempre a vida que nos vive, nós não vivemos a vida, a vida não quer saber de nós, nós temos a vida das coisas que trepam e as razões de não termos raízes no chão faz-nos frágeis em todas as circunstâncias.

A rotatividade dos factos provam que não somos nem importantes nem insubstituíveis, que tudo continua exacto no dia depois da nossa morte e que muitos anos hão-de passar até se achar de nós algo que interesse na cadeia das transformações. Quando por caminhos vários queremos inovar fazendo exactamente a mesma coisa, instala-se-nos um fastio perverso só parecido com a vingança das lapas que subjugam os espaços que detêm.

Sem confronto nem mordaça preparemos a nossa resistência para não sermos presos, de tudo que não se deve soltar é só a liberdade, não a podemos trocar por qualquer que seja a conveniência, ela é o único legado que se aguentará em nós enquanto os nossos espelhos nos devolverem o rosto que contemplado pode ser até uma obra de arte. Também não interessa amar os livres, eles são de forma tal que todo o amor produzido se expande em direcções que não contornam nem os braços, e se não tivermos membros, mais fica para a vitória de nem com eles termos de dizer adeus.

Aproximamo-nos de um Cabo tão Vicentino, quanto abstracto, e se uma luz vier mais voraz, os olhos cegam e nada filmamos e as imagens partidas não serão repostas e o que fizermos não será lembrado. Todo o instante nos indicia para depor amarras e contornar o agreste obstáculo que é viver. Se houver salvação, que nos salvem, nós, por nós, já ultrapassamos em muito a nossa parte. Concomitantemente à nosso terrível condição passeiam-se universos, e gentes com versos, versus gentes, que estão a um tempo próximos, dentro e distantes, o que precisam é de órgãos novos de modo a focarem as bases da sua existência. Trememos de insuficiência mórbida e de esclavagismo de memória.

Nós, os últimos de uma fornalha onde galacticamente nos foi dado o redil de um matadouro. Somos o açougue debaixo de um céu estrelado e agora riscado por gases estranhos que fazem das curvilíneas nuvens, erectas demonstrações de um género gasoso, terrivelmente varonil.

6 Jun 2017

Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques e a Inveja: Recensão e Estudo breve

Fernanda Gil Costa

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é propriamente uma novidade ver o romance contemporâneo português envolvido de novo com a História em torno de alguns dos seus mais conhecidos agentes e motivos, assim celebrando a ‘controlada’ ficção de que falava Agustina na conhecida e oportuna definição de História. O retorno a Camões (à figura histórica, no caso que nos interessa) parece merecer particular destaque, já que surge inesperadamente em dois romances publicados entre o final de 2016 e o princípio de 2017. Na verdade, é o autor de Os Lusíadas, acompanhado dos mistérios que a sua lenda continuamente projecta, ainda mais adensada pelos raros esclarecimentos documentais, que vem ao encontro do obscuro mundo do início do século XXI sem aparentemente estranhar o deslocado terreno ou sentir qualquer constrangimento. É o caso de Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques e a Inveja, de Carlos Morais José (lançado em Lisboa em Outubro de 2016), publicado em Macau no mesmo ano, e de Os Naufrágios de Camões, de Mário Cláudio (lançado em Fevereiro de 2017).

Ocupamo-nos aqui do primeiro caso por ser o autor pessoa pública em Macau – o jornalista Carlos Morais José igualmente reconhecido como autor de extensa obra própria, sobretudo lírica, com firmado nome literário não só em Macau, onde normalmente exerce a sua multifacetada actividade e vive há mais de 26 anos. Merece ressalva o facto de justamente esta sua última obra ser um romance sobre a história de Macau e ter sido motivo de um convite para o festival “Correntes d’ Escrita” (edição de 2017), que deixou o autor surpreendido (como o próprio confessa), embora nos pareça mais do que justo e natural. Na verdade, Macau e a sua população, as suas letras em várias línguas e os seus autores multifacetados (infelizmente bastante ignorados) não parecem chamar habitualmente a atenção de Lisboa. Ao falar da sua obra, Morais José remete precisamente para o que chama com oportunidade uma “escrita de exílio”, sublinhando o centralismo da literatura portuguesa tantas vezes alheada da diáspora que por todos os cantos do mundo continua a imprimir-se em saudável variedade de tons e nuances linguísticas, embora se considere satisfeito com o chamamento à Póvoa de Varzim: “Mais por Macau do que por mim”, afirma. E acrescenta a seguir: “Esta cidade é, em si mesma e na sua mitologia literária, praticamente inesgotável e há ainda muito por descobrir e explorar.” (Hoje Macau, 15/12/2016)

A ideia de ter existido em Macau – a Cidade do Nome de Deus, um arquivo de confissões, compilado e guardado pelos jesuítas para efeitos de estudo e reflexão dos membros da ordem sobre a sua especial comunidade de pecadores, no auge do período de evangelização do Oriente, parece ao mesmo tempo apelativamente herética e incautamente remota. Logo, perfeita como argumento de ficção e motivo de envolvimento com a História. Assim, na “Advertência ao leitor” esclarece-se a propósito: “A história que se segue não pretende rigor histórico ou justeza, na descrição de factos, hábitos ou comportamentos de antanho. As datas referidas e os intervenientes querem-se, obviamente, tão ficcionais quanto a realidade”.

Sendo, pois, o ponto de partida do romance um assumido desafio a todo o propósito ‘sensatamente’ realista, a sua organização retoma as melhores tradições do género da narrativa enquadrada – gavetas de histórias que se abrem e esvaziam a partir de outras, articuladas em móveis geometrias de eventos misteriosos, de segredos e tesouros perdidos, dando origem à variedade das vozes e ‘fantasmas’ que lenta e intencionalmente desenrolam um imbricado novelo que só uma arquitectura onírica sustenta: um padre inglês protestante recebe por mero acaso um secreto legado, perdido e de origem desconhecida, cedendo a voz, na recepção do inesperado tesouro, a um padre católico irlandês em trânsito entre mundos que, por sua vez, lê (ou cita) um jesuíta português, que ouve e regista em confissão um estranho, patético bandido e navegante português de neo-pícaro recorte, o qual durante uma viagem teve e gulosamente aproveitou a oportunidade de se apropriar pelo roubo de nem mais nem menos do que uma obra desconhecida e auto-biográfica de Luís de Camões.

As Mil e uma Noites e os Canterbury Tales, para deixar dois exemplos conhecidos e replicados em imensas variantes, são na sua estrutura longínquos modelos do género da narrativa que desafia o tempo (a morte) – uma luta travestida na busca de segredo intangível, que ainda recentemente orientou também obras tão notáveis como O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Note-se ainda que o tema igualmente dominante do roubo de autoria, ligado à inveja, norteou há poucos decénios uma obra tão famosa como Amadeus de Peter Shaffer (1979), na origem do filme de Milos Forman (1984) com o mesmo título. E que a mesma ideia, embora disfarçada de roubo de identidade (não será a mesma coisa, tratando-se de Camões?) surja igualmente na já referida obra de Mário Cláudio só revela que uma coincidência pode ser auspiciosa.

Signo também de pós-modernismo e dos diálogos e cruzamentos acrónicos que o mesmo promove, a mais ou menos velada exibição do parentesco literário da obra não é um propósito em Carlos Morais José, cujo romance sobre a inveja (pela via pérfida de Bernardo Vasques) vai muito além da recepção parodística dos clássicos e da propagação criativa da lenda romântico /nacionalista de Camões.

Dois registos são fundamentais nesta obra: primeiro, o da literatura de viagem que colhe na tradição vastíssima do género (pícaro, aventura, viagem iniciática); segundo, o da reflexão filosófica que invade a perspectiva através da voz do narrador principal.

O romance sobre a história de Bernardo Vasques é por isso em primeiro lugar um romance de viagens, tradição bem vincada na literatura portuguesa por textos maiores como Peregrinação e História Trágico-Marítima, com a qual a obra de Morais José intermitentemente dialoga. A viagem é o espaço da narrativa dentro e fora do relato do herói. Todas as personagens estão em viagem (viagem por mar, deambulação por impérios) o que explica o afastamento ou ausência de figuras femininas. Além disso, só a viagem que decorre no presente, a do padre inglês, está escorada por eventos com substância narrativa; as outras, a do padre irlandês e a de Bernardo Vasques são relatos escritos/lidos e pertencem ao tempo passado da história, embora a viagem também seja nelas um elemento agregador, tendo ainda em comum o facto de os narradores/ contadores desaparecerem logo depois do relato, acentuando o ambiente rarefeito e a atmosfera onírica da história enquadrada

Para além da viagem e das múltiplas portas por ela abertas à tradição do género, o romance é igualmente uma reflexão filosófica, sempre que a voz principal da narrativa, a do padre inglês que encontra nas docas de Singapura o padre irlandês que abandonou a vida sóbria, conduz o relato; sobre ele avisa o estalajadeiro: “o vinho, por vezes, cai-lhe mal; a aguardente, pior; não ligueis ao que ele vos disse”…159 – o que acontece no início e no fim – já que a história central é a confissão de fim de vida de Bernardo Vasques, com os seus muitos episódios entre o pícaro e o deslumbrado delírio. Essa voz, que se adensa no entendimento do humano e da sua pequenez, origem da Inveja, raiz do pecado e do mal em sentido bíblico, e que no grafismo do texto é assinalada pelo cursivo, constitui a interpelação ao leitor que se aproxima do livro para ler além da paródia e da referência, a caminho de um simbolismo iluminador.

A única viagem verdadeira no tempo presente da história é afinal a que se faz entre Singapura e Macau, entre o império inglês e o império português, em vésperas do incêndio do Colégio de S. Paulo, a primeira universidade católica da Ásia. Essa viagem está por isso cheia de sentido iniciático já que o protestante encontra em Macau os jesuítas acossados pelos ventos de fim de ciclo que o iminente desaparecimento do colégio sublinha de forma inevitável. Ficará apenas a ruína assombrada de um destino por cumprir e que a neurótica aventura de BV só vem acentuar e questionar. O seu relato é afinal a voz do poeta maldito que transporta em si, já que Bernardo – o ventríloquo, sintomaticamente desaparece antes da bênção e do perdão final, coada no poema decorado (por amor, não por inveja – uma vez que a inveja é esse sentimento dúplice próximo por vezes da ‘ironia romântica’ (a tal que define a definitiva imperfeição e corresponde ao desejo de absoluto) sobre a qual afirma o impotente (embora convencido) narrador: “talvez só Deus saiba como julgar a inveja”…, 157).

O Mal infecta-me como os versos do poeta infectavam Bernardo Vasques” (164) – é nesta frase que se pode encontrar, em nosso entender, a palavra passe da obra, a sua trave mestra. O mal é a outra face do bem, produto da negação (a inveja benigna é afinal negação produtiva da insatisfação em tudo, da aceitação da miséria moral e da insuficiência do esforço), sonho obscuro e polémico que encontramos na arte desde que Goethe criou um inesquecível Mefistófeles mundano, que com Deus, através de singular aposta (e por intermédio do homem – Fausto), no humano plasmou o desejo de mais-querer, a porfia e o esforço de conhecimento e acção (streben, diz-se em alemão), que é afinal a medida transcendente em que a verdadeira, exigente dimensão humana modernamente se reconhece, pelo menos desde o Renascimento.

Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques ou a Inveja é um livro feliz, que se lê em duas noites pelo tom jocoso e pela frescura do assunto e que além disso traz aquele sabor a vinho antigo que torna a leitura deliciosa e faz regressar em busca dos ecos e das alusões, um frutuoso exercício de pós-modernismo literário.

5 Jun 2017