Poesia ao vivo

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o passado domingo, actuaram em Macau os No Precipício Era O Verbo, grupo de música e poesia composto pelos músicos Carlos Barreto (contra-baixo) e José Anjos (percussões e também o poeta que incorpora o grupo), pelo actor André Gago e pelo filósofo e tradutor de Grego clássico e alemão António de Castro Caeiro. Trata-se de um grupo que concilia a música, de vertente experimental, e a recitação de poemas. Poemas esses que vão desde poemas portugueses a poemas da antiga Grécia, lidos no original e em tradução, assim como alguns poemas alemães, também lidos no original e em tradução (poemas alemães e gregos lidos por António de Castro Caeiro). Recentemente editaram um belo disco, com um precioso trabalho gráfico levado a cabo por Dulce Cruz e com ilustrações de André da Loba, que já tinha feito um livro em conjunto com a poeta Rita Taborda Duarte, também ele um livro precioso. No Precipício Era O Verbo não é o único projecto deste género, embora seja o mais recente. A Lisbon Poetry Orchestra é outro destes projectos, do qual já fez parte o actor André Gago, e que envolve vários músicos, entre eles o antigo baixista dos Rádio Macau e actual proprietário do bar Povo, onde desde há cinco anos se lê poesia todas as segundas-feiras a partir das 22h.

Aqui, no Povo, também as leituras de poesia são acompanhadas por um ou mais músicos. Mas estas leituras de poesia não se ficam pelo Bar Povo, que têm à frente do projecto Alex Cortez e Nuno Miguel Guedes; deste projecto nasceu também a revista literária Cidade Nua. E, em Lisboa, este é apenas um dos projectos a que se juntam vários outros: Terças de Poesia Clandestina, que neste momento é no Titanic Sur Mer, e o evento está também ligado à revista Apócrifa; e os encontros mensais, nas primeiras terças-feiras de cada mês, no Teatro Nacional D. Maria II, a cargo da actriz Teresa Coutinho; recentemente desapareceu as leituras de poesia, em Lisboa, com mais tempo e mais sessões, as leituras às quintas-feiras no bar do Teatro da Barraca, a cargo do poeta Miguel Martins, também editor da Tea For One; e ainda outros pontuais, como os que aconteceram recentemente no Bar Irreal, por iniciativa do poeta José Anjos (também regular colaborador do Bar Povo). Mais recentemente, em Maio passado, deu-se início às leituras na livraria Ferin / Ler Devagar, projecto liderado pela Marta Lapa e que acontece uma vez por mês (no último sábado do mês) à volta de um poeta. Na cidade do Porto já tinha começado há mais anos, com o Rui Sprangler, no Café Pinguim, e continua; e também com as Quintas de Leitura, projecto do João Gesta, no Teatro do Campo Alegre.

Há duas décadas atrás, Nuno Moura e Paulo Condessa iniciavam, nessa altura completamente a contra-corrente, o projecto O Copo, que consistia em leituras de poemas e performance à volta dos mesmos. Hoje a leitura de poesia em público parece estar na moda, e isso por si só não é bom nem mau. Há leituras melhores do que outras, escolhas melhores do que outras, e talvez resida precisamente aqui, nas escolhas, a diferença entre as leituras que acontecem, um pouco por todo o país.

O poeta brasileiro João Cabral de Melo Neto (Recife, 1920) dividiu a sua obra em duas “águas”: a primeira seria a da comunicação restrita, elaborada e de difícil leitura, poemas que necessitavam de mais de uma leitura; a segunda, uma poesia mais popular, de compreensão mais imediata, que não necessitaria de mais de uma leitura para se fazerem sentir, aos quais chamou de “poemas em voz alta”, que foram escritos para serem lidos a um público ouvinte. Assim também entendo que há poemas, não que sejam para ser lido em voz alta, mas que sem dúvida resultam melhor em voz alta do que outros, que necessitam de uma maior concentração, de uma maior atenção. Seja como for, a verdade é que estes eventos e estes grupos, de poesia lida em voz alta para grupos de pessoas e acompanhada de música (ou não), parece ter vindo para ficar. E parece ser um modo eficaz de divulgação dos poetas que são lidos. O tempo o dirá. Mas para já, já se passaram uns anos e a tendência é para que o fenómeno cresça. Seria talvez bom, que alguns destes eventos pudessem ser reproduzidos em Macau. Para já, Macau pôde assistir ao singular projecto, fruto deste tempo de poesia ao vivo, No Precipício Era o Verbo.

6 Jun 2017

Do turismo

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] turismo chegou para ficar. Pelo menos enquanto Lisboa for a capital do cool e da luz de Byron, os portugueses o povo mais acolhedor da Europa e Portugal um país tão pacífico como ridiculamente barato. No fundo, como alguém de que não me recordo terá dito, o melhor dos mundos consiste em viver num país do sul com um ordenado de um país do norte.

Mas a questão do turismo, para os lisboetas, está longe de ser respondida de forma consensual. Se há os que prezam e louvam tudo quanto os turistas trouxeram de bom a uma cidade que, há apenas dez anos, se encontrava em estado vegetativo, desertificada no seu centro excepto por aqueles que não tinham para onde ir e por meia dúzia de excêntricos encantados por morar num quarto andar sem elevador desde que se visse uma nesga de rio, existem também os que protestam por causa do aumento absurdo das rendas, por causa da sobrelotação dos transportes públicos, por causa do barulho nocturno e da sujidade e, não infrequentemente, por causa dos tuk tuks que se tornaram uma espécie de cartão postal da cidade e um hóspede regular dos pesadelos dos lisboetas mais agorafóbicos que se imaginam a ser atropelados por um daqueles modelos cem porcento eléctricos que fazem menos barulho do que uma geisha na cerimónia do chá.

Eu vivi muito tempo em Albufeira, antes de esta se ter tornado um protectorado britânico, antes dos pubs com live football e typical english breakfast e antes de o cheiro a terra vermelha tostada pelo sol ter sido substituído pelo cheiro a bronzeador na variante coco e cenoura. Na altura, a estrada que ligava Albufeira às Areias de São João era de terra e brita – very typical –, a praia de Albufeira ainda tinha uma generosa porção de areia reservada aos barcos dos pescadores e o português ainda era a língua oficial, embora alguns afoitos do engate de praia se aventurassem em iterações do inglês – factor tuelve, beibi, no sics – a que as inglesas respondiam com a generosidade do sorriso.

A inesgotável cobiça e o passar do tempo fizeram com que Albufeira fosse crescendo de forma absolutamente caótica excepto pelo facto de tudo passar a ser feito pelo e para o turista: os aparthotéis, os restaurantes, as esplanadas de praia com preços proibitivos para os autóctones, as lojecas de rua entupidas de bóias e baldes de plástico e de todo o tipo de jornais e tabaco exceptuando, claro, os nacionais. De repente, o turista com algumas posses e sequioso de sol e sossego passa a cruzar-se, na Albufeira que escolheu para torrar o subsídio de férias em gins e cataplanas de marisco, com o seu jardineiro, com o tipo que lhe guarda o jornal no quiosque e com o taxista que por vezes o leva a casa depois de uma noite no pub. De repente, os pescadores convertem-se ao comércio de bugigangas nas artérias que circundam a praia ou ao alcoolismo profissional, as tascas em pistas de dança multicolores animadas por sessões de karaoke e música de micro-ondas e as praias, outrora tão desertas como paradisíacas, são agora línguas ínfimas de areia pejadas de gente desejosa de levar para casa um melanoma de origem demarcada.

Lisboa, ainda vamos a tempo de perceber a distinção entre óptimo e o incomportável, entre qualidade e quantidade e entre viver e sermos meros actores involuntários ou bichos de circo. Lisboa só tem graça porque é the real thing e não uma encenação feita para consumo alheio. E as pessoas percebem isso. E as que não percebem ou não se importam, acreditem, não queremos que sejam a maioria dos que vêm para cá.

6 Jun 2017

Tempo de ser a coisa outra

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] transparência nada nos diz que transpareça grande coisa nas questões que hoje nos propomos contemplar. Andamos na urdidura sempre maníaca da verdade para corrigir o que supostamente a mentira é e, sem que saibamos de uma ou de outra, toda a gente se arvora em grande entusiasta dessa designação mais vanguardista que não quer dizer nada, a não ser a vã e pouco lembrada memória das coisas. Estamos obliquamente condenados a ir buscar e a refazer o conteúdo de múltiplos saberes. Se a um dado momento nele entoava uma emoção precisa, neste entoa a falta de emoção imprecisa, que será mais uma malvadez ao arrepio da receptividade para aquilo que naturalmente nos faz bem, nem que seja o fazer bem o não fazer nada. Mas há que fazer nem que seja desfazendo o que estava feito, para tornar a fazer num exercício laborioso de adpatabilidade e de movimento. Os pressupostos ficam amargamente incomunicantes, as coisas que para aí se dizem como seja “inverdades” são inversas e cada um recria a cripta por onde um moribundo há-de dormir finalmente a paz tão desejada.

Basta haver um nódulo, um grão na engrenagem e todo o aparelho fica em alerta máximo. Por questões extemporâneas os homens tornam-se um género que “empapa” tudo não deixando passar o feminino na fonte dos seus saberes, ou mesmo, não saberes! Dos seus sabores. Onde o género impera, impera também a expansão e ela é tão explanativa que em frémito ideólogo ele se amarfanha por todos os recintos onde houver espaço de fecundação. Depois, dizem, com ares graves que estão sós nas suas competências e, sempre que se armam as discussões para todos, parece que o feminino se instala num pavoroso tédio masculinizante e se encripta numa forma que faz denotar em pólvora qualquer saber.

É muito amarga a realidade das coisas: se por um lado achamos que somos nós que enquanto pessoas que estamos cansadas, somos humildes também em reconhecer a nossa ignorância, a nossa impreparação para tarefa tão grande como a de existir; por outro, também andamos e flutuamos num mundo onde cada um tenta impor o seu domínio de forma “atabalhoadamente” absoluta, não crendo por isso que seja o de um espectro artificiosamente obscurantista, para isso seriam precisas componentes mais requintadas. Não, não é isso: é uma desmesura de índole autoritária que se acerca e se condiciona a si mesmo pela repetição, os séquitos, a demagogia e o artefacto mais ininteligível.

Em boa verdade, não acho a espécie Humana inteligente. Inteligir nem sempre é uma Teofania carregada de sujeições maiores. Somos o que podemos ser , talvez a caminho de uma qualquer inteligência, sim, que a manifestar-se vai ser andróide, vai ser a da ordem do homem vindouro, aquele que já não passa pela lei do ter de subsistir em qualquer domínio. Aspectos como a moral, a ética e até a transcendência terão de ser analisados e integrados de outras maneiras. Tudo será um processo sem dúvida tenaz e, esse sim, inteligente, onde por caminhos de massas melhoradas na sua superfície onde o mais fundo são as bases dos seus ecrãs algo se possa modificar. O grande mito do hermafrodita pode passar a ser real com a necessidade de estreitar o dissonante, de continuar lutando por aquilo que tão bem viu Almada Negreiros: «Unanimidade».

Eu sinto, enquanto mulher, a expansão da natureza homem em todos os canais – a televisão -, as técnicas, o mundo, as construções: e as mulheres estão libertas, sim, mas não tanto como se esperaria enquanto género humano que tende a ser mais um vício parado que espécie inventiva. E se não se conseguir andar mais e melhor pela idade, por causa do cansaço ou saturação, que se seja natural e reponhamos então as ordens vitais. O isolacionismo é um anátema que as sociedades de todos os grupos vivos impõem a alguns elementos, tanto podem ser cardumes, bandos, rebanhos ou manadas… há que colaborar de uma forma automática na função da sobrevivência, prova-se contudo que nem todo o organismo vivo é sustentado por anima. Pode viver sem estar animado ou estar tão desanimado pelo facto de viver que paralisa: para abrangência que detone e denote aspectos emocionais de carácter mais raro, há uma extensão que diz que essa probabilidade é amor, esse dom negado como princípio superlativo aos mais pensantes das tribos, o mais forte ou o mais sábio cria uma artificialidade que tende a abandonar os barcos que se afundam, como agora no Mediterrâneo. Por desleixo e falta de empatia, sem dúvida, mas também porque somos muitos, quando um dia que há-de vir olharmos para alguém será da ordem da aparição, mas isso só um dia quando formos tão poucos que tentemos salvar o outro como o nosso mais próximo bem- amado.

Por ora, tudo se move de maneira flutuante nesta Barca que tamanha onda há-de tragar sem que para isso sejamos convocados.

Nós que faltamos, que arranjamos no labor das nossas reservas oníricas apenas espaços para descrer, profanar ou vilipendiar o espaço outro, que ardilamos, que subjugamos, que somos levianos até à completa falta de talento;

Nós que temos muito e queremos mais, que tudo nos falta e nada produzimos, que tudo nos é devido sem dever, que somos importantes sem o ser, que, que, que….

Nós, esta imensa fornalha de despojos onde uma só força móvel não passou, estamos à espera diariamente de ganhar: a lotaria, o amor, a alimentação, as diversões, as coisas, de nos abastecermos de vida para que a nossa pareça a nossos olhos mais vivida. Mas é sempre a vida que nos vive, nós não vivemos a vida, a vida não quer saber de nós, nós temos a vida das coisas que trepam e as razões de não termos raízes no chão faz-nos frágeis em todas as circunstâncias.

A rotatividade dos factos provam que não somos nem importantes nem insubstituíveis, que tudo continua exacto no dia depois da nossa morte e que muitos anos hão-de passar até se achar de nós algo que interesse na cadeia das transformações. Quando por caminhos vários queremos inovar fazendo exactamente a mesma coisa, instala-se-nos um fastio perverso só parecido com a vingança das lapas que subjugam os espaços que detêm.

Sem confronto nem mordaça preparemos a nossa resistência para não sermos presos, de tudo que não se deve soltar é só a liberdade, não a podemos trocar por qualquer que seja a conveniência, ela é o único legado que se aguentará em nós enquanto os nossos espelhos nos devolverem o rosto que contemplado pode ser até uma obra de arte. Também não interessa amar os livres, eles são de forma tal que todo o amor produzido se expande em direcções que não contornam nem os braços, e se não tivermos membros, mais fica para a vitória de nem com eles termos de dizer adeus.

Aproximamo-nos de um Cabo tão Vicentino, quanto abstracto, e se uma luz vier mais voraz, os olhos cegam e nada filmamos e as imagens partidas não serão repostas e o que fizermos não será lembrado. Todo o instante nos indicia para depor amarras e contornar o agreste obstáculo que é viver. Se houver salvação, que nos salvem, nós, por nós, já ultrapassamos em muito a nossa parte. Concomitantemente à nosso terrível condição passeiam-se universos, e gentes com versos, versus gentes, que estão a um tempo próximos, dentro e distantes, o que precisam é de órgãos novos de modo a focarem as bases da sua existência. Trememos de insuficiência mórbida e de esclavagismo de memória.

Nós, os últimos de uma fornalha onde galacticamente nos foi dado o redil de um matadouro. Somos o açougue debaixo de um céu estrelado e agora riscado por gases estranhos que fazem das curvilíneas nuvens, erectas demonstrações de um género gasoso, terrivelmente varonil.

6 Jun 2017

Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques e a Inveja: Recensão e Estudo breve

Fernanda Gil Costa

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]ão é propriamente uma novidade ver o romance contemporâneo português envolvido de novo com a História em torno de alguns dos seus mais conhecidos agentes e motivos, assim celebrando a ‘controlada’ ficção de que falava Agustina na conhecida e oportuna definição de História. O retorno a Camões (à figura histórica, no caso que nos interessa) parece merecer particular destaque, já que surge inesperadamente em dois romances publicados entre o final de 2016 e o princípio de 2017. Na verdade, é o autor de Os Lusíadas, acompanhado dos mistérios que a sua lenda continuamente projecta, ainda mais adensada pelos raros esclarecimentos documentais, que vem ao encontro do obscuro mundo do início do século XXI sem aparentemente estranhar o deslocado terreno ou sentir qualquer constrangimento. É o caso de Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques e a Inveja, de Carlos Morais José (lançado em Lisboa em Outubro de 2016), publicado em Macau no mesmo ano, e de Os Naufrágios de Camões, de Mário Cláudio (lançado em Fevereiro de 2017).

Ocupamo-nos aqui do primeiro caso por ser o autor pessoa pública em Macau – o jornalista Carlos Morais José igualmente reconhecido como autor de extensa obra própria, sobretudo lírica, com firmado nome literário não só em Macau, onde normalmente exerce a sua multifacetada actividade e vive há mais de 26 anos. Merece ressalva o facto de justamente esta sua última obra ser um romance sobre a história de Macau e ter sido motivo de um convite para o festival “Correntes d’ Escrita” (edição de 2017), que deixou o autor surpreendido (como o próprio confessa), embora nos pareça mais do que justo e natural. Na verdade, Macau e a sua população, as suas letras em várias línguas e os seus autores multifacetados (infelizmente bastante ignorados) não parecem chamar habitualmente a atenção de Lisboa. Ao falar da sua obra, Morais José remete precisamente para o que chama com oportunidade uma “escrita de exílio”, sublinhando o centralismo da literatura portuguesa tantas vezes alheada da diáspora que por todos os cantos do mundo continua a imprimir-se em saudável variedade de tons e nuances linguísticas, embora se considere satisfeito com o chamamento à Póvoa de Varzim: “Mais por Macau do que por mim”, afirma. E acrescenta a seguir: “Esta cidade é, em si mesma e na sua mitologia literária, praticamente inesgotável e há ainda muito por descobrir e explorar.” (Hoje Macau, 15/12/2016)

A ideia de ter existido em Macau – a Cidade do Nome de Deus, um arquivo de confissões, compilado e guardado pelos jesuítas para efeitos de estudo e reflexão dos membros da ordem sobre a sua especial comunidade de pecadores, no auge do período de evangelização do Oriente, parece ao mesmo tempo apelativamente herética e incautamente remota. Logo, perfeita como argumento de ficção e motivo de envolvimento com a História. Assim, na “Advertência ao leitor” esclarece-se a propósito: “A história que se segue não pretende rigor histórico ou justeza, na descrição de factos, hábitos ou comportamentos de antanho. As datas referidas e os intervenientes querem-se, obviamente, tão ficcionais quanto a realidade”.

Sendo, pois, o ponto de partida do romance um assumido desafio a todo o propósito ‘sensatamente’ realista, a sua organização retoma as melhores tradições do género da narrativa enquadrada – gavetas de histórias que se abrem e esvaziam a partir de outras, articuladas em móveis geometrias de eventos misteriosos, de segredos e tesouros perdidos, dando origem à variedade das vozes e ‘fantasmas’ que lenta e intencionalmente desenrolam um imbricado novelo que só uma arquitectura onírica sustenta: um padre inglês protestante recebe por mero acaso um secreto legado, perdido e de origem desconhecida, cedendo a voz, na recepção do inesperado tesouro, a um padre católico irlandês em trânsito entre mundos que, por sua vez, lê (ou cita) um jesuíta português, que ouve e regista em confissão um estranho, patético bandido e navegante português de neo-pícaro recorte, o qual durante uma viagem teve e gulosamente aproveitou a oportunidade de se apropriar pelo roubo de nem mais nem menos do que uma obra desconhecida e auto-biográfica de Luís de Camões.

As Mil e uma Noites e os Canterbury Tales, para deixar dois exemplos conhecidos e replicados em imensas variantes, são na sua estrutura longínquos modelos do género da narrativa que desafia o tempo (a morte) – uma luta travestida na busca de segredo intangível, que ainda recentemente orientou também obras tão notáveis como O Nome da Rosa, de Umberto Eco. Note-se ainda que o tema igualmente dominante do roubo de autoria, ligado à inveja, norteou há poucos decénios uma obra tão famosa como Amadeus de Peter Shaffer (1979), na origem do filme de Milos Forman (1984) com o mesmo título. E que a mesma ideia, embora disfarçada de roubo de identidade (não será a mesma coisa, tratando-se de Camões?) surja igualmente na já referida obra de Mário Cláudio só revela que uma coincidência pode ser auspiciosa.

Signo também de pós-modernismo e dos diálogos e cruzamentos acrónicos que o mesmo promove, a mais ou menos velada exibição do parentesco literário da obra não é um propósito em Carlos Morais José, cujo romance sobre a inveja (pela via pérfida de Bernardo Vasques) vai muito além da recepção parodística dos clássicos e da propagação criativa da lenda romântico /nacionalista de Camões.

Dois registos são fundamentais nesta obra: primeiro, o da literatura de viagem que colhe na tradição vastíssima do género (pícaro, aventura, viagem iniciática); segundo, o da reflexão filosófica que invade a perspectiva através da voz do narrador principal.

O romance sobre a história de Bernardo Vasques é por isso em primeiro lugar um romance de viagens, tradição bem vincada na literatura portuguesa por textos maiores como Peregrinação e História Trágico-Marítima, com a qual a obra de Morais José intermitentemente dialoga. A viagem é o espaço da narrativa dentro e fora do relato do herói. Todas as personagens estão em viagem (viagem por mar, deambulação por impérios) o que explica o afastamento ou ausência de figuras femininas. Além disso, só a viagem que decorre no presente, a do padre inglês, está escorada por eventos com substância narrativa; as outras, a do padre irlandês e a de Bernardo Vasques são relatos escritos/lidos e pertencem ao tempo passado da história, embora a viagem também seja nelas um elemento agregador, tendo ainda em comum o facto de os narradores/ contadores desaparecerem logo depois do relato, acentuando o ambiente rarefeito e a atmosfera onírica da história enquadrada

Para além da viagem e das múltiplas portas por ela abertas à tradição do género, o romance é igualmente uma reflexão filosófica, sempre que a voz principal da narrativa, a do padre inglês que encontra nas docas de Singapura o padre irlandês que abandonou a vida sóbria, conduz o relato; sobre ele avisa o estalajadeiro: “o vinho, por vezes, cai-lhe mal; a aguardente, pior; não ligueis ao que ele vos disse”…159 – o que acontece no início e no fim – já que a história central é a confissão de fim de vida de Bernardo Vasques, com os seus muitos episódios entre o pícaro e o deslumbrado delírio. Essa voz, que se adensa no entendimento do humano e da sua pequenez, origem da Inveja, raiz do pecado e do mal em sentido bíblico, e que no grafismo do texto é assinalada pelo cursivo, constitui a interpelação ao leitor que se aproxima do livro para ler além da paródia e da referência, a caminho de um simbolismo iluminador.

A única viagem verdadeira no tempo presente da história é afinal a que se faz entre Singapura e Macau, entre o império inglês e o império português, em vésperas do incêndio do Colégio de S. Paulo, a primeira universidade católica da Ásia. Essa viagem está por isso cheia de sentido iniciático já que o protestante encontra em Macau os jesuítas acossados pelos ventos de fim de ciclo que o iminente desaparecimento do colégio sublinha de forma inevitável. Ficará apenas a ruína assombrada de um destino por cumprir e que a neurótica aventura de BV só vem acentuar e questionar. O seu relato é afinal a voz do poeta maldito que transporta em si, já que Bernardo – o ventríloquo, sintomaticamente desaparece antes da bênção e do perdão final, coada no poema decorado (por amor, não por inveja – uma vez que a inveja é esse sentimento dúplice próximo por vezes da ‘ironia romântica’ (a tal que define a definitiva imperfeição e corresponde ao desejo de absoluto) sobre a qual afirma o impotente (embora convencido) narrador: “talvez só Deus saiba como julgar a inveja”…, 157).

O Mal infecta-me como os versos do poeta infectavam Bernardo Vasques” (164) – é nesta frase que se pode encontrar, em nosso entender, a palavra passe da obra, a sua trave mestra. O mal é a outra face do bem, produto da negação (a inveja benigna é afinal negação produtiva da insatisfação em tudo, da aceitação da miséria moral e da insuficiência do esforço), sonho obscuro e polémico que encontramos na arte desde que Goethe criou um inesquecível Mefistófeles mundano, que com Deus, através de singular aposta (e por intermédio do homem – Fausto), no humano plasmou o desejo de mais-querer, a porfia e o esforço de conhecimento e acção (streben, diz-se em alemão), que é afinal a medida transcendente em que a verdadeira, exigente dimensão humana modernamente se reconhece, pelo menos desde o Renascimento.

Arquivo das Confissões. Bernardo Vasques ou a Inveja é um livro feliz, que se lê em duas noites pelo tom jocoso e pela frescura do assunto e que além disso traz aquele sabor a vinho antigo que torna a leitura deliciosa e faz regressar em busca dos ecos e das alusões, um frutuoso exercício de pós-modernismo literário.

5 Jun 2017

Karadeniz: “Não sinto culpa por ter matado quem matei”

(Continuação)

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ostumam encontrar-se?

Raramente. Ele vem cá uma ou outra vez, mas eu nunca vou a Londres. Por vezes, o T. também vem a Istambul e nem sequer tem tempo para me visitar.

Não tem medo que, depois de publicar esta entrevista, ele reconheça o pai?

Não, Paulo! Não acredito que o livro venha a ser muito conhecido e menos ainda que o T. o possa vir a ler. Ele nunca lê, para além do que tem que ver com o seu trabalho.

Que idade tinha o Karadeniz, quando a sua mulher se separou, quando ela deixou Istambul e regressou a Londres?

Tinha 49 anos. O T. era uma criança com nove anos.

Ainda na década de 70…

Sim, em 1975, precisamente.

A B. não voltou a casar?

Não. Julgo que teve namorados, mas foi sempre muito discreta em relação a isso, por causa do filho. Não lhe deve ter sido difícil, ela não era uma mulher muito fogosa, não tinha muita necessidade de ter relações sexuais. Quando acontecia fazermos amor gostava, mas não eram muitas as vezes que lhe apetecia. Quanto à solidão, ela não a deveria sentir rodeada de tantos gatos. Os gatos eram o verdadeiro amor da sua vida.

Os gatos que tinha aqui em Istambul, deixou-os cá?

Nem pensar! Enviou-os todos por barco para Inglaterra.

E o Karadeniz voltou a ter namoradas?

Voltei, claro! Mas nunca nada sério. Mais tarde, comecei a preferir ir a Zurique, ficar bem instalado no Ritz e telefonar a uma agência de acompanhantes.

Ainda mata gatos?

Não! Não os posso nem ver, mas já não os persigo. Há muito que deixei de matar o que quer que seja.

E quando vê um gato lembra-se da sua mulher?

Isso é inevitável!

E a solidão, o Karadeniz não se sente só?

Não, Paulo! Leio bastante, como sabes, oiço os meus discos de jazz e vejo filmes. Mas a leitura e a música é que são as minhas companhias.

Sempre leu muito ou foi influência da sua mulher?

Sempre li muito, Paulo! Lia muito mais do que B. Com a porcaria dos gatos, ela não tinha tempo nem disposição para ler.

Sempre leu muito poesia, como parece que lê agora?

Sempre! Ao longo da minha vida, as minhas leituras foram sempre divididas entre os livros técnicos, de engenharia, física, química, matemática e os livros de poesia. Mas a leitura é e sempre foi para mim uma actividade nocturna, o que realmente ocupa mais o meu tempo, as horas dos dias, é a minha colecção de coisas. Comecei a adoptar coisas quando percebi o amor não correspondido pelo meu filho. Guardo isso tudo em uma outra casa, do outro lado do Corno de Ouro, muito perto de Eminonu.

4. A COLECÇÃO

Eminonu é um grande centro de chegadas e partidas dos vários destinos de Istambul. Os turistas conhecem certamente o Bazar Egípcio (de especiarias), a mesquita de Suleyman e o pequeno porto onde estão atracados os barcos que os hão-de levar a passear ao longo do Bósforo. Mas para quem vive em Istambul, Eminonu é principalmente um centro de comércio barato, com centenas de lojas onde tudo se compra e a todos os preços. Quando se pensa em Eminonu, pensa-se imediatamente na ponte de Gálata, com dezenas de homens em cima a pescaram e outras dezenas debaixo dela a beberem cerveja e a comerem petiscos. Ao contrário da maioria dos turcos, Karadeniz preferia o xadrez ao gamão. Quando comecei a acompanhar Karadeniz à casa da colecção, parávamos sempre debaixo da ponte para umas cervejas e um rápido jogo de xadrez. Descrever aquela casa é de uma dificuldade extrema. O que primeiro se vê é o pó. O pó é o verdadeiro habitante da casa. Depois, assim que conseguimos ver onde estamos, o nosso horizonte é preenchido por pilhas de jornais que, em alguns sítios, chegam quase ao tecto. E, por todo o lado, os objectos desafiam o vazio, conquistam o espaço. Para um humano, depois da estupefacção, a dificuldade maior naquela casa é mover-se. Para além do pó, que nos atrapalha a visão e nos dificulta a respiração, os jornais e os outros objectos são como minas que temos de evitar. Caminha-se naquela casa como na guerra: a medo e como se pela primeira vez estivéssemos na vida.

Karadeniz, o que é isto?

(risos) Tens toda a razão, a pergunta é o que é isto! Isto é uma espécie de colecção.

Uma espécie?…

Sim, Paulo, uma espécie de colecção.

Mas porque é que não lhe chama colecção?

Porque todas as colecções têm um critério ou critérios; esta não tem critério nenhum. Uma colecção sem critério é um amontoado de coisas. É o que isto é: um amontoado de coisas. Esta colecção é precisamente o contrário do que foi a minha actividade de matar pessoas selectivamente. Matei criteriosamente e salvo objectos a-criteriosamente.

Salva objectos?…

Sim, o que eu faço é salvar objectos. À excepção dos jornais, que devem ser guardados em alguma biblioteca, os outros objectos vão perder-se no tempo, se não forem guardados por alguém. Hoje em dia as pessoas deitam tudo fora, não guardam nada. Deitar coisas fora define muito bem este nosso tempo. Amontoar coisas aqui nesta casa é uma tentativa de salvar o tempo de si próprio, de salvar estas coisas do tempo. Paradoxalmente, salvá-las do tempo é mantê-las no tempo.

Mas que tipo de coisas é que salva, pode ser mais específico?

Por exemplo, as etiquetas das camisas, das camisolas, das cuecas, das meias, das calças, de refrigerantes, de vinhos, de cervejas. Etiquetas que recorto e plastifico com as informações da data de compra, o preço e o lugar onde as adquiri. Mas também guardo um exemplar de cada uma dessas coisas, sem as tirar dos plásticos ou das caixas originais. Por isso é que a casa está impossível de ser habitada. Felizmente não preciso de viver aqui.

E também tem aquelas coisas que são mais usuais serem coleccionadas: selos e moedas?

Também! Tenho selos e moedas de quase todo o mundo, e algumas das moedas são muito antigas e de valor incalculável, mas não têm organização nenhuma; não seguem um critério. São coisas que vou comprando e juntando.

O Karadeniz vê esta sua actividade de juntar coisas como uma atenuante da sua antiga actividade?

Não, Paulo! Já te disse que não sinto culpa pelos trabalhos que fiz. Não sinto culpa por ter matado quem matei. Junto estas coisas porque não tenho um filho. Porque, para o T., eu não sou um pai, sou um parente afastado. A evidência da falta de amor do meu filho é que fez com que estas coisas se juntassem aqui.

Não vê, portanto, nenhuma relação entre o seu passado e estas coisas?

Para além de serem inversamente paralelas quanto ao critério, não!

E como é que as adquire?

Ando pelas ruas e pelos mercados de Istambul, vejo coisas que me interessam e compro. Algumas, compro porque são estranhas, quase insólitas, como por exemplo uma lanterna que comprei no mercado polaco, que só trabalha com força manual, vamos apertando como se exercitássemos os pulsos e dá luz. Outras, compro porque me parecem marcas importantes de pequenos períodos do tempo, como por exemplo aquelas garrafas de refrigerante que traziam um berlinde lá dentro.

Sempre há algum critério!

Mas não é um verdadeiro critério, Paulo! Vamos lá a ver uma coisa: podemos também considerar critério o facto de eu ir com regularidade a esse lugares à procura de coisas ou comprar os jornais todos os dias. Mas o critério de uma colecção deve residir no interior da colecção e não fora dela. Uma colecção é sempre restrita. Uma colecção é sempre alguma coisa em detrimento do resto das coisas. Para mim, são todas as coisas, exceptuando as que não cabem aqui dentro de casa, porque também gostava de ter aqui uma betoneira ou uma grua, mas não cabe. Uma colecção é a condensação de uma fracção do mundo. A minha colecção é uma ambição de condensar o mundo ou, pelo menos, este tempo por que passamos no mundo. Segundo o ponto de vista do coleccionador, a minha colecção é uma aberração. A minha colecção é uma tentativa de congelar o tempo por que passamos. Uma verdadeira colecção está sempre fora do tempo, isto é, atravessa-o longitudinalmente.

2 Jun 2017

Uma sombra nas palavras luz

[dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]u queria falar do assombro. Mas entro em casa com a alma agitada por estes matizes de luz e sombra que as palavras não ajudam a acalmar. Queria falar do assombro e queria falar do deslumbre. Entro na casa. Numa determinada casa de mim, em mim. Esta. Num determinado momento – tantos iguais de ontem, tantos iguais de amanhã. E, sem dar contas ao tempo, a mim, a ninguém, do que isto é, que foi, que virá a ser, entro. E, de novo percorro os novos corredores de todos os dias. O dédalo que trago. Um projecto vascular. Conto e calo. A meada que se desenrola sem fim, a perturbação de sentidos únicos. E, sem querer nem resistir, no labirinto que me acompanha. Sem culpa, descaço os sapatos do dia percorrido. Largo a ponta do fio. E tento. Viver aí.

Essa coisa etérea, de alma que vagueia pelos circuitos do sangue, pelos canais das lágrimas e pelos alvéolos pulmonares. Antes isso do que pelos corredores escuros da casa. Sem acender luzes. Aterroriza-me a escuridão. Mas não a sombra.

Ou o que se instalou por alturas do assombro, caído de muito alto como se nada fosse nada. Ou que se imprimiu no soalho a desdizer passos seguros. Ou que desbotou de mapas antigos por efeito da humidade. Entro até aos confins de interiores não vistos. Quartos antigos, inexistentes e fechados. Entro por ela adiante – a casa – tão desconhecida da teia. Que se lhe acrescentou, que se lhe internou. No momento do deslumbre. Encandeada. Acendo uma luz baixa suave, confortável no seu desenho das sombras. E elas voltam, voltam as sombras. A luz a atenuar o excesso. A cegueira. Dominada por emoções de luz e sombra a encher palavras inadiáveis. E entro na casa do assombro que é minha. Sem domínio do mapa, nem dos passos que se estendem cuidadosos neste chão raso e plano. Direito e levemente cálido. Soalho a lembrar emoções mais soalheiras. Porque de luz e de sombra se faz todo o rol dos dias. De luz e de sombra. De sombras. O que dá a ver e demais, retira ao ver o ver. Recolho comigo o pouco ver à casa da escuridão. Acendo a luz.

Ensombrada que estou, hoje, de palavras de luz e paradoxos de sombra. Porque não são os dias como dantes lineares de luz e escuridão às horas certas, é o que sei e não sei. E nada a fazer por hoje e amanhã. E ao fundo. Ao fundo de mim o bicho. Esperado. Inesperado e abusivo, que trago. Para dentro e de dentro de onde habita. Em mim e na casa de mim em que entro. Olho o corredor e bem fundo. De um lado a pré-história dos dias e do outro o dia é hoje. Não há que escolher. Penso, vou. No assombro.

De quantos volts se precisa para iluminar o deslumbramento, o assombro? O que fascina, encandeia e encanta. O que perturba, maravilha e cega.

Mas eu queria falar do assombro sem sombras. Do deslumbre à luz. Do Latim lumen. A negação da luz. A inundação. A raiz é implacável à palavra. Uma e outra. O assombro extasiado a encobrir-se na raiz invasora do latim, “umbra”. Assombro. Na forma regressiva de assombrar. Como voltar ao avesso do que nos assombra. De nós mesmos, aí. A interpretar, espaço irreprimível do pensamento a percorrer. Já os gregos antigos. E o seu espanto e assombro pela palavra transmitida. E em busca de tradução. O maravilhoso que nos suspende o olhar e o cobre de desconhecido. De sombra para reflectir. E retomar a luz.

Talvez seja preciso um dia de sol como o de hoje, para mergulhar fundo e negro no abismo do assombro. Na entrada do labirinto. Tapete mágico que, de imediato, catapulta para o seu cerne de desorientação. Atracção do vórtice. Com sorte, para aquele braço de acaso em que luz a labareda de um fogo térreo, que aquece o monstro que o habita. Cabisbaixo, apanhado de surpresa. Pequenino como se visto de muito longe e encolhido para reter o calor da chama esquálida que na rarefacção de oxigénio, ameaça extinguir. O lado que desvanece. A um deslumbre sombrio sucede uma pertença a cuidar. Chegando lá por entre as paredes do corredor. Um a fazer-se cada vez mais difícil de amar. O outro, a amar cada vez mais. É assim o labirinto. Pontuado de luzes. Pálidas e pontuais. A escuridão é ausência. Terror. Nada.

Está sol. Da admiração, também assombro do olhar. Essa atracção fatal pela problematização pela não indiferença. O movimento irreprimível produzido pela coisa admirada. De simples a complexa. De iluminada a escura, ou vice-versa. E no fim o conhecimento do vasto desconhecimento, invisível antes. Eu queria falar do assombro e sento-me nele com a eterna disjunção estudante. E depois queria falar da eternidade que é o que sobra desse assombro que tolda a vista por excesso de luz e escuridão. Essa intermitência demasiado veloz. A esta escala, de ínfima concavidade cósmica, de pessoa num pedaço de rocha insignificante. Numa outra, astronómica pode ser um nada no todo. De tantos minutos-luz. Os que não vivo, vivi, ou vou viver. Como uma sequência demasiado rápida de fotogramas numa escura sala de cinema. Estou naqueles fotogramas extraídos de algum lugar em mim para que sejam visíveis. E vejo-me de costas para mim, assaltada do assombro daquele conjunto. Mas na matemática a qualidade de um conjunto em si é irrelevante. O que conta – conta uma história. E o que conta é a relação entre cada elemento do conjunto e outros do mesmo conjunto. Como um álbum de fotografias – uma vida.

Arrumadas por tempos, por pessoas, por viagens, por épocas, parentescos, celebrações, estáticas sensações que um dia nos assaltaram. E um dia rearranjando tudo aquilo, misturando até se quebrar qualquer fio condutor, juntar lado a lado imagens que nunca conviveram. Como discretas e tímidas solitárias a estabelecer relações inevitáveis de vizinhança induzida … e criar-se ia uma memória diferente de uma vida diferente de uma pessoa diferente. Re-cordis, de novo o Latim: recordar, voltar a passar pelo coração, fio a fio. Fiar uma outra memória. Diferente. “Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos encerrado na esfera do vivido, ao passo que o acontecimento lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave para tudo o que veio antes e depois.”. W. Benjamin em tradução livre, em usurpação livre em descontextualização livre. Poder mudar a chave. Ou então ainda ele: “A verdadeira imagem do passado perpassa, veloz. O passado só se deixa fixar como imagem que relampeja irreversivelmente, no momento em que é reconhecido.”. E às vezes torna-se estranho, acrescento.

Tiro os óculos de ler e de ver. Volto à memória. Volto ao assombro, uma noção de belo terrível, consubstanciado em si mesmo, sem eira nem ética nem beira. Antes uma estética de luz e sombras. De padrões difusos e permanentemente reajustados. Ao tempo. Desajustados de todo o tempo. Pares de conjuntos disjuntos aqui e ali. Com as suas intersecções de vazio. Ou ilusões de um olhar demasiado aproximado. Talvez. Ou demasiada luz. E, por coincidência do universo a querer, apesar de tudo, dar-me respostas pelos olhos adiante, olho o ficus que me acompanha o olhar há mais bem mais de uma década. E são idênticas as circunstâncias de luz e o sombreado das portadas, a tantas outras tardes. Mas, pela primeira vez, vejo uma linha sinuosa de folhas azuis. Literalmente azuis, como nunca as tinha visto. Uma linha sinuosa a fugir com a luz. Sinuosa e depois mutante. De passagem. Que tento reter. E porque são lustrosas reflectem o que a elas não pertence – não? Como muitas impressões que assaltam os dias. Construindo, destruindo. A força das palavras, sempre. Lembro-me “Da fábrica que falece…” da primeira vez que li o título. De Francisco d’Olanda. A impressão forte da palavra. Falece. Mas era construção que faltava à cidade. À vida é isso que falta. Fazê-la. Dia a dia sem estoicismo vão face ao destino que parece, esse sim, por vezes, edificado e convicto em fazer-nos falecer a vontade. Em demolir a construção do que nos falece. Dia após dia. O ruir com ajuda. Ruidosa térmita. E só apetece dizer: pára. Pára tudo. Por momentos, que seja. Ou a explicação das trevas. A luz sobre o indizível que chega ao horror e volta. Porque nos apontam armas. Devia ser proibido.

Coloco as cartas sobre a mesa. Como para ler. A sorte. Minto. São fotografias retiradas à pressa dos seus lugares fixos, para que o seja sem hesitações. Perdidas, desorientadas da cronologia unívoca. Descidas dos seus andares e trocadas de casa. Num rodopio sem reservas. Inocentes. A mergulhar noutra vida. Outras vizinhanças e amores. Parentescos, dias.

A tentar refazer a memória. Testar. Porque do deslumbre nasceu o meu monstro e o seu labirinto habitado. Nada a fazer. Como falar de luz sem sombras. Como falar do assombro desassombradamente ou como contemplar o etéreo sem contemplações. É coisa que não faz menos sentido do que atribuir carinhosamente a cada luminescência a sua dose natural de sombra difusa. A cada luz em cru a sua forma inevitável de produzir sombra. Recortada à faca. Na intempérie de emoções mais fortes.

Volto-me para olhar os bichos. Bichos sedosos, naquele evoluir de minúsculas patinhas a ondular ligeiramente o corpo de estrias a negro, na caminhada que é longa. Para eles. Fugidos da caixa dos sapatos. O chão enorme. E noutro dia, casulos nos cantos das paredes nas costas das cadeiras. Nos braços do corredor. Do labirinto. E de súbito: umas asas pequeninas, gigantescas. A ver dali. A desembaraçar-se do pequeno constructo de fios sedosos e temporários. O céu a abrir-se. Perguntei queres vir? Respondeu naquele olhar turvado e imerso. Imenso. Fiquei. Abracei-me à fera que nem sentiu. Que se visse. A inércia do peso, difícil de mover. Por isso a fera é fera e o monstro é monstro e ambos são recém- nascidos todos os dias. Mas nascem já grandes. Lanço na mesa a criança que ainda é memória. Um combate de titãs em teoria. Duas desrazões que estão bem na balança prévia ao combate. Fico ali enroscada a ele. Se deixou é com ele. A batalha. Não em mim. Talvez abraçar o monstro liberte borboletas. Como bolhas de champanhe. Sei lá. As crianças não bebem.

Volto. Não é dia, que não de assombro. E da confusa impressão dessas sombras, delineadas e sobrepostas. Nem tentativa nem erro. Olhar o assombro na sua versão acabada de nascer. Frágil monstro encolhido no seu canto. E ansiosamente aquietar e aquecer em mim esse corpo de gigante perigoso e ínfimo. A cada um a sombra do tamanho que os olhos conseguem alcançar. É isso. A existência nunca foi uma ciência exacta. Encaminho passos irresistíveis afinados por um magneto. E contemplo-o ali. No fim do corredor. É tarde. Apago a luz. E “sub umbra floreo”.

2 Jun 2017

Os diamantes da Condessa

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]eixamos o final da história da Madame Paiva para, envolvendo o período de tempo da vida de Pedro Alexandrino da Cunha, rematar os acontecimentos ocorridos no século XIX na Europa.

A estadia em Paris de Thérèse Esther Blanche Lachmann (1819-1884) ocorreu durante a governação da França por Louis-Philippe I (Luís Filipe de Orleães, 1830-1848) e Napoleão III (1852-1870), que em 1840 ao tentar depor Luís Filipe foi preso. Terceiro filho de Luís Bonaparte e sobrinho de Napoleão Bonaparte, fugindo da prisão regressou a França após a Revolução de 1848, restabelecendo o Império em 1852. Com a chegada ao poder, Napoleão III nomeou em 1852 Georges Eugène Haussmann, o Barão Haussmann, como Perfeito do Seine para modernizar Paris. Ano em que Thérèse vivia com o suposto marquês, Albino Paiva de Araújo o seu segundo marido, a quem dera dinheiro em troca do seu grau nobiliário, quando numa noite de ópera foi apresentada, pelo cônsul alemão Félix Bamberg, ao conde Henckel von Donnersmark. “Herdeiro duma antiga família, com valiosas minas de zinco, ferro e carvão na Silésia [subúrbios de Munique], este belo e jovem de 22 anos, onze anos mais novo do que ela, logo caiu de amores pela deslumbrante marquesa”, assim refere o Padre Manuel Teixeira. Esta, a princípio com ele jogou, divertindo-se com a sua enfatuação. Guildo, desesperado, fugiu para Berlim e ela, reconhecendo o ambiente de segurança financeira que este lhe poderia oferecer, foi ter com ele. Daí “foram para Neudeck, regressando a Paris, onde, em 2 de Dezembro (1852), o príncipe Luís Napoleão recebeu o título de Imperador Napoleão III”, segundo Flectwood-Hesketh, que refere, em 1853 estar já o Paiva fora da vida de Thérèse, “Ela partilhava com Henckel o entusiasmo pela música, sobretudo de Richard Wagner, assíduo visitante”, da sua casa em Paris no lugar de S. Jorge.

Em 11 de Julho de 1855, a Madame Paiva “comprou por 406 640 francos a área 25 da Avenida des Champs Elysées. Este distrito estava, sob Haussnann, a suplantar o Faubourg St. Germain como centro da moda”. Então “contratou Pierre Maugin como arquitecto com uma hoste de pintores – Ernest Hébert, Gérome, Eugène Thirion e Paul Baudry; escultores – Barrias, Dalou, Carrier-Belleuse; e decoradores – para adornar” o interior do que ela pretendia que fosse a casa mais sumptuosa de Paris, segundo Flectwood-Hesketh, que refere ter-se mudado para lá só em 1866, “inaugurando-a com uma calorosa recepção que incluía toda a vida literária, artística, política e diplomática de Paris”. Em 1867, ou no ano seguinte, ainda o casal comprou uma casa de campo em Pontchartrain.

Após a guerra franco-prussiana

“Sabe-se que aquela aventureira – tão famosa no bosque de Bolonha como na fria Avenida de Lichtenthal – pôs em jogo os mais hábeis artifícios da táctica feminina e representou um papel de primeira ordem na obra tenebrosa de investigação clandestina e permanente que os alemães praticaram em França durante a época em que governava Badinguet (…). E sabe-se mais, que no seu faustoso palacete dos Campos Elísios se centralizou o serviço de espionagem alemã”, segundo refere Pinto de Carvalho, em Lisboa d’ Outros Tempos.

“Como era alemão e amigo de Bismarck, Guido teve de ir para a sua terra durante a guerra [franco-prussiana] de 1870, e Teresa, envolvida em intrigas políticas, foi com ele”, segundo Flectwood-Hesketh, que adita, “A sua hostilidade à França durante a guerra havia tornado Guido e Blanche antipáticos em Paris; por isso, retiraram-se para a Alemanha, para o seu castelo de Neudeck, que eles haviam feito reconstruir à maneira francesa por Hector Lefuel, arquitecto de Louvre”. Jorge Forjaz refere “Ainda viveram algum tempo retirados na Silésia, mas assinada a paz franco-prussiano, ele foi nomeado governador da Alsácia-Lorena. Regressando à vida social, impôs a amante nos salões de Estrasburgo e Paris, e provocou um escândalo tal, que ia levando a um conflito diplomático. Em 1875 resolviam o problema, casando na Prússia”. Ano que não se ajusta, pois então não seria já necessário a anulação pelo Vaticano do seu segundo casamento, devido a ser ela desde 1872 pela segunda vez viúva. Nas palavras do Padre Manuel Teixeira, “Tendo obtido do Santo Ofício a anulação do seu casamento com o <Marquês> de Paiva (segundo Flectwood-Hesketh a 16 de Agosto de 1871) a aventureira consorciou-se pela terceira vez com o Conde Henckel de Donnesmark” em 28 de Outubro.

Guido Georg Friedrich Erdmann Heinrich Adalbert Graf Henckel von Donnesmark, nascera a 10 de Agosto de 1830 em Breslau e morreu em Berlim a 19 de Dezembro de 1916. Foi um nobre alemão, magnata industrial e um dos homens mais ricos do seu tempo.

Esther Blanche Lachmann casada em terceiras núpcias com o conde Donnesmark, em 1875 saiu de Paris para o seu castelo de Neudeck, perto de Tarnovitz, na Silésia. Entre 1878 e 1883 Blanche fez grandes investimentos em jóias, gastando uma imensa fortuna na Casa Boucheron, tendo uma dessas peças, com quinze diamantes e outras tantas esmeraldas, em 2007 sido leiloada por um milhão e novecentos mil euros, o que veio reavivar o interesse sobre esta obscura personagem.

Com 72 anos, dizem uns, e com 58, diz o marido, “morreu em 1885, no seu Castelo de Newdeck – rica e condessa, mas os jornais parisienses ao noticiarem o acontecimento lembraram que, por de trás daquele título nobiliárquico, estava a famosa Madame de Paiva, que enchera as colunas sociais de Paris com o seu nome do casamento com um macaense rico e infeliz”, segundo Jorge Forjaz. Já Flectwood-Hesketh refere, “Blanche morreu lá em 21 de Janeiro de 1884 duma doença de coração e de cérebro, ‘rica e respeitada’ por alguns, mas considerada por outros como aventureira baixa e sem princípios (possivelmente até uma espia), que só adorava o dinheiro; e ainda que consciente do seu sex appeal para os homens, não possuía humor e era fria. No entanto, guardou até à morte o sentimento de adoração pelo seu terceiro marido.

Pontchartrain foi vendida logo após a Guerra Franco-Prussiana, mas não a casa de Paris, que Guildo tencionava remover, pedra por pedra, para Berlim, por razões sentimentais, projecto que não se materializou. Após a morte da sua amada, Guildo casou com Catarina de Slepsow, 32 anos mais nova do que ele, de quem teve dois filhos. Vendeu em 1893 o Palácio Paiva nos Champs Elysées a Soloschin, banqueiro de Berlim” e “em 1900, Cubat, cozinheiro-chefe do Kaiser, montou lá um restaurante, mas não deu resultado”. A proposta para aí se instalar a Câmara do 8.º Arrondissement não se materializou e em 1901, ano em que Guido ficou príncipe, foi vendido” e acabou por fim nas mãos do Travellers’ Club de Paris, fundado por um grupo de ingleses ali residentes, que em 1904 tornaram o Palácio Paiva na sua sede.

Esta história termina no Castelo de Newdeck com Guido, então de novo casado, a permanecer durante longas horas num dos quartos, que ele mantinha sempre fechado. Certa vez, esquecendo-se da chave na fechadura, a sua esposa curiosa, ao entrar, deu um salto ao deparar-se com o corpo da Madame Paiva, a famosa judia, bastarda, espia, três vezes casada, muitas outras amancebada e esbanjadora de fortunas, ali guardado em formol.

2 Jun 2017

A nódoa negra da nossa idiossincrasia

Aires, Matias (1705-1763), Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens, Fundação Biblioteca Nacional, Lisboa, 2007

Descritores: Literatura Barroca, Ensaio, Século XVIII, 288 p. ; ISBN: 9788533304529

Cota: 821.134.3(81)-4 Air

“A ambição dos homens por uma parte, e pela outra a vaidade, tem feito da terra um espectáculo de sangue: a mesma terra que foi feita para todos, quiseram alguns faze-la unicamente sua”

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]atias Aires mau grado as coordenadas do barroco mental que acompanham permanentemente as suas reflexões pensa e algumas vezes pensa muito bem. E por isso não é fácil isolar na sua obra a explicitação de um paradigma temático de uma forma escorreita e límpida. Prevalece alguma promiscuidade entre pressupostos ideológicos barrocos  e pressupostos ideológicos clássicos. Quando por exemplo ele diz que «a solidão nos desterra para a solidão do ermo», ele analisa o evento segundo a ideia clássica horaciana de que «nunca podemos fugir de nós», mas ao mesmo tempo o que ele identifica como a nossa sombra negra é a barroca ilusão e vaidade, de tal modo que “somos como a ave desgraçada, que por mais que fuja do lugar em que recebeu o golpe, sempre leva no peito atravessada a seta”, querendo com isso dizer que ælun, non animum mutant, qui trans mare currunt. Aquilo que em Horácio é assumido como uma especificidade própria da condição humana substantiva, torna-se em Matias Aires um elemento de reforço do dispositivo barroco. Para Matias Aires o que nos persegue é a vaidade, nódoa negra da nossa idiossincrasia, enquanto que para Horácio o que nos persegue é simplesmente nós-mesmos, a nossa idiossincrática auto-individuação, independentemente desta ou daquela virtude.

E de tal ordem é assim que a possibilidade do retiro integral não é admissível em Matias Aires. Todas as modalidades de retiro não se adaptam ao modelo do ensaísta português de Setecentos. Para ele o retiro absoluto não é possível porque ao “deixarmos livremente o comércio dos homens, não renunciamos o viver na admiração, e notícia deles”, o que significa que “consentimos em apartar-nos de sorte, que nunca mais sejamos vistos, mas não consentimos em não ser lembrados”. O dispositivo ideológico através do qual Matias Aires concebe a sua antropologia persegue os seus pensamentos. Para Matias Aires o retiro é uma dissimulação, não um retiro de facto, é uma representação teatral, é uma máscara. E é a máscara e a encenação que persistem com o seu valor ontologicamente dramático e não o retiro que deveria significar o que de facto significa no classicismo, assunção de modéstia, de humildade, de procura regenerativa da vida simples, discreta. Não é a lathe biosas epicurista (vida discreta e simples), que fundamenta este retiro, não é a completa separação e rejeição do modelo da ubris ou culto do excesso. A ubris é o que persegue o homem desesperado no seu exílio encenado. Falta aqui um ingrediente determinante do modelo da mediania: a tranquilidade que só advém por intermédio da realização da sabedoria clássica ou estóico-epicurista da phronesis e da sophrosyne. Eu sei que Matias Aires desenvolve o seu modelo sob uma forma crítica. A sua análise é realista e não idealista. Mas o simples facto de não conceber uma alternativa mostra o quanto está prisioneiro do seu próprio quadro conceptual. O realismo, que de resto é próprio do barroco, não deixa entrever a possibilidade de uma escapatória. O seu pessimismo de fundo sapa tanto a possibilidade da eutopia quanto da utopia. A verdade é que o que fomenta o retiro clássico, quer dizer salvífico e regenerativo, é a rejeição da ubris e esta no dispositivo clássico é profundamente marcada pela sua imbricação com o problema do mal.

Desde a conceptualização ontológica, metafísica e religiosa do limite e da ordem até à definição do papel ético-moral da medida, que culmina no sacrossanto apotegma apolíneo do ne quid nimis (nada para além da medida), é sempre o bem e o mal que estão no horizonte. Ora em Matias Aires é o binómio conjuntivo ilusão / vaidade que enforma a sua aproximação teorética. O que quer dizer que lhe falta desde o princípio um modelo conceptual decisório, e analítico, que pela sua natureza se encontre acima do material em análise. Matias Aires julga questões morais com conceitos morais, procura compreender uma realidade empírica através da operatividade de ferramentas empíricas. Não há separação entre o modelo e a realidade, logo o seu esforço de desconstrução não é verdadeiramente operatório. Ele diz por exemplo: “A vaidade é cheia de artifício, e se ocupa em tirar da nossa vista, e da nossa compreensão o verdadeiro ser das cousas, para lhes substituir um falso, e aparente”. Nada se passa no plano ontológico ou metafísico, mas apenas no plano das consequências fenomenológicas da crise aberta pela ruptura com o paradigma da permanência e da estabilidade. A crítica e a condenação da ubris no barroco resulta do facto de que tudo é aparente, vão, ilusório, etc. enquanto que no classicismo a ubris simboliza o mal. E é só porque é o mal que a ubris configura uma ilusão, ou melhor um nada, um não-ser. O classicismo valoriza o texto, a substância e o barroco valoriza a cenografia, e o décor. A opção pela aparência desloca logo a questão do plano ontológico para o plano fenomenológico, sendo que esta fenomenologia não é hermenêutica mas gnoseológica. O mundo não possui uma alma que é enganadora ou não, uma vez que é da natureza da alma do mundo ser enganadora. Trazendo o que deveria ser um epifenómeno para o centro do debate  gnoseológico o barroco dessubstancializa o problema do bem e do mal na sua raiz metafísica e assim acaba a explicar o equívoco pelo equívoco, a falha pela falha, a máscara pela máscara até ao infinito. Um jogo de espelhos, um labirinto. Não há fuga possível do labirinto, não há retiro possível do mundo. O retiro é uma aparência de retiro. E não é assim por acaso que o problema do mal seja profundamente relativizado. “É raro o mal, de que não venha a nascer algum bem, nem bem, que não produza algum mal”.

A única fuga concebida por Matias Aires é uma ascética fuga de nós-próprios, isto é das nossas paixões. O neo-estoicismo do barroco informa aqui o pensamento do nosso autor. Neste domínio Matias Aires é um autor previsível. A presença de Santo Agostinho no seu ideário empurra-o para uma análise de tipo voluntarista em que finalmente aparece a questão do mal agora já indissociável do pecado, da queda e da culpa. Nem sinais de classicismo e de argumento onto-gnoseológico. Pelo contrário sente-se a presença do video melior proboque de Ovídio, das reflexões de Santo Agostinho, das Epístolas de S. Paulo, em particular a Epístola aos Romanos, e da Medeia de Eurípedes, entre muitas outras reflexões que colocam o mal no plano de uma oscilação da vontade ditada pela condição miserável do homem. Oscilação que o autor enfatiza de modo explícito: “Parece que cada um de nós tem duas vontades sempre opostas entre si; ao mesmo tempo queremos, e não queremos; ao mesmo tempo condenamos, e aprovamos; ao mesmo tempo buscamos e fugimos, amamos e aborrecemos, Temos uma vontade pronta para conhecer, e detestar o vício; mas também outra pronta para o abraçar”. Mas no essencial a nossa natureza propende para o mal, o que significa que triunfa em nós a vontade má, a concupiscência. A nossa vida consiste em combater esta má inclinação. As paixões, quer dizer a carne são o nosso inimigo, até porque a carne não é frágil só por um princípio, mas por muitos”.

Biografia

Matias Aires Ramos da Silva de Eça nasceu no Brasil, a 27 de Março de 1705, vindo a falecer em Lisboa a 10 de Dezembro  de 1763). Filho de José Ramos da Silva e de sua mulher Catarina de Orta, nasceu como já vimos no Brasil, na Capitania, depois Província e hoje Estado de São Paulo. Foi Cavaleiro da Ordem de Cristo e Provedor da Casa da Moeda de Lisboa, obtendo e sucedendo neste emprego a seu pai, José Ramos da Silva, por sua morte. Foi Bacharel em Filosofia pela Faculdade de Ciências e Mestre em Artes pela Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Formou-se numa Universidade Francesa em Direito Civil e Canónico. Fez estudos de Matemática e Ciências Físicas. Conhecia o Hebraico e outras línguas. Foi em 1716 que acompanhando seus pais se mudou para Portugal, tendo ingressado no Colégio de Santo Antão. Em 1722, estudou nas Faculdades de Leis e de Cânones de Coimbra, onde recebeu o grau de Licenciado em Artes, graduando-se mais tarde na cidade de Baiona, na Galiza. Foi notável literato e naturalista e grande amigo do malogrado António José da Silva, o Judeu, que procurou ardentemente salvar da fogueira, o que não conseguiu.  Escreveu obras em Francês e Latim e foi também tradutor de clássicos latinos. É considerado por muitos o maior nome da Filosofia de Língua Portuguesa do seu tempo, o que não era muito difícil tendo em conta a pobreza franciscana da nossa cultura filosófica e literária do século XVIII. Só, talvez António Soares Barbosa, autor de um tratado de filosofia moral, mas que é também um tratado jusnaturalista, se lhe pode comparar. Enfim, há Verney, Teodoro de Almeida e Frei Manuel do Cenáculo Villas Boas, mas que para mim são autores menores, pois lhes falta originalidade e arrojo. Em Reflexões sobre a Vaidade dos Homens, cuja primeira edição é de 1752, o autor tece suas reflexões a partir do trecho bíblico extraído do EclesiastesVanitas vanitatum et omnia vanitas, ou seja, “Vaidade das vaidades, tudo é vaidade”. Como um dos exemplos da vaidade dos homens, é citada a sumptuosidade dos mausoléus.  Inocêncio Francisco da Silva informa no seu dicionário que “Quanto à data de seu óbito é por ora ignorada, sabendo-se contudo que já era falecido no ano de 1770”. Ernesto Ennes informa data de 10 de dezembro de 1763, a partir de documentação comprobatória. O Dicionário Biobibliográfico de Autores Brasileiros informa a mesma data.

1 Jun 2017

Angústia do não conseguir

CIAJG, Guimarães, 20 Maio

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ubo para ajuizar, na companhia do Jorge [Silva] e da Margarida Noronha, os candidatos ao Prémio Nacional e Revelação da novíssima Bienal de Ilustração de Guimarães, neófito que se saúda, com a originalidade de atribuir prémios pecuniários, os que resultam da concurso como o de carreira. Aguardemos por Outubro para saber mais, de projecto gizado pelo mano Tiago [Manuel], com o apoio do Rui Bandeira Ramos.

Habituei-me a ser surpreendido a torto e a direito pelo Norte, não tanto pela arquitectura ou pelo modo como as gentes se fazem casa, não apenas pelas comidas e bebidas ou pela maneira como as pessoas se dão comendo e bebendo, nem sequer pelos carvalhos ou os freixos ou pela forma como os sujeitos se erguem na paisagem. Surpreendem-me na singeleza com que fazem acontecer. Naturalmente, como se criar tivesse alguma coisa de natural. Bato no peito e grito por me mexer tão pouco. Recolho a papelada que posso para passeios de dedo e olho, coisa mental. Alimento para a quotidiana angústia do não conseguir. Perdi «Teatro da Alma, uma peça de dor e de sonho a partir de Raul Brandão», escrita e encenada por João Pedro Vaz, apresentada como assombração do teatro popular: «de espada em riste, à procura de Deus e do Homem». Pouso a espada, mas interessa-me este teatro, que «não é nem para jornalistas nem para burguesas serigaitas. É para toda a gente», dizia Brandão. Invejo a programação do Teatro Oficina em torno do imenso autor de Húmus. Conservo ainda os ecos da leitura encenada do poema homónimo de Herberto, pelo Paulo Campos dos Reis, na última noite da vida de um solar em Paredes de Coura. Momentos telúricos, de andar descalço pelas ruínas. «Ouve-se/ a dor das árvores. Sente-se a dor/ dos seres/ vegetativos,/ ao terem de apressar a sua/ vida lenta.» Nem na ida, menos ainda na vinda, consegui espreitar a exposição «Raul Brandão: 150 anos», que abria as portas na Casa Guerra Junqueiro e na Biblioteca Municipal do Porto, pela mão sabedora do Vasco [Rosa]. Esta não posso perder. A ignorância também se faz fábrica de muita surpresa. Desconhecia a doravante indispensável «Guimarães», revista semestral que vai no quarto número, este com «paisagem» dentro. Lá volto a entusiasmar-me com as ideias do João Pedro Vaz e a irritar-me por ver tão pouco, por subir tão pouco. Bato no peito e reencontro Brandão, com o Vasco a contar da nossa maneira descuidada de sermos, das décadas que foram passando sem que este autor sublime fosse devidamente editado. Vais sendo agora a injustiça reparada. Percebo que nunca visitei a Casa do Alto, nem que fosse para aquilatar fantasmas. Para meu deleite, ainda posso ouver as «Dissonâncias» do João Alexandrino aka JAS, cujas exposições recentes em Lisboa perdi (é dele a ilustração ao lado), bem apresentadas pelo Daniel Jonas: «nesta dança macabra, a peça exibida é anatómica e participa desse modo do silêncio espectral das coisas que confessam em silêncio. É um tipo de urna, de sarcófago, uma espera numa câmara frigorífica.»

Casa da Cultura, Setúbal, 23 Maio

Conferência de imprensa para apresentar a Festa da Ilustração ’17. Na boa companhia do Pedro Pina, vereador capaz da loucura de encher uma cidade de ilustrações, e do mano orquestrador-mor, José Teófilo [Duarte], perco-me em números. Manuel Ribeiro de Pavia, o ilustrador clássico que será homenageado este ano, nasceu há 117 anos e morreu 50 anos depois, no mesmo dia, a 19 de Março, na miséria. Neo-realismos cá dos nossos. Preparemo-nos, que oiço Zeca: «Tenho muitos anos para sofrer/ Mais do que uma vida para andar/ Bebo o fel amargo até morrer/ Já não tenho pena sei esperar».

Horta Seca, 24 Maio

«”E coisa mais preciosa no mundo não há”. Falamos de canções, certo? Não vejo maneira de crescer sem elas, miopia minha, que não distingo o longe horizonte sem degrau mínimo, este íntimo à mão de semear. As paisagens que fomos construindo no último século, hesitando ou correndo, sentados no passeio ou comendo alcatrão, seriam impossíveis de percorrer sem estes seres particulares. Chamemos-lhe canções, para facilitar, embora sejam bastante mais do que isso, síntese letal de poder que invoca diamantes e granadas. Não conheço melhor maneira de cruzar ciência e poesia, pensamento e prazer, quotidiano e intemporalidade do que nestes nós que nos acompanham vida fora, por causa do verso estilhaço ou da melodia tatuagem. Os dias deixam-se oxidar, amarelando sensaborões até que a batida nos invade, aquela que sendo de todos parece apenas nossa. E logo Lisboa amanhece. Ou o Porto fica perto. Tão fácil falar de lugares comuns! Lá está, se se tornaram comuns devemo-lo a autores como Sérgio Godinho. E se estamos neste texto habitamos tal nome.

Década após década, SG fez-se gigante construtor de canções que traçaram pontes, ruas e túneis, aliás, mapas entre gerações e géneros, temas e estilos, personagens e imagens. Foram relâmpagos que continuam acontecendo à medida que vivemos, para nos ajudar a perceber a dimensão exacta do que fomos mal o ouvimos, mal ouvimos as canções. Esta arte do Sérgio assenta na peculiar atenção ao que fica do que passa; na raiz mergulhada na experiência pessoal mas de um modo tal que rima com universal; nas coreografias com que a palavra arrasta os ritmos. Nisto e nos enigmas da curiosidade que recolhe, mistura, amadurece e atira. Para voar e nos levar também.»

Não consegui desenvolver estas ideias, impressas muito antes do Dylan feito Nobel ou vice-versa, a tempo de alinharem na fotografia feita pela exposição e catálogo, que agora me chega às mãos e com que a Câmara de Grândola celebrou vida ímpar: «Sérgio Godinho – Escritor de Canções». Desconsegui. Calquemos o detalhe, que ainda haverá tempo para lá ir, à vila morena, reconhecer a banda sonora dos meus dias. Não se contam pelos dedos, as alegrias que o Sérgio me foi dando, desde que me conheço a torcer destinos, sendo a mais vibrante uma recente fraternidade de projectos partilhados. «Dias úteis/mesmo se a dor nos fizer frente/a alegria é de repente/ transparente/quem a não receberia?/ Mesmo por pretextos fúteis/a alegria é o que nos torna/os dias úteis.»

Rodrigues Sampaio, 25 Maio

Reunião para fecho de contas anual com o Vitor [Couto], parceiro de há tantos anos, ali pertinho da Smarta, cidade da ilha chamada Natália Correia. Tão triste a paisagem, tão entediante o assunto. Os números cantam-me sempre a mesma canção. «Dias úteis/ são tão frágeis, as verdades/ que se rompem com a aurora/ quem as não remendaria?»

1 Jun 2017

Perplexidades e equilíbrios

28/05/2017

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]eio no DN, com perplexidade: «Nesta semana, o candidato derrotado nas primárias republicanas, o neurocirurgião Ben Carson, atual secretário da Habitação e do Desenvolvimento Urbano, responsável pelos programas de habitação social, afirmou que “a pobreza é um estado de espírito”.

Ontem, um congressista republicano, questionado numa entrevista radiofónica sobre se considerava a alimentação como um direito de cada americano, hesitou, demorou e acabou por recusar subscrever essa afirmação. Trump é apenas a face mais visível de uma América que sempre existiu, mas que com o novo presidente parece ter perdido a vergonha

Leio e cogito: é difícil imaginar pior e um cenário mais tenebroso. Porque nos começamos a situar numa orbe perigosamente próximos desta descrição: «Não se dá os mortos à sua mãe, aqui, mata-se a mãe conjuntamente, e come-se o seu pão, e arranca-se o ouro da sua boca para se poder comer mais pão, e faz-se sabão com os seus corpos. Ou então enfeita-se com as suas peles os abat-jours das fêmeas SS». Quem o conta é Roberto Antelme, no seu livro A Espécie Humana, onde testemunha a monstruosa desumanização do universo concentracionário.

Políticos para quem a pobreza não passa de um estado de espírito e que não consideram a alimentação como um direito, já podiam ser carcereiros de um campo de extermínio. Já estamos a lidar com diferenças de grau mas não de natureza – isso é que se me afigura assustador. Falta pouco para começarem a falar de castas. E quando se pensa assim, igualmente o consentimento para se obter de uma mulher o que se pretende é um percalço menor, que se ultrapassa com a violência. Ē desta massa que se forma a personalidade dos novos líderes da direita. Se se associar a esta mentalidade a abstracção algorítmica, fica o futuro duro de roer.

Isto pedia aqui uma tirada de génio de Groucho Marx, mas (não digam a ninguém) o comediante perdeu a dentadura e nenhum osso se rói por delegação.

30/05/2017

A Maria João Cantinho ganhou o Prémio Glória de Sant’Anna com o seu excelente livro de poesia Do Ínfimo. Para se entender o que isso significa teria de se começar por saber quem foi a Glória de Sant’Anna, uma estupenda poeta portuguesa que teve “o azar” de ter feito toda a sua carreira poética em Moçambique. Ē uma poeta da geração da Sophia de Mello Breyner e não lhe deve em rigor e talhe poético. Terá menos volume de trabalho (a sua obra completa não ultrapassará as duzentas páginas), mas a qualidade pede-lhe meças. O problema é que poucos sabem e quando regressou a Portugal o seu caminho estava condenado a ser discreto.

Do Ínfimo é um livro à altura da sua patrocinadora.

A Maria João Cantinho é muito mais conhecida como ensaísta e crítica, e agora como directora de revistas literárias (cf. revistacaliban.net), mas este é o seu quarto livro de poesia. Como poeta, apareceu numa altura que lhe era adversa, nos anos noventa, um período em que tudo o que não fosse “poesia do quotidiano” era claramente descriminado. Houve uma ditadura do quotidiano e a sua poesia mais metafórica e de laivos existenciais e mesmo metafísicos foi silenciada. Até por causa das suas influências, mais alemães e francesas, contra a vaga anglo-saxónica que sobraçou o país. Do Ínfimo é uma magnífica oportunidade para a conhecer.

É um livro de grande equilíbrio, que tem arquitectura e é meditado, denotando ampla consciência do seu ofício. Sendo discursivo não cai no vício da retórica; o seu léxico medido e uma expressividade controlada não perdem de vista os seus efeitos emocionais embora prescinda de  se meter em ponta dos pés, no afã de cativar o leitor por um “sensacionalismo das imagens”.

Para além do conjunto, coeso, Do Ínfimo alia duas coisas que raramente casam com esta eficácia: a sobriedade não neutraliza a capacidade digressiva de quem reflecte e faz o poema reflectir-se.

Como disse atrás, nestes poemas a ênfase não está no brilho (as imagens fulgurantes) mas antes na justeza das palavras. São versos que testemunham um desencontro com as idealidades, disfóricos, versos de onde se parte ou nos quais se vinca que algo se perdeu e que quando encenam um retorno recortam um céu plúmbeo em fundo. Contudo, a tristeza que neles se plasma foge de consolidar-se como a abstracção de um saber, ou da congelação melancólica. Daí que surdam laivos de revolta e vários poemas reclamem um certo cariz social. E, característica tanto mais curiosa quanto o poeta alemão tem sido um dos objectos de estudo dos seus ensaios, dir-se-ia que contra o Paul Celan, estes poemas desencadeiam-se discursivamente, de forma articulada, por vezes apoiados em refrões que lhes marcam o ritmo, com Cantinho a procurar ainda balbuciar uma unidade (na sua leitura do mundo), um rosto, mesmo que amarrotado, como é o que se alude no primeiro poema do livro. Se este é um livro que coou de alguma tristeza (o mundo não está bonito) a autora não se lhe entrega num trânsito irreversível e final, da mesma forma que a clausura do círculo se liberta pela espiral, impondo a sua dignitas, uma ética.

E aqui deixo um dos seus poemas, DA VISÃO EM FILIGRANA: Desdobra-se o nojo, o sangue, a vida/ que se celebra no avesso da noite,/ o olhar acossado no nada, esta raiva/ uma bomba prestes a detonar/ na flor amaldiçoada/ de um silêncio esventrado.// Porque passas tu sem ver/ as sombras e o escuro incêndio da folhagem/ o cheiro e o dia, onde tudo se entorpece/ as ruas antigas de um muro/ onde sentiste que as palavras/ te tinham abandonado em definitivo.// Para que nos serve a língua, o coração/ em salmo adiado, se a linguagem nos abandonou/ e nos sentámos na grande pedra/ a olhar o vazio/ a decifrar modos de sentido/ que nos traem, sempre/

fugindo na sombra dos dias.// Ē esta a pobreza/ que nos faz voar/ ao encontro das árvores/ e do céu.”

1 Jun 2017

As 72 virgens

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s religiões que conheçam postulam, todas elas, um paraíso. Este cumpre a função de resolver da morte e da sombra que esta projecta sobre todo e qualquer homem, sem excepção. Epicuro tenta solucionar lógica e friamente o medo associado à inevitabilidade da morte dizendo “enquanto somos, a morte não é; quando a morte é, não somos”. Desde logo, nada a recear, aparentemente. O problema é que o ponto de vista humano não é nem como o dos animais – completo mas cego para si próprio – nem como o dos deuses – completo e absolutamente transparente para si próprio. A forma como estamos desenhados permite-nos pensar em coisas que não existem de todo – ou ainda – ou às quais não temos um acesso adequado como, por exemplo, o infinito, deus ou o futuro. E a forma como vemos o futuro, ela própria, é paradoxal: por um lado, sabemos que vamos morrer e que isso pode acontecer a qualquer momento e, por outra parte, vivemos como se a morte fosse uma coisa que acontecer “aos mais velhos”, “aos doentes”, “àqueles que moram em países assolados pela guerra ou pela fome”, em suma, aos outros. Não conseguimos imaginar a morte própria. O mais perto que conseguimos chegar disso é imaginando a procissão de carpideiras num funeral em que somos, simultaneamente, figura principal e espectador invisível.

O paraíso cristão abjura a figura do corpo. É a alma que é sujeita a condenação ou salvação. De um ponto de vista lógico, é uma posição extremamente bem urdida: não somente elimina o problema do corpo e do seu perecimento, como a logística necessária para manter um paraíso em risco permanente sobrelotação. As almas, como se sabe, não ocupam espaço, não adoecem e são (postula-se) imortais. Não faz qualquer sentido trazer para o paraíso o plano vectorial onde acontece o desejo e a dor, em suma, o plano que possibilita a instalação de todas as formas imagináveis de desordem. O lado negativo da teologia cristã consiste na forma como o corpo é negativamente encarado em vida. Mas como o paraíso tem uma duração infinitamente superior a este “passeio no parque” a que chamamos vida, a troca parece ser, em todo o caso para o crente, vantajosa.

No caso do paraíso muçulmano, porém, a história é de todo diferente. No paraíso muçulmano, não somente o corpo existe, como existe de um modo intensamente sensual. Aos homens estão prometidas setenta e duas virgens com seios em forma de pêra, puríssimas, eternamente jovens e livres de alguns inconvenientes reservados aos corpos na terra: não menstruam, não urinam e não defecam. Em jeito de cereja no topo do bolo, diz-se também, e perdoe-se desde já a tradução livre de “appetizing vaginas”, que estas possuem como característica constitutiva, embora sendo virgens, “vaginas gulosas”.

A primeira pergunta que se pode fazer acerca deste paraíso – deixando para Deus a resolução do problema de espaço – é sobre a natureza problemática da virgindade num local em que o principal atributo é a eternidade. Quando tempo duram setenta e duas virgens no paraíso (pressupondo a virgindade um atributo fundamental, visto ser tão vincada na promoção do paraíso)? Tendo em conta os textos fundamentais da teologia muçulmana, nos quais se postula que os homens têm erecções eternas e que podem satisfazer mais de cem mulheres de seguida, muito pouco. Setenta e duas virgens não enchem nem a cova de um dente. A eternidade é muito tempo.

A forma como a sexualidade é vivida nos países nos quais a ortodoxia muçulmana está mais profundamente instalada condiciona decerto esta visão do paraíso. Na Arabia Saudita, exemplo máximo de uma concepção radical do islão, duas pessoas do sexo oposto não podem ser vistas juntas em público, sob pena de serem castigadas pela polícia dos costumes, uma dependência do Ministério da Promoção da Virtude e da Abolição do Vício. A sexualidade, que não se subsume nem por decreto real, acaba por obedecer à regra “where there’s a will, there’s a way” e as pessoas, impedidas de dar azo aos seus impulsos na forma como os sentem e como optariam exprimi-los, acaso o pudessem, adoptam soluções de recurso. Os comportamentos homossexuais, como no cárcere ou numa viagem de barco de longo curso, acabam por impor-se. E, mesmo nos casos em que a disposição fundamental é a homossexualidade, não sendo esta um recurso para algo que não tem possibilidade de cumprir-se, o comportamento não define a identidade. Por exemplo, não se considera homossexual o sujeito activo da relação, só aquele “que fica por baixo”. Sendo certo não ser possível ficarem todos “por cima”, a formulação é semelhante a que um professor meu de filosofia dava pelo nome de paradoxo mediterrânico, que se exprimia pela contradição em termos entre “todas as mulheres terem de ser castas e todos os homens, fodilhões”.

Viver desta forma absolutamente condicionada aquilo que, mesmo numa sociedade laica e tolerante, pode ser um problema fundamental da existência, a saber, a sexualidade, não pode não ter consequências. E se é certo esta leitura repousa na consideração de um sistema de variável única, não é menos certo que esta é uma variável que tem sido incompreensivelmente posta de parte nas leituras que tenho tido oportunidade de encontrar um pouco por toda a parte.

31 Mai 2017

Leitura na festa literária de Angola

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]o início da Metafísica de Aristóteles, lê-se “o ser diz-se de muitas maneiras”, e podemo-lo afirmar para a poesia. Vários foram os períodos da história, e não longe de nós, em que se afirmava que a poesia deveria ser desta ou daquela maneira e não de outra. Por exemplo, muitos viram na poesia concreta aquilo que deveria ser a poesia, relegando para o passado ou um não-sentido toda a poesia que não fosse concreta. Mais recentemente, muitos afirmaram que só a poesia do quotidiano era realmente poesia, tudo o resto era história da poesia ou má poesia, que o mesmo seria dizer “não poesia”. Em Portugal, no período salazarista, também tivemos as nossas guerras poéticas, por exemplo entre os poetas da Presença e os poetas do Neo-realismo. Ambos pretendiam que a poesia fosse aquilo que cada um deles pensava ser. Mas também podemos invocar as hostilidades entre neo-realistas e surrealistas. Hoje, e pelo menos em Portugal, a poesia diz-se de muitas maneiras. E se é verdade que não acabaram completamente os policias da poesia (parafraseando o poeta e escritor António Cabrita), dizendo o que é e o que não é a poesia, passando multas nos seus artigos de jornal, não é menos verdade que diminuiu bastante esse policiamento e há uma variedade maior na expressão poética em Portugal. Esta falta de policiamento não implica uma diminuição da qualidade poética, pois o mau e o bom sempre existiu, tanto no passado quanto agora. A falta de policiamento originou uma maior liberdade de expressão, fazendo com que apareçam múltiplas vozes. A poesia apresenta hoje um horizonte temático e formal muito alargado.

Evidentemente este fenómeno tem origem na multiplicação das novas editoras. Há em Portugal uma proliferação de pequenas e novas editoras, que maioritariamente se dedicam à publicação de poesia, como nunca existiu antes. Abysmo, Artefacto, Averno, Companhia das Ilhas, Do Lado Esquerdo, Douda Correria, Guilhotina, Licorne, Língua Morta, Mariposa Azual, Palavras Por Dentro, Poéticas Edições, Tea For One, Tinta da China, Volta d’Mar e ainda outras que estarei aqui a esquecer injustamente, para além das editoras mais tradicionais: Assírio & Alvim, Cotovia e Relógio D’Água… Vários destes poetas editam em várias editoras, dependendo do projecto poético do momento ou também da oportunidade, fazendo com que não haja tanto uma linha editorial, no sentido antigo do termo, em que uma editora publica apenas um determinado tipo de poesia ou um modo de entender o que deve ser a poesia. A Douda Correria, por exemplo, e talvez a mais prolífera das novas editoras de poesia, edita até inéditos de autores brasileiros, onde a realidade social, politica e estética é bem diferente dessas mesmas realidades em Portugal. O que parece estar em causa nesta nova atitude editorial é o entendimento de que é a própria  poesia que encontra os seus próprios caminhos, os seus próprios leitores, e não os editores ou os críticos.

Irá fazer no início de Julho um ano que escrevo todas as terças-feiras uma ou duas páginas no jornal Hoje Macau acerca de poesia contemporânea, de autores mais novos do que eu. Autores maioritariamente portugueses, publicados pelas editoras que antes mencionei, mas também já escrevi acerca de autores brasileiros e acerca de um autor cabo-verdiano. Devo dizer-vos, contudo, que não faço crítica literária. Escrevo acerca de cada um dos livros um diálogo que estabeleço com os mesmos. Por vezes, esse diálogo nem sequer é com todo o livro mas tão somente parte desse mesmo livro. Pois há livros que embora possam parecer desequilibrados de um ponto de vista poético, acabam por ser extremamente ricos em matéria de reflexão, tanto de um ponto de vista linguístico quanto de um ponto de vista existencial. E, parece-me, é isso que hoje os editores finalmente entenderam. Aquilo que um leitor de poesia encontra num livro não é o mesmo que outro leitor de poesia poderá encontrar. Não defendo aqui qualquer espécie de relatividade poética, ou de que tudo é válido e tudo tem qualidade. Não. Pois hoje também proliferam as pseudo-editoras que “editam” livros que não têm qualidade. E esta qualidade a que me refiro é visível por si mesma. Porque em verdade, deveríamos usar para a poesia as mesmas palavras que Duke Ellington usou para a música: “There are two kinds of music. Good music, anda the other kind.” (Há dois tipos de música. A boa música e a outra.) E dessa outra poesia não pretendo falar aqui. E acerca da boa poesia, talvez fosse bom deixarmos de lado o pensamento infantil de que há um melhor poeta, de que há uma melhor qualidade de poesia. Como disse recentemente o poeta português Vasco Gato, uma das vozes da boa poesia portuguesa, numa entrevista ao jornal Hoje Macau: “Se há território que não me apetece pisar é o da qualidade poética. Será maior hoje? Serão tempos de mediocridade? Assumo nesse âmbito uma posição cautelar: não estou em condições de o aferir, não é esse o propósito e será a lâmina da história a cortar as goelas que tiver de cortar. Com toda a injustiça, com toda a falência.” Parece, sabiamente, ser também esta a posição dos editores de poesia hoje, em Portugal, das pequenas editoras, ainda que alguns deles possam não se rever nas palavras que aqui pronuncio.

Por outro lado, um dos factores que me parece importante assinalar, em relação à poesia hoje em Portugal, é proliferação de poetas mulheres. Se recuarmos vinte anos atrás, veremos que o número de boa poesia escrita por mulheres cresceu exponencialmente. Deixo-vos aqui alguns nomes, só de poetas até aos quarenta anos de idade, todas diferentes, mas sem dúvida poesia com leitores e com qualidade: Catarina Santiago Costa, Cláudia Lucas Chéu, Cláudia R. Sampaio, Inês Dias, Inês Fonseca Santos, Joana Emídeo Marques, Matilde Campilho, Patrícia Baltasar, Raquel Nobre Guerra, Raquel Serejo Martins, Rita Taborda Duarte, Rosalina Marshall. Evidentemente a estes nomes femininos, de mais jovens poetas, juntam-se ainda outros nomes femininos. Mas os nomes anteriormente citados, 12, e outros faltarão, certamente, mostra bem a mudança registada nos últimos vinte anos.

31 Mai 2017

Vénus terá sido asiática? 亚洲人是彻底的“女尊男卑” (Parte 1)

Raça e atracção

[dropcap style≠’circle’]L[/dropcap]i recentemente uma série de artigos sobre um assunto fascinante. Aparentemente chegavam todos à mesma conclusão: os homens asiáticos encontram-se na base da “cadeia alimentar” sexual, enquanto os homens brancos e as mulheres asiáticas são considerados os “mais atraentes”.  Estas afirmações foram feitas a partir de diversos inquéritos realizados em sites de encontros e também de estatísticas da PEW. Estes dois últimos grupos encontram-se, portanto, no topo da “cadeia alimentar” sexual.

Será que me estou a meter num ninho de víboras?

Contudo, uma coisa tem de ser dita à cabeça. Os websites que mencionei são americanos, por isso uma pessoa não pode deixar de pensar que estes dados talvez tenham sido alterados.  Digamos que, se o website fosse chinês e operasse a partir de uma outra localização geográfica, não me admirava que a conclusão fosse diferente de alguma maneira. Além disso, quais são as mulheres asiáticas? As indianas? As filipinas? Claro que não, o que eles querem dizer, são mulheres do Extremo Oriente, ou seja, chinesas, japonesas e coreanas. Esta é uma temática que conheço bem demais, uma realidade que me parece tão…errada.  E, enquanto me dedico à tarefa de ser eu mesma, como sempre, escolhi alguns títulos que me vão ajudar a mim e aos meus leitores não-asiáticos a concretizar melhor estas ideias.

No livro Mitos Asiáticos: Mulheres Dragão, Jovens Geishas & As Nossas Fantasias sobre o Oriente Exótico, o autor Sheridan Prasso desenvolve a teoria apresentada na literatura de Edward Said sobre o Orientalismo, com um toque de histórias da vida real. Prasso analisa as raízes históricas dos “pré-conceitos” ocidentais sobre o fantástico e o exotismo orientais. Na realidade, poucos são os ocidentais que não vêem as mulheres orientais como um símbolo de sensualidade, decadência, perigo e mistério. Estes estereótipos criados pelo legado ocidental permanecem ícones universais: a servirem o chá, submissas, sexualmente disponíveis, em suma, um misto de Madame Butterfly e de lutadora de kung fu dominatrix. Pois é. E por que é que os brancos não hão-de continuar a ser enganados?

Pois como não sou bruxa fui pesquisar online algumas celebridades sino-americanas. Amy Tan, Connie Chung e Lucy Liu, todas casadas ou a namorar com brancos. Há quem recorra à Hierogamia (união entre deuses e humanos) para explicar este fenómeno: ou seja, as mulheres asiáticas elevam-se socialmente na “perfeição” casando com um tipo que está na moda, e, quanto ao tipo que está na moda, move-o a procura de aventura, de emoções e a necessidade de colorir a sua existência, ultrapassando os limites, o que é muito apreciado na cultura ocidental.

Agora estou provavelmente a meter-me num segundo ninho de víboras: classe e raça.  Altura em que é inevitável examinar um cancro muito antigo chamado discriminação.  Mesmo no fim do último capítulo do livro de Prasso fala-se do modo como a visão oriental das mulheres asiáticas ajuda a perpetuar estes preconceitos. O autor afirma que a percepção adulterada sobre o exotismo asiático, que se tornou generalizada, não é só culpa do Ocidente. De facto, reflecte uma realidade de muitos asiáticos. A dinâmica da estrutura social vigente utiliza a discriminação interna para pré-determinar papeis raciais (ficcionais). É um dos piores mecanismos sociais, um dos mais desagradáveis, mas infelizmente é um facto.

Da próxima vez vamos ver porque é que as miúdas asiáticas são giras. Terá a pornografia japonesa encorajado esta fantasia ariana a ganhar velocidade, montada numa kawasaki amarela? Só preciso de algumas boas perguntas e respostas sobre a “febre amarela” do fetichismo.

31 Mai 2017

Pedro Alexandrino da Cunha | Governador de Macau por 37 dias

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]edro Alexandrino da Cunha nasceu a 31 de Outubro de 1801 na freguesia de Santos-o-Velho, Lisboa e com um percurso promissor de estudante feito no Colégio da Luz, após terminar o curso em 1819, logo iniciou a carreira militar. Assentou praça na Brigada Real da Marinha onde, a 22 de Março de 1821 passou a Alferes, mas integrado nos quadros do Estado-Maior do Exército.

Estudava Matemáticas na Academia da Marinha quando a 30 de Abril de 1824, por ser um convicto liberal, durante a perseguição miguelista foi preso com outros oficiais no Forte de Peniche. Após nove dias na prisão, foi libertado e voltando à Academia terminou o curso, inscrevendo-se logo de seguida na Academia de Fortificação, onde em Julho de 1827 foi promovido a Tenente, ficando no Regimento 13 de Infantaria. Devido a D. Miguel ocupar a Coroa de Portugal em 1828, Pedro Alexandrino da Cunha emigrou, como tantos outros oficiais, para Inglaterra. Encontrando-se Portugal dominado pelos absolutistas, ocorre uma guerra civil, estabelecendo os liberais o seu quartel-general na Ilha Terceira, nos Açores. Para aí seguiu Pedro Alexandrino a reparar as fortificações e integrar o governo liberal da Terceira e onde na Batalha da Praia em Janeiro de 1829 os realistas são derrotados. Ingressou na Armada em 1831 e rapidamente subiu de posto enquanto vai comandando alguns navios de guerra. Preparou no Porto a chegada de D. Pedro, que regressava do Brasil para lutar contra o irmão D. Miguel pela Coroa, organizando aí as guarnições ligadas à Marinha. Na arrojada expedição ao Mindelo veio ele igualmente, fazendo parte da esquadra libertadora, comandada pelo Vice-Almirante R. G. Sertorius.

Após a vitória dos liberais em 1834, Pedro Alexandrino da Cunha navegou até ao Brasil e seguiu depois para África, onde passou cinco anos. Mais tarde, a 6 de Setembro de 1845 tomou posse como Governador de Angola, ficando com o posto de Capitão-de-Mar-e-Guerra. Encontrava-se no Brasil, numa missão comercial, quando por decreto de 5 de Novembro de 1849 foi nomeado para o cargo de Governador de Macau, altura em que fica a saber ter o seu amigo, o Capitão-de-Mar-e-Guerra João Maria Ferreira do Amaral sido assassinado pois, esse decreto também exonerava o Capitão Feliciano António Marques Pereira do Governo interino de Macau, que substituíra o falecido Governador.

Após Ferreira do Amaral (1846-1849), Pedro Alexandrino da Cunha viria a ser o segundo Governador-Geral de Macau pois, pelo decreto do Governador da Índia, José Ferreira Pestana (1844-51), em 20 de Setembro de 1844 dera-se a criação da Província de Macau, Timor e Solor. O Governador dessa nova província ficou independente da jurisdição do Governo de Goa, que deixava de o nomear, passando ele a residir em Macau, e Timor, com Solor, tinha um governador seu subalterno.

Ataque de cólera

Como Governador, o Capitão-de-Mar-e-Guerra Pedro Alexandrino da Cunha, desembarcou em Macau a 26 de Maio de 1850 e tomou posse a 30 deste mês. Após um mês de governação, “com a tomada de uma porção de neve (gelados de creme e de limão e em seguida geleia e whisky)” a gastrenterite crónica de que padecia agravou-se. Tomás José de Freitas auscultou-o pela primeira vez a 5 de Julho e tratou-o durante a doença, mas esta “degenerou num fulminante e insidioso ataque de cólera, que, dentro em poucas horas, o privou inteiramente de vida.” No relatório do Serviço de Saúde de 1862, o Dr. Lúcio Augusto da Silva escreveu: “A doença do Governador Pedro Alexandrino da Cunha começou por abundante diarreia, vómitos, sede, ansiedade e abatimento geral. O facultativo assistente observou na sua primeira visita: prostração, voz rouca, vómitos e dejecções de um líquido escuro e fétido, pulso filiforme, suor copioso e frio, resfriamento nas extremidades e dores nos joelhos. Mais tarde teve o doente dejecções de líquido amarelo claro, turvo e inodoro, resfriamento pronunciado e quase geral, lábios arroxeados, sede ardente, língua esbranquiçada, pouco húmida e não fria, dor intensa no epigastro. Depois supressão de evacuações, excepto a urinosa, pulso imperceptível, voz rouca, palavra difícil, conservando porém intacta a inteligência, olhos encovados, pálpebras entreabertas, feições alteradas, sem contudo ocultar de todo a fisionomia; finalmente suores viscosos, respiração curta, cianose em diferentes partes do corpo, sendo mais pronunciada nas mãos e nos pés, alguma magreza e o estado rugoso da pele, foram os sintomas que completaram aquele quadro e que o acompanharam até o fim da existência. Estes sintomas e muitos casos que então apareceram com eles fazem acreditar que houve efectivamente uma epidemia de cólera-morbus em Macau no ano de 1850.” Mas porquê esta dúvida?

Num opúsculo sobre <Pedro Alexandrino da Cunha>, o autor Joaquim Duarte Silva diz <que a morte súbita de Pedro Alexandrino despertou desde logo, em Macau, suspeitas de que ele fora envenenado>. Tal tese devia-se ao pouco conhecimento da existência em Macau de casos de cólera, que começaram a grassar na cidade nesse ano. O seu cadáver foi autopsiado por cinco cirurgiões militares e da armada que no relatório descreveram minuciosamente todas as lesões anátomo-patológicas, classificando a doença de gastroenterite. O relatório da autópsia termina: <A causa da morte seria simplesmente gastroenterite ou, concorreria também alguma influência meteorológica? Não sabemos! Contudo é possível admitir-se a existência de alguma causa especial que actuasse na produção dos sintomas mais graves, que ao mesmo tempo dirige a sua influência sobre muitos indivíduos, atendendo a aparição de três casos quase análogos a este, que tiveram a mesma terminação, e de outros muitos que têm continuado a aparecer com sintomas tão graves e que não têm sido fatais>. O Dr. Peregrino da Costa em Relatórios das Epidemias de Cólera de 1937 e 1938 refere, <Estas considerações dão a impressão de que estando-se em plena epidemia de cólera, embora no seu início, como mais tarde se veio a confirmar, os médicos da época – os cinco cirurgiões militares e médicos da armada que assinam o relatório da autópsia e no qual aliás as lesões anátomo-patológicas são minuciosamente descritas, ou não quiseram aceitar logo a evidência dos factos, para não atemorizar a população já alarmada com o assassinato de Ferreira do Amaral, ou pretenderam então afastar, por razões políticas, a ideia de o Governador ter sido vítima de cólera>.

Governador de Macau por 37 dias, Pedro Alexandrino da Cunha faleceu com 48 anos de idade pelas três e meia da tarde do dia 6 de Julho de 1850 e foi uma das primeiras vítimas da epidemia de cólera, que grassou na cidade. Sepultado no Cemitério de S. Paulo em Macau, segundo o Padre Manuel Teixeira, é “provável que os seus restos mortais fossem removidos com outros para o Cemitério de S. Miguel, construído quatro anos depois, mas hoje desconhecesse o local onde eles repousam.” Pagas as dívidas do finado e deduzidas as custas e despesas legais, o produto líquido dos seus bens foram introduzidos no Cofre da Fazenda Pública de Macau.

Se em Macau Pedro Alexandrino da Cunha não teve tempo para governar, ficam os seus relevantes serviços prestados a Angola como Governador-Geral, cargo que exerceu de 31 de Maio de 1845 a 18 de Fevereiro de 1848, a justificar a sua estátua na cidade de Luanda.

26 Mai 2017

Karadenis (continuação): “Não se pode andar a trabalhar carregado de ódio”

E quais são os factos, Karadeniz?

Os factos são o ódio que passei a ter aos animais, por causa da minha mulher. A minha mulher gostava mais de animais do que de pessoas, especialmente gatos. O seu amor aos animais era inversamente proporcional ao amor pelas pessoas: quanto mais se aproximava dos animais mais se afastava das pessoas. Os animais, especialmente os gatos, eram quase tudo para ela. Pôs a casa cheia de gatos. De tal modo que se tornou impossível viver nesta casa. O cheiro dos animais, dos seus excrementos, das suas diferentes comidas. Divisões da casa fechadas com animais que não podiam misturar-se com os outros. Enfim, um inferno para um ser humano. A sua afectividade sempre foi mais extensa e efectiva para com os animais do que para comigo. Era uma vida frustrante, a minha.

Não sabia dessa afeição da sua mulher pelos animais, antes de casar?

Não sabia que era tão grave. Não era apenas afeição, era uma obsessão. Levava os gatos da rua para casa; saía todas as noites para alimentar os gatos da rua à volta destes quarteirões. Enfim, tratava dos gatos como não tratava de mim, nem dela, nem, mais tarde, do seu próprio filho. Não tenho dúvidas de que amava o filho, mas o filho não era gato, nem cão, nem pássaro.

Ela amava-o a si?

Julgo que sim, mas de um modo bastante distorcido, pois era incapaz de demonstrar o seu amor. Incapaz de me acariciar o rosto ou o corpo como o fazia aos animais, por vezes horas a fio. Aos poucos, afastou-se da comida. Começou a comer como um pássaro: sementes, vegetais, arroz. Passou a não comer, nem peixe, nem carne. Não comia animais. Por outro lado, eu ia ganhando um ódio irreversível aos animais, especialmente aos gatos. Eu que até aí tinha vivido de matar pessoas, comecei a não conseguir fazê-lo mais. Comecei a querer salvar as pessoas, a salvá-las dos gatos. A minha mulher saia para cuidar dos gatos e eu para matá-los. Muitas vezes cheguei a disparar deste terraço para tudo o que era gato que se mexesse aqui à volta, nos telhados ou lá em baixo nas ruas. Matar os gatos era um modo de repor a justiça no mundo. De repor a afectividade de novo nos eixos, a afectividade de novo nos humanos.

Porque é que não se separou simplesmente dela?

Porque havia sempre a esperança de que a situação mudasse; havia a esperança de que ela ainda pudesse transferir a sua obsessão pelos gatos para um filho, assim que engravidasse. Mas não foi nada disso que se passou. Depois, aos poucos, sem dar por isso fui ficando doente. Um dia percebi que odiava de morte os gatos e que havia de passar a viver para os matar, para os fazer sofrer.

Então essa é que é a verdadeira razão para ter abandonado a sua actividade profissional tão cedo?

É! Não se pode andar a trabalhar carregado de ódio. Não se pode matar pessoas estando doente. Ou era os homens ou os gatos! E os gatos tornaram-se uma obsessão impossível de ultrapassar. O último trabalho que fiz, em 1966, já foi o focinho de um gato que vi na mira da arma e não o rosto de um homem. Assim, não era possível trabalhar. Mais tarde ou mais cedo iria falhar. Mais tarde ou mais cedo a raiva e o ódio iriam deitar tudo a perder.

Quando e onde é que conheceu a sua mulher?

Conheci a B. em Londres em finais de 1962.

Por conseguinte, ainda antes do trabalho em Dallas!

Sim! Mas durante esse ano encontrámo-nos apenas quatro ou cinco vezes e não vivíamos juntos. Aliás, nesse ano julgo que nem sequer cheguei a ir a sua casa.

Que idade é que ela tinha e como é que se conheceram?

Ela tinha 24 anos, eu tinha 36 e conhecemo-nos numa loja onde ela trabalhava. Entrei lá para comprar uns discos de jazz. Apareci lá passados três dias e convidei-a para beber café. Depois é o que sempre acontece.

Ela vivia sozinha, em Londres, com o ordenado de empregada de loja?

Vivia, mas não era com esse ordenado. A B. era uma mulher muito especial. Tinha tido uma educação tão privilegiada quanto a minha e havia-se formado em Literatura Inglesa. Mas recusou continuar a estudar ou dar aulas. O dinheiro dela vinha de uma herança de família. Aos 21 anos herdou a parte que lhe cabia da morte do pai, quando ela ainda só tinha 12 anos. Trabalhava naquela loja porque era a loja de uma amiga, porque gostava de jazz e porque o tempo em que lá estava não deixava que a sua cabeça se ocupasse com pensamentos mórbidos, que usualmente a assaltavam.

Era bonita?

Era lindíssima, mas não acreditava que fosse. Vivia como se fosse uma rapariga feia e desinteressante, que nada tivesse para dizer a quem quer que fosse. De cada vez que a elogiava, reagia mal. No início, tem o seu encanto, mas depois começa a atingir o nosso próprio juízo de gosto.

Quando é que se casaram?

Casámo-nos no Verão de 1964. Por essa altura já eu tinha conhecimento da sua obsessão por gatos, mas sempre julguei que o casamento alterasse isso e que a mudança para Istambul também tivesse um efeito semelhante. Decidimo-nos por viver aqui, porque era melhor para os meus negócios. (pausa) Sabes que houve um homem que não morreu por causa do meu ódio de morte aos gatos, Paulo?

Como assim, Karadeniz?

A seguir ao meu último trabalho de que te falei, que vi o focinho de um gato em vez do rosto do homem, fui contratado para um outro serviço, que acabei por rejeitar fazer, por causa do que se estava a passar. O Jesuíta não estava disponível, eu sabia disso, e acabaram por contratar um inexperiente que acabou por ser apanhado antes de ter realizado o seu trabalho. Depois disso, desistiram completamente, para evitar problemas maiores com a Interpol. Ficaram escaldados. Mas o interessante desta história é que se fosse eu a fazer o trabalho esse homem teria sido morto e, assim, acabou por viver. Tudo pelo meu ódio de morte aos gatos. Tudo pelo amor enorme da minha mulher pelos gatos. (pausa) Meu amigo deixa-me dar-te um conselho: se queres continuar a escrever, não te cases!

Como é que a sua mulher morreu?

Morreu num desastre de viação. Um jovem bêbado foi bater com o seu carro contra o dela. Parece que foi morte imediata.

Em Londres?

Sim, nos arredores de Londres.

E o seu filho, passou a viver consigo?

Não. O T. já estudava nos EUA. Regressou para o funeral e para aquelas questões chatas e práticas das heranças, mas partiu logo de seguida para a América.

O que é que ele estudou na América?

Economia, finanças, gestão… esse tipo de coisas.

(continua)

26 Mai 2017

Meio da tarde, ponto nenhum

[dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]eio da tarde, ponto nenhum no mapa conhecido. Tempo indefinido e pessoa vaga. A luz em tudo. É o que é mais do que em outros dias. A luz por excesso como uma camada espessa de silêncio.

A querer escrever aqui, escrevendo, sem palavras. Hoje estou assim. Ou procurar as imagens possíveis em tonalidade musical, que se somem às palavras e ao silêncio das palavras como só aí é possível. Preferia ser compositora a usar estes utensílios letais. Hoje estou assim. É isso. Já tentei as cores mas nem sempre me acontecem. Cores limpas, transparentes e claras. Mas nada serve a esta luz crua e a este sentir leve. Denso. Tantas vezes. As cores nas palavras. Mas há sempre qualquer coisa fugidia. Qualquer coisa proibida que se escapa e ensaia na dança vertiginosas mentiras. Por querer ou sem ele. Como se fosse por amor ou sem ele. Como se fosse indiferente. Que loucas. Desvairadas, mesmo. Mas como dizer letal sem dizer veneno e armas…anjos carrancudos e infantis a mastigar pastilha elástica. Furiosamente e também eles fustigados no calor da tarde. Coisas cépticas.

Quando os dias me aparecem de repente como montanhas íngremes a escalar obrigatoriamente e me lembro daquela subida a pique às costas do besouro cor de pérola e com quatro olhos. E como me deixava apeada a meio, bem a meio da subida. E o monte da fortaleza ficava até novos desenvolvimentos de fortaleza inexpugnada. Pesavam-lhe o rabo, a carapaça e os costados curvos e calvos. Pesava-lhe o motor de vida atrás, que fazer? Senão deixá-lo agir no seu peso bruto a puxar para trás e curvar ligeiramente para que durma confortável na beira. Não há quem vença a inércia de um motor que se recusa se o caminho é a subir. Que mais valia termos subido separados e encontrado os dois lá em cima. Mas não, não se faz isso.

Mas hoje, ontem – bem, não interessa – procurar o bicho enorme no seu silêncio de cidade. E no meu e também ela um. Não há como contornar a dor senão neste desapego de sentidos. Como uma esquina indiferente. Numa visão microscópica do dia. E surpreendentemente passo por um enorme casarão que toca música. Sozinho na rua deserta. E era, afinal o conservatório de música. Como muito bem sabia num outro momento antes e depois daquele. Em que ali estava, casa grande e distraída de gente, e sem ninguém a dar corda à chave daquele relógio concebido para tocar horas num ritmo livre e lírico. Fantasio, que é bom.

Aquela subtil trepidação. Uma tremura tão quase invisível, mesclada do sorriso esfíngico por não se estar a lembrar um icebergue estético a atravessar tempos através dos tempos. E do silêncio aparente a um olhar desprevenido, faz-se um indistinto murmúrio que vem do mistério do tempo sem tempo de uma imagem. A imperfeição topológica da paisagem a lembrar-nos numa jangada batida de ondas, balançada. Não pelas do mar mas aquelas concêntricas e suavemente marulhantes em círculos perfeitos em torno do lugar líquido onde caiu uma pedra. O erro da linha do horizonte partida a lembrar como se é humano, precariamente humano e atingível. Como falhamos o momento do olhar e do outro olhar. Não sendo estáticos, nós e este. E tudo isso a lembrar do invisível. Do excesso dos sentidos. Da inconsolável exasperação dos dias ruidosos. Deste desejo imenso, intenso, de viajar, e de repente. E de repente, assim. Um simples recanto do mapa conhecido da cidade do costume, um simples abandono, à hora a que o encontro, como se estrangeiro no mapa e na topografia de tantos passos desfiados ali. Basta o silêncio mesmo num lugar desarranjado. Até a distracção desleixada e esquecida de uns papéis amarrotados no chão, como nós, às vezes. E o sol inclemente de quase verão. Este sol ensurdecedor a arrasar tudo o mais e a apagar como se de nódoas de tintas impertinentes, outros ruídos. Com esta possibilidade intrigante de tudo anular na crueza da temperatura. E o meio da tarde. E uma veia deste bicho-cidade, um pouco esquecida da circulação. E um banco. E um cigarro de tabaco demasiado seco como na praia. E o meu ser parado com tudo o resto a voltear suavemente embalado deste nada diferente. Bom. Três invisíveis centímetros – só três – de liberdade. Face voltada de través à gravidade da terra, à gravidade da vida feita e desfeita. Tudo fantasioso, a bem dizer. E por momentos a cidade é estrangeira em mim tanto como eu nela. E às vezes, simplesmente desenhos de fotografias de memórias de paisagens de viagens. Imaginárias. E chega. Desenhar com ou sem palavras para povoar o meu mundo de caminhos. De presenças e de ausências. E na tipografia desconhecida desta calçada, a estranheza de uma língua também desconhecida por momentos, a poupar sentidos, resumida a sons musicais. Quase. O desconhecido e o do silêncio necessário. A senti-lo chegar. Naquela reentrância abrupta de uma rua. Uma fonte parada do fluir do tempo nas águas que seriam circulares e assim, não. E um banco. De costas para tudo o resto. É assim que o tempo pára. Mas nunca retrocede.

Sim, aquela reverberação quase invisível que era preciso somar às palavras tão brutais tão cruas para atingirem os lugares certos e não ao lado, ao lado. Ficando na bruta insuficiência de dizer verdade. Incompleta incompreensível verdade mentirosa por pequena. As cores, as cores sem simbologia mas pura sensação. As suaves as embaladoras as subtis as que não doem no doer necessário mais do que isso. A cor de verdade. Ou talvez a voz. Ou melhor ainda a música. Que nunca fere nem engana. Diz sempre outra coisa. Do coração. Ouvir do coração.

O que procuro nestes dias de viagem senão o subtil que se derrama do óbvio, se retido todo o ruído lateral. O invisível, mesmo. Mesmo o invisível não visível mesmo. Mesmo o que não está. Às vezes sofro de excesso de sinais. O mundo a parecer falar por linhas tortas e travessas. Chega, o que é demais. Portanto, parto. Atravesso um quarteirão e com sorte o mundo. Conhecível. Como uma meditação zen, na azáfama desesperante das perplexidades e das perguntas infantis. Das certezas nos erros e nos erros das certezas. E intermutáveis incontáveis variantes. E querer somente um momento de hoje, aqui agora, e estou. Num recanto da cidade desconhecida. De sempre. A um quarteirão ou na pior das hipóteses, dois. Daqui. E é assim que no momento algo de impreciso, também trepida e tremeluz alguma coisa em mim e por dentro. Não, não o corpo mas uma memória impraticável e subliminar como metáfora. Talvez. Algo se conforta no silêncio desconhecido e ancorado no vazio de um qualquer fio cronológico. De um qualquer mapa de estradas interiores. De um qualquer GPS de pouca confiança.

E, como poisando a cabeça de lado ao rés da água, a contemplar os círculos calmos e sem reflexo humano mas tão somente o céu. Que está acima. Essas pequenas grandes coisas que trazem plenitude. É quando em mim o bicho enorme adormece. Ou não sei. Talvez por isso. Sentado ao lado, talvez um metro além. Descarnado do labirinto. Inundado daquela luz crua também ele, extenuado de trevas, é claro calmo e silencioso. Com os pequenos brilhos da cidade sobre o pêlo macio, suave e lustroso. E é quando o monstro sem dar por se ter aproximado, como por magia, poisou a cabeça e serenou. No colo. Com todo o peso diluído na respiração suave. Meio escondido na cegueira da luz. Pequenos rugidos de ferocidade latente mas em tonalidade onírica. Sem saber poiso a mão escondida, descansada e ávida nos intervalos. Daquela respiração ou talvez meus. Da alma em ligeiro e leve alvoroço. Talvez a bonança em mar alto. Mas não sei quando aconteceu. Se já se ainda ou se talvez não. Ou nem ainda nem já nem já não. Só uma espécie de verdade. Os tempos dão estranhas reviravoltas na crueza desta luz a cegar. De frente para trás. Ou de agora em diante. Sempre às voltas com os tempos de Borges. Difíceis de  distinguir nas cores do sonho.

26 Mai 2017

Orpheu e Salvador

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]s mitos órficos são suficientemente carregados de simbolismo para que se retirem deles ilações e não raro aspectos factuais a um determinado momento da vida colectiva ou individual. Se numas temos a bravura indómita de por amor descer aos Infernos para resgatar o que temos de melhor, noutras tangemos a nossa lira na esperança de não sermos despedaçados pelas feras que tantas vezes se abeiram dos nossos caminhos não raro carregados de mistérios. Por outro lado, é um mito pleno de altruísmo: ajudar os outros mesmo que o próprio seja deficitário ou frágil nessa marcha e com ela as «ménades» que nos dilaceram na jornada. Mas ele dá-nos também aqueles longos planos em que nos debatemos entre andar para o futuro e olhar para trás, em sabermos acreditar numa medida até ela ser cumprida e estarmos fora do espectro e da influência da descrença e da dúvida, que neste mito nos indica o fim do sonho que nos seguia sem vermos. Andar sempre e confiar, o que não sancionará a nossa mortalidade e as grandes coisas que entretanto fomos perdendo como se de sonhos desfeitos se tratassem e no tempo que nos resta também elas ficarem contempladas pelos danos sofridos.

Neste surpreendente mês de Maio, Salvador aparece-nos colectivamente como um arauto deste mito, também messiânico, sem dúvida, na aparição de um «desejado», pois que há nele um grande encantador de feras pela forma requintada de acalmar o turbilhão dos sentidos e os movimentos carnais e carnívoros que se dançam na nossa frente sem que reparemos nessa extrema abundância de fluxo. Ele tem nas mãos o tanger da lira, na voz apenas água, e deixa uma proposta de como o amor é bem mais abrangente que a luta de poderes ou uma qualquer bem orquestrada causa-efeito: se quisermos amor transformemo-nos nele! O turbilhão do mundo pára, a humana tempestade amaina, acalma, e entra por esta fina e estreita melodia que em recitativo se perfaz como que encantada e mais macia, uma graça infinda.

É talvez destes gestos tangentes às liras, desta compostura ritualística que os próprios deuses nasceram e se no « Cântico do Irmão Sol» Francisco tudo anima de íntima harmonia é porque estamos face a uma natureza animista e mística que recobre de sentido ontológico todas as formas de manifestação. Salvador também parece levar uma proposta a esta altura e nas suas vestes negras, olhos grandes e gestos de menino, convida-nos aos lagos onde brotam os arquétipos intocáveis da nossa mais funda memória. Um país transfigurado que se desoculta de uma roupagem grosseira onde confiou uma natureza quase amortalhada que lhe roubou a identidade mítica e a natureza dos sonhos, um local onde ao olhar para trás, só viu morte, e quando desejou seguir em frente se travestiu de caricata roupagem para neste caso agradar às feras. E eis que, numa manhã ou numa noite sebastiânica, o postigo se abre para deixar passar o que somos de essência peregrina: o romeiro, o asceta e o amante.

Orpheu era de uma tribo de marinheiros, os Argonautas, e o seu papel na travessia marítima consistia em desviar os perigos. Era frágil, sem configuração para remador, cantava durante o tempo em que as sereias queriam seduzir os marinheiros, acalmava as tempestades e amainava os mares. Dizem que eram melodias tão suaves que as próprias feras o seguiam e ultrapassava em doçura até as feiticeiras, esconjurando o mal pela sua voz. Foi ele a vela do Argos, o sacerdote ao serviço da missão, e foi a serenidade do canto que o fez líder da jornada, um salvador, um emblema branco e jovem carregado de esperança que em nós se transfigura numa alusão messiânica que por acasos tão súbitos somos levados a reflectir para além da objectividade dos factos.

O orfismo era um exercício de aconselhamento mas não creio que se possa aqui aplicar qualquer concelhia. No entanto, talvez a proposta de um paradigma aparentemente tão novo seja o convite a uma tomada de consciência que está perturbada por tanto ruído que certas vibrações são já impenetráveis. Para esses, sem dúvida que será uma perda irreparável não podendo ser reposta pelo cardápio dos sons, mas os que gostaram e também não sabem porquê, talvez haja aqui alguns elementos de elucidação. Simples, para não perturbar a beleza primeira. Mas nós somos Eurídices, a esta hora alguém já olhou para trás para certificar se existimos, e nesse esclarecimento duvidoso, aos poucos desaparecemos, como convém, aliás, a quem está sujeito a escrutínios, mas nem por isso a um momento nos olhámos como se de novo existíssemos no coração de todos e, mais importante ainda, daquele que nos resgatou por instantes aos Infernos por onde sem que o compreendamos andámos tão laboriosamente mergulhadas.

E porque estamos em Maio e Orpheu era frágil e foi dilacerado, as musas reuniram os seus pedaços e os enterraram, aí, desde então, as aves cantam mais suavemente do que as outras, e ouvem-no ainda sussurrando à sua amada Eurídice: canta pelos dois. Cantou para a encontrar.

25 Mai 2017

Aragens & Divergências

20/05/2017

[dropcap style≠’circle’]N[/dropcap]um maravilhoso livro de entrevistas o idoso Marcel Conche, provavelmente o exegeta dos pré-socráticos em França, confessa, aos 80 anos, que o encontro intelectivo com uma jovem mulher aos 78 anos abriu brechas na sua vida de sage.

Ela, pouco afeita às venerações académicas, chegara aos pré-socráticos por via do Oriente e procurava relações de parentesco entre os feixes conceptuais da filosofia clássica e os do sufismo e do taoísmo, que conhecia de forma erudita. O abalo foi grande e Marcel Conche, que se pensava jubilado e à beira do elevador que lhe alçaria directamente a alma ao sétimo céu, descobre-se aos 80 anos com faltas de ar e a estudar o sufismo e o taoísmo com o afinco dos vinte, para uma revisão implacável das pautas e do repertório adquiridos por décadas de estudo. Anos depois, após esforçar-se no chinês e no taoísmo, Conche lançaria um livro sobre Lao Tse. Imagine-se a energia que pode ter alguém com o ímpeto para aos 78 anos se lançar na aprendizagem do chinês e surfar entre nuvens no Lao Tse!?

E eis uma filosofia à procura de si mesmo, sem parapentes, que não teme lidar com as lacunas e dúvidas em que a despenham as aporias do impasse.

Pode a literatura ter menos honestidade? Pedir menos coragem? Vitorino Nemésio, Luis Lezama Lima, Jaroslav Seifert, Ted Hughes, ou Zbigniew Herbert não empalideceram com a idade e escreveram obras notáveis naquele que para muitos é um período de senectude.

Há que nos libertarmos do «complexo Rimbaud». O que importa é – cientes de ser a arrogância, como dizia Tchekov, uma qualidade que fica bem aos perus – avaliar a parcela de verdade que cada homem aguenta. Quanto menos auto-indulgência mais possibilidades se abrem de tornar-se mais extenso o arco da sua fecundidade poética.

Vem isto a propósito de uma figura deste jaez que aterrou aqui em Maputo e que proporcionou um diálogo de alta voltagem sobre “Literatura, Cultura e Identidade”, com um parceiro local e igualmente um excelente escritor, o João Paulo Borges Coelho. Falo de Helder Macedo.

O diálogo foi uma aragem que entusiasmou todos os presentes na sala do Instituto Camões. Eloquência, espontaneidade, conhecimento e um elegante curto-circuitar dos estereótipos sobre os temas em presença, precederam a abertura do diálogo ao público, que terminou em contágio e em semi-levitação e até a interrogar aspectos que são tabu para a terra.

Helder Macedo demonstrou porque na viragem para os oitenta lançou três dos seus melhores livros – Tão longo amor, tão curta a vida, romance, Romance, poesia, e Camões e outros contemporâneos – e promete não parar na sua “desmedida”. O Borges Coelho, o escritor moçambicano que prefiro, cortês e vivaz, foi um bom parceiro nesta viagem.

Este debate, a pretexto da diversidade cultural no centro das convergências linguísticas, foi apoiado pela Gulbenkian – representado pela doutora Helena Borges -, e trouxe igualmente a Maputo outra figura, Elias José Torres Feijó, um filólogo galego, que actualmente é professor titular de Filoloxía Galega e Portuguesa na Universidade de Santiago de Compostela (USC), onde dirige o grupo de investigación GALABRA (que trata dos sistemas culturais galego, luso, brasileiro e africano de língua portuguesa) e preside à Associação Internacional de Lusitanistas, e a cuja palestra infelizmente não pude existir.

Mas qual o sentido de falar-vos disto?

Ē que esta mesma equipa, incluindo desta vez na comitiva o Borges Coelho, deslocar-se-á a Macau, em Julho próximo, para novos actos de prestidigitação e para exercer a inteligência com as suas artes de Cícero. Os macaenses que se previnam!

23/05/2017

Escreveu Andy Warhol, em 1975: “O bom deste país é que a América começou a tradição pela qual os consumidores mais ricos compram essencialmente as mesmas coisas dos pobres. Podes estar a ver televisão e ver a Coca-Cola e podes saber que o Presidente bebe Coca-Cola, Lyz Taylor bebe Coca-Cola, e pensar que tu podes beber Coca-Cola. Uma Coca-Cola é uma Coca-Cola e nenhuma quantidade de dinheiro pode brindar-te uma melhor Coca-Cola do que a que está bebendo o mendigo da esquina. Todas as Coca-Colas são iguais e todas as Coca-Colas são boas”.

Suspeito que o inferno climatizado em que, neste momento, se vive nos States começou nesta pequenez (esperemos que ao menos Warhol tenha recebido algum dinheirinho da Coca-Cola para exibir um “raciocínio tão elaborado”), que à altura parecia, paradoxalmente, uma mensagem de verdadeiro afã democrático.

Alguma arte começou a baixar os braços com a Pop Art que, apesar da legitimidade dos seus melhores elementos, abriu a caixa de Pandora mediante a qual um vendaval de lixo tonitroante invadiria o mundo, segregando uma tendência à uniformização e ao homogéneo que fez da universalização do consumo uma celebração sem restrições ao mesmo.

O resultado foi a pós-verdade e o botãozinho em que Trump carrega para ver chegar o mordomo com a sua Coca-Cola (gosto que divide com o Red Bull).

Como preveniu Adorno, o ganho com a “industrialização da cultura” tem por creme uma trivialização que envenena.

Trump é o expoente de uma educação calibrada pelos valores da cultura de massas, reduzida a níveis tão baixos que beber uma Coca-Cola ao meio-dia da tarde representa uma espécie de turismo da “ialma”, sendo o epítome da inconsistência que tem a sua expressão na forma airosamente espectacular como hoje se confunde o público e o privado. Daí que pareça normal ao casal presidencial americano ir a Israel exibir em público as suas desavenças.

Até gostei da atitude da Melania quando, vendo que o marido lhe dava a mão só para imitar o outro casal, lha sacudiu, rejeitando a mentira, a hipocrisia.

O problema é que aquele cenário não era o do Big Brother. Ou era? Fétido o clima. Parece que a negociata das armas foi boa – mas virá primeiro o impeachment ou o divórcio? Aceitam-se apostas.

25 Mai 2017

Afinar os acasos

Horta seca, 15 Maio

[dropcap style≠’circle’]H[/dropcap]á muito que deixei de ser dono da agenda. Fico quedo a mirar o animal indomável, a afastar-se da minha vontade, a rir dos meus desejos, a desprezar as minhas necessidades. Faz-se bruta de granito, mas esperneia como potro, rasga que nem tigre, apaga-se qual camaleão. Em resultado, levo ao limite a paciência de uns e outros, esbanjo oportunidades, falho com estrondo, descumpro, atiro guloseimas ao monstro da ansiedade dos autores e, pior, saboreio talvez menos o âmago do instante. Por acaso, a vida não quer ser arrumada. Por acaso, preciso arrumar a minha vida.

Horta Seca, 16 Maio

Reparem bem: no fundo negro, boiando por entre linhas brancas, estão quatro figuras reduzidas ao mínimo denominador comum de cabeça, par de mãos, dois pés. Por timidez, André [da Loba] não se incluiu na capa deste «No Precipício Era o Verbo», ideia da qual passou a fazer parte ao trazer a ilustração na vez de voz ou instrumento. (Nota a desenvolver no futuro: Da Loba vem compondo, até nos trabalhos que resultam de encomendas, uma gramática sensível de formas e cores, um corpus de formas que vai muito para além da prática sanguínea da ilustração). Acrescentou maravilhoso hibridismo ao projecto de poesia dita em palco, com coreografia de silêncios e afinamentos, sempre com o contrabaixo do Carlos [Barretto] a fazer de cenário, mas que intervém, que comentta, toma corpo de actor. Na preciosa companhia da Dulce [Cruz], André ouviu cada voz, perseguiu o contrabaixo, abriu as entranhas a cada verso, dos densos e dos soltos, navalha e nuvem: «há sangue arterial no abate diário do sol» (ilustração correspondente em grande). Aos momentos, um por um, aplicou cadências, desenvolveu imagens elegantes que prolongam o dito, o sussurrado, o cantado, o gritado. Interpretam e criam. Os quatro ventos confluem e empurram os bailarinos que percorrem as subtilezas da cor, omnipresente em contrabaixo contínuo. Esta sucessão delicada e enérgica de palavras e imagens, antes do cd que acrescenta o som e a voz, não reproduz nem comenta o espectáculo, até agora a forma cabal de sentir a experiência, antes o amplia e reflecte. Bailarinos que dizem e tocam ao espelho. Este livro fez-se tão mais que isso!

Convento da Trindade, Lisboa, 17 Maio

Dou uma saltada ao Festival do Clube de Criativos, uma festa do engenho mais ou menos aplicado. Éramos recebidos pelo jornal «Anúncios Classificados», afinal exposição portátil que recolhe «grande seleção de anúncios ilustrados pelos melhores artistas portugueses (1895-1960)», feita pelo Jorge [Silva] a partir da sua inesgotável colecção, e que continuará, em breve e de outros modos, a suscitar exclamações de surpresa ou raiva. Sendo o algoritmo, resulta refrescante este flic-flac à rectaguarda. Mas o assunto era deliciosamente apresentado, não sem nostalgia, na exposição comissariada pelo Ricardo [Henriques], «Os clientes que gostaram deste produto também gostaram de…». Se os «meandros algorítmicos da comunicação estão a transformar os computadores em pequenos ditadores que dizem às marcas como vender e às pessoas como comprar», porque não recuperar a «informatável natureza da criação». E vimos «menos html e mais pincel» no painel de azulejos da Susana [Carvalhinhos] e no jingle do Tiago [Albuquerque]. Até ao terraço dos encontros e das cervejas à borla (ai, Lisboa dos ais), ainda aconteceram experiências do ver com as fotos red&blue do Sal [Nunkachov] ou, na Ilustra33, toda dedicada a cartazes, o do João [Maio Pinto] para o Sabotage, cuja abstração me toca. Aliás, por acaso, o Carlos [Guerreiro] atirou-me aos olhos o mais recente caderninho do exuberante projecto «Chapéu» (www.chapeushamuitos.com), cuja capa luxuriante, orgânica, barroca pertence ao João. It’s Alive. Por vezes, os jardins dão-se onde menos se espera.

Guilherme Cossoul, Lisboa, 18 Maio

Hesito entre preocupar-me ou celebrar. Tem acontecido muito, por estes dias, o pensamento em voz alta atirar-me para o modo fascínio do espectáculo. Voltou a acontecer no tardio lançamento, acolhido pelo Reverso 3, da tradução do mano António [Castro Caeiro] das «Odes Olímpicas», de Píndaro, com a marcante apresentação de José Pedro Serra, pelo que disse e no como disse. O encontrão começou antes, logo ao jantar, e entrou noite dentro com conversa e poemas ditos, nem sei mesmo se, ali na circunstância, outros nados e logo regados. Riso e comoção dançaram por ali até altas horas. Defendamo-nos: talvez a ventania que perpassa tenha apenas a ver com a Grécia antiga, que o ofício seja de incorpóreas arqueologias, não se aplicando ao que queremos para os nossos dias, quotidiano triste do olhar para tudo sempre da mesma maneira. A ideia de destino, refrão de fado, sulco marcado no para além do tempo e do qual nenhum humano se poderia afastar sem atrair a fúria divina não passa, afinal, de confortável falsidade. Para o grego, uma afinação de acasos pode resultar num destino, naquele destino, um destino só nosso. Precisamos, para tanto, de extrema atenção ao que nos surja. Ora, a poesia ajuda a ler cada momento, por banal que seja. O poeta tem a festa como dever ético, que a celebração define o perfil do herói, enquanto fornece acessos, vias, escapatórias. Se para tudo se pode encontrar sentido, não há absurdo na Grécia Antiga. Nas ilhas não havia becos sem saída. Se até o mar se faz horizonte… Depois, temos que amar o nosso próprio destino. Por um instante, achei que vivia.

Horta Seca, Lisboa, 19 Maio

Curiosa convenção, esta que manda apagar as editoras nas notas biográficas de um escritor. Não creio que o leitor médio, essa figura mítica, habitante dos lugares comuns e presa dos marqueteiros, mesmo em época de marcas, seja tocado com profundidade pelo nome das casas editoras. Mas não será informação de relevo incluir a singela coordenada? Qual será a razão: cá em casa não se fala dos outros? O leitor confunde-se se souber que há mais do que uma? Será demasiado intelectual? Tem pouca importância quem fez do texto um livro? Perde-se o recado simples ao futuro: este título nasceu ou recolheu-se, inventou-se ou recriou-se no lugar tal feito de papel e letras. Vem isto a propósito de ter tropeçado em outro praticante do apagamento, tão mais estranho por ser revista literária e pertencer a editora de referência: «Granta».

24 Mai 2017

Dez frases sobre a essência da China (Parte 3) 随时翻翻《红楼梦》(第三部分)

Estas dez frases vão ensinar-lhe mais sobre a China do que qualquer livro da especialidade

[dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]onho da Câmara Vermelha foi ao longo de todas as épocas um dos livros que mais vendeu. Escrito no séc. XVIII, é considerado uma obra-prima e um dos pontos mais altos da ficção chinesa. A Vermelhologia é um campo de estudo dedicado exclusivamente a esta obra. Para dar um exemplo, o Presidente Mao tinha consigo um vermelhologista de renome. No entanto, eu não sou uma vermelhologista, vou apenas desfolhando este clássico só para preservar no meu ADN a marca da língua chinesa, eu que me tornei uma escritora de língua inglesa. Recentemente, coleccionei dez frases para partilhar com os meus leitores. Hoje só me interessa discutir o valor revolucionário da literatura clássica.

Sou um homem, meu amor! 抱诚守真

Oh, meu deus! Durante este tempo todo, os especialistas estiveram a tentar convencer-nos de que este clássico da literatura falava do amor platónico entre dois adolescentes, o jovem Baoyu e a sua apaixonada Daiyu. Outra teoria que circulava é que a obra abordava o karma. O karma é a experiência, a experiência cria memórias, as memórias criam imaginação e desejo, e o desejo volta a criar o karma. Digamos assim, se comprar um hamburger, isso é karma. O caro leitor passou a ter uma memória que pode dar-lhe o desejo potencial de comprar um Big Mac e entrar no McDonalds – e como os protagonistas são adolescentes, seria o cenário ideal – e lá vem o karma outra vez.

O desejo é o ponto de partida de todas as boas histórias, não é uma virtude, não é um valor, apenas uma nítida pulsão que tudo transcende. E o facto de eu estar a pensar estas coisas é a prova provada de que Sonho da Câmara Vermelha é uma obra-prima totalmente inovadora, que continua a ser apreciada hoje em dia pelos leitores do mundo inteiro: o autor assumiu que os chineses têm corpo.

E como é que estes corpos se apresentam? Pergunta difícil, sem dúvida.  Vim a descobrir que todas as personagens femininas têm o peito liso e, quando alguma não tem, o autor evita entrar em pormenores sobre a sua anatomia e prefere dissertar sobre outros atributos – o cabelo, as roupas de seda, o seu aroma ou o gosto refinado – ah, e sobre a sua força interior. É também um segredo de Polichinelo que algumas das partes mais sumarentas foram censuradas da edição oficial. Por exemplo, o escaldante caso amoroso entre Keqin e o sogro foi retirado porque o autor o mostrou a um certo “ancião sábio”. Então, o autor passou a relatar com pormenores romanescos a história da censura da sua história, esperando que os leitores pudessem compreender o seu desgosto. Esta foi a parte que eu achei realmente divertida. A partir daqui o autor aprendeu a lição e nunca mais mostrou os seus escritos a ninguém. E desde então as suas heroínas tornaram-se seres sensuais e memoráveis. E isto porque se assemelhavam a mulheres verdadeiras, apesar da sua aparência permanecer um mistério. Apesar disto, toda a sua chama criativa foi dedicada ao protagonista masculino, Baoyu e à descrição do seu corpo e suas expressões. Acredito que, desta forma acidental, Sonho da Câmara Vermelha libertou as mulheres e os homens chineses.

24 Mai 2017

As Olímpicas

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]s Olímpicas, de Píndaro – importante poeta lírico da Grécia Antiga (século V a.C) –, que já tinham sido traduzidas pelo professor Frederico Lourenço, e publicadas pela Cotovia (Poesia grega – de Álcman a Teócrito. Cotovia, 2006) foram agora traduzidas, também directamente do grego clássico, e editadas pela Abysmo. O autor da tradução, assim como das notas, é o filósofo António de Castro Caeiro, que já tinha traduzido as Píticas, editadas então pela Prime Books em 2006 e pela Quetzal em 2010, desta feita com o título Odes.

As traduções, tanto do primeiro quanto do segundo livro, apareceram no seguimento de cursos que o filósofo ministrou na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas. Desde logo, ficamos a entender que há matéria aqui que importa à filosofia. Por outro lado, a tradução de um autor tão distante de nós (a língua em que escreveu já não existe), leva-nos a pensar a tradução. De modo geral há três modos de entender esta actividade:

  1. 1) deixar que a estranheza da língua de partida se mantenha na língua de chegada, o que pode implicar que aquilo que realmente é mesmo estranho num autor passe a ser para todos os autores dessa língua, que neste caso particular seria traduzir Píndaro do mesmo modo que se traduz Aristóteles (que António de Castro Caeiro também traduziu, e diferentemente);
  2. 2) ajustar a língua de partida à língua de chegada, como se o poema tivesse sido escrito na língua de chegada (neste caso em português);
  3. 3) que a tradução forme uma língua apátrida, uma espécie de terceira língua, em que já não é a língua de partida (nunca é), mas também não é propriamente a língua de chegada.

Se as dificuldades de tradução são maiores em línguas distantes, como sejam o caso do chinês, por exemplo, não o deixam de ser menos numa língua que, embora seja o berço da nossa civilização ocidental, já não existe. Outra das discussões acerca da prática da tradução divide ao meio os tradutores: a preferência da forma sobre o conteúdo ou o seu contrário, caso o ideal de ambos não seja possível de alcançar. António de Castro Caeiro seguiu o critério de nos mostrar a força filosófica, a profundidade do sentido dos versos de Píndaro, ao invés de se ater a um excessivo rigor métrico (até porque não há equivalências em português para a métrica em causa). E este critério, deve-se sem dúvida ao facto do tradutor ter-se debatido durante anos com a leitura e um pensamento filosófico acerca da mesma leitura. Isto não retira beleza à tradução. Pelo contrário, pois se a beleza de um autor reside principalmente na profundidade dos versos, no modo como faz explodir o sentido da condição humana, ser fiel a isso é ser fiel à beleza dos seus versos. Logo na apresentação do livro, Caeiro escreve: “A lírica de Píndaro medita nos diversos destinos humanos abertos à possibilidade, mas configurados por uma inanulabilidade do sentido irreversível do tempo. A situação humana é descrita na sua incapacidade de anular o que quer que aconteça. Uma situação que também vincula o tempo.”

Estes poemas eram escritos como louvor à vitória. Neste louvor estavam incluídos os vencedores e a linhagem de onde vinham. Por isso, são poemas também imersos na história da Grécia antiga, tanto no tocante aos mitos quanto no tocante aos factos. Se é que conseguimos distinguir uns dos outros. No Prólogo, a professora Maria José Velasco, escreve: “Os Odes Olímpicas são composições poéticas compostas para celebrar o triunfo dos vencedores nos jogos olímpicos, os jogos mais importantes realizados na Grécia. Além de seu carácter de competições desportivas, os Jogos Olímpicos serviam para manter o espírito de unidade de toda a Grécia, porquanto, durante a sua celebração, era proclamada uma trégua sagrada e suprimiam-se os confrontos entre as diferentes Cidades-Estado (Poleis). Por tudo isto, estas composições triunfais serviam não só para enaltecer as condições atléticas do vencedor como eram também uma ocasião para exaltar os ideais gregos de beleza e força física, pois proclamavam o homem perfeito como parecido com os deuses.” Há também ao longo dos versos de Píndaro o cheiro de fim do mundo, de fim de um tempo que já foi, o tempo dos heróis, o tempo de uma ética da honra e da coragem. É o fim da aristocracia grega arcaica, a que Píndaro assiste e regista ainda os últimos esgares, através do elogio da vitória na competição. E a vitória não é apenas a vitória da competição. Escreve Caeiro, na sua introdução às Odes: “Para Píndaro não há empates. O acontecimento fundamental da vida é a vitória. Não basta para isso a mera participação. Toda a disputa é individual. Não há desportos de equipa na antiga Grécia. Cada competidor está sozinho mesmo quando representa uma casa, uma família, uma aldeia, uma cidade ou uma nação. Apenas a vitória consegue anular a solidão máxima da disputa. O campeão granjeia a fama e a glória. O triunfo altera quem o obtém. Permite o reconhecimento, uma identificação e, assim, um ‘lugar’ para ser. O brilho esplendoroso da vitória amplia. Potencia a vida. ao vencer-se é-se maior do que se era. É-se falado. Transcende-se o espaço que se ocupa e o tempo durante o qual se existe. Expande-se e propaga-se. Mas a derrota é uma desgraça. Uma calamidade. Quem perde não apenas é esquecido como também quer ser lembrado. A derrota extirpa a simples hipótese de ainda ser possível. Deixa o perdedor entregue a si próprio. Desamparado. Sem ilusões. Não pode senão sobreviver-se. Infame. Píndaro vê a na situação da disputa pela vitória em competições desportivas um caso exemplar para o estudo da situação existencial do humano. E elabora-a como situação hermenêutica.” (Odes, pp. 13-4)

O que Píndaro parece ver muito claramente, e nos mostra de forma excepcional e brilhante, é que os diferentes conceitos com que as palavras tentam mostrar a vida, se podem traduzir num coração humano através do canto, da poesia: vencer e ser derrotado; receber o bem e ser afastado dele; fazer amor e ser destruído por ele; alcançar a honra e cair na desonra; escrever uma bela canção e não conseguir escrevê-la. São experiências da mesma ordem. A experiência humana é uma sucessão de elevações e quedas, de vitórias e derrotas. A poesia é a arte que mostra como nenhuma outra essas experiências de exaltação na vitória e de frustração na derrota, quer sejam no combate, quer sejam no amor, quer seja na honra, quer seja na tentativa de fazer aparecer o belo. E é também o entendimento do tempo como sujeito, não só dos versos, mas também da vida humana e de tudo o que acontece. Em Píndaro, o tempo identifica-se com o ser. E isto é captado exemplarmente nesta tradução de António de Castro Caeiro. Terminemos com uma das odes, uma das mais curtas do livro:

XIª OLÍMPICA

Para Hagesidamo, de Locros Epizefírios,

vencedor em Boxe (476 a. C.)

Por vezes, os homens têm uma enorme necessidade de ventos,

outras vezes, das águas dos céus,

essas filhas das chuvas das nuvens.

Mas, se alguém alcança sucesso através do seu esforço,

ecoam hinos com voz melosa,

hinos que são a origem de lendas futuras

e a garantia credível para grandes feitos de excelência.

 

Este louvor, dedicado aos vencedores das Olimpíadas,

é desprovido de toda a inveja.

Embora a minha língua esteja preparada

para tratar com cuidado destas coisas,

é de um deus que provém aquele homem,

que floresce com disposição hábil para lidar com as coisas.

Fica a saber agora, Hagesidamo, filho de Arquéstrato,

que é pela excelência do teu boxe

que eu vou entoar alto uma doce melodia,

um enfeite para pôr no cimo da tua coroa

feita com as folhas douradas da oliveira,

ao mesmo tempo que honro a estirpe dos Lócrios Epizefírios.

Entrai aqui nesta procissão vitoriosa, musas,

dou-vos a minha palavra como garantia

de que se trata de um povo que não evita os estrangeiros

e não é inexperiente no que é belo,

antes altamente sábio e guerreiro, em exactas medidas.

Na verdade, o que é inato não pode ser alterado,

nem a raposa cor de fogo,

nem os leões que rugem alto podem alterar a sua disposição.

23 Mai 2017

A arma do conto

[dropcap style≠’circle’]D[/dropcap]iz-se amiúde que o conto não vende. É provavelmente das poucas afirmações sobre a qual existe uma concordância generalizada e transversal aos intervenientes da cena literária: os críticos, os escritores, os editores e os livreiros mantêm a doutrina à mão e permanentemente engatilhada, não vá alguém perorar positivamente sobre um género invendável e que muitos consideram menor.

Contextualmente, porém, a época presente tem tudo para ser um território generoso para o leitor de contos. Temos cada vez menos tempo (ou apenas a percepção de que o tempo disponível é cada vez mais exíguo, o que vai dar ao mesmo) e a nossa capacidade de manter atenção e foco, nesta era em que tudo quanto é importante deve poder ser reduzido ao máximo de cento e quarenta caracteres, parece sofrer de uma miopia de progressão galopante, o conto tem o formato adequado para oferecer ao leitor o que de melhor o romance tem – com ressalvas que não cabem neste texto –, a saber, uma história depurada até ao radical mínimo de sentido narrativo, portátil e amiga do tempo, capaz de ser lida no metro ou nos vinte minutos que antecedem o advento súbito do coma de cansaço que há umas décadas dava pelo nome de sono.

No entanto, e apesar das vantagens elencadas, o conto não vende. Paira sobre ele o estigma da obra menor a que os romancistas só recorrem por necessidade de manter a forma. É uma espécie de ginásio low cost da literatura. Assim, quando se inquire um escritor sério sobre a feitura de um livro de contos e a de um romance, espera-se invariavelmente ouvir que para o último investigou meses a fio para, de seguida, enfiar-se numa cabana gélida num ermo na Noruega, alimentando-se de atum e raízes e mantendo a integridade das extremidades do corpo graças a uma combinação engenhosa de aquecedores a óleo e velas. Se, por outra parte, a conversa incidir sobre a publicação de um livro de contos, espera-se que o escritor confesse que o fez entre coisas de muito maior importância: entre romances, por exemplo, entre uma ida ao supermercado e um jantar de amigos, entre Bobadela e a Lourinhã, entre estações de comboio. O objectivo nunca é a produção de um conto, a coisa não se faz por e pelo conto, e até parece estranho que desta musculação literária resulte um livro de contos.

O facto de tantos e tão grandes escritores terem sido ou serem contistas não demove de modo algum os detractores do conto. Assim, os nomes de Kafka, Cortazar, Buzatti, Gogol, Borges ou Virginia Woolf são recebidos com a desconfiança de quem suspeita estar exposto ao argumento da autoridade ou com o desdém de quem vê na lista apenas uma sequência de honrosas excepções.

Numa altura em que parece ser mais fácil afastar a criançada das drogas do que obrigá-la a ler, parece mais ou menos óbvio que o conto, pelos motivos já apontados, pudesse ser uma ferramenta de trabalho mais interessante para estimular a leitura do que os livros bojudos e intermináveis que assombram as noites da gaiatada e estimulam a indústria das resenhas escolares. Mas nada disso acontece e o conto, pelo menos em Portugal, é o parente pobre do romance, tem de pedinchar o lugar à mesa da literatura e só tem direito a falar se directamente interpelado.

Muito do que há em mim de literário é conto. É uma grande parte da minha formação enquanto leitor e, posteriormente, escritor. É um território fértil para experimentação e há ideias que só podem ser traduzidas para o formato de conto, pelo que conto continuar a escrever contos no futuro que o futuro me permitir, sempre neles e para eles – como diziam os fenomenólogos – e nunca entre.

23 Mai 2017

Holderlin

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] partir de uma curvatura subtil da língua devíamos ter um trema ali por cima do “o” mas não existe mais na nossa gramática, nem a ninguém lembra agora voltar a colocá-lo, um pouco como os chapéus que tirados não mais voltam por norma às cabeças. —  O trema distingue o “i” ou o “u” de sons com os quais não formam ditongo. Creio que está em vigor ainda no Brasil e em Portugal, só em palavras estrangeiras, mas não se pode colocar dado que esses sinais de acentuação já não vêm nos teclados, e assim um nome fica menos acentuado o que para o caso não constitui nada de grave. Isto para dizer, talvez, que a regra se faz a partir da visualidade dos grafismos e ao encetarmos cortes há nomes e coisas que não cabem na moldura arquitectónica dessa mesma visualidade inibindo assim a nossa natural concentração.

Este é um poeta que dada a tamanha beleza nem cabe muito bem em lado nenhum, é como um apátrida, uma ideia, uma idealização, reunindo em si todos os atributos lendários desta designação, e também todos os infortúnios – que a fortuna tira quanto dá – é certo. Só hoje, onde nada se exige para além da caricatura de uma bem sucedida intervenção as nossas susceptibilidades, são tidas como derrotas e a mais desonrosa da loucura coroada de voluntarismos vários, nada que diga respeito a tal pessoa, que pessoa era de configuração diametralmente oposta.

Holderlin nasce em 1770 e embala-se no abraço do Romantismo alemão e inglês, sobretudo a Schiller, mas, como disse Paulo Quintela, é o inopinado do seu aparecimento que fará o inenquadrável nas categorias críticas existentes aparecendo assim como ora clássico ora romântico, havendo mesmo quem se aventure na expressão «classicismo romântico», o que sem dúvida deixa expressa a complexidade deste problema. Ele furta-se a uma inclusão unívoca, forçando-nos a aperfeiçoar outros campos de visão. Incompreendido durante mais de um século, difícil seria para todos aquelas estranhas alturas onde todos mais tarde reconheceriam a suprema beleza da sua escrita. Superou Goethe no seu helenismo e é talvez um expoente máximo da raiz ocidental de carácter helénico, indo para além de um poeta alemão num épico discurso do seu povo. Pelo meio, uma vida que fora em si um pouco atribulada desde o seus estudos de Teologia que não o fizeram pastor, até ir a França a pé na época fervilhante da Revolução, à paixão pela mulher de cujos filhos foi tutor, Sussete Gontard – Diotima – o seu único amor, à sua hipersensibilidade, com uma incapacidade amarga para a vida; por solicitude dos amigos que o foram encontrar em estado « nojento» encaminhando-o para Hegel para restabelecer-se e onde terá então um lugar na biblioteca de Hamburgo e traduz «Sófocles».

Depois de um período de bom entusiasmo, dá-se um colapso e docemente entra naquilo que todos apelidaram do tempo da loucura: não tinha relações com ninguém, vivia para as suas leituras e escritos. Era ainda um homem jovem, trinta e nove anos, e assim se deixou ficar até à idade dos setenta e três quando morreu. Lembra-se de Schiller mas não sabe já quem é Goethe e fica indiferente mesmo em relação a tudo que se publica a seu respeito. Trata os estranhos de forma sumptuosa: Vossa Alteza, Vossa Santidade, Vossa Majestade… amava a mãe que, não vendo cura para aquilo, resolveu entregá-lo aos cuidados de um mestre marceneiro. Dizem que era bonito e que outrora tinham fixado na imagem a sua figura de Apolo e que possuía um invulgar virtuosismo musical. Nunca se dissociou da sua origem teológica e por isso tinha da poesia uma concepção sacral: o poeta sacerdote, o poeta profeta, e fazia da sua arte um mero exercício, também ele, divino:

Santa criatura! Tantas vezes em ti perturbei a dourada paz dos deuses, e das mais secretas, das mais fundas dores da vida muitas de mim aprendeste/ Oh esquece e perdoa! Como aquelas nuvens passam ante a Lua pacífica, eu passarei, e tu repousas depois e brilhas de novo na tua beleza, ó luz suave!

Outrora, como hoje, Holderlin tinha-se tornado para a sociedade um corpo estranho, um invólucro irreconhecível. Ao tempo, a sua doença seria um assunto íntimo e discreto; hoje, talvez passível de averiguação normativa, mas estas naturezas não estão doentes, creio, vibram a outros níveis, estão em outros planos, porventura mais inclinados mas não necessariamente disfuncionais e desestabilizadores. Visto pelos olhos da norma parece triste e penoso, mas não serão os normativos tristes e penosos na sua ampla visão do todo?! Aliás, os poemas da loucura são inescrutáveis, guardando por isso toda a beleza de um vórtice de gigantesca maravilha. Nós sabemos que são mapas e intuímos que dão para mundos tais que somos nós quem está incapacitado por não podermos a eles ter acesso: Tudo está parado, só o amor gira!

E por atalhos secretos que as minhas pálpebras se assombram de tanto ser assim, descubro por acaso aquilo que só pode ser ainda a sua voz transportada na imensa alma do poeta que era e escrita neste dia 19 de Abril do ano de 1812.

De uma carta do Marceneiro Zimmer à mãe de Holderlin.

[…] Mandei vir o Senhor Professor Gmelin para ver como médico o seu querido Filho, e ele disse que nada ainda se podia dizer ao certo sobre o seu verdadeiro estado mas que lhe parecia que era afrouxamento da natureza, e infelizmente minha boa Senhora vejo-me na triste necessidade de lhe dizer que também creio que é assim.

A sua bela esperança de tornar a ver o seu querido Filho feliz neste mundo teria assim infelizmente de desaparecer, mas venha o que vier ele será certamente feliz na outra vida.

O seu espírito poético mostra-se ainda activo, assim Ele viu na minha casa o desenho de um templo. Ele disse-me para fazer um assim de madeira, eu respondi-lhe que eu tinha de trabalhar para ganhar o pão, que não tinha a felicidade de viver assim no Repouso Filosófico como Ele, e Ele respondeu-me logo, Ai eu não passo de um pobre homem, e naquele mesmo minuto escreveu-me o seguinte verso a lápis sobre a tábua

As linhas desta vida são diferentes

Como são diferentes os caminhos e as fronteiras dos montes.

O que aqui somos, pode acabá-lo além um Deus.

Com harmonias, prémios eterna paz.

E foi assim.

« WAS BLEIBET ABER, STIFTEN DIE DICHTER»

«MAS O QUE FICA OS POETAS O FUNDAM».

19 de Abril de 2017

23 Mai 2017

Pedra, papel, tesoura

[dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]assos lentos os meus, pelos minutos das horas. A dar tempo e a conter a hesitação mortal. Como um inverno sem temperatura nem vento, mas tudo à espreita na escrita dos nós, nas esquinas das árvores nuas e planas. A natureza a hibernar guardada para outras certezas de rompante. O céu cinza compacta. A temer o descalabro do vento. Os passos ruinosos de insegurança lenta. Precaução. Ter que impor o avanço em caminho de nada. Depois o escuro e quase a terminar. Sem ter chegado. Mas aquela presença de respiração forte, desesperante, adiada madrugada. O desconhecido em espera na sua também hibernação agitada e convulsiva. O espaço obscurecido e ruidoso. Também. Um inferno esse de esquecimento e espera. O bosque. Como uma casa que dorme em sobressalto de vidas ocultas, fantasmas conversadores, rumores, pios, roçagares súbitos, aragens desordenadas que passam em correria para outras actividades do bosque. Da casa que dorme. Em sono agitado de muito. Coordenadas límpidas na folha quadriculada. Escrevo a paragem ruidosa no bosque de atalhos tortuosos, escuridões e sombras. Monstros. A tactear as penumbras aveludadas, a subir as paredes de camurça até à sombra mais alta. Da abóbada do astro. Planas evoluções no sentido do bosque, caverna, veludo, voltejar hirsuto nocturno e revoltado.

Espreito o mostrador partido no chão e pergunto qual é a hora certa. Quatro ponteiros como pontos cardeais. O norte sempre norte até aos pólos. O sul sempre. E depois tudo inverte. O vidro quebrado, uma pegada adivinhada e o coração de mecanismo metálico parou talvez. Aspiro o ar em torno e para cima. Em torno e para cima recortes de folhas baralhadas e revoltas. Em fundo o céu. Faço contas às horas de não dormir. Faço sempre contas às horas. É talvez a perspectiva lançada no ponto de fuga do depois. Linha de chamada de ali até ao horizonte. Recta. Até à linha do horizonte, da mágoa. Os monstros. Os olhos noivados de fresco na sombra pacata das pequenas luzes. Pequenos bichos. Pequenos rumores. Grandes intempéries à espreita por detrás das palavras que bordejam cada atalho.

Avança-se tão devagar como nada avançando por cima das nuvens. Num determinado troço do mundo, da floresta. Tão alto, tão imprecisamente rasgando a matéria invisível, tão em espaço fechado. E em baixo uma cortina lisa e esfumada e sem marcas. Pareceria o céu. O da eternidade. Sem tempo, sem avanço, sem dúvida. Pela luz. Mas era sonho de outra madrugada que não a próxima. Avança-se entretanto pela noite. A custo colocando pé ante pé sobre as palavras difíceis. No bosque.

A casa dorme. E de súbito, como um bicho enorme possante e poderoso na fúria devastadora de passos – pesados, abruptos – avança de nudez evidente e olhar ausente pelo carreiro conhecido no momento desconhecido de si. Ou não, talvez. Não há palavras em folhas como nas árvores. Sombras. Luzes baixas em fim de estação e de noite. Contemplo extasiada a capa imprevista daquela nudez. O olhar cego a guiar a fúria e o rompante dos passos. Vapores densos e mortais a emanar das ventas da fera desorientada. A pele a escavar um leito para o ouvido. O desejo, o corpo, a pele a arrepiar num caminho de beco urbano ou labirínticas paredes de vidro, o mostrador do relógio, o tempo, o corpo adiado, perdido, o desejo e o medo. De cobrir essa nudez com o corpo num longo afago de carne. Pesado sem temor à fúria nada que se compare com a espessura da pele, dos passos, guiados e cegos. Esse corpo.

Adormecido de si. Talvez. Ou cego também. Ou interrogativo lá bem no recanto mais remoto. O desejo de cobrir com o meu corpo insuficiente tamanha ansiedade. Acalmar e guiar. Atenuar o desconhecido que move esse desconhecido. Como um animal a fingir ser feroz. Indeciso, contudo. Perdido talvez na selva que se abeirava do seu lugar. Numa invasão subtil, imparável. E ao corpo. Infantil, grande, gasto, desperdiçado, maduro. Nu. Avançando à procura de algo impreciso, esperando não sabia o quê. Animal grande, semiadormecido. Nú. Sem nada. Como se perdido do seu lugar. Avanço para ele e pego-lhe na mão a querer abraçá-lo a não querer invadir a desprotecção que o vestia. Furioso. O bicho forte, pesado e violento. Doce. Mas tomo-o pela mão, guio-o pela mão inesperadamente pequena até à cama de folhas. Acompanho-lhe o silêncio. Para ser bom é preciso não lhe olhar os olhos. Imprecisos, indistintos, em fuga. Não olhar para não quebrar o silêncio a mais do que os passos pesados descompassados da fera. Fica o pequeno segredo entre as palmas das mãos. Pequena pedra.

Depois, antes, o ruido ensurdecedor da ventania, dos bichos estranhos desconhecidos e escondidos. Tapo-lhe o pêlo arrepiado talvez do susto. Da caçada infrutífera. Da procura. Da espera adiada não sabia de quê. Algo que era para ser noutro dia e não naquela noite. Tenebrosa e lenta. Ruidosa entre coisas. E ausência de coisas. Palavras. Pensamentos secretos de todos os ângulos. Abeiro-me do bicho que dorme súbita e pesadamente, denso e forte de compleição como se encerrasse todo o mundo. Ali. Tapo-lhe a nudez, a dele a minha, outra, com a manta de folhagem do seu mundo e em cada folha trilobada de coloração escura um olhar exausto, um suspiro de impaciência, uma ânsia de serenar, uma hesitação, um frio seco, um beijo adiado. Em cada nervura uma veia a latejar. Um eco da respiração. A fera. Pediu um beijo no sono temporariamente suave e dei delicadamente porque pediu. Não cantei para que dormisse. Não cantei para mim. Voltei pelo atalho reconhecido à clareira de luz entre a folhagem. A pensar a noite, a madrugada, a manhã. O ontem, o amanhã. As funções da pele, do corpo.

Posso chamar-te oxigénio, posso? Sentava-me na beira daquele leito revolto e ele escondia, soturno, a resposta por detrás de um sim ou de um não. Que tanto fazia. O sim ou o não, claro. Nunca nada, claro. Não que tanto fazia. Nunca dizia isso e seria o mais puro. Devolvo-o pela mão ao lugar. Como um urso enorme e eu coisa pequena. Disse-lhe vem. E chamo-lhe sempre o nome para não o ferir de amor. Devolvo-o ao iceberg desgarrado e tóxico nas águas a subir mas era para ser o leito. O seu provisório leito de bicho sem casa. Expectante. Mas esconde as páginas como comida para o inverno. Não li. O seu de sempre. De abandono. Nos arquivos de alvéolos, que escondem palavras fracturadas e esforço por detrás do opiáceo doce, angustiante, total e excessivo. Doce. Agoniante. No lugar escuro onde as roupas foram atiradas, quase rasgadas, para o chão, para quê. O requintado poder de nada dizer. Com as palavras vazias. O medo.

Quando avançou irrompendo da escuridão do labirinto em que se deita era uma luz de pedra. Uma folha de papel. Ou duas escuridões que se cortavam.

19 Mai 2017