Karadeniz: “O que nos espera é o nada”

(Continuação)

Mas o Karadeniz disse que também tem moedas muito antigas, de antes deste seu tempo!…

É verdade, mas não foram procuradas como raridades de colecção! Foram encontradas em lugares do dia a dia, compradas a quem não sabia do seu real valor. Essas moedas são mais um testemunho do que se encontra nas ruas da cidade neste meu tempo do que um troféu raro. Não é peça de colecção, é peça do que se encontra na cidade.

O que é que o Karadeniz pretende fazer com tudo isto?

Enquanto for vivo, vou juntando mais coisas todos os dias. Quando morrer já não posso decidir nada acerca disto. Provavelmente vai tudo para o lixo.

Mas não o angustia saber que todo este seu esforço vai acabar em nada?

É como a vida! No fundo, o que aqui estou a fazer é uma metáfora da vida. Provavelmente, preferiríamos viver para sempre, ou ser recordados para sempre, mas o que nos espera é o nada. Não é, Paulo?

O que vamos ser quando já não formos, ainda não sabemos!

Não sabemos, mas temos bons indícios do que vai ser. Sabes o que é que também colecciono, Paulo?

O quê?

Esqueletos de peixes.

Esqueletos?!

Sim, espinhas de peixe! Tenho um esqueleto de cada um dos peixes que se pode comer em Istambul.

De todos?!

Bem, de quase todos. Desfio-os com muito cuidado antes de comer e depois guardo o esqueleto do peixe.

E hoje, portanto, é esta a sua vida?!

Podemos dizer que sim! Por vezes, vejo o que faço como uma grande obra de arte. Outras vezes, vejo tudo isto apenas como uma obsessão em relação à permanência. Gostava que as coisas permanecessem. Gostava que o que vem a seguir não apagasse o que já há. O que há devia haver sempre. O que há não devia tornar-se passado.

A sua mulher chegou a saber desta casa, deste amontoado de coisas?

Nem ela, nem o meu filho.

Já pensou que esta casa, esta obsessão por juntar coisas não é muito diferente da obsessão da sua mulher pelos gatos?

Já! Quem está apaixonado, seja pelo que for, não tem jeito para mais nada.

Não se pode estar apaixonado por mais do que uma coisa, por exemplo, uma pessoa e aquilo que se faz, ou por mais do que uma coisa que se faz ou por mais do que uma pessoa?

Não estou certo disso. Podemos ter relações intensas com várias coisas ou várias pessoas, mas julgo que a paixão é um sentimento exclusivo. A paixão pode ser um ódio. O ódio que tive aos gatos era uma paixão. Não me deixava ver mais nada. O ódio é a carga negativa da paixão; a paixão é a carga positiva do ódio. Por isso é que tantas vezes se passa de uma carga para outra em relação ao mesmo objecto ou à mesma actividade ou à mesma pessoa. Nunca sentiste ódio pela escrita ou por uma pessoa por quem já estiveste apaixonado?

Adiante! Há alguém que saiba da sua colecção? Há alguém que já aqui tenha estado?

Não e não. Um cidadão não pode compreender o que se passa aqui. As pessoas que moram neste prédio, nos outros andares, se soubessem de tudo o que aqui está, obrigavam-me a vazar o apartamento. Tenho sempre medo de que alguém venha a saber.

Uma vez mais, uma actividade que tem de manter em segredo!

Infelizmente assim é! Trago as coisas a horas diferentes, de modo a que tenham dificuldade em controlar as minhas entradas e o que faço. Porque, como já viste, o amontoado de coisas é tão grande que a porta de entrada já nem sequer abre toda. Se me virem a entrar de lado vão pensar que há algo de estranho. Vão querer saber. Vão começar a bisbilhotar.

Um destes dias já nem sequer consegue cá entrar, Karadeniz! Como é que vai fazer, arranjar outra casa?

Com a minha idade já não vai ser preciso, Paulo. Mas imagina que tinha começado com isto muitos anos antes! Então, sim, é que teria de arranjar outra casa. Por outro lado, não conseguiria deixar umas coisas aqui e outras lá. Teria de mudar tudo para uma casa maior, teria de ter tudo junto. Não consigo ver as minhas coisas separadas. Nem conseguiria separar-me delas. E então teria outro problema: a mudança de tudo isto. (pausa) Gostava de morrer aqui entre as coisas.

Só que o seu corpo poderia apodrecer aqui, sem que ninguém desse por isso!

Era bonito! Tornava-me eu mesmo parte da colecção, parte do amontoado de coisas.

O Karadeniz não tem mais nenhum familiar vivo, para além do seu filho?

Não! Fui filho único e os outros parentes há décadas que não sei deles. Como o meu filho não vai precisar do meu dinheiro, nem sequer o vai querer, gasto o dinheiro nestas coisas e nas viagens que faço, que agora já vão sendo poucas. Quase ninguém sabe de mim, no mundo inteiro. Julgo que nasci para ser tudo o que quisesse, desde que não fosse conhecido, desde que passasse completamente despercebido. Comecei por matar pessoas e gostava de acabar entre estas coisas que ninguém quer.

Mas há muita grandeza na sua vida, Karadeniz!

Muita grandeza, como assim!?

Você deixa de matar pessoas pelo ódio aos animais, que passa a matar, e acaba por encontrar o amor, a paixão entre as coisas que ninguém guarda, que ninguém quer, nessa sua obra de arte, como por vezes lhe chama. Não vê grandeza nisso? Você foi sempre exemplar em tudo o que fez!

Uma coisa é certa e, se bem te percebo, tens razão, vivi sempre nos limites do humano. Se isso é uma grandeza, já não sei.

(continua)

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