Paulo José Miranda, escritor e poeta: “Esta também é a terra dos portugueses”

Em “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, Paulo José Miranda explora um dos muitos limites da natureza humana, ao mesmo tempo que reflecte sobre o terrorismo. Convidado da iniciativa “Camilo Pessanha – 150 anos”, o escritor e poeta fala do novo livro, cuja personagem é o oposto do assassino profissional. O autor, que fala hoje no edifício do antigo tribunal, defende que a existência de duas culturas que se compreendem e que fazem de Macau um lugar singular no mundo, irrepetível

Publicou “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, uma compilação dos textos que tem vindo a publicar no HM. Porquê a entrevista a um assassino?

Tenho duas participações no HM. Uma é com os textos que compõem a secção “Máquina Lírica”, em que costumo escrever acerca de livros e maioritariamente poetas mais novos do que eu, que têm editado em Portugal. Participo também com a secção “Em Modo de Perguntar”, com pequenas entrevistas que tenho feito a várias pessoas, actores, poetas e escritores. De repente ocorreu-me a ideia de fazer um projecto, algo que já tinha escrito em 2004, a ver se funcionava. E eu próprio entro como entrevistador. Este livro faz parte de um projecto que já terminei, sobre obras do século XX, onde explorava diversas formas. A entrevista é uma forma utilizada no século XX, e em Portugal o gosto do público pela entrevista intensificou-se nos anos 90.

Porquê?

Talvez devido ao facto de termos vivido muitos anos no Estado Novo, a entrevista não era propriamente algo que agradasse ao regime. Então na década de 90 começou a acontecer uma coisa curiosa, em que as pessoas liam mais as entrevistas dos escritores do que os próprios livros.

Isso mudou ou intensificou-se?

Hoje em dia a situação é diferente porque a internet mudou muita coisa. Partindo dessa observação construí uma narrativa, uma ficção, em forma de entrevista. Já não era preciso estar a ler a entrevista do escritor. O Carlos [Morais José] gostou da ideia, teve alguma aceitação. Depois fez-me a proposta para editarmos o livro. Nunca pensei que o texto fosse editado tão cedo. Uma das razões para isso prende-se com o facto da entrevista ser um formato estranho para um livro, não seria a forma mais apetecível para os editores. Mas julgo que a maior dificuldade é que o texto não é muito longo. Se fosse um longo romance…que, aliás, pretendo fazer um dia.

A partir deste livro?

Não, só com esta forma, mas com outros personagens. Talvez aí seja mais fácil e apetecível para um editor. Quando me foi feita a proposta, aceitei de imediato. E porquê um assassino? O assassino opõe-se em determinados pontos de vista, que me parecem fundamentais, em relação às nossas próprias vidas e ao nosso tempo. Um deles é que ele faz uma vida inteira sem ser conhecido, porque ele era excelente no que fazia e ninguém sabia quem ele era. Isto é o oposto do que nós queremos nos nossos dias. Não só queremos ser reconhecidos pelo trabalho que fazemos como queremos ser reconhecidos só porque sim. 

Queremos ter os tais quinze minutos de fama.

E que os quinze minutos se prolonguem. Houve uma grande explosão, que me parece que está a terminar, em que as pessoas iam para a televisão sem terem feito nada de extraordinário. Este personagem é então o oposto disso tudo. Ao mesmo tempo há um jogo de espelhos entre a actividade dessa pessoa e a do próprio escritor. Vai-se traçando, à medida que ele está a falar, toda uma preparação. Há ainda a relação com a morte. Para ele matar não é encarado como morte, é visto como um trabalho. Há um outro lado, que está muito presente no nosso tempo, que é o modo como o personagem se posiciona de forma antagónica com o terrorismo, o que nos causa algum choque. Imaginamos que um assassino profissional é um terrorista, e ele distancia-se disso.

Editar este livro foi a maneira que encontrou de reflectir sobre essa questão, numa altura em que o terrorismo é tão falado e tão incompreendido?

É uma das maneiras. Tenho um livro, passado em Hong Kong, que é “A Máquina do Mundo”, uma história de amor entre dois assassinos profissionais, que vão perdendo vidas como se fosse um jogo de computador. Aí reflicto mais sobre o assunto. Em “Karadeniz – Entrevista com um assassino”, o que há é o mostrar como nos anos 50 e 60 quase tudo era de elites. Até matar e pagar para matar. Hoje, como diz Karadeniz, qualquer um encomenda uma morte por meia dúzia de tostões. O assassino profissional já se tornou democrático também.

Foto: Sofia Margarida Mota

Percebo que há aí um certo fio condutor em relação à morte. Esse tema, sobretudo a morte premeditada, fascina-o?

Não. O que acho é que o assassino profissional interessa, porque todas as situações limites do ser humano nos fazem pensar. E ser um assassino profissional é uma situação limite. Isso são coisas que me fascinam porque reflicto sobre elas, sem dúvida nenhuma. Alguém que transforma uma pessoa numa coisa entra na esfera do horror.

Algo desprovido de sentimento.

É o horror, como o que aconteceu em Auschwitz. Estas são formas que me interessam para pensar e ao mesmo tempo expor o humano que habita em todos nós. Não vamos a esse extremo, mas há algo que se ilumina a partir dali, daquele limite. O meu próximo livro, um longo romance de mais de 600 páginas, é o oposto: é sobre alguém que viveu a vida de um ponto de vista absolutamente ético. O que também é uma posição radical, de limite. Passou a vida a ler e a estudar, tendo responsabilidade. São casos extraordinários para reflexão. Ao tentarmos descer ou subir até eles, acabamos por nos iluminar a todos nós, o humano, na sua normalidade.

Falou-me do livro “A Máquina do Mundo”. Foi esse o livro que o fez regressar a Portugal depois de ter vivido vários anos no Brasil. Chegou a ser referido na imprensa como um “fantasma literário”, porque desapareceu do panorama literário português durante uns anos.

O João Paulo Cotrim recebeu uma indicação do António Cabrita, que lhe tinha enviado “A Máquina do Mundo”. Ele gostou do texto e contactou-me a perguntar se já tinha editora. Eu vivia em Curitiba e ele foi a minha casa, e conversámos. Durante o ano de 2014 acabei por escrever um livro de poesia, então o João Paulo Cotrim acabou por editar três livros.

Mas como foi regressar? Sentiu-se esse “fantasma literário”?

Não pensei assim e continuei a escrever. No tempo em que não escrevi estava dedicado à música. Não publicava, mas não tentei publicar. Era uma situação difícil para publicar, porque estava muito afastado. Hoje em dia é muito difícil editar livros sem aparecer. Se não apareces para as entrevistas as pessoas deixam de existir, somos cada vez mais numa sociedade mediática.

E o escritor tem de ser uma estrela.

Não diria uma estrela. Comecei a publicar no final dos anos 90 e as coisas eram diferentes. Davam-se entrevistas, mas não se aparecia. Hoje isso é fundamental. Nunca senti a questão do “fantasma literário”. Continuei a publicar, mas de facto não aparecia. Foram livros que passaram, não estava lá. E do ponto de vista do jornalismo é interessante escrever sobre alguém que está exilado, desaparece e de repente edita três livros.

Esta terça-feira falou sobre a experiência do que é ser português em Macau. Viveu essa experiência na pele durante três meses.

Vivi um pouco, mas a minha experiência veio de uma grande intuição, e também pela experiência de ter vivido cinco anos em Istambul. Foi uma experiência mais radical do que estar em Macau, porque ninguém fala português. Haveria talvez uma pessoa que sabia quem tinha sido Fernando Pessoa. Em Macau, além de ter lido as cartas e imenso sobre Pessanha, fiquei com uma percepção. Há qualquer coisa que acontece com os portugueses de Macau que é uma espécie de amplificador de uma estrutura existencial. Essa estrutura é como aquele fenómeno que se passa na mecânica quântica, como se houvesse uma vida paralela. Durante um tempo poucas pessoas que vinham para aqui não sentiriam que a sua vida seria uma vida de empréstimo, e que mais cedo ou mais tarde iriam recuperá-la.

Sente que somos uns privilegiados em Macau?

Hoje em dia já não, mas na década de 90 sim, sem dúvida. As pessoas ganhavam uma fortuna a fazer o mesmo que fariam em Portugal. 

Falo do privilégio de ter acesso à cultura portuguesa e a pontos identitários nesse sentido.

O que acho é que Macau é um lugar privilegiado e provavelmente único. É provavelmente o único lugar onde os portugueses estiveram que não foi conquistado, foi doado. Isso muda tudo. Em Moçambique há uma sensação de racismo, porque os moçambicanos foram colonizados. Aqui isso não existe.

Mas há um distanciamento.

Que advém da enorme diferença cultural e da língua. Há essa experiência que é o convívio de duas culturas muito distantes uma da outra, que não se fundem. Houve muito mais fusão cultural, e entre as pessoas, em Moçambique do que aqui. Os portugueses tiveram, apesar de tudo, uma diferença em relação aos outros países, apesar das atrocidades cometidas. O português misturava-se. Quando chegamos aqui os bárbaros éramos nós, há logo uma diferença, porque havia aqui uma cultura instalada. Sempre houve esse respeito. Em nenhuma parte do mundo acontece isto. No mundo em que nós vivemos, é exemplar.

Quando viveu em Macau veio escrever sobre Camilo Pessanha.

Estava inserido num projecto que era uma parceria entre a Fundação Oriente (FO) e a editora Cotovia, da qual fazia parte. A Cotovia enviava escritores para vários locais a Oriente e publicava os livros. A FO encarregava-se dos custos. Foi-me dado a escolher entre Pessanha e Venceslau de Moraes, e aí iria para o Japão. Eu não escolhi Macau, escolhi Pessanha. É um poeta pelo qual sentia um fascínio há muito tempo. Li muito sobre ele, andei nos lugares onde andou. Foi o Pessanha e a força da poesia dele que me trouxe, e interessei-me depois pela sua pessoa. É uma pessoa contraditória, cheia de mistérios à sua volta, alguém que é viciado em ópio e que tem uma profissão importante. Ao mesmo tempo tinha um desprezo pelos seus conterrâneos, e depois tinha uma sensibilidade enorme. Acho que Macau está melhor, porque já não há a sombra de muitos portugueses que sentiam isto como uma colónia. Alguns achavam que os chineses eram inferiores. Era uma sombra que pairava, mesmo que nem todos pensassem assim. Com a transferência de soberania essa sombra desaparece. Mas esta é também a terra dos portugueses, e isso é hoje mais claro.

6 Set 2017

Karadeniz | O Filho

[dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] vista, do terraço do restaurante do Conrad Hotel, é uma das mais terríveis do planeta Terra. É o lugar onde o que o homem faz e o que a natureza é se encontram esplendorosamente, sem máculas e sem culpas. Fui apenas duas vezes a esse lugar: a primeira por amor de uma mulher; a segunda pela morte de um homem. Karadeniz morreu em sua casa junto à torre de Gálata, numa das muitas noites em que lá ficava, em que não me apetecia apanhar um táxi para a minha casa em Baltalimani, junto a Bebek, no Bósforo. Deve ter tido uma morte santa, sem sofrer. Foi para a morte como se tivesse ido apenas deitar para outro dia. Encontrei-o de manhã com o rosto mais pálido do que o costume, e já só consegui tocar-lhe o frio. O homem já não estava ali. Tinha o passado à minha frente, diante do rosto e das mãos e não sabia o que fazer. Fiquei ali parado, sem fazer nada, a saber a morte. A seguir ao funeral de Karadeniz, em Istambul, o seu filho, T., que conheci na cerimónia, pediu-me para jantar com ele. Precisava de falar comigo com urgência, antes de partir para Londres, ainda essa noite.

T: Soube pelo porteiro que você passava muito tempo com o meu pai, posso saber porquê?

PJM: Porque gostava dele e ele me ensinava muito.

T: Ensinava-lhe o quê?

PJM: Tudo! Só não me ensinou a matar.

T: A mim, foi só o que ele me ensinou.

PJM: Ensinou-o a matar!?

T: Não propriamente, mas vi-o várias vezes a disparar com a espingarda contra os gatos da rua.

PJM: Foi só para saber porque me encontrava com o seu pai, que quis encontrar-se comigo?

T: Não, não foi só por isso! Queria saber como é que ele morreu, parece que não sofreu, pois não?

PJM: Não, não sofreu. Morreu a dormir.

T: Morreu como viveu!

PJM: A dormir!?

T: Não, sem sofrer.

PJM: Julga que o seu pai não sofreu na vida, é isso que me está a dizer?

T: Não me leve a mal, mas não quero falar sobre isto consigo, com quem nunca vi e provavelmente nunca mais vou ver. Não me leve a mal, mas não sou muito bom a falar de mim.

PJM: Não tem de que se desculpar! Compreendo perfeitamente. Há mais alguma coisa que queira saber?

T: Gostava de saber o que é que você faz na vida?

PJM: Escrevo livros.

T: Que tipo de livros é que escreve?

PJM: Romances, poesia e teatro.

T: Romances acerca de quê?

PJM: Acerca da vida e da morte, acerca dos homens.

T: E isso dá-lhe para viver?

PJM: Às vezes, dá! Outras vezes, não.

T: Então e quando não dá, o que é que você faz?

PJM: Isto é alguma entrevista, que me está a fazer?

T: Se quiser não me responda, não é obrigado a fazê-lo. Mas tenho curiosidade em saber que tipo de pessoa passou os últimos…

PJM: Dois anos!

T: Dois anos!?

PJM: Sim!

T: Pois, gostava de saber que tipo de pessoa passou os últimos dois anos a visitar o meu pai, a fazer-lhe companhia.

PJM: A companhia era mútua. Quanto à sua pergunta anterior, quando os livros não dão para viver, peço dinheiro emprestado, até que volte a dar.

T: O meu pai chegou a emprestar-lhe dinheiro?

PJM: Não! Estou num momento em que não é preciso.

T: O meu pai chegou a falar-lhe de mim, a dizer-lhe o que faço?

PJM: Sim!

T: E o que é que ele disse que eu fazia?

PJM: Disse-me que você era um homem de negócios, que importava vegetais da Turquia para Inglaterra.

T: Foi só isso que ele disse, não mencionou mais nada?

PJM: Não, só me disse isso. Porquê, há mais alguma coisa que você faça que o seu pai não me tenha contado?

T: Não, não há mais nada. Queria só ter a certeza de que o velho não tinha perdido o juízo, nestes últimos anos de vida.

PJM: O seu pai esteve sempre muito lúcido até ao fim, pode ficar descansado. O seu pai era um homem muito bom.

T: Muito bom!? Ele chegou a contar-lhe como era o inferno?

PJM: Qual inferno?

T: Qual inferno!? A casa! Crescer naquela casa com dois loucos à volta dos gatos: um aos tiros aos animais e o outro a salvá-los; e eu no meio, sem ser gato. E nem os matava, nem os salvava. Ele não contou isso, pois não?

PJM: O seu pai contou-me dos gatos, sim. Também me parece que sempre soube do mal que tudo isso lhe fez. Até ao fim, nunca quis aceitar culpa de nada, mas julgo que ele sempre se sentiu culpado em relação a si.

T: Que mais culpas é que ele poderia ter?

PJM: Culpa em relação à sua mãe.

T: Em relação à minha mãe, não teve culpa nenhuma. A minha mãe era louca. Não se pode fazer nada por um louco, muito menos ser responsável por ele.

PJM: O seu pai amava muito a sua mãe.

T: Essa é que é a sua culpa! Nunca lhe perdoei, ter-se sempre esquecido de mim, do que eu precisava, por causa dessa louca.

PJM: Se pensa assim da sua mãe, porque foi com ela para Londres, porque não pediu para ficar com o seu pai?

T: Precisamente para magoá-lo. E também, porque não queria ter mais nada que ver com ele. Queria esquecê-lo. Queria ser uma pessoa completamente diferente dele. Queria ser o homem que ele nunca foi.

PJM: Não sente culpa, por isso?

T: Na vingança não há culpa.

Depois de um longo silêncio, T. pegou no seu telefone e deu instruções para o piloto do helicóptero que o esperava no heliporto do hotel. Nesse momento pensei que Karadeniz sempre estava certo acerca das actividades do filho, que não é só legumes que ele importa para Inglaterra. Despedimo-nos e eu fiquei ainda ali sentado à espera de ver o ferro a voar para o aeroporto, levando para sempre da minha vida a história desta estranha família. Uma família sem culpa, a vingar-se da vida.

2 Jul 2017

Karadeniz: “Saber matar bem tem sempre futuro”

PJM: Lá está você a dizer mal do seu filho, Karadeniz!

K: É verdade, tens razão!…

PJM: O Karadeniz também frequentou a prostituição de elite, porque critica o seu filho?

K: É muito diferente, Paulo! Muito diferente. Eu ia algumas vezes a Zurique, mas já foi depois de ter ficado sem a mãe dele, sem quaisquer possibilidades de nos encontrarmos. Quando se ama muito alguém que não se esquece, só se pode ir às putas. Mas para o meu filho, as putas vêm antes do amor. Antes e depois, que ele não conhece outro modo de se relacionar com uma mulher.

PJM: Sente culpa em relação ao seu filho?

K: Não, não sinto culpa. Tenho pena que nunca nos tenhamos chegado a encontrar, mas não sinto culpa. O amor que sentia pela mãe dele, esse amor sempre desencontrado, não me deixava ver mais nada.

PJM: O Karadeniz gostava mais da sua mulher do que do seu filho, não gostava?

K: É verdade, Paulo! Não podia fazer nada.

PJM: Julga que o seu filho sabia disso, que ele sabe disso?

K: Não sei. Eu não sei quase nada do meu filho. O meu verdadeiro filho é as coisas que tenho naquela casa perto de Eminonu.

PJM: Não gostava de estar mais com o seu filho, nesta fase da sua vida?

K: Antes de morrer, queres tu dizer! Não sei se gosto do meu filho, Paulo! Tenho-lhe amor, como pai, quero que tudo lhe corra como ele quiser que corra, mas julgo que não gosto da pessoa que ele é. Julgo que ele também não gosta da pessoa que eu sou. Vivi sem hipocrisias e não quero morrer próximo dela. É melhor assim como está, cada um para seu lado. Se pudesse, antes de morrer, gostava era de ver uma vez mais a minha mulher. Ver o amor pela última vez. Mas isso não é possível.

PJM: A sua vida parece uma canção de amor e morte, Karadeniz!

K: Não, Paulo, a minha vida é, como já te tinha dito, uma história de amor. Mas não há histórias de amor sem mortes. Aliás, a morte só ganha sentido com o amor. Se não sentíssemos amor à vida, amor a alguém a morte não tinha poder nenhum; a morte não assustava ninguém. A morte é de quem a vê, de quem fica, de quem se sente afectado pelo que vê, afectado por quem acaba de perder. A morte só existe na vida. Não há morte depois da vida. Isto é uma coisa que se aprende na profissão que tive. Por isso é que a morte que fazia acontecer aos outros não era morte. Eu não a via acontecer, eu não perdia ninguém. Eu não era aquele que ficava, era aquele que continuava, que é muito diferente. Saberes da morte de um desconhecido não é saberes a morte, mas saberes da morte de alguém que amas é saber a morte.

PJM: Antes e depois de cada um dos seus trabalhos, costumava pensar acerca da morte ou, pelo contrário, concentrava-se apenas na técnica e na perícia necessária à execução?

K: Precisamente, Paulo, antes e depois de fazer acontecer a morte a alguém, a morte é apenas algo a realizar e todos os pensamentos vão nessa direcção: identificação dos problemas possíveis à realização do trabalho e encontrar as soluções para os mesmos; após a realização, faz-se o balanço de tudo. A morte nesses momentos é apenas um objectivo a alcançar, como para o atleta cortar a meta. Só mais tarde, passados uns dias, já no conforto de casa é que a morte se tornava pensamento, uma coisa geral, uma coisa de todos. Quando se está em campo, presos na dualidade de se ser atingido ou preso, ou fazer a morte, a morte não aparece. Ela pode acontecer, mas não aparece.

PJM: Julga que também é isso que acontece na guerra, em combate?

K: Não, Paulo! Aí a morte dos outros à tua volta pode fazer com que a morte fique à tua frente de um modo que não te deixa ver mais nada. Nesses casos, a morte não te deixa fazer nada. Absolutamente nada. A presença da morte torna-se tão evidente que anula a acção e a vontade. É a cobardia extrema.

PJM: Mas essa evidência também pode empurrar o homem para a frente, para um acto absolutamente temerário, não pode?

K: Sim, também pode! A evidência total da morte produz dois efeitos completamente contrários: a inacção e acção total. De qualquer modo, esta acção total é, acima de tudo, uma tentativa de fugir à morte. A morte é tão presente que o homem foge dela, indo na direcção daquele que pode fazer a sua morte acontecer. Repara que a expressão que se usa é a de “fuga para a frente”, de fuga para morte. Fugir da morte na direcção dela, de onde ela vem. No fundo, é um acto religioso, porque quem avança na direcção da morte, acredita que pode assustá-la ou fazê-la parar, só pelo facto de ir enfrentá-la completamente a descoberto. Acredita que vai ser recompensado.

PJM: Mas pode acontecer, ou não?

K: Pode! Como também pode acontecer pormos cinco balas no tambor de uma arma de seis tiros, rodá-lo, apontá-lo à cabeça, disparar e ser a vez da câmara vazia. Mas quem é que sensatamente faria essa aposta?

PJM: Sim, só no desespero completo alguém faria uma coisa dessas!

K: Precisamente! O desespero completo é ter a morte como evidência total.

PJM: Também pode acontecer na vida de cada um, sem ser em combate.

K: Acontece sempre. A diferença é que em combate é tudo mais decisivo, é tudo mais apressado, e também tudo muito mais tangível. Em combate a morte sente-se fora de nós e à flor da pele. Se já tiveste a experiência de lutar na rua com desconhecidos, sabes que essa luta é muito mais do que uma luta a treinar. Podes sair magoado de ambas, mas na luta de rua, tudo à tua volta é sentido por ti como possibilidade de dor. Uma garrafa na mão do outro, já não é uma garrafa, é uma possibilidade que pode acabar contigo naquele momento. A grande diferença é que em combate a morte não é pensada, é sentida, na vida a morte é fundamentalmente pensada. Em combate, as coisas estão contra nós, se não estiverem a nosso favor. Na vida, as coisas são as coisas, são neutras, não precisam de ser nem a favor, nem contra. É por isso que em combate a morte se sente mais.

PJM: Presumo então que o Karadeniz também esteve em combate!

K: Claro! Antes de ser assassino profissional, fui militar. E cheguei a estar em combate.

PJM: Aonde é que combateu e quando?

K: Fiz o serviço militar nas forças especiais, quando regressei dos EUA, depois do curso de engenharia, e cheguei a combater em operações secretas nas montanhas entre a Turquia, o Irão e o Iraque.

PJM: Foi aí que adquiriu a perícia para a sua posterior profissão?

K: Uma parte dela, sim. A Turquia tinha, e ainda deve ter, das melhores forças especiais do mundo. A Turquia sempre foi e tem de continuar a ser fortemente militarizada, por causa do lugar onde se encontra. Vivíamos, e ainda vivemos, rodeados de inimigos.

PJM: Se, nos dias de hoje, estivesse a começar a sua vida, voltaria a ter a mesma profissão?

K: Voltaria. Parece-me uma profissão de futuro. Saber matar bem tem sempre futuro.

26 Jun 2017

Karadeniz: “Na vingança não se tem remorsos!”

(continuação)

5. A MORTE

[dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] mediterrâneo é um vasto continente cheio de história e de rochedos com vegetação rasteira junto à água. Depois de Istambul, é o lugar onde Karadeniz se sente melhor. Tinha aí uma pequena, mas confortável casa junto a Kas. Os túmulos hititas no meio da vila, no meio dos passos das pessoas parecem dizer que a morte é bela, que a morte se transforma em pedra e em arte. Ao fim da tarde, costumávamos passear por entre as pessoas e por entre a morte como se fossem coisas separadas, como se não houvesse ligação nenhuma entre ambas, como se a morte fosse um lugar para se visitar e tirar fotografias. Depois, no porto, vemos os barcos dos pescadores a trazer a morte de um ou outro tubarão agarrada à popa, e que muito diverte o Karadeniz, por causa da usual reacção de pânico dos turistas. Acrescentava sempre: “este hoje não se pode comer, só amanhã”. A carne precisava ainda de horas para amaciar. Aproximávamo-nos então dos baldes onde vinham os peixes e ele acabava por perguntar ao pescador para que restaurante ia o peixe que ele queria, e apontava. A morte vinda do mar é que ditava sempre o lugar onde íamos jantar.

Qual é a sua relação com a morte? Ela foi mudando ao longo da vida, segundo o ponto de vista daquele que a sabia fazer, segundo o ponto de vista daquele que também sabia que um dia ela lhe iria acontecer e segundo o ponto de vista daquele que está próximo dela? Fale-me da morte, por favor!

No início a morte não era a morte. A morte era matar e matar era uma forma de ganhar a vida. Para quem, como eu, viveu da morte, e ainda vive dela, dos seus lucros, ela não assusta, Paulo. Por outro lado, sempre fui meio-morto, na minha vida cheia de segredos. Fui provavelmente o melhor assassino profissional do século XX e ninguém sabe disso. Quem soube, tão poucos, ou já morreram ou estão prestes a levar com eles para sempre o meu segredo, o testemunho da minha perícia. Imagina saberes que és um dos melhores escritores do teu tempo e ninguém saber disso! Isso sim, assusta mais do que a morte, meu amigo. Senti mais vezes o terror, que muitos atribuem à morte, em outras coisas da vida do que na morte propriamente dita.

Em que coisas?

Sabes o que é acordar a meio da noite alagado de terror, porque sonhaste com uma mulher que amaste no teu passado, com quem viveste, a fazer amor com outro homem, e isso estar a passar-se no tempo em que ainda viviam juntos? Um sonho acerca de um facto que nunca existiu, provavelmente, mas após tanto tempo como se pode realmente saber se não aconteceu? Ela já não vive contigo há anos e volta à noite por entre os sonhos para destruir, não só o teu descanso, mas também o teu passado. Alagar de dúvidas e de rancores e de mágoa e de desânimo toda a tua vida. Não é fácil perceber que facilmente se mata um homem à distância, mas que na distância do tempo não consegues sequer impedir que uma mulher faça de ti o que quiser. Só não te mata, porque seria pôr a sofrer-te de menos. Nunca sofri pesadelos pelos homens que matei e, no entanto, uma mulher tortura-me todas as noites, vinda de longe, vinda da morte. E esta morte que nos atormenta, que nos faz sangrar de infelicidade, cabisbaixos pelo dia fora, não se transforma num belo túmulo, para que apreciemos o passado. Para mim, a morte é aquilo que poderia ter evitado e acabou por se tornar inevitável. A outra, a do fim de tudo, não sei do que se trata, não me mete medo. A morte fez muito por mim, não tenho de que me queixar, Paulo! Mas o evitável a tornar-se inevitável é que me macera a existência toda.

É mesmo verdade que nunca sentiu pesadelos pela morte que fazia acontecer aos outros?

Completamente! Nunca senti remorsos pelo meu trabalho. Alguém tinha de o fazer e eu era muito bom a fazê-lo. Fosse eu crente e diria que a minha perícia tinha sido uma bênção de Deus.

Também nunca sentiu remorsos pelos gatos que matava, gratuitamente?

Não, porque estava apaixonado por esse ódio. Queria vingar-me da minha mulher, da falta de amor dela por mim, da falta de amor dela pelo filho, da falta de amor do meu filho por mim. Se não era falta de amor, pelo menos era falta de vivência desse amor. Na vingança não se tem remorsos! Nem por um momento deixei de dormir ou acordei alagado de suor e terror pelas balas que cravei nos gatos.

Não se arrepende de nada na sua vida?

Arrepender, não, mas se pudesse voltar atrás tinha começado a minha colecção mais cedo. Tinha começado a colecção antes da minha mulher se ter ido embora.

Alguma vez a deixou de amar, à sua mulher?

Nunca! Esse é que é o problema, essa é que é a morte. Uma mulher que diz que me ama, mas que não consegue fazê-lo, embora continue a dizê-lo e mesmo assim tu não consegues deixar de amá-la nem mandá-la embora. A minha morte é a minha mulher.

Tornou-se a sua morte desde que o deixou ou desde que morreu?

Não, Paulo, tornou-se a minha morte desde que a conheci. Foi o evitável a tornar-se inevitável. No fundo, a minha vida é uma história de amor.

Mas quando conheceu a B. já há muito que trabalhava, que havia tomado importantes decisões acerca do rumo da sua vida. Antes da B., já matava para viver.

Mas nunca havia amado antes, nem amei mais ninguém depois. E isso conta mais do que o modo como ganhava a vida. Matar não durou para sempre, mas o amor por ela durou para sempre. Provavelmente, não haverá muitas pessoas no mundo que possam dizer isso. Pois não, Paulo?

Hoje, provavelmente, nenhuma. Mas o seu amor só durou para sempre porque nunca se concretizou, não pensa assim?

Tens razão, Paulo! Durou para sempre porque nunca nos chegámos a ter um ao outro. Ela queria-me de um modo e eu queria-a de outro muito diferente. Nunca nos chegámos a encontrar no nosso amor.

O seu filho sabe desse seu grande amor pela mãe dele?

O meu filho não quer saber de nada que não seja dinheiro e poder. Herdou da mãe a distância em relação às pessoas e herdou de mim o pragmatismo em relação à vida. Para o meu filho, o amor é uma puta fina.

16 Jun 2017

Karadeniz: “O que nos espera é o nada”

(Continuação)

Mas o Karadeniz disse que também tem moedas muito antigas, de antes deste seu tempo!…

É verdade, mas não foram procuradas como raridades de colecção! Foram encontradas em lugares do dia a dia, compradas a quem não sabia do seu real valor. Essas moedas são mais um testemunho do que se encontra nas ruas da cidade neste meu tempo do que um troféu raro. Não é peça de colecção, é peça do que se encontra na cidade.

O que é que o Karadeniz pretende fazer com tudo isto?

Enquanto for vivo, vou juntando mais coisas todos os dias. Quando morrer já não posso decidir nada acerca disto. Provavelmente vai tudo para o lixo.

Mas não o angustia saber que todo este seu esforço vai acabar em nada?

É como a vida! No fundo, o que aqui estou a fazer é uma metáfora da vida. Provavelmente, preferiríamos viver para sempre, ou ser recordados para sempre, mas o que nos espera é o nada. Não é, Paulo?

O que vamos ser quando já não formos, ainda não sabemos!

Não sabemos, mas temos bons indícios do que vai ser. Sabes o que é que também colecciono, Paulo?

O quê?

Esqueletos de peixes.

Esqueletos?!

Sim, espinhas de peixe! Tenho um esqueleto de cada um dos peixes que se pode comer em Istambul.

De todos?!

Bem, de quase todos. Desfio-os com muito cuidado antes de comer e depois guardo o esqueleto do peixe.

E hoje, portanto, é esta a sua vida?!

Podemos dizer que sim! Por vezes, vejo o que faço como uma grande obra de arte. Outras vezes, vejo tudo isto apenas como uma obsessão em relação à permanência. Gostava que as coisas permanecessem. Gostava que o que vem a seguir não apagasse o que já há. O que há devia haver sempre. O que há não devia tornar-se passado.

A sua mulher chegou a saber desta casa, deste amontoado de coisas?

Nem ela, nem o meu filho.

Já pensou que esta casa, esta obsessão por juntar coisas não é muito diferente da obsessão da sua mulher pelos gatos?

Já! Quem está apaixonado, seja pelo que for, não tem jeito para mais nada.

Não se pode estar apaixonado por mais do que uma coisa, por exemplo, uma pessoa e aquilo que se faz, ou por mais do que uma coisa que se faz ou por mais do que uma pessoa?

Não estou certo disso. Podemos ter relações intensas com várias coisas ou várias pessoas, mas julgo que a paixão é um sentimento exclusivo. A paixão pode ser um ódio. O ódio que tive aos gatos era uma paixão. Não me deixava ver mais nada. O ódio é a carga negativa da paixão; a paixão é a carga positiva do ódio. Por isso é que tantas vezes se passa de uma carga para outra em relação ao mesmo objecto ou à mesma actividade ou à mesma pessoa. Nunca sentiste ódio pela escrita ou por uma pessoa por quem já estiveste apaixonado?

Adiante! Há alguém que saiba da sua colecção? Há alguém que já aqui tenha estado?

Não e não. Um cidadão não pode compreender o que se passa aqui. As pessoas que moram neste prédio, nos outros andares, se soubessem de tudo o que aqui está, obrigavam-me a vazar o apartamento. Tenho sempre medo de que alguém venha a saber.

Uma vez mais, uma actividade que tem de manter em segredo!

Infelizmente assim é! Trago as coisas a horas diferentes, de modo a que tenham dificuldade em controlar as minhas entradas e o que faço. Porque, como já viste, o amontoado de coisas é tão grande que a porta de entrada já nem sequer abre toda. Se me virem a entrar de lado vão pensar que há algo de estranho. Vão querer saber. Vão começar a bisbilhotar.

Um destes dias já nem sequer consegue cá entrar, Karadeniz! Como é que vai fazer, arranjar outra casa?

Com a minha idade já não vai ser preciso, Paulo. Mas imagina que tinha começado com isto muitos anos antes! Então, sim, é que teria de arranjar outra casa. Por outro lado, não conseguiria deixar umas coisas aqui e outras lá. Teria de mudar tudo para uma casa maior, teria de ter tudo junto. Não consigo ver as minhas coisas separadas. Nem conseguiria separar-me delas. E então teria outro problema: a mudança de tudo isto. (pausa) Gostava de morrer aqui entre as coisas.

Só que o seu corpo poderia apodrecer aqui, sem que ninguém desse por isso!

Era bonito! Tornava-me eu mesmo parte da colecção, parte do amontoado de coisas.

O Karadeniz não tem mais nenhum familiar vivo, para além do seu filho?

Não! Fui filho único e os outros parentes há décadas que não sei deles. Como o meu filho não vai precisar do meu dinheiro, nem sequer o vai querer, gasto o dinheiro nestas coisas e nas viagens que faço, que agora já vão sendo poucas. Quase ninguém sabe de mim, no mundo inteiro. Julgo que nasci para ser tudo o que quisesse, desde que não fosse conhecido, desde que passasse completamente despercebido. Comecei por matar pessoas e gostava de acabar entre estas coisas que ninguém quer.

Mas há muita grandeza na sua vida, Karadeniz!

Muita grandeza, como assim!?

Você deixa de matar pessoas pelo ódio aos animais, que passa a matar, e acaba por encontrar o amor, a paixão entre as coisas que ninguém guarda, que ninguém quer, nessa sua obra de arte, como por vezes lhe chama. Não vê grandeza nisso? Você foi sempre exemplar em tudo o que fez!

Uma coisa é certa e, se bem te percebo, tens razão, vivi sempre nos limites do humano. Se isso é uma grandeza, já não sei.

(continua)

9 Jun 2017

Karadeniz: “Não sinto culpa por ter matado quem matei”

(Continuação)

[dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ostumam encontrar-se?

Raramente. Ele vem cá uma ou outra vez, mas eu nunca vou a Londres. Por vezes, o T. também vem a Istambul e nem sequer tem tempo para me visitar.

Não tem medo que, depois de publicar esta entrevista, ele reconheça o pai?

Não, Paulo! Não acredito que o livro venha a ser muito conhecido e menos ainda que o T. o possa vir a ler. Ele nunca lê, para além do que tem que ver com o seu trabalho.

Que idade tinha o Karadeniz, quando a sua mulher se separou, quando ela deixou Istambul e regressou a Londres?

Tinha 49 anos. O T. era uma criança com nove anos.

Ainda na década de 70…

Sim, em 1975, precisamente.

A B. não voltou a casar?

Não. Julgo que teve namorados, mas foi sempre muito discreta em relação a isso, por causa do filho. Não lhe deve ter sido difícil, ela não era uma mulher muito fogosa, não tinha muita necessidade de ter relações sexuais. Quando acontecia fazermos amor gostava, mas não eram muitas as vezes que lhe apetecia. Quanto à solidão, ela não a deveria sentir rodeada de tantos gatos. Os gatos eram o verdadeiro amor da sua vida.

Os gatos que tinha aqui em Istambul, deixou-os cá?

Nem pensar! Enviou-os todos por barco para Inglaterra.

E o Karadeniz voltou a ter namoradas?

Voltei, claro! Mas nunca nada sério. Mais tarde, comecei a preferir ir a Zurique, ficar bem instalado no Ritz e telefonar a uma agência de acompanhantes.

Ainda mata gatos?

Não! Não os posso nem ver, mas já não os persigo. Há muito que deixei de matar o que quer que seja.

E quando vê um gato lembra-se da sua mulher?

Isso é inevitável!

E a solidão, o Karadeniz não se sente só?

Não, Paulo! Leio bastante, como sabes, oiço os meus discos de jazz e vejo filmes. Mas a leitura e a música é que são as minhas companhias.

Sempre leu muito ou foi influência da sua mulher?

Sempre li muito, Paulo! Lia muito mais do que B. Com a porcaria dos gatos, ela não tinha tempo nem disposição para ler.

Sempre leu muito poesia, como parece que lê agora?

Sempre! Ao longo da minha vida, as minhas leituras foram sempre divididas entre os livros técnicos, de engenharia, física, química, matemática e os livros de poesia. Mas a leitura é e sempre foi para mim uma actividade nocturna, o que realmente ocupa mais o meu tempo, as horas dos dias, é a minha colecção de coisas. Comecei a adoptar coisas quando percebi o amor não correspondido pelo meu filho. Guardo isso tudo em uma outra casa, do outro lado do Corno de Ouro, muito perto de Eminonu.

4. A COLECÇÃO

Eminonu é um grande centro de chegadas e partidas dos vários destinos de Istambul. Os turistas conhecem certamente o Bazar Egípcio (de especiarias), a mesquita de Suleyman e o pequeno porto onde estão atracados os barcos que os hão-de levar a passear ao longo do Bósforo. Mas para quem vive em Istambul, Eminonu é principalmente um centro de comércio barato, com centenas de lojas onde tudo se compra e a todos os preços. Quando se pensa em Eminonu, pensa-se imediatamente na ponte de Gálata, com dezenas de homens em cima a pescaram e outras dezenas debaixo dela a beberem cerveja e a comerem petiscos. Ao contrário da maioria dos turcos, Karadeniz preferia o xadrez ao gamão. Quando comecei a acompanhar Karadeniz à casa da colecção, parávamos sempre debaixo da ponte para umas cervejas e um rápido jogo de xadrez. Descrever aquela casa é de uma dificuldade extrema. O que primeiro se vê é o pó. O pó é o verdadeiro habitante da casa. Depois, assim que conseguimos ver onde estamos, o nosso horizonte é preenchido por pilhas de jornais que, em alguns sítios, chegam quase ao tecto. E, por todo o lado, os objectos desafiam o vazio, conquistam o espaço. Para um humano, depois da estupefacção, a dificuldade maior naquela casa é mover-se. Para além do pó, que nos atrapalha a visão e nos dificulta a respiração, os jornais e os outros objectos são como minas que temos de evitar. Caminha-se naquela casa como na guerra: a medo e como se pela primeira vez estivéssemos na vida.

Karadeniz, o que é isto?

(risos) Tens toda a razão, a pergunta é o que é isto! Isto é uma espécie de colecção.

Uma espécie?…

Sim, Paulo, uma espécie de colecção.

Mas porque é que não lhe chama colecção?

Porque todas as colecções têm um critério ou critérios; esta não tem critério nenhum. Uma colecção sem critério é um amontoado de coisas. É o que isto é: um amontoado de coisas. Esta colecção é precisamente o contrário do que foi a minha actividade de matar pessoas selectivamente. Matei criteriosamente e salvo objectos a-criteriosamente.

Salva objectos?…

Sim, o que eu faço é salvar objectos. À excepção dos jornais, que devem ser guardados em alguma biblioteca, os outros objectos vão perder-se no tempo, se não forem guardados por alguém. Hoje em dia as pessoas deitam tudo fora, não guardam nada. Deitar coisas fora define muito bem este nosso tempo. Amontoar coisas aqui nesta casa é uma tentativa de salvar o tempo de si próprio, de salvar estas coisas do tempo. Paradoxalmente, salvá-las do tempo é mantê-las no tempo.

Mas que tipo de coisas é que salva, pode ser mais específico?

Por exemplo, as etiquetas das camisas, das camisolas, das cuecas, das meias, das calças, de refrigerantes, de vinhos, de cervejas. Etiquetas que recorto e plastifico com as informações da data de compra, o preço e o lugar onde as adquiri. Mas também guardo um exemplar de cada uma dessas coisas, sem as tirar dos plásticos ou das caixas originais. Por isso é que a casa está impossível de ser habitada. Felizmente não preciso de viver aqui.

E também tem aquelas coisas que são mais usuais serem coleccionadas: selos e moedas?

Também! Tenho selos e moedas de quase todo o mundo, e algumas das moedas são muito antigas e de valor incalculável, mas não têm organização nenhuma; não seguem um critério. São coisas que vou comprando e juntando.

O Karadeniz vê esta sua actividade de juntar coisas como uma atenuante da sua antiga actividade?

Não, Paulo! Já te disse que não sinto culpa pelos trabalhos que fiz. Não sinto culpa por ter matado quem matei. Junto estas coisas porque não tenho um filho. Porque, para o T., eu não sou um pai, sou um parente afastado. A evidência da falta de amor do meu filho é que fez com que estas coisas se juntassem aqui.

Não vê, portanto, nenhuma relação entre o seu passado e estas coisas?

Para além de serem inversamente paralelas quanto ao critério, não!

E como é que as adquire?

Ando pelas ruas e pelos mercados de Istambul, vejo coisas que me interessam e compro. Algumas, compro porque são estranhas, quase insólitas, como por exemplo uma lanterna que comprei no mercado polaco, que só trabalha com força manual, vamos apertando como se exercitássemos os pulsos e dá luz. Outras, compro porque me parecem marcas importantes de pequenos períodos do tempo, como por exemplo aquelas garrafas de refrigerante que traziam um berlinde lá dentro.

Sempre há algum critério!

Mas não é um verdadeiro critério, Paulo! Vamos lá a ver uma coisa: podemos também considerar critério o facto de eu ir com regularidade a esse lugares à procura de coisas ou comprar os jornais todos os dias. Mas o critério de uma colecção deve residir no interior da colecção e não fora dela. Uma colecção é sempre restrita. Uma colecção é sempre alguma coisa em detrimento do resto das coisas. Para mim, são todas as coisas, exceptuando as que não cabem aqui dentro de casa, porque também gostava de ter aqui uma betoneira ou uma grua, mas não cabe. Uma colecção é a condensação de uma fracção do mundo. A minha colecção é uma ambição de condensar o mundo ou, pelo menos, este tempo por que passamos no mundo. Segundo o ponto de vista do coleccionador, a minha colecção é uma aberração. A minha colecção é uma tentativa de congelar o tempo por que passamos. Uma verdadeira colecção está sempre fora do tempo, isto é, atravessa-o longitudinalmente.

2 Jun 2017

Karadenis (continuação): “Não se pode andar a trabalhar carregado de ódio”

E quais são os factos, Karadeniz?

Os factos são o ódio que passei a ter aos animais, por causa da minha mulher. A minha mulher gostava mais de animais do que de pessoas, especialmente gatos. O seu amor aos animais era inversamente proporcional ao amor pelas pessoas: quanto mais se aproximava dos animais mais se afastava das pessoas. Os animais, especialmente os gatos, eram quase tudo para ela. Pôs a casa cheia de gatos. De tal modo que se tornou impossível viver nesta casa. O cheiro dos animais, dos seus excrementos, das suas diferentes comidas. Divisões da casa fechadas com animais que não podiam misturar-se com os outros. Enfim, um inferno para um ser humano. A sua afectividade sempre foi mais extensa e efectiva para com os animais do que para comigo. Era uma vida frustrante, a minha.

Não sabia dessa afeição da sua mulher pelos animais, antes de casar?

Não sabia que era tão grave. Não era apenas afeição, era uma obsessão. Levava os gatos da rua para casa; saía todas as noites para alimentar os gatos da rua à volta destes quarteirões. Enfim, tratava dos gatos como não tratava de mim, nem dela, nem, mais tarde, do seu próprio filho. Não tenho dúvidas de que amava o filho, mas o filho não era gato, nem cão, nem pássaro.

Ela amava-o a si?

Julgo que sim, mas de um modo bastante distorcido, pois era incapaz de demonstrar o seu amor. Incapaz de me acariciar o rosto ou o corpo como o fazia aos animais, por vezes horas a fio. Aos poucos, afastou-se da comida. Começou a comer como um pássaro: sementes, vegetais, arroz. Passou a não comer, nem peixe, nem carne. Não comia animais. Por outro lado, eu ia ganhando um ódio irreversível aos animais, especialmente aos gatos. Eu que até aí tinha vivido de matar pessoas, comecei a não conseguir fazê-lo mais. Comecei a querer salvar as pessoas, a salvá-las dos gatos. A minha mulher saia para cuidar dos gatos e eu para matá-los. Muitas vezes cheguei a disparar deste terraço para tudo o que era gato que se mexesse aqui à volta, nos telhados ou lá em baixo nas ruas. Matar os gatos era um modo de repor a justiça no mundo. De repor a afectividade de novo nos eixos, a afectividade de novo nos humanos.

Porque é que não se separou simplesmente dela?

Porque havia sempre a esperança de que a situação mudasse; havia a esperança de que ela ainda pudesse transferir a sua obsessão pelos gatos para um filho, assim que engravidasse. Mas não foi nada disso que se passou. Depois, aos poucos, sem dar por isso fui ficando doente. Um dia percebi que odiava de morte os gatos e que havia de passar a viver para os matar, para os fazer sofrer.

Então essa é que é a verdadeira razão para ter abandonado a sua actividade profissional tão cedo?

É! Não se pode andar a trabalhar carregado de ódio. Não se pode matar pessoas estando doente. Ou era os homens ou os gatos! E os gatos tornaram-se uma obsessão impossível de ultrapassar. O último trabalho que fiz, em 1966, já foi o focinho de um gato que vi na mira da arma e não o rosto de um homem. Assim, não era possível trabalhar. Mais tarde ou mais cedo iria falhar. Mais tarde ou mais cedo a raiva e o ódio iriam deitar tudo a perder.

Quando e onde é que conheceu a sua mulher?

Conheci a B. em Londres em finais de 1962.

Por conseguinte, ainda antes do trabalho em Dallas!

Sim! Mas durante esse ano encontrámo-nos apenas quatro ou cinco vezes e não vivíamos juntos. Aliás, nesse ano julgo que nem sequer cheguei a ir a sua casa.

Que idade é que ela tinha e como é que se conheceram?

Ela tinha 24 anos, eu tinha 36 e conhecemo-nos numa loja onde ela trabalhava. Entrei lá para comprar uns discos de jazz. Apareci lá passados três dias e convidei-a para beber café. Depois é o que sempre acontece.

Ela vivia sozinha, em Londres, com o ordenado de empregada de loja?

Vivia, mas não era com esse ordenado. A B. era uma mulher muito especial. Tinha tido uma educação tão privilegiada quanto a minha e havia-se formado em Literatura Inglesa. Mas recusou continuar a estudar ou dar aulas. O dinheiro dela vinha de uma herança de família. Aos 21 anos herdou a parte que lhe cabia da morte do pai, quando ela ainda só tinha 12 anos. Trabalhava naquela loja porque era a loja de uma amiga, porque gostava de jazz e porque o tempo em que lá estava não deixava que a sua cabeça se ocupasse com pensamentos mórbidos, que usualmente a assaltavam.

Era bonita?

Era lindíssima, mas não acreditava que fosse. Vivia como se fosse uma rapariga feia e desinteressante, que nada tivesse para dizer a quem quer que fosse. De cada vez que a elogiava, reagia mal. No início, tem o seu encanto, mas depois começa a atingir o nosso próprio juízo de gosto.

Quando é que se casaram?

Casámo-nos no Verão de 1964. Por essa altura já eu tinha conhecimento da sua obsessão por gatos, mas sempre julguei que o casamento alterasse isso e que a mudança para Istambul também tivesse um efeito semelhante. Decidimo-nos por viver aqui, porque era melhor para os meus negócios. (pausa) Sabes que houve um homem que não morreu por causa do meu ódio de morte aos gatos, Paulo?

Como assim, Karadeniz?

A seguir ao meu último trabalho de que te falei, que vi o focinho de um gato em vez do rosto do homem, fui contratado para um outro serviço, que acabei por rejeitar fazer, por causa do que se estava a passar. O Jesuíta não estava disponível, eu sabia disso, e acabaram por contratar um inexperiente que acabou por ser apanhado antes de ter realizado o seu trabalho. Depois disso, desistiram completamente, para evitar problemas maiores com a Interpol. Ficaram escaldados. Mas o interessante desta história é que se fosse eu a fazer o trabalho esse homem teria sido morto e, assim, acabou por viver. Tudo pelo meu ódio de morte aos gatos. Tudo pelo amor enorme da minha mulher pelos gatos. (pausa) Meu amigo deixa-me dar-te um conselho: se queres continuar a escrever, não te cases!

Como é que a sua mulher morreu?

Morreu num desastre de viação. Um jovem bêbado foi bater com o seu carro contra o dela. Parece que foi morte imediata.

Em Londres?

Sim, nos arredores de Londres.

E o seu filho, passou a viver consigo?

Não. O T. já estudava nos EUA. Regressou para o funeral e para aquelas questões chatas e práticas das heranças, mas partiu logo de seguida para a América.

O que é que ele estudou na América?

Economia, finanças, gestão… esse tipo de coisas.

(continua)

26 Mai 2017

Karadenis: “Não se mata, nem se salva ninguém com crenças”

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]em razão, na escrita a verdade não se encontra no mundo com essa determinação com que se encontra na actividade de matar por dinheiro.

Por isso, parece-me, o juízo auto-crítico deverá ainda ser mais determinante na escrita do que na minha actividade. Falhar o alvo ou ser-se morto parece-me comprovação suficiente para a falta de talento, na minha profissão. Mas, na escrita, o que é falhar o alvo? E, obviamente, morrer, não se morre.

Quer então dizer que estou ainda mais só do que você?

Mais só não estás. Caso sejas um bom escritor, podes estar tão só quanto eu estou, quanto eu estive toda a minha vida, mas não é possível estar-se mais só, parece-me. Agora o que me parece evidente é que estás muito mais incerto do que eu. Muito mais abandonado à dúvida. Não tens ninguém que te possa matar, nem sabes qual é o teu alvo. Se fosse a ti, agarrava-me ainda com mais forças à única possibilidade de certeza que tens: o teu juízo auto-crítico. (pausa) Já reparaste bem na beleza desta cidade, Paulo? Não achas que esta cidade tem que ver com o jazz, Paulo?

Nunca havia pensado nisso, do jazz! A beleza de Istambul só é igualável à beleza dos mitos. Mas porque é que diz que a cidade tem que ver com o jazz?

Porque ela é tocada por modos gregorianos, como o jazz! A cidade é constituída por modos… Sabes música, não sabes?

Sim, sim, pode continuar!

Aqui é o modo dórico (e apontava), ali o modo lídio, mais além o modo mexolídio e por aí adiante. Percebes agora? A cidade não é diatónica, como a música clássica. E a magia do jazz reside nas misturas dos diversos modos numa canção, como Istambul.

Como é que começou a gostar de jazz?

O jazz é do meu tempo, Paulo! Comecei a gostar de jazz quando fui estudar engenharia para a América, para os EUA, na década de quarenta. Depois nunca mais deixei de ouvir jazz.

O seu filho também gosta de jazz?

Gosta.

E também gosta de Istambul?

Gosta, mas não vive cá! Vive em Londres. É um bem sucedido homem de negócios em Londres. Faz importação de legumes da Turquia para Inglaterra. Mas não estou certo de que seja só isso que ele importa?

 

O que o leva a pensar isso?

Pequenos detalhes, Paulo, pequenos detalhes. Mas não quero falar nisso. Posso até estar errado. Não quero ser injusto com o meu filho.

Que idade é que ele tem?

Deve ter a tua idade. Nasceu em 1966.

É um ano mais novo. E a sua mulher?

A minha mulher já morreu. Morreu há 12 anos. Mas já estávamos separados há muito mais tempo. Separámo-nos ainda o meu filho era criança e divorciámo-nos dois anos depois. A minha mulher era inglesa. Depois da separação voltou para Londres. O T. cresceu muito mais em Londres do que aqui. Mas vinha cá todos os anos. Ele fala correctamente turco.

O seu filho sabe da sua actividade passada? A sua mulher soube?

Não, nenhum dos dois! Seria o começo do fracasso, Paulo. Sempre julgaram que eu era um homem de negócios. Negócios disto e daquilo; negócios aqui e ali. O que também acabou por vir a ser verdade.

O que é que o levou a contar-me a sua história?

(sorri) Várias razões. O modo como nos conhecemos e a tua atitude naquele momento de crise; o facto de seres escritor; o facto de amares Istambul; o facto de vires de um país de influência mediterrânica, com um passado grandioso e um presente exíguo. Depois, restam-me poucos anos de vida e já nada vai importar.

3. A MULHER

Em determinadas horas a cidade é coberta pelo som altifalante dos muezines como se algo ou alguém magoasse a cidade e esta se queixasse. Karadeniz abandona o terraço e refugia-se dentro de casa, no isolamento sonoro da casa. Recordo-me de um taxista, que um dia me conduzia a Beyoglu, e desligou o rádio no momento da oração dos muezines. No fim da oração, disse-me que não era por ser religioso, mas por respeito. “Respeito” é uma palavra de grande densidade em Istambul.

Isto é um disparate completo!

Isto o quê?

Estas orações em árabe, que ninguém percebe. Como é que alguém pode acompanhar as orações, se não percebem nada do que está a ser dito? Devemos todos aprender árabe para rezar ou, pelo contrário, as orações deviam passar a ser em turco? A mim parece-me evidente qual a resposta a dar. Não percebo este país!

Porque é que diz isso?

Porque temos escrito no bilhete de identidade que somos religiosos, que somos muçulmanos, mesmo que não sejamos coisa nenhuma, como a maioria das pessoas que vivem nesta cidade. Mesmo os que dizem ser religiosos, se não são extremistas, não rezam cinco vezes ao dia e bebem regularmente bebidas alcoólicas. É possível um país ser muçulmano e ter como bebida nacional o Raki, que tem 45% de álcool? A religião muçulmana não é compatível com a vida em grandes cidades como Istambul. Provavelmente nenhuma religião é compatível com as grandes cidades. Sinto o meu bilhete de identidade como uma agressão contra mim mesmo. Ando pelo mundo com uma mentira escrita por baixo do meu nome.

Percebo que o Karadeniz não tem religião, mas acredita em Deus?

Acredito coisa nenhuma! Sou agnóstico, sou um homem de ciência. Não se mata, nem se salva ninguém com crenças, mas com conhecimento e acção.

Porque é que o Karadeniz se separou da sua mulher?

Não fui eu que me separei dela, foi ela que se separou de mim.

E porquê?

Porquê? Porque as pessoas se fartam muito depressa umas das outras. Porque à medida que se envelhece ficamos mais sós connosco mesmos e torna-se muito difícil viver com os outros. Principalmente se os outros esperam que nos comportemos desta e daquela maneira precisa. E estar casado é ter de ser desta ou daquela maneira.

Parece então que não foi propriamente uma desilusão, quando a sua mulher decidiu deixá-lo…

Claro que não! Por um lado, até foi um grande alívio. Mas não seria eu a deixá-la. Isso não conseguia fazer.

O Karadeniz é um homem feliz?

A felicidade é uma grande contradição. Aquilo que mais se ambiciona é ser feliz, mas na felicidade não se faz nada. Se o mundo fosse feliz, parava. Ser feliz é sair do mundo. Quer ser feliz quem se sente a mais ou a menos no mundo! No fundo, é o que todas as religiões vendem: a felicidade, sair do mundo. Claro que isso tem um preço muito elevado: Deus. É estranho que tu, sendo escritor, me perguntes pela felicidade.

Não foi uma pergunta para saber se era ou não feliz, mas para saber o que pensava da felicidade. Só que não consegui perguntar-lhe se acreditava na felicidade ou o que é que pensa dela. Essas perguntas parecem-me ainda mais esdrúxulas do que a que lhe fiz. A sua mulher chegou a aprender turco?

Não! Os ingleses têm muita dificuldade em aprender a língua dos outros. E ela não era excepção. Falávamos sempre em inglês. A B. nunca se sentiu bem em Istambul. Não era só pela língua, mas por tudo. Ela não gostava do cheiro da cidade, nem da comida, nem das pessoas. Sentia a falta do bife. (risos)

Por conseguinte, foi por convicção que não voltou a casar. Mas ao longo dos anos não sentiu a necessidade de ter alguém junto a si?

Aprendi duas coisas preciosas na profissão que tive: não se podem cometer erros; mas se por acaso cometemos um e sobrevivemos, então é imperioso aprender que não o podemos voltar a fazer. Para mim, o casamento foi um grande erro. Sou uma pessoa que não nasceu para viver com outra. Nasci para mim. Muitas vezes penso que as pessoas vivem umas com as outras por fraqueza. Devíamos viver todos sozinhos e depois encontrarmo-nos uns com os outros para o que quiséssemos, ou não nos encontrávamos. Sei que isto é impossível, mas parece-me que se vivêssemos sozinhos a vida seria melhor para todos. Dá-se mais valor à vida, só, do que acompanhado. A vida torna-se maior, mais pesada e mais densa. A vida torna-se no que ela verdadeiramente é.

Mas então por que é que se casou?

Casei-me por fraqueza e por um erro de cálculo. Fraqueza, porque julgava que precisava daquela mulher para viver; ninguém precisa de ninguém para viver. Erro de cálculo, porque queria ter um filho e julguei que casar-me ou viver com alguém era fundamental para que isso acontecesse. O que se passou foi que o casamento acabou por me levar o filho. O T. é muito mais filho da B. do que meu; e é muito mais inglês do que turco. Um homem se quiser ter um filho, é melhor que pague. Pague a alguém para gerá-lo consigo e carregá-lo nove meses na barriga. Depois, assim que nasça, dinheiro numa mão e a criança noutra. É o único modo de ficarmos descansados quanto à possibilidade de mais tarde alguém nos querer tirar o filho. De outro modo, é impossível. As pessoas não vivem juntas para sempre e quando se separam a mãe leva a criança consigo. E mesmo que consigam viver juntas, o filho é sempre mais filho da sua mãe do que do seu pai. (pausa prolongada) Ainda que seja verdade tudo o que tenho estado a dizer, os factos são diferentes…

19 Mai 2017

Karadenis: “Na minha actividade não há meio-termo”

 

[dropcap style≠’circle’](c[/dropcap]ontinuação)

E quem é que o quis matar à bomba?

A CIA! Foi depois de um trabalho que fiz para eles. Depois quiseram acabar de vez com os rastos que poderiam levar até eles. Encomendaram-me um trabalho fazendo-se passar por uma corporação financeira da Suíça. Aliás, fizeram a encomenda precisamente através dessa corporação. O plano era simples: davam-me todos os dados e só tinham de esperar que eu cumprisse o contrato: que eu cumprisse ir morrer.

E como é que o Boris Solomatin soube de tudo isso e o avisou?

A KGB sabia sempre dos movimentos da CIA, e vice-versa. O que a CIA não estava à espera é que o chefe da KGB tivesse escrúpulos, que me avisasse, que tomasse partido pela minha vida. Pois não tenho dúvidas de que eles sabiam ter sido eu a destruir as informações e a eliminar o dissidente soviético em Burgas! Só poderia ter sido eu! Só poderia ter sido um profissional turco, que passasse a fronteira sem levantar suspeita. Mas eles não sabiam duas coisas: que esse trabalho tinha sido uma encomenda pessoal do Boris, e não da KGB, uma espécie de favor pessoal, e que por isso mesmo ele me respeitava. E não se fica de braços cruzados a ver morrer um homem que se respeita.

O seu profissionalismo acabou por lhe salvar a vida…

É a única coisa que nos pode salvar a vida, Paulo! Ser-se o mais profissional possível na actividade que se faz. Não é assim também na escrita?

Não estou certo disso!… Embora se passe o tempo todo a dizer o contrário, o talento é fundamental na escrita.

E julgas que para se viver de matar não é preciso igualmente talento? É sempre preciso talento para se ser profissional! E, quando digo que nos salva, digo-o porque é a única certeza que se tem na vida: sabemos fazer bem aquilo que fazemos, independentemente de tudo o resto.

E como é que sabemos isso? Como é que sabemos que fazemos bem aquilo que fazemos, que fazemos bem a nossa actividade profissional?

Porque perguntamos sempre! Para além do talento que nos impele a fazer, a fazer continuamente melhor, há a contínua interrogação: será que não estou a cometer nenhum erro? Será que não seria melhor fazê-lo de outra maneira? Será que não devia parar? Enquanto continuares a exercer a tua actividade e a interrogares-te pela tua capacidade diante dela, poderás dizer que fazes bem aquilo que fazes.

Mas essa interrogação pode muito bem ser uma interrogação retórica! Um mau assassino profissional pode ser assaltado pela pergunta: estarei a fazer bem; não deveria fazer de outra maneira? Ele pode fazer estas perguntas e ser efectivamente mau profissional, por isso essa pergunta acaba por ser uma pergunta que cabe a todos quantos fazem e não a quem faz bem. Por outro lado, bastava saber-se disto para se ser bom, isto é, quem fosse mau bastava saber que a pergunta o salvava e passava a ser bom. Isto parece-me muito retórico, não concorda?

Não sei, Paulo, porque nunca morri. E nunca cheguei a conhecer aqueles que tinham a mesma profissão que eu e morreram. Sempre tomei por certo que o sentido crítico apurado era um efeito do talento. Mas talvez não seja assim. Talvez tu estejas certo e eu esteja errado. Certo, certo, é que não morri. E desejo o mesmo para ti. Desejo que não morras na escrita, como eu não morri na morte dos outros. Desejo, portanto, que sejas conhecido inversamente ao meu desconhecimento. Aquilo que faz o teu sucesso, seria o meu fracasso, como já sabes, mas na minha actividade não há meio-termo, como parece existir na tua. Não há um homem meio-vivo ou meio-morto, por outro lado parece-me que é possível ser-se meio-escritor. Tornar-me conhecido era morrer. Mas um escritor pode não ser muito conhecido e ser um bom escritor. Pode também ser muito conhecido e ser um bom escritor. E pode ser pouco conhecido e mau e muito conhecido e igualmente mau. O que pretendo dizer, Paulo, é que na minha actividade a verdade vem logo ao de cima; ou, melhor, a verdade nunca vem ao de cima, pois aquele que é bom nunca se deixa reconhecer.

12 Mai 2017

Karadeniz (continuação): “Cheguei a ter de matar para não morrer”

2. O terraço

[dropcap style≠’circle’]É[/dropcap] luz ao fim da tarde. O palácio Topkapi, a mesquita Suleyman e Hagia Sofia do outro lado do Corno de Ouro e, muito mais perto de nós, a torre de Gálata: tudo isto se avistava do enorme terraço da casa de Karadeniz. Podia-se ainda ver os inícios do mar de Mármara e do Bósforo. Mais do que uma paisagem esmagadora, era um lugar estratégico por excelência. Estratégico desde os remotos tempos do início desta cidade, então Bizantina. O som que se podia ouvir em todo o terraço era o de John Coltrane e a cor do líquido no copo que trazia na mão denunciava o seu whisky preferido: Lagavulin 21 anos; uma cor e um sabor tão raros, somente igualados pela raridade com que se encontra esse precioso líquido.

Isto não é uma casa, K., é o ponto da cidade mais estratégico a seguir à torre de Gálata! Este observatório teve a ver com a sua antiga profissão?

De facto, já tenho esta casa desde os tempos em que trabalhava! Comprei-a em 1964… Mas comprei-a realmente pela vista fantástica e não pela localização estratégica. Aliás, a estratégia foi tê-la comprado (risos).

Alguma vez o tentaram matar?

Várias vezes! Não matei só em trabalho, cheguei a ter de matar para não morrer. Embora as tentativas que fizeram para me matar tivessem que ver com a minha profissão.

Tentaram matá-lo como e onde?

Sempre no estrangeiro! Nunca se aventuravam a entrar na Turquia, nesses tempos. O país era muito militarizado e controlava muitíssimo bem as suas fronteiras. E também não havia necessidade de vir aqui, porque quando me tentavam matar sabiam qual o trabalho e onde o ia executar. Por isso, era mais fácil fazê-lo aí. Tentaram umas duas ou três vezes nos hotéis onde estava, a tiro, e uma vez com uma bomba no local onde previamente seria suposto eu estar para atirar no alvo a eliminar. A da bomba, só não me matou, porque alguém da KGB me informou a tempo.

Um amigo de profissão?

Antes de mais, Paulo, nesta profissão não se faz amigos, só inimigos. No fundo, não é muito diferente do que é na vida em geral, quando se é bom no que se faz. Não se faz amigos, mas ganha-se respeito. E isso sim, o Boris Solomatin já tinha por mim muito respeito quando interferiu para sempre na minha vida.

Estamos a falar de quem?

Tu não sabes mesmo nada, pois não? (risos) Estamos a falar do extraordinário Boris Solomatin. Um senhor da minha idade e que se reformou em 1991. Foi chefe da KGB até 1988. Foi militar na Segunda Guerra Mundial, voluntário e muito jovem, ainda não tinha 18 anos, segundo consta, mas depois nos Serviços de Inteligência nunca chegou a executar trabalhos de eliminação. Nunca foi um operacional. Ainda no meu tempo, chegou a chefe da KGB, com quarenta e poucos anos, um feito inigualável. Impressionante, não é?

Sem dúvida! Como é que se conheceram e porque é que ele lhe salvou a vida?

Em finais de 50, houve um espião cujo nome não me lembro que tentou escapar para o ocidente com valiosíssimas informações dos sistemas de segurança militar soviético. O objectivo dele era chegar a contactar com as forças da NATO, estacionárias no Mar Negro, nas águas territoriais turcas, de modo a receber uma grande soma de dinheiro e uma identidade nova. Em suma, mudar de vida, privilegiadamente, à custa do que conseguira saber na KGB. Esse senhor dissidente encontrava-se numa casa perto da cidade de Burgas, na Bulgária. Uma cidade do Mar Negro, muito perto da fronteira turca. Nesse tempo, ficava a uma hora e meia de carro da fronteira, hoje não deve ser mais de meia-hora. Quando Boris Solomatin soube da traição, já não havia tempo de lá chegar, senão pela Turquia. Não podia arriscar nos Serviços de Inteligência da Bulgária, pois não sabia até que ponto eles podiam ou não estar envolvidos ou quem é que estava envolvido. Havia apenas uma hipótese de destruição das informações e de eliminação do dissidente: alguém que viesse directamente da Turquia, sem levantar suspeita, isto é, um turco; simultaneamente, um profissional, que estivesse interessado no dinheiro e em mais nada. Como acabei por executar o trabalho na perfeição, não deixando sequer rastos de ter sido a KGB e destruindo tudo, pegando fogo à casa onde o homem se encontrava, ficou até a pensar-se que poderia ter sido a CIA, Solomatin ficou-me bastante grato. Em 1964, quando tudo isto se passou, ele já era chefe da KGB. Ele admirava dois tipos de pessoas: as que morriam pelo seu país e as que morriam por dinheiro; no fundo, ele admirava quem dizia a verdade e morria pelo que acreditava.

Chegou a fazer mais algum trabalho para ele?

Vamos a ver uma coisa: este trabalho que fiz foi um trabalho pessoal, embora tenha tido reflexos em toda a defesa soviética, foi um trabalho para o Solomatin; um trabalho para ele. Mas antes já havia feito um trabalho para a KGB. Depois, acabou! Como já te disse, eles não repetem os free lancers, pelo menos nesse tempo da guerra-fria não repetiam. O Solomatin acabou por me contactar porque não tinha outra saída, não havia tempo para mais nada.

(continua)

5 Mai 2017

Karadeniz | “A democracia também chegou ao assassínio por encomenda!”

(continuação)

Não sei como é que se consegue viver bem consigo mesmo depois de se fazer mal a alguém?! Eu arrasto a culpa por males que fiz, e nada que se compare com isso…

Tu não vives bem contigo, não é pelo mal que fizeste ou deixaste de fazer, Paulo! Tu não vives bem contigo, porque é essa a tua natureza. Tu e as pessoas como tu vivem num mundo paralelo: um mundo onde se julgam responsáveis pelo que acontece.

E não somos todos responsáveis pelo que acontece?

Não! O facto de eu ter sido um assassino profissional, aconteceu apenas porque era uma possibilidade de profissão como outra qualquer. Se ninguém pagasse tanto dinheiro pelos meus serviços, eu não teria tido a vida que tive. É o mesmo que hoje se passa com os cantores pop, as top model e os jogadores de futebol. Ainda muito antes das crianças saberem quem são, já querem vir a ser cantores ou jogadores de futebol, porque ganham muito dinheiro e são reconhecidos por toda a gente.

Porque é que nunca se falou de si, como por exemplo se falou do Chacal?

Muito simplesmente porque nunca cometi um erro sequer! Nunca cheguei a ser procurado, porque nunca cheguei a pisar os calos de quem não devia. O mesmo já não se pode dizer do Chacal, como sabemos. O problema dele, e que acabou por derrotá-lo, era a sua vaidade. Quando se anda nesta profissão, tem de se ter a consciência de que o mundo não pode saber de nós. Era como se tu escrevesses um livro magnífico, mas que ninguém o fosse ler; ou então um grande cantor que nunca quisesse cantar para ninguém.

É portanto uma profissão ao contrário deste nosso tempo, em que toda a gente quer ser reconhecida pelo mundo, nem que seja por cantar pior do que todos os outros!

Exactamente! (risos)

Nessa profissão em que se tem necessariamente de ser o melhor e de não se ser reconhecido (e quanto melhor, menos reconhecido), o Karadeniz conheceu ou soube de alguns colegas seus, cujos nomes não tenham chegado a público, ao contrário do Chacal?

Claro! O melhor de todos nós era provavelmente o Jesuíta! Um belga que havia passado pela Legião Estrangeira, na sua juventude, e que falava na perfeição imensas línguas. Teve, tal como eu, uma educação privilegiada. E há que ver uma coisa, Paulo: o Chacal não era um assassino profissional, mas um terrorista, e nunca foi meu contemporâneo. Abandonei a actividade em meados dos anos 60 e ele começou no início ou em meados de 70. De qualquer modo, repito, o Chacal era um terrorista, não um profissional.

Mas então qual é realmente a diferença? O que é que faz com que o Chacal tenha sido um terrorista e não um assassino profissional?!

Já te disse que o terrorista mata indiscriminadamente e, também, muitas das vezes por convicções, sejam elas políticas, religiosas ou nacionalistas. O assassino profissional mata apenas aquele por que foi pago, embora as coisas hoje já estejam muito diferentes do meu tempo!

Diferentes, como?

Para além de toda a tecnologia que existe e que não existia no meu tempo, hoje também há muita gente a matar por cinco tostões. Hoje já qualquer um é assassino profissional, tem trabalhos encomendados por dá cá aquela palha! A democracia também chegou ao assassínio por encomenda! Toda a gente, hoje, à menor dificuldade com alguém, paga para que se mate. Dantes não era assim, só se mandava matar gente importante! E isto faz com que seja muito difícil distinguir entre terroristas, arruaceiros e assassinos profissionais.

Mas continua a haver os verdadeiros assassinos profissionais, como o Karadeniz?

Julgo que sim! Até porque a queda do comunismo pôs muita gente especializada no desemprego, e nem todos se devem ter dedicado aos tráficos e às máfias. Por outro lado, continua a haver pessoas importantes que têm de ser mortas, sem que se corra o menor risco de ficar implicado, e não tenhamos quaisquer dúvidas que estes trabalhos só podem ser levados a cabo por quem saiba ser eficiente e discreto.

(continua)

1 Mai 2017

Karadeniz: “Comigo o ódio acabava”

Introdução

Este livro aparece no seguimento das inúmeras conversas que fui tendo com o Karadeniz (que quer dizer Mar Negro, em turco), ao longo dos dois últimos anos que vivi em Istambul e de algumas vezes que fomos juntos para o Mediterrâneo. Karedeniz foi o seu nome profissional e não é o seu nome de cidadão, que aqui não é revelado, pois também não é esse que interessa a este livro, mas sim o mito que ele representou para as organizações, instituições e governos nas décadas de 50 e 60 do século passado. Conheci o Karadeniz em Istambul, na Avenida de Gumussuyu, junto ao consulado alemão, no Outono de 2001, umas semanas depois dos atentados às torres gémeas de Nova Iorque. Ele vinha a sair do prédio do barbeiro, em Gumussuyu, e eu ia a entrar, no preciso momento em que se dá o rebentamento de uma bomba junto ao consulado. O meu instinto foi derrubá-lo e protegê-lo. Felizmente a bomba não fez vítimas, exceptuando a rapariga que a transportava. Há já muito tempo que não havia atentados em Istambul, mas o 11 de Setembro parecia trazer de novo o terror à cidade. Embora não lhe tenha salvo a vida, depois de se levantar, e no meio dos gritos e da confusão generalizada, Karadeniz agradeceu-me com intensidade esse meu gesto reflexivo, convidando-me a ir a sua casa para tomar uma bebida. A sua idade e o seu reconhecimento impediram-me de rejeitar o seu convite. Haveria de ser o grande encontro da minha vida. Acabámos por conviver quase diariamente até ao dia da sua morte.

 1. O trabalho 

Nos dias que correm, em que o terrorismo se tem tornado uma instituição mundial, como é que vê a profissão que teve?

Detesto terroristas! Não têm respeito nenhum pela vida humana. Eu não fui um terrorista, fui um assassino profissional. A diferença é total!…

Como assim? Em que consiste essa diferença?

Eu matava apenas quem estava a mais neste mundo, a mais para um outro ser humano específico, ou uma organização específica. Era uma espécie de intermediário entre a origem do ódio e o fim dele. Comigo o ódio acabava. No fundo, fui um exterminador de ódio! (risos) Nunca matei inocentes! Nunca matei quem não devia matar.

Mas quem é que decide que alguém está a mais no mundo?

Quem tem dinheiro para pagar e coragem para viver com as consequências da decisão que tomou. Pode ser um governo, uma empresa, uma organização ou um indivíduo. Por outro lado, não há aqui qualquer desigualdade ou injustiça no uso desse dinheiro para matar, porque quem paga para que se mate alguém, não paga para que se mate alguém sem poder, mas alguém com poder igual ou superior, qualquer que ele seja.

Talvez não seja sempre assim tão linear! De qualquer modo, como é que o Karadeniz conseguia viver com essa sua actividade? Ou seja, como é que justificava, para si mesmo, viver de matar pessoas?

Pela própria natureza do ser humano: ele não é insubstituível! Depois, a partir de um certo momento, já não se procuram razões para aquilo que se faz. Faz-se e pronto! Tentamos aperfeiçoar-nos, tornar-nos cada vez melhor.

Pensa mesmo que o ser humano é substituível?

Claro que sim! Tudo e todos são substituíveis.

Acredita mesmo que um filho pode ser substituído por outro filho ou por outra criança? Ou que um pai pode ser substituído por um outro homem, nos sentimentos de um filho?

Vamos lá a ver: uma coisa é a pessoa, outra coisa muito diferente é aquilo que ela representa para uma outra pessoa. Se tu morreres, não vais ser substituído (a não ser talvez, num tempo futuro, se fores clonado), mas aquilo que representas para o teu pai ou para o teu filho pode ser substituído. As relações são substituíveis, ainda que os indivíduos isolados não sejam. Mas o ser humano isolado não existe, ele é um conjunto de relações.

O Karadeniz é pai?

Sou!…

E aquilo que me disse também se aplica ao seu filho?

Claro! Se o T. morrer amanhã, a minha relação com ele pode ser substituída pela minha relação com outro homem (acaso ainda houvesse tempo). Aquilo que sentimos não é infinito, Paulo. Não podemos estar continuamente a sentir coisas novas e diferentes. Imagina um homem com doze filhos, ele não sente doze diferentes amores filiais!… Dou-te um exemplo que talvez percebas melhor. Já encontraste alguma vez uma mulher que fosse insubstituível no teu coração, uma mulher que acalmasse o vazio de um desejo de prazer e de uma contínua insatisfação? Uma mulher que te transformasse para sempre?

Julgo que não!…

Julgas?! Claro que não, Paulo! E é disso que estou a falar. Ou julgas que se houvesse uma mulher que te transformasse para sempre, ela seria menos importante do que um filho ou de que um pai? Digo-te mais: o facto de não haver quem transforme as nossas vidas para sempre, é razão suficiente para aceitar pacificamente a vida que levei, de assassino profissional.

Eu nunca fui pai, mas dizem que essa experiência muda as nossas vidas para sempre. É verdade?

Não! Se fosse verdade, o mundo melhorava imediatamente com o nascimento do primeiro filho. Se fosse verdade, neste mundo cheio de filhos, o mundo teria de ser melhor do que é. Ou então, foi precisamente o nascimento do primeiro filho que transformou o mundo em algo que não consegue ser melhor do que isto. Quer dizer, quando um homem se torna pai, torna-se pior! Mas eu não acredito em nada disto, Paulo! Ser pai não transforma um homem em nada. Se o transformasse realmente, então ele seria diferente, olhá-lo-íamos de forma diferente, provavelmente nem o reconhecíamos. Mas não é isso que se passa, pois não?

Parece que não!…

Ser pai é como ser uma outra coisa qualquer que exija responsabilidade. Olha, é como ser assassino profissional! Há que ter responsabilidade, ter cuidado e não desiludir quem de nós espera o melhor. E, repara, que eu sou a pessoa que pode realmente falar com propriedade acerca desta comparação… Vamos lá a ver uma coisa: se um homem ou uma mulher mudassem realmente ao serem pai ou mãe então passariam a querer ser melhores do que eram. Passariam a querer ser o que ainda nunca tinham sido. Mas as qualidades deles não mudam, a qualidade não muda.

(continua)

21 Abr 2017