Karadenis: “Não se mata, nem se salva ninguém com crenças”

[dropcap style≠’circle’]T[/dropcap]em razão, na escrita a verdade não se encontra no mundo com essa determinação com que se encontra na actividade de matar por dinheiro.

Por isso, parece-me, o juízo auto-crítico deverá ainda ser mais determinante na escrita do que na minha actividade. Falhar o alvo ou ser-se morto parece-me comprovação suficiente para a falta de talento, na minha profissão. Mas, na escrita, o que é falhar o alvo? E, obviamente, morrer, não se morre.

Quer então dizer que estou ainda mais só do que você?

Mais só não estás. Caso sejas um bom escritor, podes estar tão só quanto eu estou, quanto eu estive toda a minha vida, mas não é possível estar-se mais só, parece-me. Agora o que me parece evidente é que estás muito mais incerto do que eu. Muito mais abandonado à dúvida. Não tens ninguém que te possa matar, nem sabes qual é o teu alvo. Se fosse a ti, agarrava-me ainda com mais forças à única possibilidade de certeza que tens: o teu juízo auto-crítico. (pausa) Já reparaste bem na beleza desta cidade, Paulo? Não achas que esta cidade tem que ver com o jazz, Paulo?

Nunca havia pensado nisso, do jazz! A beleza de Istambul só é igualável à beleza dos mitos. Mas porque é que diz que a cidade tem que ver com o jazz?

Porque ela é tocada por modos gregorianos, como o jazz! A cidade é constituída por modos… Sabes música, não sabes?

Sim, sim, pode continuar!

Aqui é o modo dórico (e apontava), ali o modo lídio, mais além o modo mexolídio e por aí adiante. Percebes agora? A cidade não é diatónica, como a música clássica. E a magia do jazz reside nas misturas dos diversos modos numa canção, como Istambul.

Como é que começou a gostar de jazz?

O jazz é do meu tempo, Paulo! Comecei a gostar de jazz quando fui estudar engenharia para a América, para os EUA, na década de quarenta. Depois nunca mais deixei de ouvir jazz.

O seu filho também gosta de jazz?

Gosta.

E também gosta de Istambul?

Gosta, mas não vive cá! Vive em Londres. É um bem sucedido homem de negócios em Londres. Faz importação de legumes da Turquia para Inglaterra. Mas não estou certo de que seja só isso que ele importa?

 

O que o leva a pensar isso?

Pequenos detalhes, Paulo, pequenos detalhes. Mas não quero falar nisso. Posso até estar errado. Não quero ser injusto com o meu filho.

Que idade é que ele tem?

Deve ter a tua idade. Nasceu em 1966.

É um ano mais novo. E a sua mulher?

A minha mulher já morreu. Morreu há 12 anos. Mas já estávamos separados há muito mais tempo. Separámo-nos ainda o meu filho era criança e divorciámo-nos dois anos depois. A minha mulher era inglesa. Depois da separação voltou para Londres. O T. cresceu muito mais em Londres do que aqui. Mas vinha cá todos os anos. Ele fala correctamente turco.

O seu filho sabe da sua actividade passada? A sua mulher soube?

Não, nenhum dos dois! Seria o começo do fracasso, Paulo. Sempre julgaram que eu era um homem de negócios. Negócios disto e daquilo; negócios aqui e ali. O que também acabou por vir a ser verdade.

O que é que o levou a contar-me a sua história?

(sorri) Várias razões. O modo como nos conhecemos e a tua atitude naquele momento de crise; o facto de seres escritor; o facto de amares Istambul; o facto de vires de um país de influência mediterrânica, com um passado grandioso e um presente exíguo. Depois, restam-me poucos anos de vida e já nada vai importar.

3. A MULHER

Em determinadas horas a cidade é coberta pelo som altifalante dos muezines como se algo ou alguém magoasse a cidade e esta se queixasse. Karadeniz abandona o terraço e refugia-se dentro de casa, no isolamento sonoro da casa. Recordo-me de um taxista, que um dia me conduzia a Beyoglu, e desligou o rádio no momento da oração dos muezines. No fim da oração, disse-me que não era por ser religioso, mas por respeito. “Respeito” é uma palavra de grande densidade em Istambul.

Isto é um disparate completo!

Isto o quê?

Estas orações em árabe, que ninguém percebe. Como é que alguém pode acompanhar as orações, se não percebem nada do que está a ser dito? Devemos todos aprender árabe para rezar ou, pelo contrário, as orações deviam passar a ser em turco? A mim parece-me evidente qual a resposta a dar. Não percebo este país!

Porque é que diz isso?

Porque temos escrito no bilhete de identidade que somos religiosos, que somos muçulmanos, mesmo que não sejamos coisa nenhuma, como a maioria das pessoas que vivem nesta cidade. Mesmo os que dizem ser religiosos, se não são extremistas, não rezam cinco vezes ao dia e bebem regularmente bebidas alcoólicas. É possível um país ser muçulmano e ter como bebida nacional o Raki, que tem 45% de álcool? A religião muçulmana não é compatível com a vida em grandes cidades como Istambul. Provavelmente nenhuma religião é compatível com as grandes cidades. Sinto o meu bilhete de identidade como uma agressão contra mim mesmo. Ando pelo mundo com uma mentira escrita por baixo do meu nome.

Percebo que o Karadeniz não tem religião, mas acredita em Deus?

Acredito coisa nenhuma! Sou agnóstico, sou um homem de ciência. Não se mata, nem se salva ninguém com crenças, mas com conhecimento e acção.

Porque é que o Karadeniz se separou da sua mulher?

Não fui eu que me separei dela, foi ela que se separou de mim.

E porquê?

Porquê? Porque as pessoas se fartam muito depressa umas das outras. Porque à medida que se envelhece ficamos mais sós connosco mesmos e torna-se muito difícil viver com os outros. Principalmente se os outros esperam que nos comportemos desta e daquela maneira precisa. E estar casado é ter de ser desta ou daquela maneira.

Parece então que não foi propriamente uma desilusão, quando a sua mulher decidiu deixá-lo…

Claro que não! Por um lado, até foi um grande alívio. Mas não seria eu a deixá-la. Isso não conseguia fazer.

O Karadeniz é um homem feliz?

A felicidade é uma grande contradição. Aquilo que mais se ambiciona é ser feliz, mas na felicidade não se faz nada. Se o mundo fosse feliz, parava. Ser feliz é sair do mundo. Quer ser feliz quem se sente a mais ou a menos no mundo! No fundo, é o que todas as religiões vendem: a felicidade, sair do mundo. Claro que isso tem um preço muito elevado: Deus. É estranho que tu, sendo escritor, me perguntes pela felicidade.

Não foi uma pergunta para saber se era ou não feliz, mas para saber o que pensava da felicidade. Só que não consegui perguntar-lhe se acreditava na felicidade ou o que é que pensa dela. Essas perguntas parecem-me ainda mais esdrúxulas do que a que lhe fiz. A sua mulher chegou a aprender turco?

Não! Os ingleses têm muita dificuldade em aprender a língua dos outros. E ela não era excepção. Falávamos sempre em inglês. A B. nunca se sentiu bem em Istambul. Não era só pela língua, mas por tudo. Ela não gostava do cheiro da cidade, nem da comida, nem das pessoas. Sentia a falta do bife. (risos)

Por conseguinte, foi por convicção que não voltou a casar. Mas ao longo dos anos não sentiu a necessidade de ter alguém junto a si?

Aprendi duas coisas preciosas na profissão que tive: não se podem cometer erros; mas se por acaso cometemos um e sobrevivemos, então é imperioso aprender que não o podemos voltar a fazer. Para mim, o casamento foi um grande erro. Sou uma pessoa que não nasceu para viver com outra. Nasci para mim. Muitas vezes penso que as pessoas vivem umas com as outras por fraqueza. Devíamos viver todos sozinhos e depois encontrarmo-nos uns com os outros para o que quiséssemos, ou não nos encontrávamos. Sei que isto é impossível, mas parece-me que se vivêssemos sozinhos a vida seria melhor para todos. Dá-se mais valor à vida, só, do que acompanhado. A vida torna-se maior, mais pesada e mais densa. A vida torna-se no que ela verdadeiramente é.

Mas então por que é que se casou?

Casei-me por fraqueza e por um erro de cálculo. Fraqueza, porque julgava que precisava daquela mulher para viver; ninguém precisa de ninguém para viver. Erro de cálculo, porque queria ter um filho e julguei que casar-me ou viver com alguém era fundamental para que isso acontecesse. O que se passou foi que o casamento acabou por me levar o filho. O T. é muito mais filho da B. do que meu; e é muito mais inglês do que turco. Um homem se quiser ter um filho, é melhor que pague. Pague a alguém para gerá-lo consigo e carregá-lo nove meses na barriga. Depois, assim que nasça, dinheiro numa mão e a criança noutra. É o único modo de ficarmos descansados quanto à possibilidade de mais tarde alguém nos querer tirar o filho. De outro modo, é impossível. As pessoas não vivem juntas para sempre e quando se separam a mãe leva a criança consigo. E mesmo que consigam viver juntas, o filho é sempre mais filho da sua mãe do que do seu pai. (pausa prolongada) Ainda que seja verdade tudo o que tenho estado a dizer, os factos são diferentes…

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