José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasImaculada Conceição padroeira de Macau [dropcap style≠’circle’]P[/dropcap]or engano, na última semana saiu o artigo correspondente ao dia de hoje, 1 de Dezembro, que comemora o início da Restauração da Independência de Portugal em 1640, então sobre o domínio de Filipe III de Portugal e o IV de Espanha. Este rei jurou e fez jurar a todas as Corporações eclesiásticas, Universidades e Catedrais dos seus domínios, o defender o Mistério da Conceição Imaculada. Com Portugal independente, “a 25 de Março de 1646, a Corte e os representantes dos três Estados (clero, nobreza e povo) sob proposta de D. João IV, proclamaram a Senhora da Conceição como Rainha e Padroeira de Portugal e juraram defender sempre esse privilégio augusto e celebrar com muito particular afecto e solenidade a sua festa”, segundo Benjamim Videira Pires, que complementa: “Em 11 de Setembro desse ano, expediram-se cartas para todas as Câmaras da metrópole e do Ultramar, a fim de que as respectivas autoridades, com o clero, a nobreza e o povo, ratificassem e repetissem o acto da Corte e dos três Estados, elegendo também e proclamando Padroeira deste Reino, a Virgem Nossa Senhora da Conceição”. É natural que esta ordem real chegasse a Macau, apenas em 1647 e daí ser feriado no próximo dia 8 de Dezembro. Serve este para venerar a Imaculada Conceição, um dos quatro padroeiros que Macau já teve, a par de S. João Baptista, Santa Catarina de Sena e S. Francisco Xavier, tendo espelho no quinto, o Santo Nome de Deus, assim chamada pelos portugueses a cidade no início. Juntam-se a estes, como protectores para a comunidade chinesa, Kum Iam (Guan Yin), comparável a Nossa Senhora, Á-Ma (Mazu) para os marítimos e Na Cha, contra a peste. Antigamente começava hoje (1 de Dezembro) a celebração do oitavário à Imaculada Conceição e a 8 de Dezembro a sua festa, com missa e procissão. O culto Os monges franciscanos tinham sido “os primeiros que no século XIII professaram em público, de viva voz e por escrito, a crença da Conceição Imaculada e estabeleceram a festa deste augusto Mistério em todas as suas igrejas. Vários doutores e teólogos desta Ordem se tornaram célebres por seus escritos na defesa desta crença, contra alguns que a impugnavam, quase todos pertencentes à Ordem dominicana e difundindo-a com incansável zelo e ardor, e sendo imitados por insignes e piedosos varões, foram seguidos com entusiasmo, não só pelo comum dos fiéis, como pelas corporações mais sadias e distintas então existentes na Europa”, do Boletim do Governo do século XIX. Se a Imaculada Conceição foi a última padroeira a ser consagrada em Macau, o seu culto é tão antigo quanto o estabelecimento dos portugueses e “nos primeiros tempos o Senado, ou Governo, fazia à sua custa a festividade da Conceição em 8 de Dezembro, mas seguindo-se de perto ao estabelecimento (em 15/11/1579) da ordem franciscana em Macau, a instituição, na Igreja dela, da Confraria da Conceição, de cujo culto aquela ordem era zelosa propugnadora, o Governo daí em diante só concorria, ainda em 1844, com a prestação de 100 patacas para ajuda dos gastos da dita festividade, que ficou a cargo da referida Confraria, ainda hoje existente, e que esteve ricamente dotada”, como referido nesse Boletim do Governo. A Confraria da Conceição, que rendia o seu culto à Mãe de Deus, estava encarregada da organização destes festejos. “A 23-XII-1781, o Senado assentou ficar (perpetuamente) Presidente da Confraria de Nossa Senhora da Conceição, Padroeira de Macau, a pedido da mesma Confraria, que se via impossibilitada de arcar com as despesas da festa”, segundo Benjamim Videira Pires, que refere, “visto ser o Protector, que concorre anualmente com vinte taéis”. No início, as celebrações à Imaculada Conceição eram realizadas no Convento de S. Francisco até que, com esse templo arruinado, em 1850 passaram para a Sé Catedral. Já como Padroeira, a festividade ocorria com uma extraordinária solenidade, havendo missa cantada acompanhada a órgão, com assistência das autoridades políticas, religiosas e os principais moradores da cidade e onde todos os vereadores do Senado comungavam. Após a missa, ao som de uma salva feita desde a Fortaleza do Monte, saía em procissão, à roda do largo da Catedral, o andor de Nossa Senhora da Conceição, seguido do Santíssimo Sacramento conduzido pelo Bispo Diocesano, sendo acompanhada em cortejo com a guarda de honra, que incorporava em peso a própria guarnição e o Governador, pegando os vereadores da Câmara nas varas do pálio. Estátuas da padroeira A imagem da Imaculada Conceição de Maria encontra-se em muitas igrejas de Macau, assim como logo desde 1640 no frontispício da Igreja da Madre de Deus. “Após a Restauração, a desejo do Rei D. João IV, por volta de 1647/48 o título da Igreja e do Colégio mudou-se para Colégio e Igreja da Imaculada Conceição”, segundo Benjamim Videira Pires que segue dizendo, “A igreja do mosteiro das Clarissas era também dedicada à Imaculada; e os Franciscanos, na sua Igreja de Nossa Senhora dos Anjos ou da Porciúncula, possuíam um altar à mesma evocação”. Já Luís Gonzaga Gomes refere que em 1936 foi demolida a antiga Igreja da Imaculada Conceição e nesse lugar construída a nova Igreja de S. Clara, em estilo gótico. No Salão Nobre do edifício do Leal Senado, encontra-se um oratório com as estátuas de Nossa Senhora da Conceição no centro do altar e à esquerda a de S. João Baptista, ambos Padroeiros da Cidade e onde outrora, todos os Senadores ouviam Missa e comungavam nas festas de cada um dos 4 Padroeiros. Para construir (ou reconstruir) esse oratório foi pedida autorização pelo Senado a 31 de Dezembro de 1818, sendo deferido por Dec. Régio de 28 de Setembro de 1819, que manda nesta ocasião declarar ao Bispo Diocesano para que ele haja de conceder as licenças necessárias para a erecção do pretendido Oratório, onde antes da Ordinária Vereação dos Sábados, se haja de celebrar Missa. E continuando com P. Manuel Teixeira, o Oratório ainda hoje existe, mas já não se celebra ali Missa, nem sequer se reza antes das sessões camarárias. Na Igreja do Seminário de S. José há o altar dedicado à Imaculada e no alto da Colina da Penha encontra-se a sua estátua, assim como na gruta aí existente. A “17-9-1871 Bernardino de Sena Fernandes convocou os subscritores do Colégio da Imaculada Conceição, para tratar do encerramento deste estabelecimento de educação e instrução, por se terem retirado da Colónia as professoras que regiam esse colégio”, segundo Gonzaga Gomes, que refere ainda, a “19-2-1906 devido aos esforços do Bispo Dom João Paulino de Azevedo e Castro, chegaram os padres salesianos Luís Versiglia, Ludovice Olive e João Fergnani, acompanhados dos mestres de oficinas Feliz Boresto, Luís Carmagnala e Gaudêncio Rota, para fundarem o Orfanato da Imaculada Conceição, para crianças chinesas”. No feriado oficial de 8 de Dezembro, em honra da Padroeira de Macau Imaculada Conceição, já sem oitavário a anteceder, ocorrerão na próxima sexta-feira apenas duas missas na Sé Catedral, às 11 horas em português e às 17 horas em inglês.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO dom das lágrimas Ele voltou um olhar de amor Para que Pedro o bem- aventurado apóstolo Dissolvesse com lágrimas amaríssimas o pecado da tríplice negação. [dropcap style≠’circle’]S[/dropcap]ofrer é um nobre mistério se interpretarmos a vida como uma manifestação onde a dor é presença constante – os antigos textos litúrgicos cristãos tinham as Oblatas, aqueles belos poemas que davam o dom das lágrimas para amaciar a tormenta das dores secas e mudas que no peito se tornam pedras duras e insuportáveis. Os códices medievais foram também eles invocações para os males, afastar maus pensamentos, pedir chuva, afastar as tempestades e, por fim, também e sempre, consagrados ao efeito benéfico de melhorar a condição da vida. Há nestes poemas litúrgicos o desejo de que o pranto acorde a consciência à sua ligação divina, mas talvez que a nossa forma de viver nos remeta mais para Ulisses que preferiu cobrir a face com o seu largo manto púrpura quando, ao escutar um canto, se envergonha que lágrimas lhe caíssem na face. A temperatura do sofrimento porém não esmorece com ou sem elas, mas são elas, essa compunção, que nos aproximam de um estranho amor que não sabemos revelar e na quente abundância do seu dom nos libertam e nos fazem talvez sentir uma inegável saudade de Deus. No tempo do riso e da abundância, de fluxo para a felicidade simples, como o de agora, talvez haja estranheza nestas coisas. Afinal, tão naturalmente combatidas como quedas ou frágeis manifestações, mas na realidade estamos a perder grandes dons que eram libertadores e a entregarmo-nos a todo o género de recursos que nos desvinculam da nossa natureza sagrada. Daí uma certa rudeza nos afectos, uma legião maciça de caritativos, uma domesticação indevida para um bem que não sente mais que uma politicamente correcta adesão; se o coração é esse órgão de fogo há que restar de nós alguma água para um húmido silêncio e uma fresca acalmia: corremos o risco de carbonizar sem o dom das lágrimas: « Junto dos canais de Babilónia/ nos sentamos a chorar/ com saudades de Sião». Saudades da terra, saudades de um rio… Esta importância do pranto era então visto como efeito libertador, como um signo de salvação. Por vezes estamos dolorosamente cansados, tendencialmente nervosos e fartos de tudo – convalescemos – estamos prostrados sem saber como acudir a tanto desanimo parecendo não aguentar alguns ciclos da vida e damo-nos conta que já não choramos, que nos fomos tornando um lume qualquer que se esgota, vimos o mundo secar, arder, os efeitos atmosféricos tão aflitos quanto a nossa alma esquecida e lembramo-nos de coisas simples e redentoras, despojados então de efeitos queremos um chão para regar com algumas lágrimas e que dele possa nascer uma planta que seja a salvação. Mas não só a liturgia cristã original está prenhe destes bens, o pungente grito da lamentação têm-no os judeus em farta abundância naquele Muro onde todo o choro é visto como um elo que une um povo inteiro. «Vacilas por ternura Deus omnipotente/ da pedra fonte de água viva rompeste/ a um povo sedento/ retira da nossa dureza a compunção das lágrimas/ longo pranto por nossos pecados concede/ pois vendo-nos assim te compadeces/ e obtemos remissão». Houve efectivamente uma era muito líquida, que não será certamente parecida com a de hoje, aquele tempo do sangue, suores e lágrimas, havendo um domínio claro de um tal elemento como esfera transbordante. Vamos até às águas de Noé e depois já em terra vêmo-lo a plantar uma vinha, que de líquido forte passa a ser um poder manifestado. Estamos inundados de um estranho amor e nem por isso sorrimos ainda, aqui. Na tradição bíblica, o riso não é desperto pois que dele advém um princípio modelador, só a gravidade acorda a lembrança divina. Na maior parte são textos do latim litúrgico-cristão o que os torna de uma grande plasticidade na composição através dos séculos e nas sociedades onde se inserem, mas creio que não perderão jamais a primeira essência pois quem os transcreve está em sintonia com a função original. Há matérias que se habituam a ser esquecidas ao ponto de quase desaparecerem, mas quando isso acontecer de nós não sobrará grande coisa que também valha ainda a pena lembrar.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasPino com contorção & ventosa 25/11/2017 [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]onvidaram-me para participar de um dossier em torno de Clarice Lispector, que em 10 de dezembro conhecerá uma data redonda. É impossível recusar o desafio, ainda que tenha de fazer um pino com contorção & ventosa, dada a proximidade do prazo e a obra imensa da brasileira. Ninguém escreve como a Clarice. Veja-se o retrato de uma velha senhora ao espelho: «Por fora – viu no espelho – ela era uma coisa seca como um figo seco. Mas por dentro não era esturricada. Pelo contrário. Parecia por dentro uma gengiva húmida, mole assim como gengiva desdentada.» E como todos os grandes escritores que prefiro as suas frases estão pejadas de saltos quânticos, de uma lógica que só pelo isomorfismo se explica: «Ah Ulisses, pensou ela para o cão, não te abandonei por querer, é que precisava fugir de Eduardo, antes que ele me arruinasse totalmente com sua lucidez: lucidez que iluminava de mais e crestava tudo. Ângela sabia que os tios tinham remédio contra picada de cobra: pretendia entrar em cheio na floresta espessa e verdejante, com botas altas e besuntada de remédio contra picada de mosquito. (sublinhado meu)» Da lucidez decapitadora de Eduardo passamos sem preparação para o veneno da cobra, afinal o mesmo mas noutro reino, noutro nível de realidade. Enfim, suspeito que a Clarice que nasceu ucraniana e se considerava brasileira de gema afinal era chinesa e por isso «sua escrita se faz pelo avesso — sendo a escuta do que se cala ou a visão do que se oculta (Yudith Rosenbaum)». Numa coisa coincidimos. Ambos achamos que o mundo é uma coisa vasta demais e sem síntese possível, e somos (no possível) felizes nisso e na ideia de que se encontrássemos a verdade não conseguiríamos pensá-la, pois esta seria impronunciável – sem que tal visão nos atemorize. Recordo uma discussão que tive com uma namorada, instrutora de ioga, a partir da surpresa que lhe chegou ao ter-lhe dito que tinha muitos momentos em que não pensava. Ela considerava improvável, eu, pelo contrário, estava atónito com a insistência dela de que seria impossível não pensar. E às tantas perguntei-lhe, Ouve lá, tu quando fodes pensas no quê? Não me respondeu. Nunca desejei para mim esse tipo de insónia branca. Muitas vezes basta-me ser e esvazio o pensamento como o comboio nos carris. Talvez eu seja aquele cavalo de que fala a Clarice: «A forma do cavalo representa o que há de melhor no ser humano. Tenho um cavalo dentro de mim que raramente se exprime. Mas quando vejo outro cavalo então o meu se expressa. Sua forma fala.» 26/11/2017 Escreveu Valéry, em carta a um amigo: “Sonho com uma poesia curta – um soneto – escrita por um visionário requintado que seria ao mesmo tempo um agradável arquitecto, um algebrista sagaz, um calculador infinito do efeito a produzir”. Parece-me profundamente entediante esta festa da inteligência. Creio que um algebrista deste calibre – e Valéry não desmereceu sê-lo, tal como Pessoa – só escreve e escreve e escreve – ambos deixaram demasiados quilos de papel grafado – porque deseja desesperadamente que uma página o surpreenda com o que nunca antes havia imaginado e agora brote como um alimento nunca mastigado, algo desaustinado que o transporta ao medo, ao furor ou à paixão. 28/11/2017 Está confirmado, vou reeditar o meu livro de poesia Arte Negra (Fenda, 2000), um volume de mais de duzentas páginas. Do ciclo Cemitério dos Prazeres, o 1, o 2 e o 5: «Não sei que sucesso/ obterás. Depenas uma pedra,/ obstinas-te, lavas o ar/ com um pano húmido.// Em redor a morte ceva/ as letras mudas, carcome/ um mapa de seda/ na nascente do teu rosto.// Não sei que sucesso,/ assim solícito e crédulo,/ obterás, pois a anda das imagens/ já sentou a mixórdia/ no lugar de Deus.», «Uma infância perfurada/ por zepelins. Hoje, de comando/na mão, zappas. Melancolia/ que te sufoca o amor e as veias,/ uma a uma, esvaziadas de Deus.// Mas a que outra luz/ acederia o coração se o lugar/ não foi capinado, se a treva amarinha no interior das gavinhas/ sem tu a teres capinado –/ e os anjos e os rinos/ quase extintos? Vinte unhas/ são a energia que ultima/ o escuro mate da morte.»; «Cem anos depois do cinema/ bombeias ainda o branco em páginas/ sem consolo: candelabro/ exposto ao vento e que só encheu/ de mistérios areias movediças.// És o canhoto de um anjo/ ainda que o bico, o adunco da rapina/ que nenhuma entranha desperdiça/ queira lá saber de ícones/ e esburaque o ar que nos resta!// O mal não se decompôs em frames,/ é, como o infinito, cesta que não decora/ o fortuito nome dos seus ovos./ Que importa! Escreve e respira fundo!» 29/11/2017 Com o espírito boçal e traquinas de quem roça a insanidade mental, Trump gabou os novos aviões invisíveis do exército. Os aviões invisíveis têm sobre os pepinos invisíveis o defeito da algazarra, de resto transformam igualmente a morte numa salada. Mais felizes os dias em que o combate não era anónimo e quem morria conhecia o nome de quem o matava. Sinto-me um monge do século XXI a compor inúteis hexâmetros latinos.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasOI, de Luís Brito [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap]i é o quarto livro de Luís Brito. Três deles de prosa e um de poesia, embora este de poesia esteja dentro de um dos livros de prosa, precisamente o livro que aqui nos traz. Todos os três de prosa são livros imersos na vivência da viagem. O humano abre-se à viagem quando se abre ao outro. Abraçar o outro é começar a viagem. O livro está dividido em vinte e seis partes: vinte e quatro arrepios (é assim que o autor divide os capítulos, por arrepios) e dois interlúdios, um em prosa – “O Ser Português” – e outro em poesia – Jejum (e que teve entretanto uma edição autónoma pelas edições Tea For One). Mas antes de falarmos sobre o livro, é necessário uma breve nota acerca do título do mesmo. “Oi”, que aqui para nós é apenas o modo como os brasileiros cumprimentam os outros, no Brasil é uma interjeição que pede explicação. Porque no Brasil há “oi” com e sem ponto de interrogação. E o livro refere-se ao “oi” com interrogação. Oi? Quer dizer exactamente, “desculpe, não entendi”. E o não estou a entender, pode ter várias razões: ou porque você está a ser indelicado, “mas o que é isso?”; ou porque você não se fez ouvir claramente, “pode repetir, por favor”; ou porque simplesmente o que você diz parece não fazer sentido, de tão estranho que parece, “pode explicar, por favor?” Oi? Por conseguinte, o autor deixa claro que se trata de um livro imerso no Brasil, na sua cultura, na sua perplexidade. O livro começa no aeroporto de Lisboa e no de Madrid, muito cedo, de madrugada, quando os voos são mais baratos. E o narrador vai iniciar uma viagem ao Brasil com a sua ex-namorada, a X, com quem tinha já planeado e comprado os bilhetes muito tempo antes do tempo se fazer sentir. Agora a viagem, que deveria ser uma celebração, é uma tortura, uma espécie de pena a pagar. O narrador viaja com X, mas logo à saída do aeroporto de São Paulo, separam-se no táxi, depois dele a deixar em casa de familiares, e de ela o aconselhar a ir alojar-se num hostel em Vila Madalena. Ele está apaixonado por ela. Ela não está apaixonada por ele. Separam-se no início do livro, e ele irá percorrer todas as páginas com ela na cabeça, com ela no coração, com ela na imaginação, que é o lugar aonde nunca se deve levar uma ex-mulher. Mas como se diz no Rio, “não tem tu, vai tu mesmo”. Ou na letra de uma canção When I need to replace her / I am a eraser / anything goês, repetida ao longo do livro, como um refrão do próprio livro. Começa aqui uma viagem das mais estranhas que, hoje em dia, um homem pode encetar: ir ao Brasil em busca, num corpo, de um sentido para além do corpo. Provavelmente todos os livros, desde a Ilíada e a Odisseia, dividem-se entre livros de vingança e guerra, por um lado, e livros de viagem por outro; embora os livros de amor sejam também livros de guerra ou de vingança, e livros de viagem. E neste livro de Luís Brito, que é um livro de viagem, estabelece-se logo desde o início um paralelismo entre a viagem e a relação amorosa. Já não se trata apenas do paralelismo entre a viagem e a aceitação do outro, como em Alcatrão, que é um modo de nos entendermos a nós, aqui a viagem encontra um outro modo de nos fazer ver mais sobre nó mesmos: o nós no outro. Assim, as relações fortuitas, casuais, as “one night stand” são o modo de se ser turista e as relações duradoiras o modo de se ser viajante. Escreve logo na segunda página (página oito do livro): “O problema não és tu – sou eu –, ou o problema não sou eu, o problema é o mundo. É ele que nos torna incapazes de amar, ou talvez seja a pequenez asquerosa do nosso país que nos põe tão tristes e mesquinhos. Separações e divórcios trocados por envolvimentos efémeros. Shots de prazer que em nada compactuam com aquilo que deve ser uma vida a dois – paciência, perseverança, diálogo e caminho na infelicidade.” Já desde Alcatrão, o seu primeiro livro, Luís Brito traça uma ontologia do ser viajante em contraposição ao ser turista, mas aqui vai mais longe. Neste seu livro, a viagem é muito mais interior do que exterior, as paisagens traçadas são mais subjectivas do que objectivas, são mais acerca do humano que escreve do que dos humanos que são “escritos”. Não no sentido de um auto-centramento, mas antes no reconhecimento de que o outro descrito é uma extensão nossa, ainda que se faça da própria vida uma contínua viagem pelo mundo. Assim, quanto mais o mundo estica, mais o humano encolhe. Podíamos ler à página 169, de Alcatrão, o seguinte: “Saídos de casa começamos por prestar vassalagem à diversidade. Admiramos os tons de pele e as culturas, vivendo a excitação do incógnito e os choques dos momentos sempre novos. Depois, com o tempo e a prática, ganhamos profundidade na observação e desvendamos comportamentos mais parecidos com aqueles a que chamamos nossos.” Nesse livro, entendíamos o exercício de viajar como uma tentativa de se perder de si mesmo, isto é, como um dos caminho mais rápidos em direcção a nós mesmos. Mas aqui, em Oi?, a viagem é a viagem no outro. E também aqui, nesta terra que nos perdemos e nos encontramos. E viajar é parar. Viajar é ter atenção. Provavelmente, tudo aquilo que o turista evita, pois – escreve Brito, ainda na mesma página da anterior – “Não há nada mais terrível do que uma evidência erguida à nossa frente.” E esta evidência a que o autor se refere é a nossa própria existência, que assume contornos de factualidade na confrontação com o outro diante de nós, do outro em quem atentamos, realmente. Pois há na existência um tremendo paradoxo: a procura de alguém e a impossibilidade de ficar. Luís Brito começa o capítulo “Segundo Arrepio” com as seguintes palavras: “Porque nos juntamos em rebanhos? De quem estamos à procura quando nos pomos no meio da multidão?” Este ímpeto não é o da viagem, mas o do turista. Ir é o verbo turístico por excelência, ficar é o verbo do viajante. Só fica quem viajou, pois quem nunca partiu não fica, está ali agarrado ao lugar como uma árvore agarrada à terra onde foi plantada. Mas quem viaja, mais cedo ou mais tarde irá ficar em outro lugar. Desde o início, o narrador está perdido. Perdido de amores e perdido no mundo. E Luís Brito – penso que aqui podemos estabelecer esta intimidade entre narrador e autor – não se perde nele mesmo, porque não há um ele mesmo onde se perder. Ele perde-se no mundo a cada instante, neste caso na noite paulista, vertiginosa, como no exemplo radical de David, um sem-abrigo que tinha sido internado num manicómio pela sua tia, de modo a ficar-lhe com a herança, e que lá, no manicómio, foi violado por um enfermeiro e contraiu HIV. É o Brasil “hardore”, que o põe a duvidar, não apenas de si mesmo, mas da sua existência: “David, o homem que parecia um judeu fugido de um campo de concentração, foi-se embora e eu fiquei sozinho em São Paulo. Se é real nunca saberei. Se eu próprio sou real, também é uma questão sem resposta. Por isso aqui está o livro.” (p. 24) [continua]
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasA jovem criada – Dedicado a Ludwig von Ficker 1 [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]miúde, junto ao poço, ao entardecer, Vemo-la, enfeitiçada, de pé, a Tirar água, ao entardecer. Baldes a subir e a descer. Nas faias, esvoaçam gralhas, E ela parece-se com uma sombra. Os seu cabelos amarelos esvoaçam E no pátio chiam os ratos. E fascinada pelo declínio, Baixa as pálpebras inflamadas. Erva seca em declínio Cai a seus pés. Die junge Magd Ludwig von Ficker zugeeignet 1 Oft am Brunnen, wenn es dämmert, Sieht man sie verzaubert stehen Wasser schöpfen, wenn es dämmert. Eimer auf und nieder gehen. In den Buchen Dohlen flattern Und sie gleichet einem Schatten. Ihre gelben Haare flattern Und im Hofe schrein die Ratten. Und umschmeichelt von Verfalle Senkt sie die entzundenen Lider. Dürres Gras neigt im Verfalle Sich zu ihren Füssen nieder. [1] TRAKL, GEORG. (2008). Das dichterische Werk: Auf Grund der historisch-kritischen Ausgabe. Editores: Walther Killy e Hans Szklenar. Munique. Deutscher Taschenbuch Verlag. 2 Silenciosamente, trabalha no quarto E o pátio há muito que está deserto. No sabugueiro, à frente do quarto, Um melro canta o seu lamento. Prateada a sua imagem, no espelho, olha estranhamente para ela, no lusco-fusco, E a imagem entardece pálida no espelho, E estremece perante a pureza da rapariga. Como num sonho, canta um criado na escuridão, E ela olha-o fixamente, abalada pela dor. Uma vermelhidão goteja através da escuridão. De repente, o vento sul sacode o portão. Die junge Magd 2 Stille schafft sie in der Kammer Und der Hof liegt längst verödet. Im Hollunder vor der Kammer Kläglich eine Amsel flötet. Silbern schaut ihr Bild im Spiegel Fremd sie an im Zwielichtscheine Und verdämmert fahl im Spiegel Und ihr graut vor seiner Reine. Traumhaft singt ein Knecht im Dunkel Und sie starrt von Schmerz geschüttelt. Röte träufelt durch das Dunkel. Jäh am Tor der Südwind rüttelt. 3 De noite, sobre o prado nu, Ela agita-se em sonhos febris. Amuado lamenta, no prado, o vento, E a lua está à escuta nas árvores Logo empalidecem as estrelas em redor E, exaustas de queixumes, As suas faces de cera empalidecem. Uma podridão exala da terra. Triste, sussurra o canavial na lagoa E, encolhida sobre si, gela de frio. Ao longe, canta um galo. Sobre a lagoa Dura e cinzenta, estremece a manhã. 3. Nächtens übern kahlen Anger Gaukelt sie in Fieberträumen. Mürrisch greint der Wind im Anger Und der Mond lauscht aus den Bäumen. Balde rings die Sterne bleichen Und ermattet von Beschwerde Wächsern ihre Wangen bleichen. Fäulnis wittert aus der Erde. Traurig rauscht das Rohr im Tümpel Und sie friert in sich gekauert. Fern ein Hahn kräht. Übern Tümpel Hart und grau der Morgen schauert. Na forja, retine o martelo, E ela apressada pelo portão passa. Incandescente o martelo o criado brande, E ela olha para ele como se estivesse morta. Como num sonho, ela é atingida pelo seu riso E cambaleia em direcção da forja. Agacha-se envergonhada com aquele riso, Duro e grosseiro como o martelo As centelhas espalham-se claras pelo espaço E com gestos impotentes, Ela procura agarrar as selvagens centelhas E cai aturdida por terra. Die Junge Magd 4 In der Schmiede dröhnt der Hammer Und sie huscht am Tor vorüber. Glührot schwingt der Knecht den Hammer Und sie schaut wie tot hinüber. Wie im Traum trifft sie ein Lachen; Und sie taumelt in die Schmiede, Scheu geduckt vor seinem Lachen, Wie der Hammer hart und rüde. Hell versprühn im Raum die Funken Und mit hilfloser Geberde Hascht sie nach den wilden Funken Und sie stürzt betäubt zur Erde. 5 Muito magra, estendida na cama, Acorda cheia de uma doce angústia E vê a sua cama suja Completamente coberta por uma luz dourada, As resedas ali na janela E a claridade azul do céu. Às vezes, o vento traz até à janela O hesitante tinir de um sino. Sombras deslizam sobre a almofada. Bate lentamente o meio dia E ela respira pesadamente na almofada, E a sua boca é como uma ferida. Die Junge Magd[1] 5. Schmächtig hingestreckt im Bette Wacht sie auf voll süßem Bangen Und sie sieht ihr schmutzig Bette Ganz von goldnem Licht verhangen, Die Reseden dort am Fenster Und den bläulich hellen Himmel. Manchmal trägt der Wind ans Fenster Einer Glocke zag Gebimmel. Schatten gleiten übers Kissen, Langsam schlägt die Mittagsstunde Und sie atmet schwer im Kissen Und ihr Mund gleicht einer Wunde. 6 À noite, esvoaçam lençóis ensanguentados. Esvoaçam nuvens sobre florestas mudas, Estão envoltas em lençóis negros, Pardais fazem alarido nos campos. Ela está deitada completamente branca no escuro. Debaixo do telhado, sopra um arrulho. Como no bosque à volta de uma carcaça negra Moscas redemoinham à volta da sua boca. Como num sonho, ecoam na aldeia castanha Sons de dança e violino. O seu semblante paira sobre a aldeia E o seu cabelo sopra em ramos desfolhados. Die junge Magd 6 Abends schweben blutige Linnen, Wolken über stummen Wäldern, Die gehüllt in schwarze Linnen. Spatzen lärmen auf den Feldern. Und sie liegt ganz weiß im Dunkel. Unterm Dach verhaucht ein Girren. Wie ein Aas in Busch und Dunkel Fliegen ihren Mund umschwirren. Traumhaft klingt im braunen Weiler Nach ein Klang von Tanz und Geigen, Schwebt ihr Antlitz durch den Weiler, Weht ihr Haar in kahlen Zweigen.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasOs Prémios [dropcap style≠’circle’]V[/dropcap]ivemos numa sociedade de premiados. Todos os dias os grupos fechados que fazem parte de coisas várias premeiam gentes. De tanto prémio já nem sabemos os que se auto-premeiam com a ilusão constante da rotatividade dos clubes e da imensa e inócua produtividade dada em corrupios de um inflamado génio que sempre falta. São quase organizações clandestinas estas que se estrangulam no delírio do prémio. Ora, os prémios, são de fato o que menos importa. Ninguém talha um caminho para erguer taças ao alto, nem a vida é essa insustentável leveza de vaidades ardilosas fechada nas benesses dos que trabalham para a mesma causa em suportes variados de sujeição. Os imensos esforços de camaradagem forçada que se denota nestes ambientes impulsiona o mais desprevenido a desejar sair dali e não querer sequer que saibam que está vivo. São de facto um atentado à inteligência e um festival de ousadas demonstrações de salubridade mental. É um espectáculo insano estes pequenos guetos assaltados por uma gente detentora de poderes para gerir, absolver, ignorar e inutilizar: em muitos instantes nem o pensamento sobre a função é claro, pois que não conseguem explicar de forma natural aquele amontoado de situações, entrando assim numa esfera comprimida onde a inventividade estanca, a mobilidade é morta, mas passeando-se mesmo assim pela orla das suas degeneradas funções. Há Ministérios para certas actividades que devem ter as verbas distribuídas para grupos das suas legiões, mas nada disto é um assunto abrangente e muitos vivem de nada fazerem para além de assinaturas a petições, acabando-se aqui a intervenção cívica e social . É grotesca a forma como se movem os seres que destroem não só o erário público bem como aquilo que poderia haver ainda de talentoso. Continua a ser tudo “sacristão maçónico” com o aguilhão da polícia secreta, estão habilitados a matar, a salvar, a expulsar… é, sim, é uma gente malsã! É um espectáculo desprezível desde os cumes até às bases. Para não falar na jactância emproada de alguns protagonistas. Claro! Há muita violência doméstica, as pessoas não são expansionistas para andarem na rua a gritar, fazem-no então entre quatro paredes onde não raro se matam todas umas às outras. E é neste estado que vivem os presidentes de certas associações que andam por aí. Gente que não tem um rasgo de cultura adquirida a que possamos chamar civilidade. Os nossos pares? – Devem estar a brincar! – Primeiro, há seres ímpares, depois os pares escolhem-se, e isto não deve tomar mais do que o tempo de uma análise da nossa reflexão. Geralmente quem teve a sorte de escolher o bom, olha para isto com ar incrédulo, mas há que não desmerecer a confiança que nos depositaram. Há coisas que trazemos como um distintivo, uma conquista, uma forma de merecimento, e outras que são tão circunstanciais, que não passam disso mesmo. Todos os dias nas sociedades dos prémios há gente a jogar para ser premiada gente que se esforça por ganhar o euro milhões, outros o pódio, e outros a atenção de aqueloutros- e mais outros- premiar este que já premiou aquele, e assim sucessivamente até ao dia de os tirar a todos de lá para fora porque afinal eram outros que tinham feito a Obra. Isto para não falar do excesso de zelo para com uma população cada vez mais afugentada do saber da linguagem e que a única razão de não passar definitivamente a dialecto é o de poder sustentar uns nativos longe da sua região de origem. O que estes Institutos e linguistas ganham para degenerar tudo por onde passam na sua insensibilidade verbal, dava para fazer ensinos de grande qualidade, mas, agora como sempre, há uma forma de vida artificial por onde passa um ardil de gentes sem mérito que na sua consciente falta dele se auto premeia a si mesma. Sabemos que de nós fica pouca coisa na duração do tempo, essa deve ser a visão clara, não nos é dado “sujar” o espaço de forma metódica e continuada pois que seria do grau da insuportabilidade, e que o barroco oco da nossa ganância pátria para com o maior , o mais importante, o mais este, o mais aquele, deu esta imensa decrepitude social onde agora se mergulha. Neste imenso opróbrio onde a liberdade foi sonegada em detrimento de vantagens tão substituíveis que nem notamos, nota-se o artefacto de uma moléstia tardia que vingou. Quando se contarem as peças desta manobra feita de angariadores e mercenários, talvez muitos fiquem esmagados de vergonha perante a robustez dos tenazes, e que a supremacia dos distribuidores de prémios se sinta cruelmente nua no meio de uma história que não querem contar e outro a recitará. E os euromilhões fiquem escancarados nas esquinas dos prédios e as notas em sacos dos carros de Estado, estampados nos semáforos. Não chamaria inaptidão ao legado frouxo que ninguém quer, chamar-lhe-ia um acto previsível. Quanto à astúcia e toda a estultícia, garbo, altaneiro estado, guardem tudo. Vão precisar de todos essas características quando mais nada restar de uma continuada e valente fraude.
António de Castro Caeiro h | Artes, Letras e IdeiasErôs, eróticus, erótismus [dropcap]U[/dropcap]ma das palavras antigas mais difíceis de traduzir para as línguas contemporâneas é erôs. A sua versão adjectiva substantivou-se. O erótico assumiu expressão, contudo, de um conjunto de fenómenos que vai desde a pornografia em versão suave até ao amor romântico. O substantivo é nome de acção, exprime uma acção. Sem se fazer a experiência desta acção, não se percebe de que se trata. Tal como a semântica de caminho implica o caminhante, de outro modo o caminho não sai do sítio em que se encontra, estático e morto para a possibilidade que oferece. O grande teórico de erôs é Platão. Tão grande que podemos ter dúvidas, não terá sido Platão a inventar o fenómeno e a inculca-lo na humanidade. Enfim, há algumas características que o distingue do “amor” latino, tal como da “cupido”, mas importa mergulhar no coração do fenómeno, pelo menos como ele é expresso por Platão, e tentar perceber até que ponto se trata de uma palavra para referir o “sentido”, a “orientação”, a “direcção” que a vida toma. Em função da presença de um sentido numa ou noutra direcção, com orientações ou sem orientações, compreendemos que faz sentido ou não faz sentido nenhuma a vida que levamos, a vida que temos, a vida. Um dos componentes não negociáveis de erôs é a epithymia. A palavra compõe-se de um prefixo “epi-” e da variação do substantivo “thumos, -ou”, palavra que em sentido estrito quer dizer “ira” mas em sentido lato quer dizer todo o acontecimento disposicional, vibrações, modulações, estados de alma disposições do espírito. O prefixo quer dizer que o fenómeno é activo e nós estamos-lhe expostos quando acontece. É invasivo, dominador, deixa-nos no estado que provoca, com a impressão que cria. Mas o que é estranho e aparentemente paradoxal é o conteúdo da epithumia, do desejo, da ânsia. O seu conteúdo está ausente. A ausência do conteúdo por que ansiamos vivamente ou que muito desejamos não é nada. Antes pelo contrário é uma presença. Esta prasentia in absentia tem toda a nossa atenção. Por outro lado, o momento triunfal, meramente hipotético, da sua posse é projectado para o futuro. Sente-se já um anseio no presente de um acontecimento que a dar-se, dar-se-á no futuro, promete enquanto houver esperança, mas faz-nos desesperar pelo alongamento até ao infinito da espera. Mata de tédio. A falta, a precisão, a necessidade, a carência descrevem esta forma particular de anseio do erôs. Não é como se tivéssemos tudo o que precisássemos à nossa disposição, com níveis satisfatórios de contentamento. Só nos faltaria aquilo que especificamente não temos mas de que sentimos precisão e de que temos necessidade. Não. Esta ânsia produz um objecto absoluto na hierarquia das coisas que queremos, no nosso projecto vital. Nada do resto “risca”, por assim dizer. Tudo o resto não tem importância. A falta (endeia) com que a ânsia (epithumia) faz sentir o que não se tem é absoluta. Só tenho falta do conteúdo específico de que tenho falta e não tenho necessidade de mais nada, a não ser daquilo que não tenho. Ora, há tantos desejos, ânsias, necessidades, precisões, carências, conforme a escassez específica que temos relativamente às mais diversas coisas. Há um elemento “erótico” na relação entre sede e o que a mata, entre a fome e o que a mata, entre todos os apetites, todos os nossos desejos e o que os mata ou sacia. O erôs descreve resta relação complexa que temos com inanidades, com ausências que, porém, canalizam as nossas vidas para as suas possibilidades de preenchimento. Mas erôs não se verifica obviamente apenas só na periferia concreta e indespidível do acontecimento humano. Refere até tudo aquilo que não sabemos que não temos. Há todo um conjunto de sentidos que não identificamos como sentidos que constituem a ausência por causa da qual as nossas vidas são por essa ausência e não por qualquer particular presença. E mais, o erôs perpassa todas as nossas vidas, desde antes de termos sido, durante o tempo em que existimos até ao derradeiro momento em que tivermos sido, mesmo que não vivido conscientemente, mesmo que antecipado apenas mas nunca verdadeiramente vivido, por já não fazermos parte deste mundo. Dizem que o melhor de tudo não é nem a saúde nem a riqueza, mas encontrar na vida o que se ama. E, depois, ser esse amor de vida.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasImaculada Conceição padroeira de Macau [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] 1 de Dezembro comemora-se o início da Restauração da Independência de Portugal, então sobre o domínio da Espanha dos Filipes, ocorrida em 1640, data da colocação da estátua em bronze de Nossa Senhora da Assunção no frontispício da Igreja da Madre de Deus. Também começava hoje o oitavário da Imaculada Conceição, elevada em 1646, por desejo do Rei D. João IV, a padroeira de Portugal e no ano seguinte de Macau, sendo por isso o dia 8 de Dezembro feriado oficial. Era a única dos quatro padroeiros de Macau que tinha oitava, tendo já deixado de se realizar, e a última a ser consagrada padroeira da cidade. Começamos hoje por escrever sobre a origem deste culto, que remonta aos primeiros séculos do Cristianismo, tendo a Igreja oriental “instituído as primeiras festa da Virgem e especialmente as da Anunciação, Assunção e Conceição e a celebração desta última é também antiquíssima naquela Igreja e muito anterior à da sua prática na do ocidente. Jorge, Bispo de Nicomedia, que floresceu pelos anos de 616 a 641, dá esta festa como muito antiga e célebre no oriente, e é certo que já em 1180 se celebrara como festa de guarda pelos Imperadores de Constantinopla”, segundo o Boletim do Governo da Província de Macau, Timor e Solor, que refere ainda a sua História em Portugal e aqui transcrita. “Afirmam alguns autores que o Sr. Rei D. Afonso Henriques, fundador da Monarquia, já se distinguira na devoção à Imaculada Conceição de Maria, e que em Alcobaça fizera erigir uma Igreja para o seu culto, no qual continuaram seus descendentes na coroa. É porém fora de toda a controvérsia histórica que em 1320, no tempo do Sr. Rei D. Dinis, o Bispo de Coimbra D. Raimundo instituiu na sua diocese a festa da Conceição Imaculada, a instâncias da Rainha Sta. Isabel, a qual no Mosteiro da Trindade, que fez edificar em Lisboa, erigiu uma capela em honra da mesma Conceição. De Coimbra passou aquela festa a ser praticada na diocese de Lisboa, e no resto do reino. Anos depois, o insigne e heróico condestável D. Nuno Álvares Pereira fez construir a Igreja da Conceição de Vila Viçosa, que é tida por uma das mais antigas e veneradas de toda a Hespanha, e os seus sucessores, Duques de Bragança, e os Reis desta Augusta Casa, imitando o exemplo de seu ilustre progenitor, se esmeraram sempre em a engrandecer, celebrando nela com devoção e pompa a festividade da Conceição Imaculada, e entre os Duques a todos se avantajaram D. Jaime, D. Teodósio e D. João. O Sr. Rei D. Manuel mandou purificar a antiga sinagoga dos judeus em Lisboa, e a dedicou à Conceição de Maria. É a Igreja a que chamam da Conceição Velha, cuja fachada é um belo monumento do estilo da arquitectura gótica em Portugal. O Sr. Rei D. João III instituiu uma confraria ou irmandade, a que chamaram da Corte, em honra da Conceição da Virgem, debaixo de cujo nome fundou na Vila de Almeirim uma Igreja e hospital. Em 1634, a diocese da Guarda reunida em Sínodo prestou juramento de defender a Imaculada Conceição, e também a de Braga em 1637, e a de Coimbra em 1639. Foi porém o Sr. Rei D. João IV quem, com singular piedade, em Portugal mais exaltou o culto à Mãe Santíssima. A 25 de Março de 1646, dia da festa de Ramos, na capela real de Lisboa, estando os três Estados do Reino congregados em Cortes, depois do Dr. Pedro Vieira da Silva, secretário de Estado, ler o piedoso decreto datado deste dia, jurou o dito Rei, e fez jurar a todos os seus súbditos, a confissão da Imaculada Conceição de Maria; a tomou por Protectora do seu Reino e senhorios, com feudo obrigatório de 50 cruzados em ouro por ano à Igreja da Senhora da Conceição de Vila Viçosa, assento ducal dos Duques de Bragança, dos quais ele herdou esta devoção; e acrescentou que ele Rei e todos os seus sucessores e de seus vassalos, ficariam obrigados a propugnar a excelência da Imaculidade da Soberana Virgem, até expor as vidas e derramar o próprio sangue. Em conformidade com esta resolução e assento de Cortes, todas as catedrais; corporações eclesiásticas e civis; as Universidades de Évora e Coimbra, e mais academias dos Reinos de Portugal, tomando a Virgem Imaculada por Padroeira do Reino, se obrigaram solenemente com juramento, a defender a pureza da sua gloriosa Conceição, e por isso também nas salas de todos os Paços Municipais, Episcopais, e Tribunais do Reino, se levantaram desde então Imagens da Senhora, o que ainda hoje religiosamente se observa. Na Universidade de Coimbra ainda actualmente, [século XIX] não se confere algum grau académico, sem que preceda o juramento de defender a Conceição Imaculada. Seguidores do piedoso exemplo do Sr. Rei D. João IV, têm sido até ao nosso tempo os Monarcas da Augusta Casa de Bragança. O Sr. Rei D. Pedro II fez ricas dádivas à Conceição de Maria, e com real piedade protegeu as ordens religiosas da Conceição estabelecidas em Portugal; como a de Braga, instituída pelos anos de 1625; a Congregação da Conceição de Oliveira do Douro, em 1679; a dos Marianos Conceicionistas, estabelecida em Chacim, na Província de Trás-os-Montes, em 1754; e outras extintas em Portugal em 1834, na ocasião em que o foram as demais ordens religiosas. O Sr. Rei D. João V foi em devota romaria à Basílica de Vila Viçosa em 1716, para se desempenhar de uma sua promessa, e fez riquíssimos donativos àquela Igreja. Em 1717, decretou que em todas as Catedrais da Monarquia Portuguesa, se celebrasse com a maior pompa a festividade da Conceição. Em 1720, criou a Academia real de história portuguesa, em honra e debaixo da protecção da Senhora Imaculada, e quando em 1733, a 15 de Dezembro, reunida aquela célebre Academia na capela dos Paços da Casa de Bragança, onde fazia suas sessões, jurou solenemente defender a Imaculada Conceição, também o Sr. Rei D. João V, e o Príncipe seu filho prestaram devotamente o mesmo juramento. O Sr. Rei D. José I se distinguiu em semelhante devoção. No seu reinado, depois do terramoto de 1 de Novembro de 1755, que arrasou a cidade de Lisboa e muitas terras de Portugal, se instituiu no Convento de Jesus da Terceira Ordem da Penitência daquela cidade, sob a protecção da Santíssima Virgem, a Academia Mariana, à qual presidiu primeiro o erudito e afamado Dr. Manoel do Cenáculo, Arcebispo de Évora, assaz notável pela sua devoção, e em preciosos escritos em honra da Imaculada Conceição de Maria. O Sr. Rei D. João VI pediu e obteve da Sé Apostólica diferentes Bulas, que aumentaram os antigos e extraordinários privilégios de que já gozava a real Igreja de Vila Viçosa. A 6 de Janeiro de 1818, para solenizar o dia da sua inauguração ao trono, e manifestar que na devoção à Imaculada Conceição seguia as pisadas dos seus predecessores, criou a Real Ordem Militar de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa, cujas insígnias, pendentes de fita azul e branca, tem no centro as iniciais A. V. M., que significam – Ave Virgem Maria, – e em roda a lenda – Padroeira do Reino”.
Michel Reis h | Artes, Letras e IdeiasPalácio Nacional de Mafra – 300 anos do lançamento da primeira pedra [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]ez no passado dia 17 de Novembro 300 anos que foi lançada a primeira pedra do Palácio Nacional de Mafra (PNM). As entidades com responsabilidades na gestão deste notável conjunto patrimonial organizaram um vasto programa comemorativo, que teve início há um ano, no dia 17 de Novembro de 2016, e culminou com a inauguração da Exposição “Do Tratado à Obra – Génese da Arte e da Arquitectura no Palácio de Mafra” no dia 17 de Novembro de 2017, seguida do concerto de encerramento das comemorações. No mesmo dia, foi ainda lançado o 35º número da revista Monumentos, uma edição da Direcção-Geral do Património Mundial, dedicada ao palácio. No início do corrente mês de Novembro, foi reaberta ao público a Sala do Trono do palácio, após obras de restauro das pinturas neoclássicas que revestem o tecto e as paredes da sala (graças ao mecenato da Fundação BCP), da autoria de Cirilo Volkmar Machado e Domingos Sequeira. O Palácio Nacional de Mafra é uma obra maior do Barroco, em Portugal e na Europa, e o mais importante monumento representante deste estilo em Portugal, nomeadamente do barroco joanino. Foi mandado construir pelo Rei D. João V em cumprimento de um voto para obter sucessão do seu casamento com D. Maria Ana Josefa, Arquiduquesa da Áustria ou, há quem diga, a cura de uma doença de que sofria, e inclui uma basílica de grandes dimensões, um convento, um palácio real, uma magnífica biblioteca com mais de 40 mil volumes, e outras instalações. O instrumentário da basílica inclui o único conjunto conhecido de seis órgãos construídos para execução simultânea, bem como dois carrilhões, ambos do século XVIII (torres Norte e Sul), fabricados na Flandres, os maiores do mundo. A Exposição “Do Tratado à Obra – Génese da Arte e da Arquitectura no Palácio de Mafra”, curada por Sandra Vaz Costa (historiadora de arte da Direcção Geral do Património Cultural – DGPC), Sérgio Gorjão (museólogo do PNM/DGPC) e Paulo Pereira (professor da Faculdade de Arquitectura da Universidade de Lisboa) e com design de José Dias, comemora os 300 anos do lançamento da primeira pedra do imponente edifício barroco mandado erguer pelo Rei D. João V. Espalhada ao longo de várias salas do palácio, foca-se na construção do monumento, mais propriamente no trabalho do alemão Johann Friedrich Ludwig, conhecido em Portugal como João Frederico Ludovice, o arquitecto principal, também autor, entre outros, do projecto da Capela de S. João Baptista da Igreja de S. Roque, mas também de outros arquitectos que contribuíram para a sua edificação. Inclui gravuras, materiais e instrumentos de construção, modelos de estátuas e vários objectos, de pesos a cabrestantes e compassos a moitões, contando com uma parceria com a Faculdade de Arquitectura de Lisboa, que, segundo a directora-geral do Património Cultural, Paula Silva, fez um varrimento de laser 3D que foi aproveitado para uma maqueta de madeira do palácio que ainda não está disponível, mas fará em breve parte da exposição. Trata-se de uma mostra inédita que, tal como o seu catálogo, envolve as mais recentes investigações de reputados especialistas sobre a génese do pensamento e da cultura artística e arquitectónica barroca. A mostra ficará patente ao público português até 31 de Maio de 2018, seguindo-se uma itinerância na Baviera, na Alemanha, país de origem do arquitecto régio João Frederico Ludovice, que se viria a naturalizar português, a quem João V confiou a concepção deste monumental conjunto arquitectónico. Uma mostra em processo Segundo declarou Paulo Pereira ao jornal Público, a mostra era para ser apenas uma exposição de módulos informativos relativos a Ludovice, mas foi ganhando peso a hipótese de mostrar muitas das peças que fazem parte das reservas do palácio, que têm um valor imenso e raramente foram expostas. Este curador realçou também o foco na “materialidade da obra” e o facto de a mostra incluir tratados de arquitectura do século XVIII, vindos da biblioteca do PNM, que dão uma ideia das técnicas e conhecimentos que foram necessários para criar a obra. E ainda a envergadura dos trabalhos, que, na recta final da construção, envolveram cerca de 45 mil homens, após um mandato do rei a obrigar todos os operários do reino a irem para Mafra – que levou a que houvesse um período em que no resto do país não tivesse havido reparações nem novas obras. Referiu ainda que o objectivo é que esta recolha e investigação dêem origem a algo mais permanente, havendo a intenção de constituir um museu da obra, que pode reunir muitos dos materiais que se podem ver na exposição. Numa organização conjunta da Direcção Geral do Património Cultural/ Palácio Nacional de Mafra, Câmara Municipal de Mafra, Escola das Armas, Paróquia de Mafra e Tapada Nacional de Mafra, o programa comemorativo dos 300 anos, pautado pelas palavras-chave “qualificar” e “conhecer”, pretendeu dar a conhecer o diversificado conjunto patrimonial, candidato a Património Mundial da UNESCO, através da promoção de iniciativas como conferências, exposições, recriações históricas, lançamento de livros, concertos, espectáculos piro-musicais ou videomapping. Ao mesmo tempo, estas comemorações são sinónimo de investimento na qualificação dos espaços e dos mais singulares equipamentos, destacando-se a recuperação dos notáveis carrilhões do Palácio (cujo processo de concurso se encontra em fase de conclusão) e das pinturas murais da sala do trono, inaugurada no início do mês, assim como a melhoria das acessibilidades físicas e de comunicação (elevador, acesso à Basílica, nova sinalética e tabelas nas salas, e instalação de áudio-guias).
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasO clitóris e outros filmes [dropcap style≠’circle’]Q[/dropcap]uando usei pela primeira vez a palavra clítoris? Certamente depois duma ida ao cinema; nessa “câmara escura” é que as coisas se passavam, em sadia troca de mãos, membros, bocas e flores carnívoras. E tendo lido num livro sobre sexologia trazido de Badajoz que estimular o clítoris fazia a diferença, isso passou a fazer parte da “conversa, clínica e técnica” que ocorria sempre depois das sessões: gostaste, tiveste orgasmo…etc., etc. Afinal, o que é um bem cultural? Se for toda a manifestação que incide directamente na consciência crítica do público e é objecto de experiência e de participação, naquele tempo o clítoris (e a obsessão analítica dos seus efeitos) era um inexcedível bem cultural. E era público: contaminava de decência qualquer discurso, como Wilhelm Reich, de resto. Um dia emperrei. Numa sessão de cine clube às 18h30, um filme antigo a preto e branco para nos abstrairmos de réstia de interesse pelo mesmo, e comprámos bilhete para o segundo balcão do Cine Incrível, um “albergue espanhol” afamado desde que uma jovem imitou no orgasmo os carrilhões de Mafra. Era o nosso jardim edénico. A luz apagou-se e a primeira poalha colorida foi projectada. E emergiu aquela voz tonitruante, hipnótica. Seguiu-se uma narração que à época julgava labiríntica e actuava como um anzol. E esqueci-me do nobre desígnio a que havíamos encomendado as almas. O filme chamava-se Citizen Kane e foi o primeiro que me arrebatou, numa viagem ao desconhecido. No fim, ela desviou-me para a garagem de uma amiga mas eu só me lembro do enigmático Rosebud. De outra vez, entrei desprevenido numa sessão da meia-noite e saí de lá vidrado por uma felina prostituta de meias verdes, a que Shirley MacLaine encarnava em Irma, la Douce. E só se atenuou quando sete anos depois fui ver Laços de Ternura e me apanhei dividido entre mãe e filha, precisamente a mesma Shirley e Debra Winger. Tenho saudades de me apaixonar no cinema. Ou de sentir que um filme ameaça a minha vida, como quando fui ver Lawrence da Arábia com a namorada e percebi no fim que a nossa relação tinha os dias contados porque ela saíra absolutamente apardalada pelo Omar Shariff, enquanto eu me aparentava ao Peter O’Toole, uma alva magreza de vela, com cabelos fulvos. Não sei o que procuram os jovens que se inscreveram no meu curso sobre Guionismo e que teve dia 16 a primeira aula. Suspeito que ao analisarmos a narrativa de Táxi Drive se estejam nas tintas para a estrutura trinitária das sequências, ou lhes passe ao lado o que quero eu dizer quando defendo que a montagem de um filme de acção é mais eficaz quando a sua progressão rítmica respeita o número de ouro no desenrolar das sequências. Não estão maduros para este tipo de informação ou para assimilarem que há uma geometria secreta na fabricação das histórias. Basta-lhes que haja miúdas e movimento, se possível um bom turning point, no fim do primeiro acto, e uma orgia barroca a marcar o clímax. Nada de revelações “estáticas” como a que ocorre no final de The Dead, de Huston, quando um homem olha do fundo da escada a sua mulher e percebe numa troca de olhares dela com um terceiro que a sua vida é uma soma de inapercebidos actos falhados. O “débacle” de uma vida há-de parecer-lhes pouco movimentado. Mas tudo tem uma segunda face. Esta semana – toujours en retard dans la vie – soube em Maputo que faz precisamente um ano que morreu Alberto Seixas Santos, para quem eu escrevi três filmes de ficção. Os equívocos pessoais e profissionais em que nos embrulhámos não retira a menor parcela à evidência de que ele me ensinou a olhar e me aguçou o pensamento analítico. Colaborei em três projectos: em Paraíso Perdido, em O Mal, e naquele que seria o projecto da vida dele mas de que ele desistiu sem nos dar cavaco, a mim e à Maria Velho da Costa, que estivemos um ano a escavar em três episódios de hora e meia sobre o Camilo Castelo Branco – visto sob o ponto de vista do dinheiro, do amor e da escrita, guião que acabei por publicar dez anos depois sob o título Inferno. O Paraíso Perdido, o primeiro filme integralmente de ficção de Seixas Santos, foi um caso descoroçoador de junção entre a total inexperiência (a minha), uma absoluta conjunção de azares, nabices, e falta de nervo, dele, e uma circunstância um pouco canalha que para ser esmiuçada daria um livro. Várias más escolhas entretanto se avolumaram, de actores e técnicos. Coitado do Seixas passava tardes a mostrar álbuns do Hooper ao cameraman que reagia a “tais arrebatamentos da sensibilidade artística” com o ar perplexo de quem nos dias de folga se maravilha com a pornografia. O Alberto não aguentava a pressão. Era excelente a discorrer “no seu território” sobre qualquer aspecto da cultura. Com tempo e vagar. Não sitiado por uma equipa e actores que rogam por respostas prontas e um planeamento eficaz que não comporte lugar para a dúvida. A sua enorme capacidade analítica não se traduzia em beat, em ímpeto criativo, sobretudo naquele ritmo e numa produção desapiedadamente industrial. Numa sequência filmada na Biblioteca Nacional a equipa técnica chegou às seis e trinta da manhã para preparar o trabalho e esteve à espera até ao meio dia enquanto ele, de bloco na mão, riscava e tornava a riscar, tentando decidir sobre a decupagem das cenas. Isto repetiu-se em inúmeros dias, o que lhe minava a autoridade diante da equipa. O talento dele cumpria-se no vagar, não na prontidão das boxes. Amanhã vou olhar de frente os meus alunos e vou tentar adivinhar qual deles daqui a vinte e cinco anos escreverá uma crónica em que me recorda como um homem cheio de talento mas incapaz de estar pronto. Um homem sem clítoris – perdido para o pique, a sensação do instante, portanto.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasBuracos do mundo CCB, Lisboa, 9 de Novembro [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap]ssisto deliciado ao Obra Aberta da semana (https://www.abysmo.pt/obra-aberta/), com páginas folheadas pelos nómadas Patrícia Portela e Mário Gomes. Ambos me pareceram tímidos, mas de modos distintos. O Mário pensa cada frase, com a dicção marcando ritmos que o vão deixando cair em murmúrio quase inaudível, até se acomodar no silêncio. Mesmo quando fala do seu Arno Schmidt com paixão, que sem ela não se alimenta a disciplina e o esforço necessários para desafio deste nível. O tom do alemão de Schmidt, sendo respeitado ao ínfimo, foi transposto para um português tão elegante que quase o torna transparente. Mas plantou na conversa outros autores, todos do continente americano, e temas como este de que a ferramenta pode estar na origem da linguagem. Tomo nota para saber mais, para procurar livros, afinal o objectivo último do programa. A Patrícia parece querer correr contra o vento, como personagem de um dos seus contos de «Dias Úteis». Em cada ideia esconde-se uma história e o contrário não será muito diferente. Discorre sobre sabedoria e infância de tal modo tal que me parece ter alcançado essa suave mistura. Diz que não é das escritas, mas das artes performativas, e talvez por isso os seus livros possuam uma força lúdica extraordinária e pulsem em múltiplos detalhes. Nota ou epígrafe resulta em pista que importa seguir. Em «Dias Úteis», cada conto diz de maneira diferente o buraco do mundo, escondendo-o no nevoeiro de metáforas que parecem ora sonhos, ora pesadelos, ora ambos. Para este lusco-fusco, atravessou também o Atlântico para recolher as matizes do Brasil de Clarisse Lispector e Machado de Assis e de um João Gilberto Noll que fiquei com muita vontade de visitar, por causa do seu «erotismo marxista»: quando nada temos, resta-nos ainda o corpo. Lá pelo meio, aproveitou para me chamar panda, ironizando sobre a ameaça que paira sobre certo tipo de edição e editor. Ganhei assim novo argumento para fugir da inevitável dieta. Mais importante: contou da importância que a Bedeteca de Lisboa teve nos seus hábitos de leitura. Uma biblioteca, afinal, custa a matar. Casa da Cultura, Setúbal, 10 Novembro Sendo de cultura, uma casa desdobra-se sem fim. Apanho as cidades de Miguel Galano e fico a pairar em «París/Madrid/Lisboa». Gostava de escrever literalmente, para descrever a libertação da gravidade por via do estado em que me deixa a contemplação desta pintura. Parece figurativa, e até concreta, se pensarmos que são lugares, edifícios, esquinas e paredes com nome, mas as formas desfazem perante os nossos olhos para revelarem o buraco do mundo. O nevoeiro da melancolia toma a cidade, a luz perde a quotidiana batalha para o negrume e as arestas do mundo ganham ternas suavidades. São paisagens que agora suam a humanidade de quem os habita. Ou então sólidos geométricos que nos falam, por exemplo, de solidão. Parroquia de San José sussurra-me em baixo contínuo o quanto de espírito se esconde na rica escuridão. Fado na Mouraria (algures nesta página) canta-me alegrias que se podem colher na solidão. Bar A Barraca, Lisboa, 15 Novembro Alguns livros são peregrinos. Saltámos o Verão para só agora apresentar a viagem mais recente do Luís [Brito]: «Oi?». Como explicou o Paulo [José Miranda], que o sabe não apenas de ouvido, na sua poderosa apresentação, a expressão comummente quer dizer «não entendi». Os muitos brasis não são matéria óbvia, mas por ser viagem, portanto com o autor em plena transformação, acontecem por aqui acessos arrepiantes aos buracos do mundo. Não deixa de me surpreender a frescura dos seus relatos, nos quais viajamos tanto nele como nos lugares por onde vai vivendo. Isto sem ignorar a perspicaz percussão do seu olhar. Sim, ele toca os seres e as coisas como o hang drum, que agora pratica com arte, para lhes retirar inesperadas vozes e perspectivas, enfim, existências. Não revelo grande coisa se o autor não beijou apenas: apaixonou-se. Diz-se já longe do texto. Talvez esteja na altura de voltar a partir. Teatro do Bairro, Lisboa, 18 Novembro Precisava ser três ou mais para saltar de Braga a Silves, sem esquecer o concerto dos Mão Morta, que celebra, em Lisboa, os 25 anos do «Mutantes S.21». Também por outras tristezas, mal entendidos e ridicularias enovelo-me e acabo, noite dentro, no lançamento de «Se Houvesse Vida Aqui», EP dos «Não Simão», a banda do Simão [Palmeirim], do Pedro [Fernandes] e do José [Anjos], ainda para mais hoje acompanhados, além dos sopros da Ana Raquel e do Marco Alves, pelo Carlos [Barretto] e pela Madalena Palmeirim. A festa deste palco foi contagiante. Aprecio a riqueza de ideias que se desprende das suas canções e diverte-me muito o surrealismo da lírica, mesmo quando negra. Em «Catarse ao mar» há quem se equilibra na linha do horizonte, que puxa cabos para anunciar réstias de alento e aproveitamentos do vento. Rimas que me dão jeito. Dona Maria, Lisboa, 19 Novembro Matiné das antigas com «Sopro», a mais comovente das homenagens ao Teatro a que me foi dado assistir. Inspirada e inspiradora. Ecoarão por muitos dias algumas das frases, das ideias, das imagens. Sobre um velho tabuado resgatado ao armazém, deambulam personagens/actrizes insufladas pela ponto, Cristina Vidal. A peça nasce dela, anda à sua volta, sob sua orquestração, que representa a encenação do director do seu teatro, que doravante será o seu director. Vinda das sombras, só ouviremos a voz da pálida ponto no exacto final da peça. Tudo assenta, portanto, em nada: vento e simulação. Mas, como a respiração, sem esse sopro não corre sangue, não bate coração, não oxigena cérebro. Regidos com extrema inteligência e enorme sensibilidade, os actores (a enorme Isabel [Abreu], o João Pedro Vaz e o Vitor Roriz, a Beatriz Brás e a Sofia Dias, além da Cristina, claro) incham e desincham para nos virar o palco do avesso e dar a ver as vísceras, a frágil humanidade em que tudo assenta. Derradeiro espelho da vida. Tudo pode, a qualquer momento, falhar, mas acontecerá lutando contra a morte. A cada momento nos é dada a hipótese de escolha. Pela vida. O destino não tem ponto.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasO que é que Confúcio tem a ver com os “pés de lótus”? [dropcap style≠’circle’]R[/dropcap]ecentemente houve duas coisas que me chamaram a atenção. O ressurgimento dos valores tradicionais chineses, como parte das novas políticas do Partido Comunista, que justifica assim esta opção, “a soberba cultura tradicional é um alicerce espiritual importante para atingir o Sonho Chinês” e a ressurreição do “enfaixamento dos pés das raparigas”, através da implementação em todo o país de aulas sobre “virtudes femininas”. O enfaixamento dos pés é uma antiga tradição chinesa, que não deve ter lugar na sociedade moderna. É um dos exemplos mais flagrantes de crueldade contras as mulheres, condenando-as a uma vida inteira de sofrimento e de incapacidade. Diz-se que esta prática se ficou a dever a Yao Niang, uma prostituta e dançarina da corte do séc. X, que começou a atar os pés em forma de Quarto Crescente. Ela enfeitiçava o Imperador dançando na ponta dos pés, dentro de um lótus dourado com 1,80m de altura, decorado com fitas e pedras preciosas. Além disso, os pés enfaixados provocam o “andar de salgueiro”, um movimento que é produzido pelo apoio do corpo nos músculos das coxas e das nádegas. Inicialmente, o enfaixamento dos pés surgiu revestido de conotações eróticas e, gradualmente, foi-se tornando moda entre as elites. Mulheres com dinheiro, tempo e um vazio por preencher, fizeram desta prática um símbolo do seu estatuto social. As famílias com filhas casadoiras passaram a utilizar o tamanho do pé das jovens como passaporte para a ascensão social. A noiva de sonho tinha um pé de 7,5 cm, designado por “lótus dourado”, um processo que demorava seis anos, através da aplicação de faixas muito apertadas nos pés das meninas em crescimento, de forma a que estes não excedessem os 12 cm de comprimento. Os “pés de lótus” representavam o ideal de beleza na antiga China. Eram também sinal de um elevado estatuto social, porque estava implícito que as suas “donas” se podiam dar ao luxo de não trabalhar e de ficar em casa a maior parte do tempo. As mulheres com pés enfaixados tinham grandes probabilidades de se casar com homens ricos. Neo-Confucionismo e Mongóis A Era Song (960-1279) assistiu ao desenvolvimento do Neo-Confucionismo, o mais parecido que a China teve com uma religião de Estado. O Neo-Confucionismo valorizava sobremaneira a castidade, a obediência e o esmero da mulher. Uma boa esposa deveria ter como único desejo servir o marido, nenhuma outra ambição para além de dar à luz um rapaz e qualquer outro interesse que não o de se subjugar à família do consorte – o que significava, entre outras coisas, que não se deveria voltar a casar se enviuvasse. O acto do enfaixamento dos pés– a dor e as limitações físicas que provocava — era uma demonstração diária da dedicação da mulher aos valores de Confúcio. Após os Mongóis terem conquistado a China, em 1279, o enfaixamento dos pés representava a expressão da identidade Han. Para as mulheres chinesas, esta prática cruel era a prova diária da sua superioridade cultural sobre os bárbaros incultos que as governavam. A partir daqui os pés de lótus tornaram-se, à semelhança do Confucionismo, num marco da diferença entre os Han e o resto do mundo. Para cúmulo da ironia, embora os seguidores de Confúcio condenassem inicialmente esta prática por a considerarem frívola, a adesão das mulheres a ambas uniu-as num acto único. Enquanto tradição, o enfaixamento dos pés foi vivido, perpetuado e realizado pelas mulheres até ter sido banido em 1912, embora a prática se tivesse mantido até à década de 30. A última fábrica a produzir sapatos de lótus fechou em 1999.
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasO ovo de Símias de Rodes [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]ste poema inaugural foi escrito três séculos antes de Cristo e aparece-nos como um primeiro poema visual. É de uma beleza que nos enfeitiça e espanta pela sua composição toda ela ovalada e plena da primeira instância materna; é uma reverência, um diálogo de amor e de acção no domínio do filho. Ele é quase a primeira anunciação, a fecunda emanação do Verbo na concepção: acolhe da fêmea canora este novo urdume que, animosa tirando-o de sob as asas maternas, o ruidoso e mandou que, de metro de um sopé, crescesse em número e seguiu de pronto, desde cima o declive dos pés… quando as pernas velozes dos filhotes; é um texto sincrético entendido visualmente pela configuração ovular. Considere-se também que os hieróglifos foram os primeiros Caligramas, mais tarde – milhares de anos mais tarde – reerguidos por Apollinaire o que não obsta que não tivesse havido bem mais para trás, especialmente no barroco belíssimos exemplares desta natureza. À escala figurativa dão-nos os registos gráficos muito mais que um código de linguagem. Eles contêm a associativa transformação das infinitas leituras que nela se produzem a partir de símbolos verbais. Nós que usamos a linguagem escrita em torrentes de horizontalidades diárias, pois que adaptamos o método corrido da visão imediata, pensamos, como escrevemos, em linhas rectas que fornecem um molde cerebralmente imposto na leitura, mas ela cresce e transforma-se em todas as visões que criativamente lhe queiramos dar. Por vezes estamos cansados de tanta estrada igual que desfere nas nossas causas uma certa monotonia e não as transgride em posição, o nosso olhar também se cansa de tanto plasmar de linhas sem contramão, e, destes alfabetos, destas formas de leitura tão especiais como a que menciono acima, tudo se torna de repente uma voz que entoa no meio da palavra. Mais do que artefactos as suas disposições são a própria melodia. Este texto não pode por isso ser lido linearmente como um texto comum: tem de se fazer de maneira alternada, depois do primeiro verso, leia-se, não o segundo, mas o último; depois do segundo não o terceiro, mas o penúltimo, a leitura que se faz de alto e baixo para o centro numa fecundação enaltecida da conclusão do fruto. Temos assim o princípio da fecundação em todo o seu esplendor da composição alfabética o que ajuda a um treino fecundo antes de concluir a importância de tal via manifestada. Os gregos não usavam rima, o ritmo regular era a sua característica no poema e é neste ritmo que ele se dá e se entende como arte poética. Toda esta matéria nos remonta também para a antiga tecelagem na composição das suas várias formas e se com fios as Parcas tinham o poder das vidas dos Homens também com as palavras esse poder emana como o mais forte de todos eles. Tinha-se assim elementos que comandavam os destinos humanos de forma sobrenatural e mágica sendo nestas teias que os maiores dons germinavam. A Cartilha Maternal fala-nos também da vogal canora que transmite o som da palavra ao filho e forma o aprendizado da língua. Talvez João de Deus tenha ido por caminhos de recordação até aqui buscar a sua pedagógica fonte de receitas e sempre que as reformas de ensino se pronunciam deviam ter em linha de conta muitas coisas destas registadas. Mas não têm. E daí a não proliferação de uma harmonia instintiva na forma de crescer e muito menos uma implantação de motivações que ajudem a fazer de cada ser um elemento criativo e naturalmente motivado. Sabemos que a aridez das composições eram maiores à medida que o tempo passava, nem de copistas tínhamos noção… não nos recordamos nunca da beleza que era repousar e alongar nas iluminuras o olhar e em que cada maiúscula que parecia uma renda de alta concentração gráfica elevarmos o olhar com aquelas cores que produziam a fantástica experiência do complemento da leitura. A aridez foi avançado proporcionalmente à proliferação, até ao hoje onde as abreviaturas são caracteres que não dobram o limiar da contemplação: passamos sinalética como se tivéssemos na grande autoestrada do livro comum. De trás para a frente temos ainda a leitura talmúdica que não deixa de ser altamente estimulante para todos aqueles que queiram ainda expressar-se nesse preceito religioso e dizer o que não deve ser mencionado. A origem faz o original, mas coisas iguais fazem apenas muitas coisas. Rodes é ainda a ilha de um Colosso. De pernas abertas vai de margem a margem nas águas, e com seus braços guarda uma chama. Era talvez daquela raça dos gigantes que se apaixonaram pelas filhas dos Homens e delas tiveram uma espécie falante. Transformam-se em Cisnes e fecundam deusas que ao porem ovos fizeram destes locais o mais precioso dos recantos poéticos. Vamos lá buscar este instante com a sua fêmea canora que compôs um dos poemas mais belos da Humanidade: arauto dos deuses, Hermes, jogou-a à tribo dos mortais, e pura, ela compôs na dor estrídula do parto do rouxinol dórico benévolo. O ovo dos cinco remanescentes do poema figurado alexandrino.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu – Quinto Estásimo [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]ORO DE MULHERES Temos no fim o que foi sempre! Teseu descobre um mal maior Que a força do Minotauro: Um amor não correspondido. CORIFEU Não era amor, como viu Teseu, Mas as flechas de Afrodite! E essa mulher não se opôs Como ela muito bem diz, Quase já na boca da morte. (entra a deusa Ártemis) ÁRTEMIS Vós vistes hoje aqui no palco O poder que a deusa tem Para destroçar um humano. Por mais que haja quem duvide, Afrodite é a sem rival, N’ arte de virar do avesso Os pobres mortais indefesos E arrogantes, a um tempo. Sou a única deusa sã, A única que não inveja O poder destruidor dela. Até Zeus teme o seu poder, Pois nem a seu pai ela poupou Da febre radical da paixão. Ela não tem nenhum descanso Da arte vil de enlouquecer Pelos olhos, mortais e deuses. Nada é pior que uma imagem Escavando uma vontade. Muito foram os seus amantes. E assim se comportem todos! Deseja ela ao mundo inteiro. Serenidade é uma afronta, No equilíbrio ela cospe. Afrodite só tem ódio. A sua vida é a carne, Não dá aos mortais um bem comum, Pois dela nunca vem encontro. Desata os olhos em quem quer, A ilusão de se ser livre. Faz correr para uma imagem E os pobre seres confundem Um exército de desejo Com a elevação do amor. E eu, que me chamo Ártemis, Digo com pesar a verdade. Reconheço previamente A minha derrota p’ra deusa Afrodite, traiçoeira, A filha de Zeus e minha irmã. E mesmo deusa, puta é puta. Nada tem valor, só a carne. Só tem olhos para três coisas: Corpo, rosto, boas erecções. (Ártemis sai e entra Teseu em cena) ÊXODO TESEU Como continuar? Fedra faz-me matar meu único filho, casto como a sua deusa, incapaz de ofender quem quer que fosse, depois mata-se e ainda me diz que, depois da verdade dita, posso continuar, como se me quisesse matar com as minhas próprias palavras, ou por causa dessas mesmas palavras. Como continuar vivo agora? Como carregar um dia até ao outro e até ao outro e perfazer uma semana, perfazer um mês, perfazer uma vida? Como lutar contra o que não existe mais, único inimigo que nos faz sofrer? AFRODITE Como estás enganado, filho de Egeu! Como estás enganado, pobre mortal! TESEU Afrodite, és tu? És mesmo tu, ou estou a delirar? AFRODITE Sou mesmo eu! Não estás a delirar. TESEU E porque dizes que estou enganado? AFRODITE Porque tudo isto é culpa de Hipólito, teu único filho! TESEU Culpa de Hipólito, como, deusa? AFRODITE Por me ter ofendido gravemente, Teseu! TESEU E como te ofendeu ele, Afrodite? AFRODITE Várias vezes, e até nas salas deste palácio. Ele me diminuiu aos olhos dos outros deuses; principalmente aos olhos de minha irmã, Ártemis. Teu filho foi o mortal mais prepotente que encontrei na minha imortalidade, filho de Egeu! A prepotência dele superava a tua força na horas de combate e de superar dificuldades, Teseu. TESEU Era apenas a juventude a falar por ele, deusa. Sabes como os jovens são fortes em demagogia, fortes em não saberem o que dizem. Que sabia ele da vida, Afrodite? AFRODITE Não sabia nada da vida, Teseu. Nisso, como em muitas coisas, tens toda a razão! Mas não é desculpa para ofender os deuses. Não se saber o que é a vida não concede a liberdade de procurar desenfreadamente a morte. Porque quem a procura, encontra-a. Só ele tem culpa na sua morte, Teseu. Mais ninguém! A arrogância com que ofendia os deuses que não fossem a minha irmã, Ártemis! Confesso que fui eu que tramei tudo, filho de Egeu, mas não julgues que a tua mão matou por mim o teu filho. Hipólito ofendeu outros deuses! Quem por ti matou Hipólito, posso dizê-lo agora, foi o pai de todos os deuses, Zeus. TESEU Zeus?!? AFRODITE Sim, Zeus, Teseu! Zeus estava cansado da ousadia de Hipólito, da soberba do jovem, que pensava, por ser o preferido de Ártemis, que era igual a ela. Hipólito era um mortal que não sabia qual o seu lugar, filho de Egeu! Ele morreu às tuas mãos, mas quem o matou foram os deuses. Quem o matou foi Zeus. Ele não aceitaria o exílio de Hipólito, Teseu. Hipólito nunca entendeu que não se pode venerar a um só deus. TESEU E Fedra? Fedra é culpada de quê, Afrodite? AFRODITE Fedra foi apenas uma pedra atirada contra Hipólito, uma pedra atirada contra esta casa, pela culpa ímpia de teu filho, a quem todos chamavam de casto, mas que, como já te disse, não passava de um arrogante que desprezava todos os deuses, exceptuando Ártemis. Fedra, se culpa tem, é a de não ter tido forças para afastar o desejo pelo corpo de Hipólito, que as minhas flechas incendiaram. TESEU E que culpa é a minha, para carregar tamanho castigo? AFRODITE Nenhuma, Teseu! Nada podes contra o rumo da vida. Hipólito não se tornou arrogante por tua culpa. Mas os deuses também não podiam desculpar-lhe a impiedade, somente por ser teu filho. No mundo, o que parece ser um grande bem não passa de uma grande miséria. E é fazendo o que não se quer que os deuses ajudam os mortais. Não és tu, Teseu, a maior prova disto que digo? Houve alguém mais posto à prova em sua vida, do que tu, logo desde o nascimento? E houve alguém que mais tenha atirado os males pela borda fora, de todas as embarcações ao longo da vida? És e serás sempre um exemplo para os mortais! A dor é apenas a tua sombra.
Valério Romão h | Artes, Letras e IdeiasA importância das ideias [dropcap style≠’circle’]“T[/dropcap]enho uma ideia bestial para um romance!”Tenho a certeza de que todos os escritores já ouviram isso. Normalmente surge em conversa com uma criatura bem-intencionada mas incapaz de aquilatar o valor de uma ideia relativamente à sua concretização literária. “Isto daria um livro óptimo!”. Talvez. Talvez não. O que não faltam são exemplos de ideias geniais arrastadas pelo pântano de uma trama incipiente até ao suspiro da vergonha alheia. E, por outra parte, os exemplos contrários também abundam: Romeu e Julieta, por exemplo, o franchise de boy meets girl mais aclamado de sempre. O problema está na percepção do valor intrínseco da ideia. O capitalismo aplicado à tecnologia decorrente da ciência produziu um entendimento muito específico do que é uma ideia. Uma ideia deixou de ser uma possibilidade passível de materialização técnica mais ou menos feliz para ser o valor absoluto na cadeia de concretização das coisas. Mesmo que a realidade não corresponda a este enunciado romântico da importância superlativa da ideia, a verdade é que passámos a encará-la deste modo. Quando pensamos no Google, na Apple ou no Facebook, pensamos naqueles que perseguiram um sonho visionário sobre o qual alicerçaram fortunas incomensuráveis e uma influência de nível planetário. O problema é o da memória selectiva: por cada multinacional ciclópica, há milhões de projectos que definharam do trajecto do estirador para o público. Por cada Google, houve um Hotbot, um AOL Search ou um Altavista; por cada Facebook, um Hi5 ou um Myspace. E estes exemplos dizem respeito a empresas com milhões de utilizadores que, por motivos mais ou menos óbvios, foram perdendo popularidade e clientes até se tornarem uma nota de rodapé na história da internet. Os projectos que não passaram sequer de animadas conversas com amigos e de apaixonados sales pitches perante investidores são, na verdade, a pilha de cadáveres sobre a qual repousam as pouquíssimas coroas de glória da indústria. A verdadeira dificuldade não parece ser a de pensar num “computador pessoal”, num “smartphone” ou numa “rede sem fios”, só para citar exemplos mais óbvios. A verdadeira dificuldade, não obstante o peso decisivo da ideia que preside ao percurso que cada projecto percorre, é precisamente o espaço entre o lampejo de génio e as carteiras dos clientes, e esse espaço está minado das mais diversas dificuldades, desde as puramente técnicas às financeiras, desde as estruturais às que dependem da moda em vigor. Esse espaço é também um espaço invisível ao público e um limbo do qual a maior parte dos vencedores não se orgulham. Portanto, quando alguém me conta uma ideia genial para um romance, o que apetece imediatamente pedir à criatura em questão é um caderno de encargos e um mapa ou, mais comedidamente, um algoritmo; qualquer coisa que faça a ponte entre as resoluções de ano novo e deixar de fumar. Qualquer coisa que não seja a andorinha perdida a caminho da primavera que nunca mais chega. Qualquer coisa grande em todas as medidas. Ou dizer, pura e simplesmente, faz tu.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasO Crisântemo no Duplo 9 e no Japão [dropcap style≠’circle’]F[/dropcap]lor de Ouro, o crisântemo é símbolo de amizade e jovialidade, representando o Outono, pois normalmente aparece durante esta estação e dura até começarem as geadas. Segundo uma lenda ligada com o primeiro imperador da Dinastia Qin, foi levada para o Japão por um grupo de crianças que com um mestre do Dao partiram num barco para as ilhas remotas à procura do remédio da Imortalidade. Sabe-se ter o Japão no ano de 750 importado da China esta flor. Refere o Padre Benjamim Videira Pires, S.J. ser o crisântemo o emblema imperial do Japão, quando amarelo e de 16 pétalas, lembrando o sol nascente. “Conta uma antiga lenda japonesa que o crisântemo nasceu de uma astúcia de amor. Há muitos e muitos séculos, um nobre samurai, pouco depois de ter desposado a filha mais nova e mais linda do Imperador, teve de partir para a guerra. Esperava que a expedição fosse por pouco tempo e que a vitória não se fizesse esperar. Para consolar a sua jovem esposa a qual, como todas as japonezinhas bem educadas, engolia corajosamente as lágrimas, dirigiu-se com ela para o seu magnífico jardim e, indicando-lhe uma das flores, disse-lhe o seguinte: <Toma esta flor sob os teus cuidados, porque antes de caírem todas as pétalas, ter-me-ás outra vez aqui junto de ti>. Infelizmente, porém, estava a flor ainda bem fresca quando se propalou a notícia de que o navio, em que seguia o nobre samurai, tinha sido tragado pelas ondas durante uma furiosa tempestade. Todos exortaram a jovem esposa a que se resignasse e a que esquecesse; e o seu pai, o Imperador, começou a projectar-lhe novo casamento com outro cavaleiro, tão nobre e valorosos como o primeiro. Mas a jovem sentiu que não poderia esquecer o seu primeiro amor e por isso pediu e conseguiu que lhe fosse permitido esperar <até que tivessem caído todas as pétalas da sua flor>. Iludindo então a vigilância até das próprias criadas e apoderando-se dum par de tesouras bem afiadas, dirigiu-se numa noite de lua cheia ao jardim e cortou as pétalas da flor em tiras finíssimas, por forma a conseguir um grande número de pétalas. E a sua constância não deixou de merecer o devido prémio. De facto, pouco antes de cair a última pétala da sua nova flor, chegava o samurai que restituía a felicidade à sua esposa. Comovido, o Imperador deu ordens para que a flor passasse a ocupar o lugar de honra nas suas armas e de se converter no símbolo heráldico do seu império. Mas o povo japonês passou a considerá-la também desde então como símbolo do amor. De facto, a oferta dum botão de crisântemo significa <O meu coração está ainda fechado, mas poderá abrir-se para ti, se o quiseres>; um crisântemo que está a desabrochar significa <O meu coração está a abrir-se ao Sol do teu amor> e uma flor aberta significa <O meu coração desabrochou para ti>. Mas, nas terras do Ocidente, essa flor é considerada símbolo dum amor que não tem fim; por isso, é oferecida àqueles que nos foram queridos na terra e nos precederam no Céu, como sinal de recordação perene e afectuoso.” História narrada por alguém que se escondeu no pseudónimo de Franca Perlo. A Ordem do Crisântemo, fundada no Japão em 1876 pelo Imperador Mutsu-Hito, só é conferida aos príncipes, usando uma fita verde orlada a violeta, segundo o dicionário enciclopédico Lello Universal. Um imperador japonês tendo escutado a existência no seu território de um magnífico jardim de crisântemos, talvez o mais belo do mundo, logo ficou interessado em visitá-lo. Enviou um emissário ao proprietário para a possibilidade de lhe conceder a permissão de lá se deslocar. Concordando, o dono do jardim apenas pediu o favor de ser avisado do dia e hora a que o Imperador lá iria. Com a data marcada, chegou o dia e o jardineiro enviou um dos criados para vigiar a saída do imperador do palácio, com ordens para logo que tal acontecesse, vir a correr avisá-lo. Assim foi e já com o Imperador a meio caminho, o jardineiro começou a cortar do jardim todos os pés dessa flor. Chegado o Imperador às portas do recinto, tinha o proprietário à sua espera e conduzindo-o ao seu interior, mostrou a única flor de crisântemo aí existente. Era esta o seu jardim. O vinho Ji Hua no Duplo 9 Na China, no período imperial, a festividade solar do Qingming, cujo significado é Pura Claridade e ocorre no dia 4, ou 5 de Abril, era quando os governantes prestavam homenagem aos Antepassados e ao Imperador Amarelo, unificador das tribos chinesas e primeiro Soberano, Huang Di, considerado o pai do povo chinês. Já no nono dia do nono mês lunar, duplo 9, ou Chong Yang Jie, como é designada a Festividade do Duplo Yang, era a altura do povo oferecer sacrifícios aos seus Antepassados. Se tal acontecia no período imperial, actualmente em ambas as datas o povo chinês vai às campas dos seus antepassados e oferece sacrifícios, queimando em sua honra incenso e dinheiro dos mortos, reunindo-se as famílias à volta da campa, limpando-a e embelezando-a com flores e realizando aí uma refeição. Na Festividade do Aprovisionamento do Princípio Masculino, como também é conhecida a celebração do Duplo 9, a flor mais usada é o crisântemo, não fosse a nona Lua do ano conhecida pela Lua do Crisântemo. Nesse dia as pessoas têm como costume subir à montanha para estarem próximo dos seus Antepassados. Isto poderá ter dois sentidos. No topo da montanha está-se mais próximo do Céu, assim como é nas encostas das montanhas que se encontram os cemitérios chineses. Na Festa do Duplo Nono, quando os crisântemos se encontram em flor, toda a família se reúne num local alto, para beber vinho de crisântemos. Diz-se que esta bebida, Ji Hua protege as pessoas do mal. “Constituía o estuário do Rio das Pérolas um ambiente suigeneris, no qual sucessivas gerações de famílias habitaram em barcos (…). Entre a diversidade de embarcações que se encontravam fundeadas, contavam-se aquelas onde se exercia a prostituição (…). O seu aspecto exterior, para além da lanterna de papel colorido, iluminada, que os anunciava à distância, era marcado por uma ornamentação exuberante, carregada de flores policromas – peónias, dálias e crisântemos, símbolos de amor, fertilidade e felicidade – em que predominava o vermelho, e que se entrelaçavam em frisos, envolvendo-os e emoldurando-lhes as janelas. Era este aspecto garrido que os distinguia, pelo contraste, a sobriedade habitual dos barcos do sul da China”. Retirado do estudo de Isabel Nunes, publicado na Revista de Cultura. Na famosa cozinha de Shunde, Guangdong, as pétalas tubulares do crisântemo são usadas no caldo de cobra quando, colocado na malga para ser servida a sopa, feita, para além da pele e da carne de cobra, com galinha e língua de porco, sendo adicionadas no final, por cima, pétalas brancas dessa flor. Termina hoje, 17 de Novembro, o Festival dos Crisântemos em Kaifeng, onde estiveram expostas em milhões de vasos, assim como ocorreram dezenas de eventos para promover o desenvolvimento da sua indústria nesta cidade da província de Henan, centro da China.
Anabela Canas Iluminação Artificial MancheteMundo a mais que dispõe [dropcap style≠’circle’]E[/dropcap]stranha disposição que me acolhe nesta página que fito de soslaio há uma enormidade de tempo. Aqui sentada na minha frente, impávida. Branca a página, cinzenta, soturna e desconfortável a disposição. Será da página branca e em branco, talvez. Gosta-se de dizer isso. Mas vejo sempre uma roda viva violenta de palavras desordenadas em esboços de sentir e sentido, em correrias desordenadas ou passando como no passeio público de séculos passados, lentas a olhar sem direcção nem curiosidade. Miríades de possibilidades de construção de um mundo. Uma poética existência a cumprir. Depois. De descoberta, a edificada. Ou talvez esse excesso de tantas escritas por aí, nos seus limites de sempre, no limite do seu conforto de sempre, espalhadas em diários caóticos e desesperados de o ser. Talvez seja esse por demais. E o pouco que de existencial, subitamente, daí se sente não vir. Da página em branco pouco vejo de tanto os passeantes me distraem do olhar. Não é dela então, a razão desta disposição estranha, que então me colhe talvez de súbito, e talvez de uma esquina não pensada com atenção. E que esperava à espreita para cobrir de uma ténue camada de cinzento, transparente e fino, mas que vem a adensar como um peso que repentinamente surge na matéria onde não é esperado nem natural. Estranha esta disposição. Que, quando vem, vem vestida para matar. Qualquer outra. Falar de quê, se tudo, extenuado por debaixo dessa firme, se bem que delicada cortina, se assemelha então a uma enorme sensação de aborrecimento. Falar do tempo ou falar do tédio. Do primeiro, na transcendente subjectividade que nos consome de formas variáveis, da imanência, que atormenta e reduz ao âmbito privado e secreto a sua verdadeira e nunca alcançada dimensão. Ou do segundo, como uma medida de desalento instalada de surpresa. Como uma iluminação particular que se debruça sobre todas as matérias e palavras, a tudo colorindo de momento por igual, e que por momentos pode quase assemelhar-se a um tempo a mais que se estende, lânguido, pesado e reprovador. Tempo demais. O aborrecimento suave de tudo. Das pessoas mesmo. Quase todas. Ou então, sendo que a rigor nem haja excepções, todas, todos e tudo. Todas as pessoas e todas as excepções. Na esquina errada do espaço-tempo. O triste, arrogante: l’ennui. Um arredondamento por defeito de onde nenhum brilho mais intenso e travesso consegue estender os braços. Sim. Como um nevoeiro fino e cerrado. Uma indiferença nítida, feita cor e fumo. Não se gosta de o sentir. Contudo vem do coração como outros afectos. Outras cores de sentir. Que se elaboram na mesma zona simbólica do intelecto a gerir pulsações mais fortes, como acalmias na motivação. Mas é da ordem do afecto, na economia desta mistura de sensações, relações entre dados, percepções e memórias. Com uma base que de repente se estende a tudo e tudo engole para uma difusa emergência em cores pastel. Penso depois que esta entidade que passa a superintender a tudo, talvez seja uma memória remota de alerta. Um sinal. Uma pontuação interrogativa que sempre se instala depois do tédio. Ao colo do tédio. A olhá-lo nos olhos sem amizade, mas com um ligeiro receio. De que se tenha vindo instalar para sempre. E posso pensar que tem o rosto neutro de uma ferramenta existencial, mas na verdade começa por produzir, perversa, uma avaria. No sentir. Depois há que conhecer a criatura criada sei eu lá de que substâncias ou matérias que me compõem. Um tédio mais melancólico. Um mais arrogante. O do nada vale a pena e o de o que se passa com os meus órgãos de sentir, comigo com as cores que abandonam as coisas. Com esta cegueira à luminosidade preciosa. Para onde foi tudo o que era antes. De onde veio. Isto. E então reparo num detalhe nunca antes lembrado. O olfato, parece ser o meu sentido menos entediado. Lembro o aroma de um cozinhado associado àquele burburinho da fervura, o perfume de uma flor. O perfume de um perfume. E penso que há algo desta poalha que recobre tudo e que é ineficaz face ao poder evocativo da memória de um perfume. Ou de um beijo. Então, é o tempo. O demais e o de menos. Que me cercam de todos os lados. Vendo bem, uma vida repleta. Sem vazios. Apenas ausências. Mas tão diferentes estas daqueles. Espacialmente falando. Uns produzem espaço, a outras ocupam-no, devidamente ou não. Tantos autores, entre filósofos e escritores se debruçaram sobre tão existencial assunto. Pessoa, Heidegger, Baudelaire, Mann, Kierkegaard, Kundera. Mas emerge sempre a necessidade de estabelecer categorias, formas, géneros de tédio, o de enquanto tarda, o do que sobra, o do que se repete e esgota. Outros. Dependendo de autor e experiência existencial. Este cansaço da existência, mesmo se pontual, que se associa ao tédio, e mesmo sem relação com idade ou quantidade de vivido. E que o coloca no cadinho dos estados afectivos. Detestados, mas afectivos. Com sinal negativo. Agrada-me particularmente uma abordagem fenomenológica, como sempre e também pela forma particular de nos retratar como seres no tempo, numa determinada visão do tempo que Heidegger preferiu. A tonalidade do tédio como expressão afectiva e temporal. Uma ontologia da experiência do tempo, quando a modernidade, há muito, é marcada pela técnica e pelo nihilismo. A produzir versões modernas de mal-estar existencial. Ou psíquico, mesmo. Estados de alerta. Ao contrário de Husserl que nos obriga à contingência de uma consciência filtro, em que se circunscreve a realidade do ser. Um eterno presente, talvez. Mas sinto algum alívio quando penso que o mundo e eu, não nos limitamos àquilo que são os dados da minha consciência de ambos. É um pensamento redutor e angustiante, circunscrever a realidade à consciência. Como se retirando a solidez de um chão e de um mundo que se habita, mesmo sem o entender na totalidade. Aos métodos filosóficos, prefiro claramente o método fenomenológico. A redução, em H. do ente à profundidade essencial do ser, a construção de um olhar a percorrer passo a passo as estruturas existenciais, e a destruição, palavra que deveria aparecer sempre entre aspas enormes, porque se refere à abordagem transversal e crítica, a todas as possíveis dissimulações que escondem os fenómenos genuínos do ser. Desocultar a realidade atemorizada e recoberta de máscaras. É o que isto quer dizer. Porque haveria de se determinar a desocultação como destruição e não como um acto de liberdade? E é talvez essa a função útil do tédio. Que cada um entenda o seu. E, de tudo isto, não ter medo. Do taedium vitae, mesmo. E falando do medo, outros caminhos negros se insinuam. Mas. Não ter medo, do medo, do medo. Porquê ter medo do medo…e para quê… há um medo maior que é de quando não houver mais medo para ter medo. De nada, mesmo. E aqui me socorre a ideia de deus que não tenho. A lembrar que pelo menos isto. Desci a casa as escadas a rua e sentei-me na beira do rio que é o tempo que passa, ali em baixo. Munida da única pedra que tinha, restos de uma praia ensolarada a sul de há anos. Inclinei-me bem a aferir o ângulo e o golpe certeiro para que, sendo única, fosse com efeito. E foi. E fiquei. Depois, a pensar na vida, assim como sem pensar em nada. A maré não estava boa para o odor daquele bicho gigante. E o vento. Que o devolvia à cidade. Mas é a vida. E não é má.
António Cabrita Diários de Próspero h | Artes, Letras e IdeiasArqueologia das marés [dropcap style≠’circle’]M[/dropcap]andelstam (1891-1938) e Vladimir Holan (1905-1980) são um exemplo manifesto de como um dia – dizia a Zambrano – todos os vencidos são plagiados. Seres de excepção, expelidos pelos caprichos da História e por sistemas sociais mesquinhos, cínicos e redutores, ei-los hoje inevitavelmente celebrados como figuras nucleares. Ocorre-me agora um terceiro caso, este africano, o do sul-africano Breyten Breytenbach (1939). Narremos rapidamente os percursos de vida dos três. Mandelstam, educou-se fora da Rússia – em Heidelberg e na Sorbonne – e voltou à Rússia depois de uma viagem por Itália e por outros países europeus, para se ligar ao movimento poético acmeísta e publicar em 1913 a plaquete A pedra, que o catapultou imediatamente na notoriedade. No imediato da Revolução, foi dos primeiros poetas a enveredar por temáticas sociais. Mas só publicaria o seu segundo livro, Tristia (coisas tristes), em 1922, simultaneamente em Berlim e em St. Petersburg. Ainda viveria cinco anos de relativa discrição antes dos inquisidores começarem a procurar nos seus versos o pêlo no ovo. E em 1927 declara-se frontalmente contra o regime soviético. A escrita de um poema onde zurzia em Estaline, «cujos dedos gordos parecem engordurados vermes», em 34, valeu-lhe ser desterrado para Vorónezh, e morreria 4 anos depois num campo de trabalho. É um dos grandes poetas do século XX mas se lhe conhecemos a obra completa foi porque a mulher, Nadezha Maldelstam, apesar da indigência a que foi exposta, lhe copiou os poemas e escondeu-os, ou decorou-os, até que os pôde publicar em Nova Iorque. Quando ela se lamentava da perseguição de que eram objecto, ele replicava com humor: «De que te queixas, este é o único país que respeita a poesia: mata por ela. Em nenhum outro lugar ocorre isso!». Hoje apodrecem no negrume os seus detractores ou são notas quase ilegíveis no rodapé das biografias de Mandelstam. Em Vladimir Holan, o grande poeta checo do século XX – que só tem rival no posterior Miroslav Holub – o encontrão que lhe deu a História conhece tonalidades grotescas. Holan começou como um poeta mallarmeniano, precioso, obscuro e de rimas rebuscadas. Teve depois uma conversão à poesia social, tornando-se na voz nacional de resistência à invasão dos nazis. Correu riscos físicos e militou no Partido Comunista e escreveu inclusive um livro alinhado, Soldados do Exército Vermelho. Paradoxalmente, em 48, o novo poder saído da guerra acusa-o de escrever de forma «obscura e decadente» e condena-o ao ostracismo. No mesmo ano, também o destino escarnece dele e nasce-lhe uma filha portadora do Síndroma de Down. É uma espécie de escalpe cósmico. Refugia-se na ilha fluvial de Kampa, no centro de Praga, e raramente saía de casa. Só noite dentro se entregava a longas passeatas, à hora em que na cidade só se ouviria o barulho dos seus passos. Chega a Primavera de Praga e querem recuperá-lo como poeta nacional, mas esmagada a reforma do regime fica mais isolado, até à sua morte em 1980. Hoje é o poeta nacional. E a sua poesia despojada, bruta, prosaica, dissonante, de palavras esculpidas, é inimitável, enquanto a dos seus rudes inimigos foi diluída pela espuma do tempo. Breytten Breyttenbach (1938) é um poeta sul-africano de um quilate inigualável. Foi preso durante o regime do apartheid por ter casado com uma indiana. Oito anos. Tornou-se amigo de Mandela. Mas uns anos depois da liberdade, não tolerando a direcção que o país tomava, mudou-se para Paris. Por ocasião dos 80 anos de Mandela dirigiu-se-lhe em carta no Le Monde, uma interpelação que interrogava os rumos do país e onde, no essencial, tocava nos pontos que com Zuma se potenciaram, arrastando o país para uma degradação triste e indesejável. Está condenado a ser postumamente o grande poeta de um país que hoje faz tudo para esquecê-lo. Três homens que não pactuaram com a mentira e tornaram mais exacta a proposição de Walter Benjamin, segundo a qual há uma arqueologia psíquica por detrás dos fluxos humanos que corrige a história, fazendo-a retomar com o máximo esplendor aquilo que primeiramente foi recalcado pela grosseira falácia do presente. Como aventava o Freud para os sonhos, o que importa afinal é o que está latente e não o que aparece manifesto. Pois «é ao ritmo dos sonhos, dos sintomas ou dos fantasmas, é ao ritmo dos recalcamentos e dos retornos do recalcado, das latências e das crises, que o trabalho da memória, antes de mais nada, se afina» (Didi-Huberman). No fundo, a dinâmica do presente é uma propulsão para inverter os sentidos da história e semear no seu manto os sinais da reversão. O Ying devém Yang, contra todas as aparências e a marcha linear do progresso. Neste sentido, não fiquei surpreendido que Putin tenha aproveitado a efeméride da Revolução de Outubro para insinuar que talvez a leitura oficial da sua História esteja equivocada e haja pouco a festejar. Uma meia verdade, pois há os factos e há os símbolos e estes mantém o seu capital de promessas. O que me chocou foi ter sido ele a dizê-lo. Porém os poetas, mesmo que momentaneamente reprimidos, reduzidos à indigência tinham a consciência desperta. Como Mandelstam: «a poesia é um arado que reinventa o tempo de tal modo que as camadas mais profundas, o seu húmus, afloram à superfície». Um poema breve de Holan: ENCONTRO: «Chuva no descampado… O feno húmido …/ Abertura do gás… Nuvem frita na frigideira da lua…/ Piscadelas… Carícias intermitentes… Desaparição das formas…/ Espantoso que não tenham tropeçado no carrinho de mão do cemitério…/ “Agrado-te?” – Sim, sim…/ – “Amas-me?” – Não.»
Miguel Martins h | Artes, Letras e IdeiasDivagar [dropcap style≠’circle’]O[/dropcap] vagar é o meu maior sonho, o mais difícil. Quanto a estes últimos, tal gosto deve-se também à variedade das formas, entretanto tão uniformizadas. Alguns dos meus preferidos: o Citroën Boca-de-Sapo e a carrinha Citroën HY, que, em Lisboa, deu peixarias e bibliotecas, a carrinha Volkswagen Pão-de-Forma, o Morris Mini e o Fiat 600 originais, o BMW Isetta, com uma só porta, na dianteira, onde se situava o volante, o “espacial” AMC Pacer X, o Simca 1100 (que era o do meu pai, na minha infância) e tantos, tantos outros, mais antigos, que, em Portugal, podem ser vistos, por exemplo, no Museu do Automóvel Antigo, em Caxias, ou no Museu do Caramulo. Esse vagar, que me é tão invulgar e tão necessário, é parte da razão porque gosto tanto de museus, de bibliotecas, de algumas livrarias. Aí, encontro-me com a lentidão e o silêncio (o silêncio!, o adorado silêncio). Algumas livrarias (poderia citar muitas outras): a Strand, em Nova Iorque, mastodôntica e completíssima; a Anticyclone des Açores, em Bruxelas, dedicada às viagens; a Librairie Ancienne, do simpático Patrick Laurencier, na bonita cidade de Bordéus; e acima de todas, exclusivamente dedicada aos versos, a saudosa Poesia Incompleta, livraria que de Lisboa se transferiu para o Rio de Janeiro e aí morreu, às mãos de duas sociedades que, claramente, preferem telenovelas. Ocorre-me agora um outro estabelecimento, de que fui visitante habitual na adolescência e que permanece activo, no qual esses predicados do sossego e do silêncio se aliam a uma grande beleza, por via das peças expostas. Refiro-me à loja filatélica A. Molder, fundada por um emigrante húngaro, em 1940, e situada num 3º andar da Baixa lisboeta. Mesmo para quem não colecciona selos, é bem merecedora de uma demorada visita. Estas contam-se entre as poucas lojas que não me incomodam – não gosto de fazer compras, em geral, e detesto comprar roupas e sapatos, em particular, tanto mais que o meu tamanho faz com que os esforços de prova resultem, o mais das vezes, infrutíferos. Assim, ao longo dos anos, venho, sempre que possível, deixando tais encargos em mãos alheias, felizmente sem que com isso me ache contrariado com o que visto. Outra excepção a essa aversão às compras é, porém, a comida, pelo muito que gosto de cozinhar e, sobretudo, de comer. Gosto de bons supermercados, desde que não estejam muito cheios de lojas gourmet, desde que não sejam pretensiosas e sobreavaliadas, e, sobretudo, de mercados, com destaque para aqueles em que o peixe fresco, em diversidade e qualidade, prevalece, a par de frutas, legumes, flores, etc. Já referi aqui o excelso Mercado dos Lavradores, no Funchal. Soberbos são, claro está, o Mercat de La Boqueria, nas Ramblas, em Barcelona, e o Mercado de San Miguel, em Madrid, onde também se compra e come. Mas a minha preferência talvez vá para mercados mais pequenos, como o de Ayamonte ou o de Olhão, terras piscatórias em que se sabe do valor de tantos peixes desconhecidos ou desprezados nas grandes cidades, e que se vão mantendo mais ou menos incólumes à avidez predadora de hotéis e restaurantes. Aí se compra uma série de peixes saborosos (folhas ou cartas, agulha, ruivo, aranha, polvos pequenos, etc) a preços entre 1 e 2€/quilo. Ou seja, é possível até a um pedinte fazer as refeições que mais me agradam. De todos os peixes, os que mais me seduzem são, no entanto, os de rio: fataça, truta, sável, a dispendiosa e trabalhosa lampreia, enguias (ou irós ou eirós). Nas margens do Tejo, em várias localidades, é imperioso comê-los: em Vila Franca de Xira, na Lançada, em Tancos (bem perto do belo Castelo de Almourol, fortificação medieva implantada numa ilhota no meio do rio) ou em Vila Nova da Barquinha, por exemplo. Mas não se pense que sou completamente imune aos encantos da carne (aliás diria que, felizmente, não sou completamente coisa alguma). Acontece, apenas, que as peças de carne mais correntes – bifes, febras, costeletas, etc – me são mais ou menos indiferentes. O mesmo não se poderá, porém, dizer de fígados, pernis, cabidelas, ossobucos (ou jarretes), mãos de vaca e outras coisas que tais. A propósito: Até há meia dúzia de anos, achava a mão de vaca repugnante, meramente por questões visuais, sem que – cretino! – a tivesse, sequer, provado. Acontece que, estava eu em Cabo Verde, fui convidado para jantar em casa de D., o porteiro do prédio em que vivia. D., muito pobre, habitava num cubículo, tendo por únicos “equipamentos” um colchão, o tapete sobre o qual, sendo muçulmano, fazia as suas orações e um “campingaz”. Sobre este, cozinhara, com dedicação e habilidade, uma tachada de mão de vaca com grão, que, pelos vistos, é prato que também se come na África ocidental, de onde provinha (do Gana?, da Gâmbia?, não me recordo). Pensei com os meus botões: “Tens de te sacrificar, não te podes negar a comer o que, talvez com sacrifício, te preparou”. E assim fiz. Só que a repulsa limitou-se à primeira garfada. Imediatamente me apercebi de que o prato era delicioso e amaldiçoei-me por nunca antes o ter provado. Desde então, e até porque Lisboa é pródiga em tascas e restaurantes que o confeccionam eximiamente e existem, também, muito aceitáveis versões enlatadas, não se passa um mês em que não coma este prato. Mas como gosto mesmo de comer é em formato de tapas, com grande variedade de sabores, em pequenas quantidades, sobre a mesa. Hoje, eu, que outrora comia como um leão, só desse modo consigo ultrapassar uma medida mais ou menos frugal. Para isto, a cidade mais propícia que conheço é Bilbau, onde terei chegado a provar 15 iguarias numa só refeição.
Julie Oyang h | Artes, Letras e IdeiasVirtudes femininas [dropcap style≠‘circle’]”O[/dropcap] melhor dote é a virgindade de uma mulher.” “A mulher que sofre violência doméstica deve aprender a aceitar o marido. Este género de mulheres não se enfurece com facilidade.” “É importante que uma mulher procure um marido dentro da mesma classe social. Desta forma garante que dará à luz uma criança de linhagem nobre.” Estes gravíssimos disparates Confucianos são ensinados na China dos nossos dias e, dificilmente se imaginará o povo a agradecer ao actual Presidente chinês, pela patifaria de ter ressuscitado a grande tradição chinesa. No entanto, o meu tópico de hoje não é a China, mas sim o documentário da BBC A filha da Índia. Fala-nos sobre uma violação que teve lugar em 2012, num autocarro para Nova Deli, capital da Índia. A 16 de Dezembro de 2012, uma estudante de medicina chamada Jyoti Singh, com 23 anos de idade, decidiu ir ao cinema ver A Vida de Pi com um amigo. Às 20.30, apanhou o autocarro para regressar a casa. Realizado por Leslee Udwin, este documentário, forte, corajoso e de cortar o coração, segue passo a passo, ao longo dos seus 63 minutos, o que se vai passando naquele autocarro em movimento, enquanto Jyoti é brutalmente violada por cinco homens e um adolescente de 17 anos e, de seguida, esventrada e atirada à rua. Mas, mais do que a violação, o que verdadeiramente me impressionou foram as entrevistas: Ficam aqui algumas frases memoráveis: “Uma rapariga decente não deve andar na rua às 9h da noite. A rapariga é mais responsável pela violação do que o rapaz.” Isto, segundo um dos violadores. “Uma rapariga é como um diamante precioso. Se pusermos o diamante no meio da rua, não podemos culpar quem o leva.” “Esclarece-nos” o advogado de defesa. “Uma rapariga não deve sair de casa à noite com o namorado. Não estamos a falar de violação, estamos a falar dos direitos do homem (de violá-la).” Declara um dos violadores. “Ela devia ter ficado calada e deixado que a violássemos.” “Eu tinha-a regado com gasolina e pegado fogo”, diz outro advogado de defesa que conhece as leis indianas. A Filha da Índia provoca desgosto e revolta, mas também pena pela ignorância. O documentário mostra como nos 30 dias que se seguiram, por toda a Índia, homens e mulheres se manifestaram na rua exigindo que a constituição indiana reconhecesse a igualdade dos sexos, o que nunca viria a acontecer. Estes acontecimentos marcaram aquilo a que o procurador geral, Gopal Subramaniam, chama no filme “uma expressão momentânea de esperança social”. Na Índia, uma mulher é violada a cada 20 minutos. No entanto, a maior parte destes casos não é denunciada. A exibição do documentário está actualmente proibida na Índia, por ser considerada nociva para a imagem do país.
João Paulo Cotrim h | Artes, Letras e IdeiasGirar Sobre o Eixo Santa Bárbara, Lisboa, 6 Novembro [dropcap style≠‘circle’]N[/dropcap]ão deixou ainda de dar voltas, não sei se a minha vida, se a vida à volta. Talvez por isso, este livro e não outro, me preencha. Pequeno formato, deitado à italiana, com plastificação baça na capa, anuncia um «Circle of Life» e contém umas vinte fotos do Flávio [Andrade]. (Podem ser vistas aqui https://www.flavioandrade.com/circle%20of%20life.html, mas sem a ordem que é a matéria do livro…) Um engenho explosivo faz de cada foto cruzamento de sentidos, cujo nexo se descobre apenas na foto a seguir, aqui por via da luz, ali da textura, além do motivo, mais além do movimento, das sombras, da perspectiva, do tema, da humana figura. Findo um percurso, logo a mão e o olhar nos exigem novo. Versos de poema visual, as subtilezas encaminham-nos na direcção que estivermos dispostos a percorrer. É uma cidade (há outra além de Lisboa?) percorrida às três pancadas: start, middle e end, ou como ecoa nestas ruas: partida, largada e fugida. Mais uma voltinha no carrocel que começa nuvem e acaba mar? Horta Seca, Lisboa, 6 Novembro A Jaguatirica, editora do Rio, abriu a sua colecção Lusofonias com as cuidadas edições de «Gnaisse», do Luís [Carmelo], e «Auto-retratos», do Paulo [José Miranda]. Não contente com isso, atravessou de um pulo o Atlântico para se transfigurar em Gato Bravo, escolhendo a Abysmo galeria para se apresentar de peito aberto e a poesia de Luís Filipe Cristovão e Fernando Machado Silva. Auguri! Santa Bárbara, Lisboa, 8 Novembro Arrasto os pés, maneira de sacudir o pó do dia e reparo, apesar da desatenção, que perdi um dente, meio braço, medas de cabelo. Certos metais, com o passar dos dias e das mãos, ganham o que parece brilho, mas afinal se faz mancha baça, ilha de cor ausente. Por estes dias parvos, devia desligar a sensibilidade. Se de súbito fiquei invisível, pulo ou desfaço-me na racha da parede? Se me insultam com a melhor das intenções, respondo ou agradeço a atenção? Quando próximos sobem ao ringue do disparate, visto calções ou ponho estetoscópio? Se o amigo acena entredentes a distância de um adeus, fingindo o contrário, corro ao encontro ou sento-me pesadamente? Se percebo finalmente que o meu lugar deixou de ser o habitual, exijo que se repita a história ou bebo um gole para ajudar a engolir? 300° /RTP3, Lisboa, 9 de Novembro Assusto-me: minuto a minuto passaram décadas. Spam Cartoon regressa à antena, agora da RTP, sempre às quintas, primeiro no seu ambiente natural, em espaço informativo (e nobre) na 3, e depois na 1, algures perto do humor noctívago. O filme não chega ao minuto, mas o esforço para pôr a mexer o comentário humorístico tradicionalmente fixo na página, esse dura há cerca de dez anos – a começo meu e do André [Carrilho], logo depois acompanhados pela Cristina [Sampaio], que já havia tentado pôr a mexer as suas ilustrações, o João [Fazenda], todos no desenho, e o José Manuel [Condeixa], na sonorização. O que nos parecia óbvio, que as novas plataformas pediam outros dinamismos nos modos de desenhar a opinião, esbarrou com a realidade do sempiterno preconceito, da gorda preguiça, da mera desatenção. Com a honrosa excepção do António José Teixeira que tem lutado tanto como nós e que viu, há cerca de um ano, a sua encomenda para assinalar a tomada de posse de Trump tornar-se viral. Como em álbum de recortes, já manchado pelo ácido e o labor dos lepisma saccharina, desculpem, peixinhos-de-prata, saltito pelos filmes que fomos fazendo nas diferentes circunstâncias (https://www.spamcartoon.com/) e ainda me divirto com as metáforas e os figurões (e com a memória das discussões). Talvez tenha chegado a hora de disparatar um pouco mais. Coincidência: pela manhã, mergulhei na cave com vista (Lisboa tem destes paradoxos) que, em tempos, foi o estúdio do José Vilhena. Controlei-me, por ser assunto sério, e não desatei aos pulos no meio dos despojos de uma batalha ainda não completamente vencida pelo tempo. A minha adolescência não teria sido a mesma sem Vilhena. E temo até que a minha admiração pelo seu trabalho de lepisma saccharina da nação me tenha custado, há décadas, o periclitante lugar de cronista da revista Ler. Cometi o erro de incluir «A Hora da Verdade» na lista dos livros que explicavam os dias, não apenas os da ditadura, mas os da ditamole. O tema? «Procurando não pecar por exagero derrotista vou tentar analisar a situação do país em matéria de instalações sanitárias, mas com objectividade e utilizando, claro, um ponto de vista sócio-económico como convém a qualquer pessoa que se preza ao abordar assuntos sérios.» Que filme escreveria pondo o Trumpalhão no lugar de protagonista (nesta página vai aquele que André Carrilho desenhou para este nosso primeiro filme)? Casa da Cultura, Setúbal, 10 Novembro Ainda antes do oficial atiramento na capital, fomos plantar prosa um pouco mais a sul, com o Bruno [Portela] e o Zé Teófilo [Duarte], tomando por pretexto o rutilante «Consciência de Situação – Um Ensaio sobre The Falling Man», do António [Araújo]. O fotojornalismo e a força simbólica da imagem, ou a estetização do horror, foram apenas alguns dos temas abordados em conversa viva e solta. Em cada tema que desenvolve, o António oferece inacreditável súmula de informação, abrindo na passada reflexões nos mais diversos sentidos e direcções, passe o trocadilho e a rima. Neste, sobre o 11/9, está muito presente o enigma da salvação com o que contém de perturbador: os jumpers limitaram-se a fugir ou tomaram corajosa e reflectida decisão? Quanto de humano há nesta subtil diferença… O seu ritmo de trabalho fascina-me, crónico desorganizado. No espaço de um ano, foram três os ensaios dados à estampa em livro, e sabe-se lá quantos mais terá prontos a sair do forno. «Matar o Salazar» (ed. Tinta-da-China) escalpeliza «O Atentado de Julho de 1937», compondo a síntese de referência sobre este notável episódio. E sublinhando o que me parece fulcral: mais do que conspiração de forças políticas, capitaneadas pelos anarquistas, com apoio de militantes comunistas de base, tratou-se de um gesto de desespero dos estratos mais baixos da sociedade de então. E que tornou patente o supremo paroquialismo da nação, com uma das polícias a condenar inocentes, outra a descobrir, em conflito aberto, os verdadeiros autores, e ambas internamente investigadas sem consequências. Só a propaganda soube aproveitar o pretexto para pintar aura de santo inoxidável no ditador. Tudo perante a passividade dos jornalistas e do arremedo da opinião pública. António não esconde um dos seus amores e trata de afixar melancólico retrato de duas lisboas: a burguesa e a popular. Como que passeando pelas suas ruas, surge ainda o libertário Emídio Santana, impressiva figura com a qual também me cruzei e de quem aprendi o valor explosivo da liberdade.
Paulo José Miranda h | Artes, Letras e IdeiasA Sombra de Teseu (assim que a criada sai, vira-se para Fedra) [dropcap style≠’circle’]C[/dropcap]omo explicas que nem a tua criada alguma vez tenha sequer ouvido falar de tal trama? Como explicas que ela sequer tenha sabido do teu desconforto, como dizias, acerca dos avanços de Hipólito? Queres convencer-me que se tal acontecesse, tu não abririas o teu coração, a tua preocupação com aquela que te viu crescer e que te ajudou a chegar com vida até aqui? FEDRA (como se algo a tomasse, como se não tivesse mão em si) Porque não confessas que nunca me amaste, como amaste Antíope, a grande amazona, mãe de Hipólito? Porque não acreditas nas minhas palavras, mesmo que os factos pareçam contrariá-las? Mas sabes porque é que não acreditas? Sabes porquê, Teseu, sabes? Porque não me amas e nem nunca me amaste, de verdade! Porque se me amasses, acreditarias sem pestanejar. Acreditarias em mim como se a minha própria voz fosse a voz de uma deusa. Mas não, tratas-me como a qualquer mortal, com justiça! Mas que justiça tem o amor, Teseu? Que justiça? Achas que é por justiça que estremeci em teus braços, com o teu peso sobre o meu frágil corpo? Não, não há um grama de justiça no amor, Teseu! TESEU Falas em não te dar ouvidos? Eu, que matei meu próprio filho, meu filho único, porque tomei por certas as tuas palavras? FEDRA Mas não foi por mim que o mataste, Teseu! Não te enganes a ti mesmo. Mataste Hipólito, porque como o homem mais forte da Hélade preferes matar teu filho por engano, e assim preservar a tua honra, do que, embora certo, não o matar e com isso manchares a tua honra por todos os gregos. Não te deixes enganar, Teseu, foi por orgulho que mataste teu filho! Não foi por amor, não foi por mim. E nem por justiça… talvez até tenhas morto por ódio, mas não por amor. TESEU Não foi por amor, dizes? Por ódio? Que ódio, mulher? Sou um guerreiro! Guerreiro algum traz ódio em seu coração, a não ser que procure a morte na lança ou na espada mais próxima. O ódio é o veneno que mata a concentração, que mata a atenção necessária no combate. Jamais cedi ao ódio, mulher! Jamais! Ódio é coisa de mulheres! FEDRA Por amor é que não foi! TESEU Não é de amor que falas quando dizes amor, Fedra! Aquilo de que falas é de paixão, falas das flechas de Afrodite, não das flechas de Eros. FEDRA Flechas são flechas, Teseu! Quando nos atingem fazem-nos doer. TESEU É verdade, Fedra! Mas as flechas de Afrodite são venenosas. Atingem o corpo, mas arruínam todo o senso de uma pessoa. Cegam-nos para a vida! Assim como me parece que tu estás, Fedra! FEDRA Cega para a vida, eu? TESEU Sim, Fedra! As tuas palavras não são tuas. As tuas palavras nascem do veneno das flechas de Afrodite! Já vi esse veneno a espalhar-se pelo corpo e pelo juízo de muitos, sei identificá-lo quando o vejo. As palavras não mentem. FEDRA As palavras não mentem, dizes? (e ri-se como louca) As palavras não mentem, diz o senhor todo poderoso, o rei de Atenas, o mais forte e corajoso dos homens! (e volta a rir-se novamente) TESEU O conteúdo delas mente, Fedra! Sou guerreiro, mas os juízos e pensamentos nunca me foram estranhos, como bem sabes. Aquilo que elas dizem ou querem dizer são ou podem ser mentira, mas não o modo como elas são pronunciadas. E o descontrolo com que falas mostra o veneno de Afrodite a percorrer-te as veias, a minar-te o juízo, a arruinar-te a vontade. Vejo-o agora claramente! E como lamento não o ter visto antes. (silêncio) Responde-me, por favor: Hipólito também estava apaixonado por ti, ou só tu foste atingida pelas flechas de Afrodite? FEDRA E isso muda alguma coisa, Teseu? Qual seja a minha resposta vai insuflar vida naquele corpo que arrefece neste palácio? TESEU Nenhuma vida volta da morte sem que os deuses o queiram. Mas uma vida para continuar tem de saber a verdade, tem de saber o que aconteceu. Nenhuma vida segue o seu caminho nas mãos da Dúvida! FEDRA Pois então deixa-me dizer-te que irás continuar a tua vida sem continuar, rei de Atenas! Desta boca não sai nenhuma verdade. TESEU Que te aconteceu, Fedra, para te tornares uma tão vil criatura? FEDRA O que me aconteceu, amado, foi o corpo de Hipólito! A imagem dele em mim, aqueles braços de pequenas árvores, aquele peito de alegria pura, a barriga de escudo de Esparta, as pernas que costumavas usar quando me conheceste. Foi isto que me aconteceu, Teseu! Todos os dias vê-lo, e vê-lo através da tua ausência, e vê-lo através de nenhuma palavra atirada à minha vaidade. Foi isto que me aconteceu, Teseu! Não sou apenas a tua mulher, homem! Sou uma mulher! Sim, é verdade, primeiro sou tua mulher e só depois sou mulher. Mas as tuas constantes ausências fizeram com que se invertesse a ordem das coisas. (pausa) Ou tu julgas que Afrodite não sabe a quem disparar as suas flechas? Julgas que Afrodite seria capaz de disparar flechas a Hipólito? Julgas que seja capaz de disparar flechas a quem não tem uma falha na existência? Julgas que Afrodite seria capaz de vergar Hipólito, à força de flechas, Teseu? Julgas isso mesmo? Julgas que os deuses têm esse poder todo? Há os deuses e há as nossas falhas, meu amado! Ninguém fortalecido seria derrubado pelas flechas de Afrodite. Julgas que, anos atrás, Afrodite teria poder de me vergar a outro homem? Nem com milhares de flechas, Teseu! A culpa não é só da deusa. A culpa é de todos. Da deusa, minha, tua e até de Hipólito. Sim, de Hipólito, pois embora ele seja imune à paixão, deveria conter-se na sua apresentação, pois a maioria não é como ele. Sem querer, ele mesmo instigou a flechas de Afrodite. E a sua ignorância não o perdoa de nada. Não sabia do que era capaz de despertar numa mulher? Soubesse, pois tinha idade e corpo para isso. (junto a Teseu, quase cara com cara) Não sou vil, Teseu, sou mal amada. (desembainha a espada de Teseu e afasta-se, com ela na direcção dele, para que não se aproxime) Não venhas ter comigo, Teseu. Há muito que te afastaste. Não venhas agora. Agora é tarde. Dói-me mais a morte de Hipólito do que a minha ou do que a possibilidade da tua. Sim, desejei vê-lo morto por não me querer! Mas a morte dele é um absoluto não. (silêncio, Fedra dá-se conta do que disse) Pronto, já podes continuar, homem vivo! Já sabes que ele não me desejou, que ele me recusou, que ele dizia a verdade, naquela sala onde lhe derramaste a vida no chão, pelos intestinos. Sabes tudo, meu amado! Agora sabes tudo e poderás continuar. E não irás carregar nem a culpa, nem a justiça da minha morte Teseu. Pois prefiro matar-me, a ser morto pelo pai daquele a quem amei. E que me importa que não seja amor? Que me importa que não seja amor o que sinto, o que senti por aquele corpo? Importa-me que tenha sido paixão? Importa-me que tenha sido desvario? Importa-me alguma coisa, filho de Egeu? Não me importa nada! Nada. Talvez morta possa ainda encontrar e viver naquele corpo! Aquele corpo era a razão de ser desta minha vida. A razão de ser deste meu desprezo por ti, Teseu. Nenhum homem, nem o Minotauro te derrotou, mas foste derrotado pela imagem do teu filho. Aqui, aqui (e bate no ventre) arde uma vontade pelo homem a quem deste o seu ser! Não foi daqui que ele veio, como o fizeste vir de Antíope. Era para aqui que eu queria que ele viesse, como um dia tu mesmo vinhas! Aqui, Teseu, (e bate no ventre), aqui! Lembras-te? Esta terra, na minha vontade, hoje e para sempre será sempre de Hipólito. (e cai sobre a espada de Teseu ao encontro da morte; entra o coro de mulheres)
Amélia Vieira h | Artes, Letras e IdeiasEscorpião [dropcap style≠’circle’]— Q[/dropcap]uem? — Eu não! De facto não sou Escorpião, esse emblemático e tenaz signo. Era tão grande enquanto casa zodiacal que ia de Setembro a Novembro e teve de ser partido ao meio dando a constelação de Libra com todas as características de César. Hoje, por exemplo, nasceu Pablo Picasso e quem não vê naquele monstro belo um derradeiro Escorpião não viu nada. Um monstro de beleza! Já a mãe o apelidava assim por causa da sua aura de perfeição. Estes hipnóticos seres também se auto-hipnotizam pois que ninguém fica imune aos venenos que fabrica. Mefistofélicos, o olhar estabelece direcções fixas que vêem tudo ao redor e num assombro de ilimitada audácia olham para coisas que cegam. Os seres simples tendem para uma grande harmonia e jamais lhes ocorre o que pode acontecer numa estrutura complexa, vão até ao olhar de uma comoção qualquer e voltam para trás para que não perturbem a sua existência de leis instáveis, mas que funcionam. A mais brilhante é manterem-se vivos e nem mesmo essa chega para iluminar. Escorpião! Onze horas da manhã, missa solene. Todos os Santos e mais que fossem, e eis que de súbito a terra treme, o rio levanta-se, uma menina nasce a essa hora na Áustria, a Fada Malvada a seu lado desfere um anátema – Escorpião – tudo em roda de fogo para esse dia. Que Fausto também se circunda numa e de lá diz: «Agora sou eu o deus para toda a Eternidade». Vejamos como se comportam os Fados, Escorpião, neste teu tempo ainda em cinzas para que não se acabe de vez o que fora começado, ou, na labareda ainda dormente, terás, Escorpião, de te socorrer da doutrina Kamikaze fundada neste dia: vou morrer, pois que a morte a mim não me mata, quem mata a morte sou eu. Escorpião! Escorpião! Avança o tempo incerto que tão forasteiro é e que perto está de ser levado para a gruta trituradora da tua natureza que um génio soberbo arrasta para o fundo. Entre ti e o Dragão há agora uma guerra pois que a fúria não é Escorpião, mas sim o ódio, o poder indómito, a eternidade transformada, o sagrado fixo que ao redor das chamas avança sobre si, severo e sem flores vamos encontrar o teu jardim das pedras trituradas e da aridez mais transparente, o único local para continuar. O quê? Não sabemos. Tu sabes, Escorpião, e na profunda telepatia que une tudo, em ti esconjuras os nossos medos e penetras nos sonhos onde desocultamos esse instante vindouro. Escorpião! A fronteira entre a nação dos espíritos e a roda viva dos mortos, a fugaz passagem, a tua máscara, a beberagem, a orgia, o vício, a maré baixa, o lodo, o pântano, a combustão… és uma festa de Assombros! Todo este tempo é Escorpião mesmo dividido, mas o que se passa mais abaixo são coisas que não vejo, afinal tudo é queda, chegamos ao fundo e recomeçamos somos a pedra de Sísifo em roldana móvel para o improvável, lá nos aguentamos até um cume costumeiro que desliza mais rápido do que sobe pois que há leis tão graves que lhes chamamos até de gravidade. Vamos impelidos pelo teu olhar, mas na fornalha do meio nem tu lá estarás para nos receber, Escorpião, por isso navegaremos sem rotas nesse limbo até de novo se abrir a porta. Escorpião! Hoje ainda é Verão e o teu calor baixa como uma atmosfera sem longas catedrais, a nave jaz nesta recriada atmosfera onde não sabemos já nada das Estações, mas sente-se o teu estandarte de fina estampa nas nossas veias, parece mordaça… fazer sangrias não é de Escorpião, o pântano não engloba o vermelho, filtra tudo em negritude e estanca a hemorragias essa massa orgânica dos insuportáveis mártires, por baixo, nos pântanos, somos eléctricos com desejos tais que fazemos do sexo a mais brilhante marca da tua urdidura, que não são precisos dentes para nos estilhaçarem, não, com pinças precisas atingimos os altos cumes onde bem vistas as coisas o amor mora. Só depois de transfigurado. Escorpião, o teu reino está quase vazio. Não havendo espaço para a deidade dos pequenos instantes de prazer o deserto é uma estrada sem fim mas a única possível onde te podes esconder…vem o Fogo, e os desertos não ardem, e se assim acontecer será sempre às portas dos oásis, fronteiras, sempre fronteiras para saciar os vivos e os mortos e o teu reino não ter fim. Escorpião! Há um acelerador de partículas em movimento mas que não sabemos para onde se dirige, sem que se mova, mais nada sabemos da secreta origem, que tu guardas, parado, cauda levantada bela a curva o ataque na curva curvados vamos e tão indómito te tornas que as serpentes se afastam pondo os ovos nas nossas cabeceiras onde sonhamos frágeis esses dias breves. Urdiduras, sinais, rebentações. Transformamo-nos. E agora que a morte é tabu, acabarás como Urizen por ver consumado o perpétuo isolamento do teu mundo. E as Paixões que se querem estáticas como os antigos glaciares derreter-se-ão à nossa frente como o fim provável dos mistérios; sombrio concebia os seus horrores gelados, a ressoar como trovões de Outono, que sobre as searas incendeiam nuvens. Escorpião! Viemos prestar-te culto.
José Simões Morais h | Artes, Letras e IdeiasCrisântemo, a Flor de Ouro do Outono [dropcap style≠’circle’]A[/dropcap] cultura tradicional chinesa tem quatro plantas (si jun zi) como temas usados pelos eruditos (escritores, pintores e calígrafos) nos seus poemas e pinturas pois elas simbolizam quatro respeitáveis características que expressam a sua percepção de vida e os elevam à condição superior do ser humano. A flor da ameixoeira (em mandarim Mei, 梅) representa o Inverno, altura em que floresce e simboliza energia e coragem, renovamento pessoal e perseverança. A orquídea (em mandarim Lan, 兰), escolhida para representar a Primavera, simboliza não ter medo das dificuldades, humildade, autodisciplina e pureza de espírito. O bambu (em mandarim Zhu, 竹), ligado ao Verão, é símbolo de integridade, rectidão, virtude e devoção, paixão pelo estudo, significando firmeza, flexibilidade e resistência. O crisântemo (em mandarim Jü, 菊) está relacionado com o Outono, pois é nessa estação que aparece, quando já as outras flores murcharam e representa comportamento apropriado e ético. Jun Zi servia ainda para significar a categoria de homem distinto e honrado. Conhecida na China por JüHua (菊花 kók fá em cantonense), o nome de Chrysanthemum L. foi-lhe dado na Europa em 1689 por Breynius, devido a chrysos significar ouro, sendo universalizado pelo holandês Linneu. Da família das asteráceas, o crisântemo, que pode apresentar-se em 23 mil diferentes formas, tem na cor amarela a mais comum das suas tubulares (longas e finas) pétalas, apesar de se encontrar com outras colorações, como branco, vermelho escuro e roxo. De cultura fácil, propaga-se por sementes, ou em estacas. É a flor de Outono, pois normalmente aparece durante esta estação do ano e dura até começarem as geadas, simbolizando a longevidade. “Denominada beleza para sempre, representa a jovialidade e amizade e é apreciada pela riqueza das suas cores”, segundo Luís Gonzaga Gomes. No Outono pelo chão O poeta Tao Yuanming (365-427), referido por António Graça Abreu no início do Prefácio do livro Poemas de Han Shan (editado por COD, Macau, 2009), apresentou-se precocemente envelhecido, sereno, sobraçando um ramo de crisântemos quando os deuses da poesia decidiram convidar os maiores poetas da China para um banquete de príncipes e letrados, algures num terraço entre nuvens pendurado numa das montanhas mágicas do velho Império do Meio. Tao Yuanming escreveu sobre os crisântemos e no seu poema “Bebendo vinho”, (retirado do livro Poemas de Tao Yuanming, prefácio e notas de Manuel Afonso Costa, editado por Livros do Meio, Macau, 2013), na sétima parte refere, <Crisântemos de Outono de cores fascinantes / eu vos colho carregadas de orvalho / e mergulho no vinho / para esquecer as mágoas / e os pensamentos do mundo…” Ficcionada por FengMengLong (冯梦龙) durante a Dinastia Ming, a história ‘O vento de Outono fez cair as pétalas dos crisântemos’ reporta-se a duas personagens da Dinastia Song do Norte (960-1127); Su Shi (1037-1101), mais conhecido por Su Dongpo e Wang Anshi (1021-1086), escritor, poeta, oficial civil, três vezes Governador de Nanjing e por duas vezes Primeiro-Ministro. Ainda jovem, Su Shi, após se distinguir nos exames imperiais de Keju e ter o título de Jinshi, ficou a trabalhar na capital Kaifeng sob as ordens do primeiro-ministro Wang Anshi, que gostava dele devido à grande inteligência. Mas Su Shi era muito orgulhoso e não perdia uma oportunidade de se mostrar, considerando os outros inferiores, em inteligência e conhecimento. Wang Anshi, sabendo da falta de modéstia de Su Shi, mandou-o para Huzhou como governador. Após três anos, Su regressou à capital e foi ao palácio visitá-lo, onde o informaram estar o primeiro-ministro a dormir. Convidado a entrar nos aposentos de trabalho de Wang, pois reconhecido pelos funcionários, ali se quedou esperando. Perscrutando o local, vislumbrou sobre a mesa um papel com um poema ainda por terminar, algo invulgar, pois lembrava-se das qualidades do seu superior em escrever de seguida relatórios e grande quantidade de poemas. Lendo-o: <Ontem à noite o vento de Outono atravessou o jardim / fez cair as pétalas dos crisântemos, cobrindo o chão de ouro>. O inacabado poema em estilo shi, que deveria ter quatro versos cada um com sete caracteres, estava com imensos erros, pensou ele, pois, esta flor só abre nos finais do Outono e as pétalas, mesmo no Inverno, nunca caem, podendo apenas ficar a flor seca. Tentação irresistível ao olhar para as duas linhas do poema e numa atitude inconsciente resolveu terminá-lo, escrevendo: “As flores de Outono não caem tão facilmente como as da Primavera / por favor pense com cuidado.” Impulso de que logo se arrependeu. Sem poder emendar o erro, resolveu ir embora. Ao acordar, Wang já no seu estúdio de trabalho reparou na folha escrita e reconhecendo a caligrafia, desabafou não terem chegado três anos para Su aprender a ser modesto. Na audiência com o Imperador, o primeiro-ministro referiu precisar Su Shi de praticar mais para conseguir ser um bom governador e assim, escolheu um pequeno local para o colocar, numa posição mais baixa, destacando-o para Huangzhou, na província de Hubei. Su Shi, percebendo estar a ser punido pela ousadia de ter escrito aquelas verdades no poema do primeiro-ministro, com um sentimento de superioridade, tentou não se importar, pois sabia ser injusta aquela colocação. Antes da partida, Wang convidou-o para um almoço onde referiu Huangzhou como um lugar relaxante e por isso, poderia ler mais livros. Ao ouvir tal provocação, Su Shi ficou interiormente zangado pois fora um dos melhores nos exames imperiais. Chegou a Huangzhou em Novembro de 1079 e após uma série de dias de vento forte, a não permitir sair de casa, no dia seguinte à Festividade ChongYang (Duplo 9) foi visitado por um amigo. Su Shi lembrou-se ter à chegada sido recebido com um crisântemo e por isso, sendo esta a melhor altura para o observar, propôs uma ida a um jardim com essas flores. Ao entrarem, Su Shi apanhou um choque. Viu as pétalas amarelas das flores espalhadas pelo chão, cobrindo-o como que de ouro. Reconheceu então o seu erro e compreendeu a razão de ser para aí enviado. Como o ditado chinês refere, “Por mais que se saiba, devemos permanecer modestos, pois nunca sabemos tudo.” Segundo Luís Gonzaga Gomes, as vestes dos mandarins (oficiais civis) “nas dinastias Ming e Qing eram bordadas com motivos florais como a peónia, ameixoeira, lótus, crisântemo e pássaros”. Também nos bordados xiang, de Changsha, capital da província de Hunan, as figuras mais usadas são o leão, o tigre e o crisântemo. Já o realizador chinês Zhang Yimou no filme de 2006, Man Cheng Jin Dai HuangJin Jia (A Maldição da Flor de Ouro) usa o bordado aliado com o simbolismo do crisântemo, num drama épico que se desenrola nos finais da dinastia Tang. Em Kaifeng, província de Henan, realiza-se todos os anos, entre 18 de Outubro a 18 de Novembro, o Festival dos Crisântemos, que já vai na sua 35.ª edição e onde são expostos milhões de vasos com essa flor.